1. revista criança 19
matéria de capa
A inclusão de crianças
com deficiência cresce
e muda a prática das
creches e pré-escolas
Rita de Biaggio | São Paulo/SP
O aumento do número de crianças deficientes na educação infantil
faz parte no movimento mundial pela inclusão. Mas se a política de
inclusão educacional traz benefícios para todos, também lança novos
desafios para instituições, professores e sociedade.
O número de crianças com algum tipo de deficiência na rede regular
de ensino do País cresce a cada ano. O impacto da política de inclusão
na educação infantil pode ser medido pelo crescimento das matrículas
entre 2002 e 2006. O crescimento não é casual, mas resultado da mobi-
lização da sociedade brasileira. A Constituição Brasileira de 1988 garante
o acesso ao ensino fundamental regular a todas as crianças e adolescen-
tes, sem exceção, e deixa claro que a criança com necessidade educa-
cional especial deve receber atendimento especializado complementar,
de preferência dentro da escola. A inclusão ganhou reforços com a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e com a Convenção
da Guatemala, de 2001, que proíbem qualquer tipo de diferenciação, de
exclusão ou de restrição baseadas na deficiência das pessoas.
Segundo Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, procuradora da Repúbli-
ca responsável pelos direitos do cidadão no Estado de São Paulo, no biê-
nio 2002–2004, “o acesso das pessoas com deficiência ao ensino formal
é garantido até pela legislação penal, pois o artigo 8o
, da Lei no
7.853/89,
prevê como crime condutas que frustam, sem justa causa, a matrícula de
aluno com deficiência”. Sendo assim, a exclusão é crime.
Mãe de um filho com Síndrome de Down, ela foi autora, juntamen-
te com o procurador Sérgio Gardenghi Suiama, da recomendação
no
05/2007/MPF/PR/SP, em fevereiro deste ano, ao diretor da novela “Pá-
ginas da Vida” – na qual a personagem Clara, com Síndrome de Down,
foi recusada em várias escolas – para que não encerrasse o folhetim sem
deixar claro que o acesso de alunos com deficiência a escolas comuns não
é mera opção de seus pais ou responsáveis, e que a conduta excludente
das escolas pode ter conseqüências cíveis, penais e administrativas.
2. revista criança20
Movimento mundial chega ao País
Eventos e acordos internacionais foram fundamentais para impulsionar
a criação de uma política educacional mais justa para todos, sobretudo
para os portadores de necessidades especiais. Entre eles, destaca-se
a Declaração mundial de educação para todos, resultado da Conferên-
cia Mundial de Educação, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990,
e, posteriormente, a Declaração de Salamanca, oriunda da Conferência
Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e qualidade
(UNESCO, 1994).
A Declaração de Salamanca ressalta que a educação de crianças com
necessidades educacionais especiais deve ser tarefa partilhada por pais
e profissionais. Para Rosa Blanco, consultora da Unesco, o conceito de
inclusão é “holístico, um modelo educacional guiado pela certeza de que
discriminar seres humanos é filosoficamente ilegal, e incluir é acreditar
que todos têm o direito de participar ativamente da educação e da so-
ciedade em geral”. Essa nova proposta educacional tem como alicerce:
acessibilidade, projeto político-pedagógico, criação de redes e de parce-
rias, formação de professores e atendimento educacional especializado.
Passado de segregação
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 10% das pes-
soas têm algum tipo de deficiência, o que representaria 15 milhões
de brasileiros, de acordo com o Censo do IBGE de 2000. Em 2004,
a fim de aprimorar a formulação de políticas públicas, o MEC passou
a definir melhor as várias categorias de deficiência. Assim, deficiência
auditiva/surdez é aquela em que, mesmo utilizando aparelho auditi-
vo, a pessoa não consegue ouvir a voz humana. A deficiência visual/
cegueira passa a se referir àquelas pessoas que, mesmo utilizando
óculos, continuam com dificuldade para enxergar. Assim, o universo de
matéria de capa
As escolas comuns são obrigadas
a receberem matrículas de crianças
especiais
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Responsabilidade coletiva
A professora Francisca Roseneide Furtado do Monte, consultora da
Seesp/MEC para a publicação Saberes e práticas da inclusão, distri-
buída para todas as escolas do país, também entende que “a inclusão
tem força legal e política para quebrar barreiras sólidas em torno das
minorias excluídas da sociedade”. Trata-se de uma experiência que
pode gerar conflitos e contradições, segundo Marilda Bruno, da Uni-
versidade Federal da Grande Dourados (MS), outra consultora para a
publicação do MEC. “A inclusão mobiliza a família, os professores, a
escola e os profissionais de apoio especializado. Nos primeiros me-
ses, pode gerar medo, angústia, tensão, dúvidas, tanto para a família
como para escola”.
Para ela, a escola ou a instituição de educação infantil torna-se
inclusiva quando há um projeto pedagógico elaborado coletivamente,
entre as instituições educativas, a família e os profissionais especia-
lizados. “A maior demanda encontra-se na esfera das atitudes, pos-
turas, formas de lidar com a diversidade e a diferença significativa de
cada aluno. Essa não deve ser responsabilidade só do professor, mas
do coletivo escolar”, avalia.
Marilda é mãe de André Gustavo, 32 anos de idade, mestre em
educação especial pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
e funcionário público concursado. Ele teve paralisia cerebral, defici-
ência visual severa e quadro neurológico de hipotonia e convulsões
freqüentes por seqüela de infecção hospitalar, ao nascer. Ingressou
na educação infantil com 1 ano e oito meses, não andava, nem falava.
Mas gostava muito de ir à creche e participar de todas as atividades,
do seu jeito. “Para André foi muito importante freqüentar uma insti-
tuição educativa cedo: aprendeu a falar, a conviver, a viver frustra-
ções, a conhecer suas possibilidades e a lidar com suas limitações
desde pequeno”, relembra.
Mudança de mentalidade
Para que a inclusão aconteça, é preciso olhar a educação de outro
modo. Isso é o que preconiza a professora Maria Tereza Eglér Mantoan,
coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Di-
versidade da Universidade Estadual de Campinas. Mantoan afirma que
a inclusão escolar “pegou a escola de calças curtas” e o nível de esco-
laridade mais atingido por essa inovação foi o do ensino fundamental,
apesar de estar “mexendo” também com a educação infantil.
A professora adverte que a escola, organizada como está, produz
a exclusão. Ela diz que para entender a razão de tanta dificuldade é
preciso analisar o contexto escolar. “Os alunos estão enturmados por
matéria de capa Crianças aprendem desde pequenas
a respeitar as diferenças
6. revista criança24
matéria de capa
Educação inclusiva x
educação especial
Por isso, é necessário estar
clara a diferença entre educação
inclusiva e educação especial.
A educação inclusiva é um mo-
vimento mundial fundamentado
nos princípios dos direitos hu-
manos e da cidadania, tendo por
objetivo eliminar a discriminação
e a exclusão, para garantir o di-
reito à igualdade de oportunida-
des e à diferença, transformando
os sistemas de ensino, de modo
a propiciar a participação de to-
dos os alunos, com foco espe-
cífico naqueles que são vulnerá-
veis à marginalização e exclusão.
A educação especial é uma área
de conhecimento que visa promo-
ver o desenvolvimento das poten-
cialidades de pessoas com defi-
ciência, autismo, síndromes ou
altas habilidades/superdotação, e
abrange desde a educação infan-
til até a educação superior.
Hoje, o atendimento educacio-
nal especializado é apenas com-
plemento da escolarização, e não
substituto. Muitos municípios bra-
sileiros já começaram a adaptar
escolas, a capacitar professores
e a comprar equipamentos. Salas
multimeios, instaladas em escolas-
pólo, que servem outras escolas
e instituições de educação infantil
das redondezas estão sendo cria-
das, e atendem crianças cegas,
com baixa visão, surdas e com di-
ficuldades motoras. Os professores
são capacitados para ensinar libras
(língua brasileira de sinais), braile,
língua portuguesa para surdos e o
uso de instrumentos como o soro-
ban (ábaco japonês).
“Falamos de um processo de
mudança cultural que se constrói
no cotidiano educacional e social.
Hoje, os pais já não escondem
seus filhos com deficiência. As es-
colas e instituições de educação
infantil não podem negar a matrí-
cula, alegando não saber como
atuar, e os professores buscam
aperfeiçoar sua prática, o que se
traduz em benefício não só dos
alunos com deficiência, mas tam-
bém de todos os alunos”, reitera
Cláudia Pereira Dutra. “Com uma
nova concepção de ser huma-
no, ética, cultura e sociedade, e
também com a evolução do co-
nhecimento científico acerca da
inteligência humana, a educação
passa a ser definida e viabilizada
como direito de todos. À medida
que existe esta mudança de men-
talidade nas escolas, altera-se o
pensamento e a realidade cultural
do País”, afirma a Secretária de
Educação Especial do MEC.•
O grande desafio da formação
Rita de Biaggio | São Paulo/SP
Para a maioria dos especialistas, o professor é a peça-chave na implantação da educação inclusiva e
precisa ter uma melhor formação, em um processo contínuo e permanente. Essa formação não ocorre
meramente por meio de cursos de graduação, de pós-graduação ou de aperfeiçoamento.
Segundo Roseneide Furtado, especialista em educação especial/educação infantil, a formação con-
tinuada, com cursos de curta e média duração, é o caminho para garantir a aquisição de competências
relevantes para atuar junto a essas crianças. Ela também aponta a necessidade urgente de mudanças
nos cursos de formação de professores em geral, com destaque para os cursos da área de educação
infantil e seus currículos, os quais devem incluir conteúdos que favoreçam as práticas pedagógicas in-
clusivas.
Para Marilda Bruno, “nós professores temos dificuldade para romper com a idéia de homogeneidade
em que fomos formados: a criança ideal, abstrata, que se desenvolve e aprende de uma forma única.
Este é o grande desafio que a inclusão impõe à escola: lidar com a diversidade e buscar respostas para
as diferentes necessidades educacionais. Trabalhar com o nível de conhecimento, adaptar o ensino ao
interesse e ao ritmo de aprendizagem de cada aluno e ajudá-lo a progredir e a ter experiências significa-
tivas de aprendizagem são a chave da questão”.•