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A TINA AFLITA
A Tina não tem tino. Coisas que se dizem e se
espalham, sem quê nem porquê. Serão verdade? Serão
mentira? Eu cá não respondo.
Sucedeu, uma vez, que a Tina, acabada de chegar da
escola, ainda afogueada da corrida, recebeu da mãe esta
incumbência:
– Vai, se fazes favor, buscar a tua irmã a casa da avó.
– Levo o carrinho? – perguntou a Tina, que gostava de
guiar cadeirinhas de bebé.
A mãe disse que sim e a Tina desarvorou, empurrando o
carrinho, que ia leve, muito leve, como se imagina.
Não era grande a distância. A Tina pôs-se num instante
em casa da avó. Pegou na irmãzinha, que palrava e ria,
contente com a viagem que a esperava e voltou pelo
mesmo caminho.
1
Ao passar por um jardim, umas amigas da Tina
desafiaram-na para o jogo do apanha. Convite irresistível.
A Tina colocou a cadeirinha com a bebé à sombra de
uma grande piteira e foi brincar. Até que se fartou.
Suada e cansada, voltou ao sítio onde deixara a bebé.
Sentiu um baque no coração. A irmã? Onde estava a irmã?
Nem bebé nem cadeira de bebé. Muito aflita, pôs-se a
chamar:
– Filipa! Filipa! – como se a bebé soubesse responder-
-lhe.
Olhou em volta e viu, lá adiante, uma senhora apressada,
a empurrar uma cadeirinha. Levava-lhe a irmã, a grande
ladra. Patifa.
Correu, correu e quando chegou perto da senhora,
agarrou-lhe a aba do casaco e gritou:
– A minha irmã. Dê-me a minha irmã.
A senhora também gritou, a desembaraçar-se daquela
miúda desgrenhada, que não se despegava dela.
Na cadeira de bebé, um garotinho de olhos espantados a
tudo assistia. Quando percebeu o engano, a Tina fugiu, sem
saber como pedir desculpa.
Percorreu o jardim de ponta a ponta. Chorava. Por
situações destas ninguém queira passar.
Um guarda apercebeu-se do desespero da mocinha e
quis inteirar-se da causa.
– Roubaram-me a irmã – contou a Tina, desfeita em
lágrimas.
– Donde? – perguntou o guarda.
A Tina indicou. Voltaram para junto da piteira e,
efectivamente, do carrinho e da bebé nem rastos.
2
– Mas há outra piteira igual, mais adiante – apontou o
guarda.
Foram ver. Lá estava a Filipa, tranquilamente a dormir,
na cadeirinha. Afinal, a Tina tinha confundido as piteiras,
ambas grandes, ambas da mesma cor, ambas com asas de
dragão. A cadeirinha nunca tinha saído do mesmo sítio.
Ninguém raptara a bebé.
A Tina abraçou-se à irmã, a chorar. A bebé sentiu-se
apertada e também chorou. Até o senhor guarda se
comoveu.
Por mais anos que viva, por mais tino que ganhe, a Tina
nunca mais vai esquecer-se do que naquela tarde lhe
aconteceu.
FIM
3

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04.05 a tina aflita

  • 1. A TINA AFLITA A Tina não tem tino. Coisas que se dizem e se espalham, sem quê nem porquê. Serão verdade? Serão mentira? Eu cá não respondo. Sucedeu, uma vez, que a Tina, acabada de chegar da escola, ainda afogueada da corrida, recebeu da mãe esta incumbência: – Vai, se fazes favor, buscar a tua irmã a casa da avó. – Levo o carrinho? – perguntou a Tina, que gostava de guiar cadeirinhas de bebé. A mãe disse que sim e a Tina desarvorou, empurrando o carrinho, que ia leve, muito leve, como se imagina. Não era grande a distância. A Tina pôs-se num instante em casa da avó. Pegou na irmãzinha, que palrava e ria, contente com a viagem que a esperava e voltou pelo mesmo caminho. 1
  • 2. Ao passar por um jardim, umas amigas da Tina desafiaram-na para o jogo do apanha. Convite irresistível. A Tina colocou a cadeirinha com a bebé à sombra de uma grande piteira e foi brincar. Até que se fartou. Suada e cansada, voltou ao sítio onde deixara a bebé. Sentiu um baque no coração. A irmã? Onde estava a irmã? Nem bebé nem cadeira de bebé. Muito aflita, pôs-se a chamar: – Filipa! Filipa! – como se a bebé soubesse responder- -lhe. Olhou em volta e viu, lá adiante, uma senhora apressada, a empurrar uma cadeirinha. Levava-lhe a irmã, a grande ladra. Patifa. Correu, correu e quando chegou perto da senhora, agarrou-lhe a aba do casaco e gritou: – A minha irmã. Dê-me a minha irmã. A senhora também gritou, a desembaraçar-se daquela miúda desgrenhada, que não se despegava dela. Na cadeira de bebé, um garotinho de olhos espantados a tudo assistia. Quando percebeu o engano, a Tina fugiu, sem saber como pedir desculpa. Percorreu o jardim de ponta a ponta. Chorava. Por situações destas ninguém queira passar. Um guarda apercebeu-se do desespero da mocinha e quis inteirar-se da causa. – Roubaram-me a irmã – contou a Tina, desfeita em lágrimas. – Donde? – perguntou o guarda. A Tina indicou. Voltaram para junto da piteira e, efectivamente, do carrinho e da bebé nem rastos. 2
  • 3. – Mas há outra piteira igual, mais adiante – apontou o guarda. Foram ver. Lá estava a Filipa, tranquilamente a dormir, na cadeirinha. Afinal, a Tina tinha confundido as piteiras, ambas grandes, ambas da mesma cor, ambas com asas de dragão. A cadeirinha nunca tinha saído do mesmo sítio. Ninguém raptara a bebé. A Tina abraçou-se à irmã, a chorar. A bebé sentiu-se apertada e também chorou. Até o senhor guarda se comoveu. Por mais anos que viva, por mais tino que ganhe, a Tina nunca mais vai esquecer-se do que naquela tarde lhe aconteceu. FIM 3