Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
Bouson, Raymond. Tratado de sociologia
1. [RATADO DE SOCIOLOGIA BOUDON
sob a direção de Raymond Boudon
AÇÃO Raymond Boudon sob a,;direção de
GRUPOS E SOCIABILIDADE Jean Baechler RAYMOND BOUDON
ESTRATIFICAÇÃO Mohamed Cherkaoui
MOBILIDADE Mohamed Cherkaoui
PODER François Chazel
CONFLITOS Pierre Birnbaum
MOVIMENTOS SOCIAIS François Chazel
MUDANÇA SOCIAL BernardValade
ORGANIZAÇÃO ErhardFríedberg
DESVIO Maurice Cusson
RELIGIÃO Jean Baechler
'
CULTURA Bernard Valade
CONHECIMENTO Raymond Boudon
COMUNICAÇÃO Francis Baile
ISBN 85-7110-339-9
9" 788571 " 103399'
316
T776
ex. 3
003309 Jorge Zahar Editor
Zahar Editor
2. A sociologia seria o ponto de conver-
gência e de integração de todos os
saberes específicos relativos aos fenô- TRATADO DE
menos humanos, a explicação de todos
os fatos culturais e uma filosofia des-
SOCIOLOGIA
pojada de toda metafísica. Difícil tarefa,
a de elaborar um tratado de uma ciência
que se pretende o ápice, e o corolário,
do sistema das ciências.
Ademais, observamos permanentes di-
vergências sobre os princípios que re-
geriam a sociologia. Certas tradições
atribuem-lhe função essencialmente
prática de assistência a decisão, em es-
pecial a decisão política, buscando con-
tribuir para a solução de problemas so-
ciais (tais como pobreza, delinqüência,
desemprego, resolução de conflitos etc.).
Tal orientação é importante sobretudo nos
Estados Unidos e suas áreas de influên-
cia, embora também esteja presente -
com caráter mais marginal - na sociolo-
gia clássica francesa ou alemã.
Assim, há várias formas de se conceber
um tratado de sociologia. Raymond
Boudon optou por privilegiar o para-
digma designado por sociologia da ação,
organizando um livro que percorre
quatorze grandes temas da sociologia
clássica: ação, grupos e sociabilidade,
estratificação, mobilidade, poder, conflP
tos, movimentos sociais, mudança social,
organização, desvio, religião, cultura, co-
nhecimento e comunicação. Cada tema
ficou a cargo de um especialista, com
plena liberdade de conceber ele próprio
a respectiva contribuição. Daí resultou
uma diversidade dos ângulos de abor-
dagem e de estilo, com alguns capítulos
3. sob a direção de
Raymond Boudon
com a colaboração de
J. Baechler, F. Baile, P. Birnbaum, R. Boudon, F. Chazel,
M. Cherkaoui, M. Cusson, E. Friedberg, B. Valade
TRATADO DE
SOCIOLOGIA
Tradução:
Teresa Curvelo
Consultoria:
Renato Lessa
Professor e diretor executivo do luperj
Professor-titular de ciência política da UFF
Jorge Zahar Editor
Rio de Janeiro
5. 3. ESTRATIFICAÇÃO 107
Mohamed Cherkaoui A época do comportamento coletivo 297
A época da mobilização dos recursos 311
Os discursos sobre a origem da desigualdade 108 Para além da mobilização dos recursos.
A teoria marxista da formação de classes 118 Rumo a uma abordagem multidimensional? 324
O poder como dimensão irredutível das estratificações 125
A síntese weberiana e suas conseqüências sobre
a pesquisa contemporânea: classe, status, partido 131
8. MUDANÇA SOCIAL 337
Bernard Valade
Efeitos e conseqüências da estratificação 144
Aspectos e representações 339
4. MOBILIDADE .. 167 As análises da mudança social 343
Mohamed Cherkaoui A "revolução industrial": interpretações e revisões 354
O problema da inovação 359
Medidas e modelos 167 A mudança social em questão 363
Estruturas e mecanismos geradores da mobilidade 183
Evolução da mobilidade e paralelos internacionais 193
Conseqüências sociais e políticas da mobilidade 202
9. ORGANIZAÇÃO 375
Erhard Friedberg
5.PODER . . . . 213 O problema da racionalidade dos comportamentos humanos 377
François Chazel O problema da integração 383
A organização e seu "contexto":
O conceito de poder 213 o problema das fronteiras organizacionais 391
Poder e dominação 227 A autonomia do ato organizacional 398
Especificidade e importância do poder político 238 Organização ou sistema de ação? 404
6. CONFLITOS 247 10. DESVIO 413
Pierre Birnbaum Maurice Cusson
As teorias sociológicas do conflito 249 A natureza do desvio 413
A análise sociológica das dimensões do conflito 262 A teoria do controle social 425
Conflitos sociais, mobilizações, revoluções 271 O paradigma da ação 435
A conjuntura atual 443
7. MOVIMENTOS SOCIAIS 283
François Chazel 11. RELIGIÃO 449
Jean Baechler
Uma caracterização elementar do movimento social 284
As tarefas essenciais de uma sociologia dos movimentos sociais 291 natureza do fenômeno religioso 450
Os primórdios da análise dos movimentos sociais 292 produções sociais da religião 459
6. As incidências do religioso sobre o não-religioso 467 SOBRE os COLABORADORES
Modernidade e religião 475
12. CULTURA 489
Bernard Valade
Um conceito ambíguo 489 f
Gênese do princípio de relatividade cultural 490 l
A análise antropológica da cultura 498 j
A sociologia e a cultura no cotidiano 506 i
A cultura em partilha 515
Jean BAECHLER Professor na Universidade de Paris-Sorbonne. Publicou, entre ou-
13. CONHECIMENTO 519 tros livros, Lês origines du capitalisme, Paris, Gallimard, 1971,
Raymond Boudon 2-ed., 1981; Lês suicides, Paris, Calmann-Lévy, 1975; Démocra-
ties, Paris, Calmann-Lévy, 1985; La soluüon indienne, Paris, Pres-
ses Universitaires de France ("Sociologies"), 1988.
O sentido do termo "conhecimento" na sociologia do conhecimento 519
O território da sociologia do conhecimento: três posições 520 Francis BALLE Professor na Universidade de Paris II Panthéon-Assas, membro do
Conseil Supérieur de 1'Audiovisuel. Publicou, entre outros, The
As contribuições e os temas da sociologia do conhecimento 522 Media Revolution in America and Western Europe, Nova York,
Universidade de Stanford, Ablex, 1985; Et si Ia presse n'existait
As teorias das crenças 540 pás, Paris, Jean-Claude Lattès, 1987; Lês nouveaux médias (com
Sociologia do conhecimento e relativismo 552 G. Eymery), Paris, Presses Universitaires de France ("Que sais-
je?"), 1990 (1984); Médias et sociétés, Paris, Montchrestien, 1990
(1980).
14. COMUNICAÇÃO 501 Pierre BIRNBAUM Professor na Universidade de Paris I. Publicou, entre outros livros,
Francis Baile Lafin dupolitique, Paris, Seuil, 1975; Thêorie sociologique (com
F, Chazel), Paris, Presses Universitaires de France, 1975; Sociolo-
gie de VEtat (com B. Badie), Paris, Grassei, 1979; Lê peuple et lês
O tema sociológico e sua especificação contemporânea 561 gros. Uistoire d'un mythe, Paris, Grassei, 1979; Sur V individualis-
Os meios de comunicação e o comércio das idéias: me (com J. Leca), Paris, Presses de Ia Fondation Nalionale dês
Sciences Poliliques, 1986.
as diversas abordagens para o estudo da "comunicação" 566
A aplicação da sociologia da ação ao estudo das comunicações 581 Raymond BOUDON Membro do Institui, professor na Universidade de Paris-Sorbonne.
Publicou, entre oulros livros, L'inégalité dês chances, Paris, Ha-
chelte, 1985 (J973); Effets pervers et ordre social, Paris, Presses
índice temático 595 Universilaires de France ("Quadrige"), 1989 (1977, "Sociolo-
gies"); Dictionnaire critique de Ia sociologie (com F. Bourricaud),
Paris, Presses Universilaires de France ("Sociologies"), 1990
(1982); La logique du social, Paris, Hachelle, 1983 (1979); L'idéo-
logie ou V origine dês idées recues, Paris, Fayard, 1992 (1986);
L'art de se persuader, Paris, Fayard, 1992 (1990).
François CHAZEL Professor na Universidade de Paris-Sorbonne. Presidiu a Société
L
Française de Sociologie de 1986 a 1990. Publicou, enlre oulros
livros, La théorie analytique de Ia société dans 1'ceuvre de Talcott
Parsons, Paris, Moulon, 1974; Sociologie politique (com P. Birn-
baum), Paris, A. Colin, 1978; Pratiques culturelles etpolitiques de
7. 10 TRATADO DE SOCIOLOGIA
Ia culture (red.), Bordeaux, Maison dês Sciences de 1'Homme
d'Aquitaine, 1987. Co-dirigiu dois números especiais da Revue
Française de Sociologie: Aspects de Ia sociologie politique (com
INTRODUÇÃO
P. Favre), 1983, e Sociologie de Ia Révolution (com F. Gresle),
1989. Normes juridiques et régulation sociale (co-red. com J.
Commaille), Paris, LGDJ, automne 1991; Action collective et mou-
vements sociaux (red.), Paris, Presses Universitaires de France RAYMOND BOUDON
("Sociologies"), 1992.
Mohamed CHERKAOUI Professor na Universidade de Lausanne. Publicou, entre outros
livros, Lês paradoxes de Ia réussite scolaire, Paris, Presses Univer-
sitaires de France ("L'Educateur"), 1979; Lês changements du
système éducatifen France, 1950-1980, Paris, Presses Universitai-
res de France ("Sociologies"), 1982; Sociologie de 1'éducaüon,
Paris, Presses Universitaires de France ("Que sais-je?"), 1986. Uma idéia oriunda da filosofia contemporânea das ciências pretende que, num
regime de "ciência normal", ioda e qualquer comunidade científica obedeça a um
Maurice CUSSON Professor na École de Criminologie e investigador no Centre Inter-
national de Criminologie Comparée da Universidade de Montreal. "paradigma" único, os investigadores de cada disciplina seguindo, portanto, um
Publicou, entre outros livros, Délinquants. Pourquoi?, Paris, A. conjunto de princípios sobre os quais todos estariam de acordo. Apenas nos períodos
Colin, 1981; Lê controle social du crime, Paris, Presses Universi- de revolução científica surgiriam dúvidas e divergências, e os paradigmas tenderiam
taires de France ("Sociologies"), 1983; Pourquoi punir, Paris,
Dalloz, 1987; Croissance et décroissance du crime, Paris, Presses a multiplicar-se até que um dos diversos concorrentes prevalecesse sobre os restan-
Universitaires de France ("Sociologies"), 1989. tes, iniciando um novo período de "ciência normal".
Perguntamo-nos se, no que diz respeito à sociologia, não se deverá inverter esta
Erhard FRIEDBERG Diretor de pesquisa no CNRS, maítre de conférences no Institui descrição. De fato, nesta disciplina observamos, ao contrário, permanentes divergên-
d'Etudes Politiques de Paris. Publicou, entre outros, L'analyse
sociologique dês organisations, Paris, CHarmattan, 1987 (1972); cias sobre os princípios que a definem, " que somente nos raros momentos em que
Uacteur et lê système (com M. Crozier), Paris, Seuil, 1977; Staat uma escola consegue impor, provisoriamente, o seu ponto de vista é que domina um
und Industrie in Frankreich, Berlim, 1979; Lê jeu du catalogue paradigma único.
(com Ph. Urfalino), Paris, Documentation Française, 1984; En
quête d'universités (com Christine Musselin), Paris, l'Harmattan, Se é necessário evocar esta diversidade de perspectivas é porque a mesma assume
1989, bem como inúmeros artigos no âmbito da sociologia das proporções de desafio quando se trata de conceber e elaborar um tratado de sociolo-
organizações. gia. Convém, portanto, proceder à sua avaliação antes de apresentar e tentar justificar
a solução por que optamos.
Bernard VALADE Professor na Universidade de Bordeaux II, Secretário-geral de
L'Année sociologique, conselheiro científico da Encyclopaedia
Universalis. Publicou, entre outros livros, Pareto. La naissance
d'une autre sociologie, Paris, Presses Universitaires de France
("Sociologies"), 1990, bem como inúmeros artigos no âmbito da
sociologia da cultura. A diversidade da sociologia clássica
As divergências a que acabamos de aludir surgem desde muito cedo na história da
sociologia. Antecedem mesmo o seu batismo, ao menos se acreditarmos na lenda: diz-se
que Auguste Comte, criador da palavra "sociologia", teria preterido a expressão "física
social", que ele próprio lançara em 1822 em seu Plan dês travaux nécessaires pour
reorganiser Ia société, se esta não tivesse sido utilizada por A. Quetelet para designar
uma disciplina que pouco tinha a ver com o seu próprio projeto.
A "física social", na acepção de Quetelet (1869), é grosso modo o estudo estatís-
tico dos fenômenos sociais.
Comte, por seu lado, conferia à "sociologia" — palavra que introduziu, quase se
desculpando, em uma nota de seu Cours — ambições muito mais elevadas. Encarava
nova disciplina como o ápice do sistema das ciências: da astronomia à biologia,
8. 12 TRATADO DE SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO 13
passando pela física e pela química, surgiu e foi sendo progressivamente construída eliminar de sua sociologia todo e qualquer postulado referente à subjetividade,
uma hierarquia de ciências que tratavam de aspectos do real cada vez mais comple- supostamente inobservável, do ator social. Todavia, Lê suicide (1897) e, mais ainda,
xos. Todavia, em meados do séc.xix, esta pirâmide continuava incompleta, segundo Lês formes élémentaires de Ia vie religieuse (1912) contêm inúmeras hipóteses e
Comte, uma vez que se limitava à ciência do vivo. Propôs, por conseguinte, antecipar análises "psicológicas" muitas vezes brilhantes, convincentes e inovadoras que, além
e facilitar uma evolução que considerava inelutável. A sociologia estava destinada, disso, desempenham um papel central tanto em sua linha evolutiva como em sua
segundo o espírito de seu patrono, a constituir seu elo derradeiro: com ela, pretendia- demonstração, mas que o autor procura escamotear e minimizar, certamente por uma
se que o estudo dos fenômenos humanos atingisse o estado "positivo". preocupação de coerência com os textos doutrinais. Em suma, se a epistemologia de
Com o distanciamento, apreende-se toda a ambigüidade de um projeto que se Durkheim parece situar-se, de acordo com seus textos teóricos, no campo oposto à
baseia sobre dois postulados extremamente audaciosos e que consistem, um, em de Weber, o contraste entre os dois sociólogos surge muito menos acentuado se
assimilar os fenômenos humanos aos sociais, o outro, em confiar a uma única considerarmos não o que Durkheim diz, mas o que ele/az.
disciplina a tarefa do respectivo tratamento. Ao contrário da sociologia clássica francesa, a sociologia clássica alemã desen-
Se é verdade que possui um valor particularmente ilustrativo, a divergência de volveu-se sobretudo como reação contra as visões totalizantes e, em particular,
opinião entre Quetelet e Comte não é a única a que podemos nos referir. No final do contra a filosofia da história de inspiração hegeliana. Como bons neokantianos que
séc.xiXe início do XX, as duas escolas sociológicas consideradas de um modo geral foram, com diferentes nuanças, os grandes sociólogos clássicos alemães, como Max
as mais importantes, a francesa e a alemã, parecem apoiar-se — ao menos nas Weber ou Georg Simmel, demarcam com insistência os limites da sociologia,
declarações de intenção — em princípios fortemente antagônicos, os quais não se disciplina a que não atribuem qualquer espécie de supremacia. Ambos a definem
mostram facilmente conciliáveis. antes como um estilo especial de análise dos fenômenos históricos. Mais precisa-
As ambições de Comte — fazer da sociologia o ponto de convergência e de mente, vêem nela uma história que explicaria os fenômenos históricos e sociais,
integração de todos os saberes específicos relativos aos fenômenos humanos, atri- libertando-se das imposições do relato e da hegemonia do método genético. A
buir-lhe as funções da filosofia, mas de um?, filosofia despojada de toda metafísica exemplo do economista, que trata igualmente de fenômenos que pertencem à esfera
— sempre mantiveram um forte poder de sedução junto a muitos sociólogos, em do historiador, mas que os aborda de forma diversa do historiador da economia, o
especial os franceses. Isso é, provavelmente, o resultado da influência de Émile sociólogo estaria inclinado a pesquisar, no fluxo histórico, casos típicos, mecanismos
Durkheim, sem dúvida o mais importante dos sociólogos clássicos franceses. Após repetitivos, para introduzir na história o método dos modelos, isto é, representações
ter sido relegada a segundo plano no entre-guerras, essa influência voltou à tona nos voluntariamente esquemáticas e idealizadas do real.
últimos decênios. Ora, acontece que Durkheim aceitara uma boa parte da herança de Para além das diferenças, a tradição clássica francesa — de Durkheim —, a
Comte, especialmente seu imperialismo intelectual, a sua concepção hierarquizada tradição clássica alemã — de Weber —, a tradição, senão inaugurada, pelo menos
das ciências e a idéia de que cabia à sociologia coroar o sistema das ciências. Daí o brilhantemente ilustrada por Quetelet partilham, para além das diferenças que as
sociologismo patente em Durkheim; que se revela, por exemplo, em sua pretensão separam, um objetivo comum: nos três casos, o sociólogo propõe-se explicar os
de reservar a exclusividade da explicação de todos os-fenômenos culturais — da fenômenos que lhe interessam.
ciência ou da religião, assim como da magia em particular — apenas à sociologia, tal Em contrapartida, há outras tradições que se atribuem um objetivo sobretudo
como ele a concebia, e de eliminar os modos de pensar característicos da história, da descritivo. Aqui, o modelo intelectual a que o sociólogo se submete aproxima-se
filosofia, da economia ou da psicologia, por exemplo. mais da reportagem. Esta tradição é ilustrada na França, de modo particularmente
Para evitar qualquer confusão, convém acrescentar desde já que, apesar desses brilhante, por Lê Play, por exemplo.
excessos, Durkheim foi um inovador autêntico e importante do ponto de vista De acordo com uma outra tradição importante, a sociologia teria uma função
científico. Foi assim que, em Lê suicide, contribuiu para aprimorar de forma consi- essencialmente prática de assistência à decisão, em especial à decisão política. Esta
derável os métodos da "estatística m oral'H Em Lês formes élémentaires de Ia vie orientação é importante sobretudo nos Estados Unidos: desde o início, muitas das
religieuse, uma obra contestável em diversos aspectos, propôs uma teoria da origem investigações sociológicas desenvolvidas neste país são inspiradas pela preocupação
da noção de alma ou das relações existentes entre a ciência, por um lado, e a magia de contribuir para a "solução" dos problemas sociais: pobreza, delinqüência, desem-
e a religião, por outro, que é considerada uma contribuição incontestável para o prego, aperfeiçoamento dos métodos de negociação, de "resolução dos conflitos",
conhecimento. Poderíamos encontrar em sua obra muitas outras inovações que têm por exemplo. Esta tradição encontra-se igualmente presente na sociologia clássica
resistido bem à usura do tempo. francesa ou alemã, embora surja aí com caráter mais marginal. De um modo geral, a
Por outro lado, convém observar que, se em seus escritos doutrinais Durkheim sociologia "aplicada" parece ser acolhida com maior condescendência na França ou
sublinha com insistência sua fidelidade à tradição positivista, em suas análises na Alemanha do que nos países anglo-saxônicos. Mesmo quando se preocupam com
a
afasta-se dela consideravelmente. Como bom positivista, pretende, por exemplo, "utilidade social" de sua disciplina, os sociólogos europeus da época clássica
9. IP'
14 TRATADO DE SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO 15
tendem a manifestai' uma atitude arrogante. Assim, é verdade que Max Weber se diversidade da sociologia contemporânea
encarregou de uma investigação que permitisse esclarecer os governantes alemães
quanto à política de imigração a adotar em relação aos poloneses. No entanto, este
estudo "aplicado" não teve continuidade em sua obra. Quanto a Durkheim ou a seu A sociologia do séc.XX não conseguiu conciliar os diversos projetos formulados por
opositor, Gabriel Tarde, quando abordam, respectivamente, o suicídio e o crime, não seus pioneiros. Poderiam ser mencionadas, é claro, algumas tentativas de síntese,
é tanto porque estejam interessados em aperfeiçoar "métodos de prevenção" desses como a de Parsons (1937), a que se fará uma breve alusão mais adiante. Mas a
flagelos nacionais, mas porque vêem nos índices de criminalidade ou de suicídio impressão dominante quando passamos rapidamente em revista a sociologia contem-
indicadores reveladores do estado geral da sociedade, e que permitem apreender as porânea é a de que ela é tão heteróclita, senão mais, quanto a sociologia clássica.
linhas de força da evolução social. Muito embora tenha sido diretor de estatística Comecemos pela tradição descritiva, em relação à qual Lê Play (1855) é, na
criminal, o professor do Collège de France não se sente mais atraído pela sociologia França, talvez o melhor herói epônimo.
aplicada do que o professor da Sorbonne. Sem dúvida, nem sempre é fácil distinguir entre estudos descritivos e estudos
Interrompemos aqui esta enumeração esquemática que não pretende de modo explicativos. Ambos os objetivos, descrição e explicação, surgem com freqüência
algum propor um panorama da sociologia clássica, que vai se formando progressiva- como que associados entre si na prática. Igualmente desejável seria distinguir entre
mente no final do séc.xix, e início do séc.XX, mas tão-somente ressaltar a enorme as obras descritivas que se limitam, para usar as expressões de C. Geertz, à thin
diversidade de concepções da sociologia, dominantes neste período da sua fundação. description daquelas que alcançam a thick description. E não é menos verdade que
Referimo-nos anteriormente à sociologia clássica francesa, à sociologia alemã, à um grande número de trabalhos sociológicos tem como principal objetivo tornar
sociologia americana. Não se deve concluir, a partir dessas expressões e das observações visíveis meios e fenômenos sociais mais ou menos transparentes e familiares para os
precedentes, que existam tantos paradigmas sociológicos quantos os países onde essa protagonistas em causa, mas que permanecem desconhecidos do público. Este tipo
disciplina foi implantada. Pois, se as diversas tradições que acabam de ser enumeradas de trabalho, que define o gênero sociológico que qualificamos como descritivo,
tendem, desde os primórdios da sociologia, a estar mais ou menos correlacionadas aos encontra-se abund?ntemente representado na sociologia contemporânea. Desse
respectivos contextos nacionais, isso acontece de forma muito imperfeita. Daí que, modo, foram sociólogos — sobretudo os do Centre de Sociologie Urbaine, inicial-
quando Tocqueville (1856) declara, logo na primeira linha de sua obra sobre UAncien mente liderado por Henri Lefebvre (1968) — que trouxeram até a praça pública o
Regime et Ia Révolution, que não se deverá ver nela "um livro de história", está tema dos grandes conjuntos habitacionais, e que fizeram a descrição das condições
implicitamente definindo esse seu empreendimento como de natureza sociológica. Não de existência características desses tipos de habitat, condições essas por demais
podia, porém, utilizar de modo algum uma expressão tão estreitamente associada à obra conhecidas dos próprios habitantes. Considerando um segundo exemplo, o funcio-
idiossincrática de Comte. Ora, nesse livro, tal como em De Ia démocratie enAmérique, namento do mercado da arte ou os princípios que permitem que um indivíduo tenha
Tocqueville desenvolve análises que correspondem, tanto nos princípios como nos acesso e ascenda ao "mundo da arte" são relativamente transparentes para os atores
métodos, à concepção que um Weber irá fazer da sociologia. Não nos conta uma envolvidos no jogo da concorrência artística, embora nem sempre o sejam para o
história, mas levanta questões abstratas: por que razão os intelectuais ingleses do público. Em casos deste gênero, o sociólogo pode desempenhar, e tem efetivamente
séc.XVIII desenvolvem concepções muito mais pragmáticas e sensivelmente menos desempenhado, um papel eficaz de informador, como o demonstram os trabalhos de
radicais do que seus homólogos franceses, em matéria política? Por que razão a distri- R. Moulin (1967) na França ou de H. Becker (1982) nos Estados Unidos.
buição das cidades de acordo com sua respectiva dimensão é diferente na França e na Essa informação pode assumir uma forma essencialmente qualitativa, quando se
Inglaterra? De onde se origina a "força da religião" nos Estados Unidos? Como se trata, por exemplo, de descrever o que se passa verdadeiramente numa escola, numa
explica que as maneiras dos ingleses sejam diferentes das dos americanos? A estas fábrica, numa galeria de arte ou num grande aglomerado. Visa, então, dar resposta a
questões, Tocqueville responde com modelos bastante simplificados, explicando tais perguntas do tipo "o quê?" ou "como?". Pode, porém, se revestir de uma forma
fenômenos macroscópicos como efeito de comportamentos ou atitudes individuais, os sobretudo quantitativa e destinar-se a responder de preferência a perguntas do tipo
quais justifica a partir das razões que levaram os atores sociais a adotá-los. 'quanto?": muitos dos inquéritos quantitativos sobre o consumo dos agregados
O que é válido para a França o é igualmente para a Alemanha, a Inglaterra ou os familiares, os efetivos escolares, a evolução do crime, as flutuações de opinião e
Estados Unidos: em todos esses países, as diferentes tradições a que se aplica o rótulo outras questões têm efetivamente uma finalidade sobretudo descritiva.
"sociologia" estiveram praticamente todas elas representadas nas primeiras fases de Evidente que é inútil insistir no fato de que a sociologia descritiva responde —
institucionalização desta disciplina, se bem que em graus variáveis. conjuntamente com outras fontes de informação, como por exemplo as reportagens
jornalísticas, os inquéritos elaborados pelos institutos estatísticos administrativos ou
pelos institutos de pesquisa — a uma procura premente das sociedades modernas.
Esta sociologia descritiva permitiu, com freqüência, revelar fenômenos mal conhe-
10. 16 TRATADO DE SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO 17
cidos. Do mesmo modo que a sociologia urbana dos anos 60 chamou a atenção para vezes também uma ambição missionária se perfila por trás da descrição: trata-se
os grandes aglomerados, a sociologia industrial dos anos 50, graças ao talento de G. então não apenas de apresentar os grandes aglomerados ou de descrever o trabalho
Friedmann (1956) ou de A. Touraine (1955, 1973), sensibilizara o público para as nas fábricas, mas de chamar a atenção para o caráter insuportável das máquinas —
condições de trabalho nas fábricas. Graças a M. Crozier (1965) na França e a C. habitação ou do trabalho fragmentado. Se quiséssemos multiplicar as distinções,
Wright Mills (1951) nos Estados Unidos, descobriu-se na mesma época "o mundo teríamos talvez de falar, quando essa ambição missionária é dominante, de sociologia
dos empregados de escritório". crítica, na acepção negativa em que o adjetivo é usado pela Escola de Frankfurt.
Constata-se com isso não apenas que a sociologia descritiva ocupa lugar impor- Vejamos agora o caso da física social ao estilo de Quetelet (1868), ou do
tante, como se pode lamentar, por vezes, que não se encontre mais desenvolvida, que Durkheim (l 897) do Suicide. Este gênero sociológico distingue-se do precedente, em
não abranja maior número de temas e que não os abarque mais regular e sistemati- primeiro lugar, porque aí dominam as questões do tipo "por quê?". Por que o suicídio
camente. Se a sociologia estivesse mais difundida, talvez as decisões políticas é mais freqüente nos homens do que nas mulheres, nos países protestantes do que
assentassem com menos freqüência numa ignorância completa do que se passa nos países católicos, na cidade do que no campo?, questionava-se Durkheim. Ade-
realmente in loco. Pensamos, por exemplo, no fracasso de todas as reformas escola- mais, esses estudos são de natureza quantitativa. Os fenômenos sociais cujas varia-
res ou universitárias que se sucederam a um ritmo avassalador na França nas últimas ções no tempo e no espaço procuramos estudar apresentam-se sob a forma de dados
décadas. Todas elas parecem ter sido inspiradas muito mais por princípios gerais do numéricos, como os índices de suicídio em Durkheim. Por último, a resposta às
que pela preocupação de responder a uma situação muitas vezes vivida pelos questões do tipo "por quê?" é pesquisada através do estudo metódico das relações
protagonistas do sistema de educação — a começar pelos alunos, os estudantes e as estatísticas entre as variáveis a serem explicadas e as variáveis explicativas.
famílias — como debilitante. Se a sociologia descritiva tivesse feito uma melhor Este gênero sociológico encontra-se, também ele, amplamente representado na
cobertura desta área e chamado a atenção para ela, ao fazê-lo talvez tivesse orientado sociologia contemporânea por uma razão de fácil compreensão, isto é, a de que não
melhor a mão do político. Naturalmente, é óbvio que esta observação não implica de existem fenômenos sociais que não possam derivar desta metodologia. Verificamos
modo algum que a única função que a sociologia pode desempenhar é a de informa- isso pelo fato de ser possível mencionar inúmeros trabalhos deste tipo sobre fenôme-
ção, nem que tenha como principal vocação esclarecer o príncipe. Mas deve-se nos tão diversos como o desenvolvimento socioeconômico, as desigualdades sociais,
reconhecer também que é legítimo esperar que os sociólogos contribuam, juntamente o crime, o suicídio, a escolarização, as opiniões ou os valores. Restringindo-nos a
com outros, para um melhor conhecimento da sua sociedade. alguns exemplos, os estudos de socioeconomia do desenvolvimento integrados nesta
Porém, se por um lado a sociologia descritiva parece insuficientemente desenvol- categoria tentam explorar as relações estatísticas entre o nível de desenvolvimento
vida, por outro o está em demasia. Mais precisamente, a espécie "sociologia descri- das nações e um determinado número de outras variáveis supostamente "explicati-
tiva" inclui uma subespécie hoje em plena expansão: a das investigações que se vas", que abarcam fenômenos tão diversos como os índices de escolarização ou os
contentam em registrar dados em vez de buscarem compreender os fenômenos. sistemas de valores que caracterizam as sociedades estudadas. Quanto aos estudos
Fornecem-nos informações sobre as sociedades mais do que nos permitem conhecê- sobre a estratificação, herdeiros da "física social", como os de P. Blau e de O. Duncan
las. Este tipo de atividade sociográfica tende a tornar-se avassaladora, uma vez que (1967) nos Estados Unidos, de J. Goldthorpe (1980) na Inglaterra, de C. Thélot
a procura, pública e privada, de dados sociais tende a aumentar rapidamente: não (l 982) na França, de R. Girod (1977) na Suíça, procuram determinar em que medida
apenas o Estado, mas os partidos, os "movimentos sociais" ou os diversos "grupos a posição dos indivíduos na sociedade é afetada por sua origem social, o nível escolar
de pressão" ou de "interesse" têm uma necessidade de informação cada vez mais e outras variáveis de tipo idêntico. Por outro lado, analisam as alterações dessas
exigente e urgente. Essa informação tem, de fato, para eles, um interesse não só relações no tempo e no espaço.
prático, como também retórico: hoje em dia, já não se concebe um combate ou um Refira-se de passagem que este gênero sociológico deu origem a uma importante
debate político que não se apoie em números e dados. Como diria Schumpeter literatura técnica, em que se desenvolveram instrumentos diversos que permitem
(1954), o crescimento desta demanda tende a acentuar o caráter cameralista das estudar as relações estatísticas entre um número considerável de variáveis.
ciências sociais, ou seja, a transformá-las!em fornecedoras de informações para os A sociologia da ação ao estilo de Weber ocupa igualmente um lugar importante
estados-maiores dos diversos grupos, instituições, "movimentos" ou agrupamentos na investigação sociológica contemporânea. No capítulo seguinte, iremos explici-
que irrompem nas sociedades.1 tar as origens intelectuais, o projeto e os princípios deste paradigma. Podemos,
Conviria, aliás, introduzir outras distinções no seio da sociologia descritiva. Pois porém, assinalar desde já que, tal como a "física social", caracteriza-se pelo fato
se o alvo dos estudos sociográficos é muitas vezes puramente cognitivo, algumas de abordar sobretudo questões do tipo "por quê?". Por outro lado, caso se interesse
também por fenômenos quantificáveis, o faz de forma menos exclusiva do que a
'física social". Rejeitando o princípio segundo o qual não haveria ciência senão a
l Boudon (1991). do geral, interessam-lhe não apenas as regularidades, mas também as singularida-
11. 18 TRATADO DE SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO 19
dês sociais; os fenômenos qualitativos, bem como os fenômenos quantitativos. ambição veio a revelar-se excessiva e os sociólogos jamais conseguiram ocupar na
Essas diferenças já são patentes nos trabalhos clássicos de Weber, quando este se sociedade o lugar que os engenheiros nela ocupam. Estimulou, porém, o desenvol-
interroga, por exemplo, por que razão os Estados Unidos apresentam a singulari- vimento de toda uma série de pesquisas de campo em múltiplos domínios —
dade da modernização não ter ali enfraquecido, como parece, as crenças religio- sociologia da educação, do crime, das organizações, da mobilidade social, do desen-
sas. Ou nos de Tocqueville, ao interrogar-se por que razão os intelectuais france- volvimento socioeconômico, dos meios da chamada comunicação de massa etc. —
ses são mais radicais do que os intelectuais ingleses. Por outro lado, a sociologia que decerto contribuíram para um melhor conhecimento dos processos sociais.
da ação, partindo do princípio de que a causalidade de um fenômeno reside nas No final desse período de euforia, a partir de meados dos anos 60, desenvolveu-se
ações individuais de que é o resultado, considera o estudo estatístico das correla- uma sociologia crítica, cujas ambições não eram menores, se bem que de natureza
ções, de que a "física social" é tão ávida, como uma mera etapa de análise, para diferente, e vimos prosperar em todas as matérias — desenvolvimento, educação,
além da qual é preciso encontrar também as razões dos comportamentos respon- estratificação, sociologia urbana, cultura etc. — uma sociologia que podemos desig-
sáveis pelas correlações observadas pelo estatístico. nar por neomarxista, na medida em que é muito mais devedora da vulgata marxista
Obviamente, essas razões devem ser concebidas como dependentes do contexto do que do próprio Marx.
em que se situa o ator social, o qual de um modo geral não é imutável, já que os atores Seja ao longo do primeiro episódio, seja ao longo do segundo, houve por vezes o
contribuem para modificá-lo constantemente através de suas próprias ações. Eis por sentimento de que a sociologia conseguira escapar de sua faceta de hospedaria
que a sociologia da ação é simultaneamente contextual e dinâmica. espanhola, e de que finalmente os sociólogos, à exceção dos marginais, seguiam um
Este estilo de sociologia aplica-se indistintamente a todas as categorias de fenô- "paradigma" comum.
menos. Eis por que o encontramos hoje representado nos mais diversos domínios: De fato, não demoraria para que se percebesse, com o distanciamento, que a
sociologia das organizações, dos movimentos sociais, da ação coletiva, sociologia da unidade em causa era mais ideológica do que científica. A convergência operara-se,
estratificação e da mobilidade, sociologia do desenvolvimento, sociologia do conhe- no caso do primeiro episódio, com a volta da ideologia saint-simoniana do sociólo-
cimento, sociologia da comunicação, e de um modo geral em quase todos os go-engenheiro, cujo papel era supostamente o de acompanhar à luz de seu saber, a
capítulos da sociologia. Inúmeros estudos, como os de A. Oberschall (1973) no "mudança" e a modernização. Quanto ao segundo episódio, é dominado por um
domínio dos movimentos sociais, de A. Hirschmann (1980) ou de H. Mendras (1967, leitmotiv, o de denunciar a pretensa perversidade das modernas sociedades liberais.
1988) no campo do desenvolvimento, de J. March e de H. Simon (1958) ou M. Hoje, retomou-se um pluralismo mais em consonância com as tradições de nossa
Crozier (1964) no domínio da sociologia das organizações, de M. Olson (1965) no disciplina. Encontramo-nos diante de uma sociologia mais serena, mais liberta das
da ação coletiva, de R. Boudon (1973) e de M. Cherkaoui (1982) no da estratificação paixões ideológicas e das ilusões.
e da mobilidade, de R. Horton (1967) no da sociologia da religião, de T. Kuhn (1962) Desse modo, podemos interrogar-nos com seriedade: deve-se lamentar essa diver-
no da sociologia da ciência, inspiram-se — por vezes sem o saberem — nos sidade? E responder, com a mesma seriedade, pela negativa.
princípios da sociologia da ação, que consistem, grosso modo, em ver todo o É óbvio que esta resposta é, muitas vezes, sentida como incômoda, dado que a
fenômeno social como o resultado de ações individuais inspiradas por motivos unidade é, por motivos evidentes, mais tranqüilizadora do que a pluralidade. Eis por
compreensíveis, considerando o contexto social e histórico em que se inscrevem. que certos sociólogos tentam, periodicamente, negar essas diversidades, "demons-
As correntes que, de modo muito sucinto, acabamos de identificar na sociolo- trar" que essas tradições heterogêneas são convergentes, que foi finalmente realizada
gia contemporânea não esgotam a diversidade dessa mesma sociologia, e podería- sua síntese, e que existe, além das aparências, uma profunda unidade entre tradições
mos facilmente introduzir outras distinções. Todavia, interrompemos aqui sua aparentemente distintas. O primeiro a consagrar-se a esta tarefa e a prossegui-la com
enumeração. tenacidade foi o sociólogo norte-americano T. Parsons em Structure of Social Action.
Esta obra testemunha a profunda familiaridade cultivada por Parsons com seus
autores preferidos e, particularmente, com Weber, Pareto e Durkheim, permanecen-
do, na perspectiva da história da sociologia, uma obra de referência. Todavia, o
Unidade: para quê? sociólogo norte-americano não conseguiu, como ambicionava, sintetizar as intuições
desses autores num todo suficientemente coerente e eficaz de modo a que a comuni-
dade sociológica considerasse vantajoso a ele aderir de forma duradoura, um pouco
É evidente que cada uma dessas tradições conheceu altos e baixos. Assim, no período como os economistas aderiram, num dado momento, ao paradigma neoclássico, por
de euforia que coincide com os "trinta gloriosos" de que falava Fourastié, a sociolo- exemplo.
gia se apresenta com freqüência, um pouco por toda a parte, como tendo uma vocação Talvez seja preferível inverter as questões levantadas por Parsons, isto é, pergun-
de engineering social. Vê-se facilmente como parteira da "mudança". De fato, essa tarrno-nos se a sociologia é verdadeiramente mais heteróclita do que outras ciências
12. 20 TRATADO DE SOCIOLOGIA INTRODUÇÃO 21
humanas e se, de um modo geral, o fato de uma disciplina seguir uma multiplicidade Efetivamente, os pesquisadores que colaboraram neste tratado partilham um certo
de paradigmas constitui, na realidade, uma falha que devemos esforçar-nos por número de convicções.
corrigir a todo custo. Esta questão é tanto mais atual quanto é certo, mesmo no caso Em primeiro lugar, levam a sério o ator social. Recusam-se a ver no ator social, e
das ciências da natureza, que se começa a aceitar como idéia teórica a concepção de a fortiori no ator individual, uma simples caixa de ressonância de forças coletivas
Kuhn, segundo a qual as grandes disciplinas seriam dominadas, em cada momento imaginárias, que seriam projetadas pelo "inconsciente coletivo" pela "cultura" ou
da sua evolução, por um "paradigma" único. pela "classe dominante". Em outras palavras, desconfiam das representações deter-
Os historiadores parecem admitir, sem grandes dificuldades, que o termo "histó- ministas do comportamento social, segundo as quais o ator social estaria sujeito à
ria" abrange tarefas muito distintas entre si, ainda que se reconheça que em história ação de forças ocultas que o guiariam à sua revelia e que constituiriam as causas
como em qualquer outra matéria, sempre que surgem concepções muito contrastadas profundas de seu comportamento. Se o fenômeno da "falsa consciência" existe e em
da disciplina em causa, erguem-se vozes para tentar mostrar que determinada con- alguns casos pode ser claramente definido e posto em evidência, é perfeitamente
cepção é preferível a outra, como se verifica, por exemplo, no debate entre R.W. arbitrário supor que ele seja, por assim dizer, constitutivo da consciência do ator.
Fogel e G.R. Elton (1983). Porém, como no caso da sociologia, quando a história Por conseguinte, os autores deste volume pensam que explicar um fenômeno
surge "unificada", como tendo finalmente encontrado a sua essência, isso tem a ver, social consiste, antes de tudo, em compreender as ações, os comportamentos, as
muitas vezes, com um predomínio decorrente seja de efeitos ideológicos, seja de atitudes, as convicções etc. individuais de que ele é o resultado.
fenômenos de moda, ou ainda mais simplesmente de efeitos de mídia produzidos por Isto implica a aceitação de um postulado essencial: que uma das tarefas principais
campanhas publicitárias bem organizadas. da sociologia, e talvez a principal fonte da sua legitimação, consiste — como
Quanto às ciências humanas, por exemplo a economia ou a lingüística, cuja sugerem um Weber ou um Popper — em reconhecer ou, conforme o caso, em
unidade é proclamada alto e bom som, são de fato muito menos monolíticas do que reconstituir as razões que levaram o ator social a adotar um determinado comporta-
parece. O que é incontestável é que tanto uma como outra se unificaram, em mento, atitude ou convicção. Para explicá-los, é certamente necessário identificar as
determinadas épocas, em torno de paradigmas definidos de modo mais rigoroso do idéias, os valores ou as representações vigentes no contexto em que se situa. Todavia,
que os da história ou da sociologia. É verdade que existe uma economia clássica e o cerne da análise sociológica consistirá sempre em identificar as razões pelas quais
uma economia neoclássica que baseiam-se em princípios relativamente precisos e um determinado ator ou uma determinada categoria de atores tende a aderir a elas.
formalizados. Do mesmo modo, o paradigma "estruturalista" tem um significado Isto é igualmente válido para os comportamentos e as convicções que o senso comum
relativamente preciso no caso da lingüística. qualifica normalmente como "irracionais". Foi assim que entendeu um Tocqueville,
Esse caráter unitário conferido à economia e à lingüística explica que as ciências quando mostrou, por exemplo, que o cidadão norte-americano tinha razões — ao
humanas, concebidas como menos sólidas, decidam por vezes adotar o regime das contrário do francês ou do alemão — para manifestar uma notável religiosidade, e
disciplinas consideradas mais rígidas. Disso dão testemunho os esforços efetuados até para a viver de forma "exaltada". Do mesmo modo, Weber não se limita a
no sentido de decalcar os métodos da lingüística ou da economia na sociologia ou na observar que o culto de Mltra é influente no Império Romano: analisa as razões pelas
antropologia. Lembremos, por exemplo, evocando uma manifestação particularmen- quais esse culto seduziu, especialmente, os funcionários da administração imperial.
te pitoresca desta tentação, que, na Paris dos anos 70, considerava-se um indivíduo Estas análises clássicas mostram que é pouco pertinente contrapor ou até limitar-
profundo aquele que afirmava doutamente ser a sociedade uma linguagem. Natural- se a justapor, como sucede com freqüência, "razões" e "valores" ou "representações
mente, estes excessos não indicam que a sociologia deva renunciar a buscar inspira- coletivas". Agrande lição metodológica de um Tocqueville ou de um Weber consiste,
ção em modos de pensar e em métodos utilizados por outras disciplinas, em particular pelo contrário, em ver essas noções como estreitamente solidárias: um valor apenas
0
na economia e na lingüística, mas também na psicologia. é para o ator se para ele tiver sentido ou, dito de outro modo (porque a noção de
Pode-se, no entanto, contrapor a essas tentativas a objeção de que supervalorizam sentido possui mil sentidos), apenas se ele tiver razões — que podem ser, natural-
a unidade das disciplinas que invejam. Basta percorrer a monumental história da mente, mais ou menos conscientes conforme os casos — para adotá-lo.
análise econômica de Schumpeter para vermos que a economia é muito mais diversa E óbvio que nem sempre estes princípios podem ser postos em prática facilmente,
do que se pensa. E para constatarmos que, na lingüística, há quase tantos estrutura- e teremos de admitir que a reconstituição do "sentido" da ação será em muitos casos
lismos quanto estruturalistas, podemos comparar, por exemplo, um Chomsky (1963) conjectura!.
eumHarris(1951). Por outro lado, se é certo que o vocábulo "sociologia" abrange diversas atividades,
a
Mas se por um lado devemos reconhecer a diversidade dos paradigmas utilizáveis s ciências sociais assumem, para nós, uma finalidade essencialmente cognitiva. Em
em sociologia, devemos igualmente evitar o excesso oposto: o slogan do pluralismo outras palavras, sua legitimidade decorre, em primeiro lugar, e à semelhança das
a qualquer preço é tão fácil e superficial quanto estéril. Conduz rapidamente ao "tudo outras disciplinas científicas, de sua capacidade de criar um conhecimento suplemen-
é bom", ou seja, no final de contas, ao ceticismo. tar, de resolver enigmas, isto é, de propor uma explicação clara e — em teoria —
13. 22 TRATADO DE SOCIOLOGIA
universalmente aceitável de fenômenos que se revelam, à primeira vista, opacos ao
espírito. Convém acrescentar que o princípio segundo o qual uma teoria sociológica
deverá poder ser submetida a um auditório ou a um tribunal "universal" implica,
decerto, que é absurdo evocar, como sucede por vezes lamentavelmente, a existência
r
díamos, mas pelo que nos vêm confirmar quanto àquilo em que acreditamos ou que
sabemos desde sempre.3
Era importante introduzir estes esclarecimentos. Eles explicam por que não
hesitamos em recuar no tempo, quanto às referências e aos exemplos. Há uma
INTRODUÇÃO 23
de critérios que seriam específicos da sociologia. máxima que pretende que nas disciplinas científicas bem constituídas, metade do
As obras sociológicas, tanto clássicas como modernas, que trazem consigo um saber teria sido acumulado nos últimos dez anos. Não é esse por certo o caso nas
suplemento autêntico de conhecimento, parecem satisfazer sempre dois critérios: ciências sociais.
explicar fenômenos enigmáticos, obedecendo ao mesmo tempo as restrições e os
critérios comuns a todas as disciplinas científicas. Assim, Durkheim tentou explicar
as curiosas propriedades dos dados estatísticos relativos ao suicídio ou compreender
as razões das crenças mágicas. Weber (1920-21) interrogou-se, na esteira de Tocque- A concepção do presente tratado
ville (1835), por que razão a religiosidade, que parecia estar desaparecendo na
Europa, persistia nos Estados Unidos. A resposta a essas interrogações é tudo menos
evidente; e é de enigmas que realmente se trata. A resposta que ambos propõem Das observações precedentes resulta que é possível conceber um tratado de sociolo-
apresenta-se sob a forma de teorias que obedecem os critérios gerais da cientificidade gia de três formas. Podemos apagar as diferenças significativas que separam os
em vigor em todas as disciplinas científicas. paradigmas e as tradições sociológicas. Mas nesse caso corremos o risco de nos
Afirmar que este objetivo cognitivo é por vezes ignorado pelas ciências sociais deparar com um maior denominador comum minúsculo, ou de criar convergências à
contemporâneas constitui uma litotes. A finalidade essencialmente cognitiva das custa da clareza e da realidade.
ciências sociais era talvez mais visível na época dos pioneiros do que hoje em dia. A segunda solução consiste em visar a exaustividade respeitando as diferenças e
Isto é resultado de fatores complexos e imbricados entre si: de fenômenos as divergências. Haverá então o risco de se produzir um catálogo em lugar de um
morfológicos, como o crescimento extremamente brutal deste ramo de atividade; tratado.
da divisão de trabalho, que Durkheim qualificaria como anômica, que acompa- A terceira solução consiste em tentar pôr em evidência os conhecimentos adqui-
nhou este crescimento e de seus efeitos de balcanização; da pressão da demanda ridos e as potencialidades de um dos paradigmas, reconhecendo porém que existem
"cameralista", que incita as ciências sociais a fornecerem a toda e qualquer outros. Dada a sua importância especial, que será enfatizada — assim o esperamos
espécie de comanditários, reais ou supostos, esclarecimentos ou informações — nos capítulos que se seguem, optamos aqui por privilegiar o paradigma designado
sobre os fatos sociais em lugar de explicações dos fenômenos sociais; da influên- por sociologia da ação.
cia crescente da mídia, que fomenta o gênero ensaísta e, de um modo geral, as Uma vez adotada esta abordagem geral, faltava elaborar o índice de matérias.
produções com um propósito mais estético do que cognitivo; das orientações Para tal, procuramos definir cada capítulo a partir de um tema fundamental,
teóricas estéreis em que as ciências sociais se deixaram submergir repetidamente; sempre que esse tema tenha dado origem a um fluxo de investigações mais ou menos
do peso que as ideologias — sobretudo a ideologia marxista e a ideologia permanente e cumulativo.
relativista — exerceram e continuam a exercer sobre essas disciplinas há várias Esta opção comportava duas conseqüências que merecem ser sublinhadas. A
décadas; e de muitos outros fatores. propósito de um determinado capítulo (por exemplo, o capítulo sobre a mobilidade
As ciências sociais, sem dúvida mais que as outras, foram afetadas pelo "relativis- social), o leitor terá uma exposição sumária sobre as técnicas, em particular as
mo" que vem se instalando com crescente firmeza a partir dos anos 60: ele transfor- técnicas quantitativas cuja utilização se foi expandindo na sociologia atual. Rejeita-
mou numa quase-certeza a idéia de que a objetividade é uma ilusão e que só existem dos, porém, deliberadamente consagrar um desenvolvimento especial a estas ques-
"interpretações", sobretudo quando se trata de fenômenos humanos. Talvez seja por tões, por um lado porque são objeto de obras especializadas, por outro porque
isso, como nota um observador perspicaz, que não é fácil encontrar na sociologia queríamos concentrar-nos rigorosamente em nossa abordagem: procurar delinear a
contemporânea teorias que dêem a impressão de explicar de forma convincente
fenômenos enigmáticos.2 Em contrapartida, sob a bandeira das ciências sociais
vamos encontrar muitos dados quase em estado bruto, ou ensaios que devem o
Lepenies (1985) defende a idéia de que a sociologia representaria uma "terceira cultura" entre a
interesse de que usufruem não pelo fato de nos explicarem aquilo que não compreen- J eratura e a ciência. Será mais justo e, em qualquer caso, menos equivoco dizer que a etiqueta
sociologia" abarca produções literárias e produções científicas. Porém, a grandeza de um Tocqueville,
e um
Weber ou de um Durkheim provém, sobretudo, das respectivas contribuições científicas — do
2 Pawson (1989). ° de terem proposto soluções convincentes para determinados enigmas.
14. 24 TRATADO DE SOCIOLOGIA
contribuição da sociologia para os grandes tipos de processos sociais sobre os quais
ela se debruçou mais especificamente.
Pela mesma razão, não tentamos de modo algum delinear de forma sistemática a
contribuição da sociologia para o conhecimento de objetos sociais concretos. Por
r INTRODUÇÃO
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1970; tr. fr. La structure dês révolutions scientifiques, Paris, Flammarion, 1970, 1983.
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Hanser Verlag; tr. fr. Lês trois cultures. Entre science et littérature l'avènement de Ia
25
conseguinte, não irão encontrar nenhum balanço dos estudos descritivos relativos às sociologie, Paris, Maison dês Sciences de l'Homme, 1990.
instituições escolares, judiciais, artísticas, científicas, sindicais e outras, embora elas Lê Play F- (1855), Lês ouvriers europêens, Paris, Imprimerie Nationale.
sejam moeda corrente na sociologia atual. March J., Simon H. (1958), Organizations, Nova York, Wiley; tr. fr. Lês organisations, Paris,
Dunod, 1964, 1974.
Finalmente, devemos sublinhar que, se este tratado representa um empreendimen- Mendras H. (1967), Lafin dês paysans, Paris, A. Colin.
to coletivo, cada um dos autores concebeu a respectiva contribuição com plena (1988), La seconde révolution française, 1965-1984, Paris, Gallimard.
liberdade. Daí resulta uma diversidade dos ângulos de abordagem e de estilos. Alguns Mills W. (1951), White Collar. The American Middle Classes, Nova York, Oxford University Press,
capítulos são mais "pessoais", outros mais "impessoais". Todos eles se valem da 1956; tr. fr. Lês cols blancs. Lês classes moyennes auxEtats-Unis, Paris, Maspero, 1966.
sociologia de ação; porém, como facilmente se constatará, alguns se apoiam sobre Moulin R. (1967), Lê marche de lapeinture en France, Paris, Minuit, 1970.
Oberschall A. (1973), Social Conflicts and Social Movements, Englewood Cliffs, Prentice Hall.
uma concepção mais restritiva, outros sobre uma concepção mais aberta da ação. Esta Olson M. (1965), The Logic ofCollective Action, Cambridge, Harvard University Press; tr. fr. La
diversidade proporcionará talvez ao leitor uma imagem mais verídica da sociologia logique de Vaction collective, Paris, PUF, 1978.
tal como ela é hoje em dia. Convém acrescentar — uma outra fonte de diversidade Parsons T. (1937), The Structure of Social Action, Glencoe, The Free Press, 1964.
— que os temas tratados pela sociologia surgem com maior ou menor vigor, de Pawson R. (1989), A Measurefor Measures, Londres/Nova York, Routledge & Kegan Paul.
acordo com a época. Daí que as referências tendam a concentrar-se, em alguns Quetelet L.A. (1869), Physique sociale ou Essai sur lê développement dês facultes de 1'homme,
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15. l
AÇÃO
RAYMOND BOUDON
A sociologia da ação representa uma importante tradição sociológica, razão pela qual
este primeiro capítulo é consagrado à ação social. Esta tradição é apenas uma entre
outras. No entanto, merece atenção por sua transparência epistemológica e sua eficácia
prática:
- por sua transparência epistemológica: a sociologia da ação define-se por um
conjunto de princípios claros e baseados na natureza das coisas;
- por sua eficácia: o interesse da sociologia — como de qualquer disciplina cientí-
fica — mede-se por sua capacidade de explicar fenômenos à primeira vista
obscuros para o espírito. Ora, a sociologia da ação demonstrou fartamente que era
capaz de satisfazer esta exigência. Veremos exemplos disso ao longo de todo este
volume.
O paradigma da sociologia da ação
Designa-se, muitas vezes, por paradigma os princípios fundamentais sobre os quais
apóia-se uma comunidade científica. Um paradigma é, de algum modo, a constitui-
ção, o conjunto das regras básicas que orientam o pesquisador em sua atividade.
Fala-se, por exemplo, do .paradigma cartesiano para designar os princípios em que
repousam as teorias da física propostas por Descartes. Esses princípios incitam o
Pesquisador a representar de forma mecânica todos os fenômenos naturais, com base
no modelo do choque entre as bolas de bilhar ou no da transmissão dos movimentos
entre as engrenagens de um relógio. Este paradigma é usado, por exemplo, na teoria
cartesiana da óptica.
16. 28 TRATADO DE SOCIOLOGIA
Definição da sociologia da ação
As ciências sociais também têm os seus paradigmas. Um deles é, de um modo geral,
designado pela noção de sociologia da ação ou sociologia interacionista. Mas há
r AÇÃO
só se pode permitir responder às necessidades financeiras de um mutuário anônimo se
tiver a garantia de que este lhe pagará juros. A partir do momento em que a necessidade
29
é lei, a idéia de caráter imoral do empréstimo com juros foi se erodindo progressivamen-
te acabando por cair em desuso. Eis por que, hoje em dia, o tabu se refugiou no seio da
outros: a sociologia estrutural-funcionalista, a sociologia marxista, a sociologia família restrita, meio em que prevalecem as relações de interconhecimento que, nas
durkheimiana representam paradigmas sociológicos, também eles dotados de uma sociedades tradicionais, se estendiam a grupos e a redes muito mais vastas. Vemos que
certa continuidade no tempo. a análise de Mannheim considera o desaparecimento deste tabu como efeito de mudan-
O primeiro princípio fundamental da sociologia da ação consiste em levar a sério ças ocorridas nas atitudes e nos comportamentos dos atores, por ele analisados como
o fato de que todo fenômeno social, qualquer que seja, é sempre o resultado de ações, tendo um sentido, no caso representando adaptações compreensíveis em se tratando de
de atitudes, de convicções, e em geral de comportamentos individuais. O segundo condições sociais em mutação.
princípio, que completa o primeiro, afirma que o sociólogo que pretende explicar um Os princípios da sociologia da ação poderão dar uma impressão de banalidade. No
fenômeno social deve procurar o sentido dos comportamentos individuais que estão entanto, tem-se constatado muitas vezes sua validade por motivos que iremos
em sua origem. analisar adiante. Por outro lado, deve-se reconhecer que se a enunciação desses
Esses princípios podem ser ilustrados através de um exemplo elementar extraído princípios é simples, eles podem revelar-se de execução muito difícil na prática, pela
de Simmel (1892). Suponhamos, diz ele, que pretendêssemos explicar a existência simples razão de que as causas individuais dos fenômenos sociais são, freqüentemen-
do túnel de Saint-Gothard. Tal existência é, evidentemente, o produto de uma série te, inúmeras. Por outro lado ainda, poderá resultar extremamente difícil especificar
de ações, neste caso, de decisões políticas, científicas, arquitetônicas, e também de as razões que levaram certo ator a determinado ato, por falta de seu próprio testemu-
ações de execução. Explicar a existência do túnel traduz-se, portanto, em reconstituir nho, ou porque ele pertence a uma cultura não familiar.
essa rede de ações e, ao mesmo tempo, dar conta das razões dessas ações. A Antes de prosseguirmos com a discussão desse paradigma, há uma questão de
sociologia da ação postula — se nem sempre na prática, pelo menos em teoria — que vocabulário que merece ser esclarecida. Para designá-la propusemos várias expressões
a explicação de qualquer fenômeno social se inscreve neste tipo. Vai mesmo mais concorrentes: sociologia da ação, sociologia interacionista, sociologia acionista. De
longe ao admitir que esses princípios são aplicáveis às ciências sociais em seu fato, cada uma dessas expressões apresenta vantagens e inconvenientes. A última tem a
conjunto. desvantagem de ser mais neológica do que as outras duas. As duas primeiras, por seu
Tomando um exemplo elementar da economia, suponhamos que queremos expli- turno, expõem-se ao risco de confusão com correntes de pensamento que não se
car a baixa do preço de um produto no mercado: ela resulta de uma multiplicidade revestem, nem de longe, da importância da sociologia da ação, na acepção em que
de decisões tomadas pelos produtores, pelos distribuidores e pelos consumidores do usamos aqui esta expressão. Com efeito, designa-se por interacionismo simbólico um
produto. Assim, explicar a baixa em questão consiste em identificar os atores, mais paradigma, ou melhor, um estilo de investigação sociológica que se caracteriza pela
precisamente os grupos de atores em causa, e em descobrir o sentido de seus ênfase dada aos aspectos simbólicos das relações de interação social. Esse estilo de
respectivos comportamentos. Essa análise — tão simples de um ponto de vista investigação, ilustrado, por exemplo, por E. Goffman (1956), é, por essência, microsso-
teórico quanto pode ser complexa de um ponto de vista prático — chegará, por ciológico. Isso significa que está circunscrito, na prática, à análise de grupos concretos
exemplo, à conclusão de que o surgimento de um produto de melhor qualidade constituídos por pessoas em situação de interação direta. Ora, a sociologia em geral e a
seduziu os consumidores e que, em conseqüência disso, os comerciantes foram sociologia da ação em particular estão, tradicionalmente, interessadas também e sobre-
levados a "queimar" uma mercadoria que se tornou obsoleta. tudo em objetos que se situam em uma escala muito mais ampla. Basta lembrar algumas
Segundo a sociologia da ação, todos os fenômenos sociais, inclusive as mudanças obras, como L'Ancien Regime et Ia Révolution de Tocqueville (1856), A ética protestan-
verificadas nos costumes ou nas crenças, explicam-se da mesma maneira. Daí que te de Weber (1920a) ou La division du travail de Durkheim (1893), para constatar que
Mannheim (l929)' se interrogue por que razão o tabu que pesou durante tanto tempo a maioria das grandes obras sociológicas clássicas possui um caráter macrossociológi-
sobre os empréstimos com juros foi desaparecendo progressivamente. Foi-se erodindo, co. Em outras palavras, elas tratam de fenômenos macroscópicos, ou seja, de fenômenos
explica, com o desenvolvimento das trocas. Enquanto estas se realizavam entre indiví- que se situam em uma escala mais ampla do que a dos grupos diretamente observáveis.
duos que se conheciam, o prestamista podia esperar que o mutuário lhe prestasse, J-te modo geral, interessam à sociologia não apenas as situações de interação direta
oportunamente, serviços equivalentes ao empréstimo concedido. Com o surgimento da caracterizadas por uma situação de face a face entre atores, mas também as situações de
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economia de troca, este sistema bilateral irá se revelar demasiado rígido. O prestamista erdependência, em que os atores agem entre si sem se conhecerem e sem se verem.
Convém, portanto, não confundir a sociologia interacionista com o interacionismo
simbólico. Aliás, o sociólogo francês A. Touraine (1965,1984) designa pela expressão
l Este exemplo é retomado no capítulo XIII, "Conhecimento", p. 519.
sociologia da ação" uma teoria específica da transformação social: a que confere um
17. 30 TRATADO DE SOCIOLOGIA AÇÃO 31
papel crucial aos "movimentos sociais" na gênese da transformação social. Com o Na França do final do séc.xix, uma figura continua a dominar a cena intelectual:
propósito de recordar que a sociologia da ação, no sentido em que a entendemos, não Auguste Comte. Sem se dar conta disso, Durkheim faz suas um certo número de
coincide de modo algum com estes desenvolvimentos particulares, usaremos esta ex- 'déias de Auguste Comte (1830-1842), que se mostram tanto a ele como a muitos de
pressão simultaneamente às duas outras. seus contemporâneos evidentes em si mesmas. Reproduz sua concepção totaüsta ou,
como também se diz, holista do social, sua visão evolucionista da história, sua
classificação das ciências. Todavia, dado que o estilo profético de Comte contrasta
Origens intelectuais da sociologia da ação com o estilo acadêmico e científico de Durkheim, hoje em dia torna-se por vezes
difícil entender essa filiação, contudo bastante direta, entre inspirador e discípulo.
É incontestável ter sido na Alemanha que nasceu a sociologia da ação, pelo menos Com efeito, é impossível compreender a concepção que Durkheim tem da sociologia
em sua forma consciente e programática. Do mesmo modo que o livro de Durkheim se não percebermos que ela se enraíza na classificação das ciências de Comte. Essa
(1895) sobre as Règles de Ia méthode sociologique assinala a importância do classificação convertera-se num evangelho da França do séc.XIX em função de sua
paradigma positivista em sociologia, também os grandes textos epistemológicos de simplicidade, e também porque a progressão por ela traçada desde a física à biologia
Weber (1922a, 1922b) (Economia e sociedade; Ensaio sobre a teoria da ciência) e correspondia à ordem histórica do surgimento das ciências. Não havia, portanto,
de Simmel (1892) (Os problemas da filosofia da história) poderão ser considerados qualquer razão para não atribuir a esta visão comtiana algo de definitivo, e não se
como os manifestos fundadores da sociologia da ação.2 deixar seduzir pela conclusão de Comte, ou seja, a de que a sociologia era o último
É importante insistir nas diferenças intelectuais que opõem Durkheim e Weber. elo de uma cadeia evolutiva. Após a química, e depois da biologia, a sociologia estava
Ambos são considerados, em geral, figuras significativas e complementares da apta a atingir o estado positivo.
sociologia clássica. É, porém, absurdo pretender reduzi-los um ao outro. Se ambos Sem dúvida Comte conseguira traçar esta linha evolutiva simples porque havia
se ignoraram quase por completo, terá sido talvez por compreenderem claramente a removido de sua lista toda espécie de disciplinas, cuja existência era no entanto assaz
divergência existente entre suas concepções da sociologia. R. Aron (1967), no que evidente, e por vezes desde há muito, como é o caso da história, da economia e da
toca a este aspecto da história da sociologia, foi mais perspicaz do que T. Parsons. psicologia. Contudo, era tal a força da concepção linear do progresso, no séc.XIX, que
Percebeu claramente que Marx, Weber, Simmel, por um lado, e Durkheim, Mauss e se aceitava facilmente negligenciar os pormenores suscetíveis de perturbar a pureza
entre os modernos Lévi-Strauss, por outro, representam distintas tradições de pensa- das curvas evolutivas.
mento. Em seu louvável esforço de unificação da sociologia, Parsons tentou, em Em todo caso, Durkheim literalmente retoma, consolida e legitima as exclusões
contrapartida, apagar essas diferenças. O fato de sua obra mais importante, La de Comte: a história não faz parte das "ciências", a psicologia manifesta pretensões
structure de Vaction sociale (1937), ser considerada, de um modo geral, mais ilegítimas ao nível de ciência, a economia não passa de uma encarnação da "metafí-
sincrética do que sintética constitui talvez o preço que teve de pagar por este sica", que Durkheim (1895), como bom comtiano, julgava condenada. Em suma, a
compromisso. Porque é preferível, devido a razões de clareza, reconhecer que a sociologia científica devia eliminar qualquer psicologia. Ela irá inspirar-se na física,
sociologia dispõe de um leque de paradigmas perfeitamente distintos do que preten- ao menos tal como era imaginada no final do séc.XIX, sobretudo ao buscar destacar
der misturá-los numa síntese frágil. A tentativa de Parsons em erigir o trio Weber- as leis sociais que presidem às relações existentes entre fatos sociais. Por outro lado,
Durkheim-Pareto numa espécie de Newton policéfalo da sociologia surge hoje, aliás, irá reter da biologia a idéia de que, à medida que se sobe na escala dos seres, o todo
em toda a sua ingenuidade, numa época em que apenas um escasso número de físicos tende a dominar as partes.
estaria pronto a admitir que a física apóia-se num único paradigma. Apesar disso, o Na Alemanha, Comte não exercera a mesma influência. Em parte, porque Hegel
conforto intelectual que uma visão unificadora — ainda que precária — proporciona havia ocupado o mesmo espaço intelectual. Por outro lado, desencadeara-se na Alema-
é tão grande que à proposta de síntese de Parsons se sucederam regularmente outras. nha, no final do séc.xixe início do XX, uma intensa discussão de método sobre o estatuto
Para compreender a oposição intelectual que separa Durkheim de Weber, convém epistemológico das chamadas ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Com efeito,
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abordar brevemente alguns aspectos históricos, uma vez que um paradigma raramen- ssa discussão girava em torno do problema da objetividade em história: ater-se ao
te cai do céu. De maneira geral, ele também não é o efeito de uma intuição ou de um Programa "realista" que o grande historiador Leopold von Ranke tinha supostamente
golpe de gênio. A maior parte das vezes, emerge de um clima intelectual. Ora esse definido e proposto (descrever o passado "tal como tinha se desenrolado na realidade")
clima era extremamente diferente na França e na Alemanha na época em que os °u, como o seu colega da Universidade de Berlim, G.W.F. Hegel (1807), conceder-se
fundadores procuram definir os contornos da sociologia. maior liberdade de interpretação? Em caso positivo, até onde se poderia avançar sem
c
air no arbitrário? É no contexto dessa polêmica em torno do método que se desenvolve
a
sociologia alemã clássica. Ele explica que ela se defina, inicialmente, como uma
2 Boudon, Bourricaud (1982). Janeira original de apreender a história.