Práticas artísticas,crítica e educação do gosto na década 1920
1. Práticas artísticas, crítica e educação do gosto na imprensa do Recife nas primeiras
décadas do século XX: contribuições da micro-história.
Natalia Conceição Silva Barros
natibarros1@yahoo.com.br
Recife, outubro de 2009.
Ao longo do curso, debatendo o percurso da micro-história e os usos da
biografia, percebi como certos pressupostos teóricos e procedimentos metodológicos
oriundos da micro-história já estão completamente incorporados ao cotidiano da
pesquisa e escrita da história dos historiadores formados na última década. Talvez, a
discutida compatibilidade entre escalas de investigação macrossocial e microanalítica
tenha perdido um pouco de relevância no momento em que a produção historiográfica
encontra-se mais e mais distante do desejo de rótulos e vinculações a programas ou
escolas. Parece quase natural, por uma série de questões que vão desde as péssimas
condições de nossos arquivos e estados das fontes documentais até o interesse em
conquistar um público leitor de não especialistas, a incorporação na maior parte das
narrativas historiográficas do interessante jogo de escalas. A passagem do macrossocial
para a observação microanalítica, contribuição valiosa para o trabalho historiográfico, a
meu ver, consolidou-se como procedimento inerente a disciplina, sendo vastamente
utilizado por narrativas de corte social e cultural. O cuidado com as fontes, a atitude
antropológica com o passado, também pode ser apontado como uma herança microhistórica. A maior parte dos jovens historiadores, já faz a leitura do documento levando
em consideração os filtros, os vendo como produtos de uma inter-relação especial entre
os sujeitos envolvidos em sua produção.
Dito isto, apresentarei minha incipiente pesquisa. No estado atual não tenho
ainda uma narrativa estruturada, nem questões muito claras. De toda forma, fiz um
esforço para delinear um pouco meus objetivos, fontes e possíveis contribuições numa
aproximação com a micro-história.
A Revista CRÍTICA, de propriedade de Clodomiro de Oliveira, era um periódico
de política, atualidades, questões sociais, letras e artes de publicação semanal,
circulando desde junho de 1929 sempre aos sábados com uma média de 16 páginas. O
redator–chefe era José Firmo de Oliveira. Mesmo constituindo-se quase integralmente
2. de artigos e notas redacionais de caráter político, nas suas páginas inseriam-se
produções literárias, crônicas cinematográficas e históricas, além de notícias e
comentários sobre as exposições de artes plásticas no Recife. Além de acompanhar os
principais espaços de exibição da produção artística do período, ou seja, os Salões de
Arte que aconteciam na cidade e as aberturas de exposições nos ainda poucos
ambientes, os redatores teciam comentários sobre as obras expostas, os artistas e,
curiosamente, sobre o perfil do público e da crítica. Como acontecia em outras cidades
do Brasil, nas primeiras décadas do século XX, de modo geral, as críticas de arte
explicitavam-se em duas categorias, nas notas e nos artigos de divulgação de diversos
eventos tais como exposições, lançamentos de livros, concursos públicos para a
construção de monumentos, prêmios concedidos aos artistas, trabalhos realizados sob
encomenda. Segundo os redatores da revista, o desinteresse dos críticos, que a cidade
supunha ter, refletia a bradante ausência de cultura e gosto e o fato de Pernambuco ser
de todos os Estados Brasileiros o mais fechado à beleza e às manifestações da arte
legítima.
Mas, que arte legitima era a admirada e incentivada pelos que faziam a Revista
Crítica e demais meios de comunicação da cidade? Como se configurava a produção
artística da cidade nesse período? Quais os embates presentes entre artistas e críticos?
Que gosto era esse ausente nos moradores do Recife? Qual o papel da imprensa na
difusão da produção artística nas décadas de 1920 e 1930? Que gosto estético era
promovido e estimulado na cidade?
A pesquisa que atualmente desenvolvo no doutorado em História, partindo
destes questionamentos, pretende mapear a relação dos artistas com os jornais e revistas
entre as décadas de 1920 e 1930. A investigação tem por foco perceber e analisar o
espaço concedido para a divulgação dos seus trabalhos, para os espaços de exposição da
produção plástica do período e, principalmente, o discurso crítico veiculado na
imprensa, se posicionando sobre a trajetória e obra dos pintores na cidade do Recife e
sobre o gosto estético dos moradores. As revistas, jornais e pinturas são as fontes
fundamentais. De forma indireta, compõem o corpus documental memórias, coletâneas
de textos e manuais de história da arte.
Essa proposta insere-se em um movimento crescente de interesse por pesquisas e
diálogos sobre a história e a historiografia das artes plásticas em Pernambuco,
3. fomentado por instituições de artes do Recife e por alguns críticos, artistas e curadores. 1
O interesse pela temática em questão surgiu durante as pesquisas realizadas no grupo de
estudos do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, quando constatamos a
predominância de um material impressionista e memorialístico sobre as artes plásticas
no Recife e a ausência de estudos sustentados pela pesquisa documental e teórica.
Portanto, embora apresente um recorte temporal e um objeto de análise específico, essa
pesquisa não pretende se limitar à interioridade do seu problema, mas, assim como nos
orienta os pressupostos da micro-história, espera-se iluminar questões mais gerais,
obviamente sem perder as especificidades do objeto de investigação. Até esse momento
da pesquisa, a questão geral que se delineia é: que historiografia da arte produziu-se em
Pernambuco e como essas narrativas dialogaram com a produção nacional e
internacional?
Pretende-se criar uma narrativa mais densa, que traga, mesmo que
fragmentariamente, percursos e trajetórias de vida de personagens artísticos que hoje
conhecemos apenas por um nome. Nesse percurso as orientações de Carlo Ginzburg são
fundamentais: o nome é o fio condutor para reconstruir o entrelaçamento de diversas
conjunturas. Seguindo o fio dos nomes, no labirinto documental, será possível traçar
caminhos para a construção de biografias e de redes de relações que as circunscrevem.
Além dos irmãos Rego Monteiro e Cícero Dias que outros artistas circulavam na
cidade? O que nos conta sobre o campo artístico, a trajetória de Fédora do Rego
Monteiro ou de Murillo La Greca? O que sabemos sobre Joaquim Monteiro, J.
Menezes, Carmencita Brennard, José Noberto,José Neves Daltro, Álvaro Nogueira,
Álvaro Amorim, Aguinaldo Lima, Helena Rodrigues Pereira, Maria Sarmento, Olintho
Jacome, Maria Pedrosa, Edson Figueredo, artistas participantes do 2º Salão de Belas
Artes de Pernambuco? Nesse momento de levantamento documental, de fontes no mais
das vezes esparsas, percebo a necessidade de construir uma narrativa que incorpore a
experiência desses indivíduos, dando crédito aos desvios, incoerências e desordens,
inerentes aos contextos socioculturais.
De forma ampla, poderíamos apontar o distanciamento dessa pesquisa – práticas
artísticas, crítica e educação do gosto – dos temas privilegiados pela micro-história:
história de indivíduos, comunidades, pequenos enredos envolvendo gente comum, etc.
1
Moacir dos Anjos, curador e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e Cristina Tejo, crítica e
curadora independente, podem ser citados como os grandes impulsionadores da pesquisa sobre artes
plásticas em Pernambuco.
4. Não se constituindo, dessa forma, em uma futura narrativa micro-histórica. No entanto,
penso que, no meu caso, a aproximação a essa vertente historiográfica dá-se muito mais
em termos metodológicos e teóricos. Tenho como horizonte na minha prática de
pesquisa e de escrita da história pressupostos fundamentais da micro-história: a história
como ciência do vivido, o contexto como campo de possibilidades históricas, o
documento como produto e produtor de experiências e a necessidade de pensar
estratégias narrativas alinhadas com o objeto e percurso de pesquisa.
Pretendo
empreender incursões do tipo microanalítico para fazer emergir o cenário cultural dos
anos vinte e trinta. Não partindo de questões gerais dadas aprioristicamente, mas,
focando a documentação e deslocando e criando as próprias hierarquias de interesses da
pesquisa. Porque mais importante que o caráter geral da cidade do Recife, amplamente
já pesquisado, será a construção da teia social concreta onde os artistas e jornalistas se
moveram, exercendo múltiplos papéis sociais e individuais.
Pensando assim, torna-se interessante seguirmos, embora nesse momento de
forma aligeirada, o percurso de um desses indivíduos. Na Revista Crítica, as pinturas de
Murillo La Greca eram citadas como exemplo da considerada “boa arte” e o artista
apresentado como um predestinado a pintura, um vocacionado. As paisagens, os
crepúsculos nos quadros de La Greca eram exaltados. Em 1930 havia três anos que esse
artista tinha voltado da Europa, após sete anos de estudos nos centros de educação e
cultura artística da Itália, considerada o mais ponderável laboratório artístico do
mundo. La Greca, nesse período, fixou seu atelier em Roma e freqüentou durante quatro
anos o Real Instituto de Belas Artes e Academia de Nu (REVISTA DA ESCOLA DE
BELAS ARTES DE PERNAMBUCO,1957: 33). O público da cidade pôde conhecer
algumas de suas obras no 2º Salão de Belas Artes de Pernambuco, inaugurado em 15 de
maio de 1930. Numa matéria de 1930, os redatores da Revista Crítica definem esse
artista: Murillo La Greca não confia somente no seu talento. Ele estuda e trabalha,
fazendo da sua arte um sacerdócio (CRÍTICA. 24/05/1930). Perseguindo os fios da
história, descobrimos Murillo La Greca como professor da Escola de Belas Artes do
Recife. Que outras relações se constituíram? Que papel teve esse artista na formação de
artistas nos anos trinta? Como construiu e difundiu os valores estéticos do seu grupo?
Apenas por meio de uma pesquisa documental intensa conseguiremos avançar na
resposta dessas questões, tendo em mente que algumas delas podem ficar sem respostas,
mantendo o caráter lacunar da disciplina. De toda forma, pretendo cercar as
experiências dos artistas na cidade para, principalmente, entender as redes de
5. pertencimento desses com os leitores dos jornais e revistas. Na tese pretendo criar
quadros comparativos, nisso distanciando-me da micro-história, embora saiba que as
experiências são únicas.