A Justiça reexaminou a decisão sobre as delegacias de polícia de São José e obrigou o Estado a fazer as obras de melhorias nas unidades de recolhimento de presos para garantir a integridade física e moral dos detentos. Na primeira sentença, o Juízo da Vara da Fazenda Pública de São José havia atendido parcialmente ao pedido do Ministério Público de Santa Catarina e determinado, apenas, a não utilização das celas sem as condições de higiene, salubridade, iluminação, aeração e segurança.
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Cidadania - Reexame Necessário n. 2013.005582 3
1. Reexame Necessário n. 2013.005582-3, de São José
Relator: Des. Cesar Abreu
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CADEIA PÚBLICA. CELAS.
NECESSIDADE DE OBRAS E SERVIÇOS DE REFORMA, COM
VISTA A GARANTIR A SALUBRIDADE, HIGIENE, ILUMINAÇÃO,
AERAÇÃO E SEGURANÇA. DIREITO DO DETENTO À
INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL. EXIGÊNCIA LEGAL DE
CADEIA PÚBLICA NA COMARCA (LEF, ART. 102) E DE
ATENDIMENTO A REQUISITOS BÁSICOS PARA
FUNCIONAMENTO DE UNIDADE CELULAR (LEF, ART. 88).
POLÍTICA PÚBLICA CUJA IMPLEMENTAÇÃO NÃO PODE SER
DESCONSIDERADA PELO ADMINISTRADOR PÚBLICO.
PODER DISCRICIONÁRIO NÃO ABSOLUTO. INTERVENÇÃO
DO JUDICIÁRIO NO CASO CONCRETO, EVIDENCIADA A
OMISSÃO ESTATAL. AUSÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO
DA SEPARAÇÃO DE PODERES. OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE
NÃO FAZER. EXECUÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE FAZER A SER
SATISFEITA À CUSTA DO DEVEDOR (PODER PÚBLICO),
MEDIANTE SEQUESTRO DE VALORES, SE FOR O CASO.
MULTA DIÁRIA QUE NÃO ATENDE AO ESPÍRITO DA TUTELA
PRETENDIDA. REEXAME PARCIALMENTE PROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Reexame Necessário n.
2013.005582-3, da comarca de São José (Vara da Fazenda Pública), em que é autor
Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e réu Estado de Santa Catarina:
A Terceira Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, dar
parcial provimento ao reexame. Custas legais.
O julgamento, realizado no dia 8 de abril de 2014, foi presidido pelo
signatário, com voto, e dele participaram os Exmos. Srs. Des. Pedro Manoel Abreu e
Des. Carlos Adilson Silva. Funcionou como Representante do Ministério Público o
Exmo. Sr. Dr. Guido Feuser.
Florianópolis, 05 de junho de 2014.
Cesar Abreu
PRESIDENTE E RELATOR
2. RELATÓRIO
Cuida-se de ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra o
Estado de Santa Catarina, na qual objetiva a imposição de obrigação de fazer e não
fazer relativamente às celas das Delegacias de Polícia de São José, 1ª, 2ª e 3ª DPs,
ocupadas para segregação provisória, com vista a garantir a salubridade, higiene,
iluminação, aeração e segurança.
Julgada parcialmente procedente a ação, deferida apenas a obrigação
de não fazer, consistente na abstenção de ocupação das celas fora do padrão
legalmente exigido, com fixação de multa diária por descumprimento, os autos
alçaram a este Tribunal por força do reexame necessário.
Neste grau de jurisdição, ouvida a douta Procuradoria - Geral de Justiça,
em parecer da lavra do Dr. André Carvalho, pelo provimento da remessa, com a
fixação da obrigação de fazer, consistente na reforma, reparos e melhorias do
ambiente das celas, e condenação á verba honorária.
Este é o relatório.
VOTO
A sentença é de ser reformada em reexame, para incluir a obrigação de
fazer.
Colhe-se sem muito esforço interpretativo, que a lei de execuções
penais, aplicável -igualmente aos presos provisórios- (art. 2º, parágrafo único),
determina expressamente que -são requisitos básicos da unidade celular- (art. 88), a)
-salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana-, e b) -área mínima de seis
metros quadrados-. Essa mesma lei, ainda, prevê que -a Cadeia Pública destina-se
ao recolhimento de presos provisórios- (art. 102), bem assim, que -Cada Comarca
terá, pelo menos, uma Cadeia Pública a fim de resguardar o interesse da
Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu
meio social e familiar- (art. 103).
Dos autos, por outro lado, exsurge como fato incontroverso, aliás,
admitido pelo próprio Estado (fls.178-186), o seguinte:
1ª Delegacia de Polícia: que a carceragem encontra-se desativada
desde a criação da central de Polícia no ano de 2005. Há uma sala com grades para
manutenção do preso durante a lavratura do flagrante;
2ª Delegacia de Polícia: que funciona no mesmo prédio a Central de
Plantão Policial, local onde são confeccionados os flagrantes fora do expediente,
feriados e finais de semana. O espaço é pequeno, a construção é antiga, mas é o
único na Comarca para contenção de presos;
3ª Delegacia de Polícia: que há espaço reservado para preso enquanto
é lavrado o auto de prisão em flagrante. Que não sendo as Delegacias de Polícia
Unidades Prisionais, não contam com celas, mas com espaços destinados a essa
permanência provisória, portanto não conta com agente prisional, banheiro, cama,
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3. colchão, ou alimentação.
Do Procedimento Preparatório instaurado pelo Ministério Público é
possível extrair, também, não só a confirmação do relato acima, a ocorrência de
superlotação e a falta de salubridade do ambiente carcerário provisório.
O Estado, em sua contestação, não nega tenha havido a interdição das
celas pela Vigilância Sanitária, como ainda confirma que as celas da 2ª DP foram
esvaziadas, com a transferência dos presos, bem assim que as celas da 1ª e 3ª DP-s
encontram-se desativadas. Fixa-se, entretanto, na defesa jurídica da causa, para se
insurgir contra qualquer intervenção judicial sobre o tema, alinhando como
discricionária a atuação estatal combatida.
Pois bem. Feitos esses registros, cumpre evidenciar que a provocação
da atuação do Poder Judiciário corre por conta do seu papel constitucional de
assegurar aos cidadãos o pleno gozo das franquias constitucionais, como garantir a
integridade e supremacia da Constituição. Nesse passo, não lhe é empeço, para agir,
o princípio da separação de poderes, lido na atualidade como não mais do que a
simples separação de funções, controlado, fiscalizado e coordenado pelos diferentes
órgãos do Estado Democrático de Direito. A partir da formulação desse novo conceito
de divisão funcional, na perspectiva de que o Estado é um e se divide por
conveniência institucional, abriu-se para um controle jurisdicional amplo a atuação
estatal, omissiva ou comissiva.
Assim, quando o Poder Judiciário exerce o controle dos atos do
Executivo - no caso omissivo - não está invadindo a esfera jurídica de outro Poder,
visto sob a ótica da separação das funções. Está, antes de tudo, assegurando a
aplicação da Constituição e de seus princípios, mesmo que o ato por praticar seja
caracterizado como discricionário, uma vez que a escolha discricionária não é
indiferente ao Direito. Não se trata de ferir de morte a discricionariedade, mas lhe
conferir juridicidade. Aliás, como referido pelo Min. Celso de Mello (ADPF-MC/DF 45),
-não há falar em ingerência do Poder Judiciário em questão que envolve o poder
discricionário do Poder Executivo, porquanto se revela possível ao Judiciário
determinar a implementação pelo Estado de políticas públicas constitucionalmente
previstas-.
Esse também o entendimento do Min. Eros Grau, quando afirma:
O Supremo fixou entendimento no sentido de que é função institucional do
Poder Judiciário determinar a implementação de políticas públicas quando os
órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que
sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a
integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo
programático (RE n. 367.432).
A viragem para um novo constitucionalismo, como se apregoa no Brasil,
passa pela constitucionalização do Direito Administrativo e o estabelecimento da
cultura de se cumprirem não só as normas, mas também os princípios
constitucionalmente aceitos, explícitos ou implícitos.
A inquietação vem com a definição de como o Direito deverá tratar o
descaso, a negligência ou a omissão político-administrativa quando da formulação e
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4. execução das políticas públicas, a envolver o próprio sentido do que é bom e do que é
mau.
Ora, já se disse e não custa repetir, que o dever de o Estado produzir
resultado torna-se a justa medida do direito subjetivo público do cidadão, in casu, do
cidadão encarcerado, e não condenado, a favor de quem milita a presunção de
inocência, de obter de quem lhe expropria provisoriamente a liberdade às condições
mínimas próprias à garantia da dignidade enquanto pessoa.
A Constituição Federal, e antes dela as próprias Convenções
Internacionais (Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. V; Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 10, 1 e 2 -a-; Convenção Contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, art. 16,
n. 1; Convenção Americana dos Direitos Humanos, art. 5º, ns. 1, 2 e 4), sustentam a
necessidade de se preservar, em favor dos indivíduos, a integridade e a
intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial.
Ora, o encarceramento de qualquer pessoa, independentemente do ato
praticado ou imputado, exige por parte do Estado, o atendimento dos mais
elementares direitos de cidadania, entre os quais, se incluem os prescritos na lei de
execução penal, os quais se traduzem em políticas públicas inadiáveis.
O preso provisório, sabidamente, não é um condenado. Portanto, a ele
não se pode conceder menos do que legalmente previsto para o preso definitivo.
Carceragem adequada, em ambiente que satisfaça as necessidades básicas, constitui
obrigação estatal de implementação inadiável.
O que pretende o Ministério Público com a ação, não é mais do que o
devido respeito à personalidade, intimidade e saúde do detento provisório, um
confinamento que lhe garanta um mínimo de dignidade.
Como consta de pronunciamento judicial da Ministra Ellen Gracie:
O Supremo fixou entendimento no sentido de que é função institucional do
Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos
estatais competentes, por descumprirem os encargos políticos-jurídicos que sobre
eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a
integridade dos direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo
programático (RE 559646).
Não passam despercebidas orientações em contrárias, que dão conta
de que não cabe ao Judiciário determinar reformas em celas ou cadeias públicas (RE
n. 365299, 403.806 e 279.455), como também que essas posições não dispensam
reflexão, à vista, ademais, de repercussão geral sobre o tema (RE n. 592.581)
A singularidade do caso está na exigência legal de Cadeia Pública na
Comarca (art.102 da LEF) para presos provisórios, bem assim em não se admitir
carceragem que desatenda às prescrições do art. 88 da LEP.
A obrigação de fazer, assim, está na exigência de uma Cadeia Pública
na Comarca, uma única que seja para recepção de presos provisórios (art. 102 da
LEF). A de não fazer, na necessária abstenção de recolher presos provisórios em
celas ou espaços que não tenham ou cumpram as exigências do art. 88 da LEF.
Assim, em reexame, se há alterar o julgado para impor ao Estado ao
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5. lado da obrigação de não fazer, também a obrigação de fazer, consistente em efetuar
as obras necessárias, nas unidades que adotar para recolhimento de presos na
comarca de São José, para garantia da integridade física e moral dos detentos que
venham a ser encarcerados, mesmo que provisoriamente, por mais efêmera que seja
a permanência, dotando esses espaços de adequadas condições de higiene,
aeração, saúde e segurança.
Exclui-se, de outra parte, por não satisfazer o objeto da demanda, a
fixação de multa diária.
Na execução do presente julgado se há primeiro, identificar as unidades
utilizadas para recolhimento de presos provisórios, depois verificar o atendimento das
exigências do art. 88 da LEF, e a partir daí, definidos os serviços e obras por realizar,
fixar prazo para sua satisfação, sob pena de execução à custa do devedor (Poder
Público), conforme autoriza o art. 632 do CPC e seguinte do CPC ( e art. 249 do CC),
com sequestro de valores para pagamento, se for o caso.
Embora dirigido ao caso dos medicamentos, se tem entendido que a
imposição de multa por conta de atraso ao atendimento voluntário à ordem judicial
não satisfaz ao objeto da lide, pois traduz meio de coerção muitas vezes incapaz de
subjugar a recalcitrância do Estado, não acautelando satisfatoriamente a defesa do
direito à saúde. O mesmo se diga na hipótese versada, em que a multa não atenderia
ao reclamo por serviços e reformas nos cárceres. O sequestro ou o bloqueio da verba
necessária à execução das obras e serviços, assim, parece a via mais adequada e de
melhor resolutividade. Aplicável, portanto, ao caso os ensinamentos traduzidos no
AgRg no REsp n. 1.002.335, 935.083 e Resp n. 900.458 e 869.843.
Diante do exposto, vota-se pelo provimento parcial ao reexame.
Este é o voto.
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