SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  14
Télécharger pour lire hors ligne
capÍtulo 13
o humor dE a voz dos ridícuLos (1945-2013)
roGério santos
Universidade Católica Portuguesa
rogerio.santos@fch.lisboa.ucp.pt
rEsumo:
O humor na rádio seguiu algumas características retiradas de jornais e revistas.
Histórias curtas, sobre a atualidade e com personagens quase universais nasceram
em Portugal a seguir à Segunda Guerra Mundial. O que se perdia em imagem
ganhava-se em som, levando o ouvinte a imaginar pessoas e ambientes.
O programa humorístico A Voz dos Ridículos foi emitido aos domingos entre as
12:00 e as 13:00 a partir de abril de 1947 numa estação de rádio no Porto (Portu
gal). A equipa de A Voz dos Ridículos reunia às quintas-feiras ao fim da tarde para
ensaiar e gravar os textos de três humoristas: João Manuel, B. Veludo e Castro
Maia. Além do humor, o grupo tinha uma pequena orquestra privativa e cantava.
Durante muitos anos, o grupo foi constituído apenas por homens, entre os quais um
grande imitador (Mena Matos). Em cada programa havia um concurso de poesia
(quadras), com prémios semanais.
Nessa altura, o país vivia em ditadura (1926-1974) e o humor tinha de atender às
condições políticas. Por algumas vezes, o diretor do programa foi à polícia política
justificar temas irradiados.
palavras-chave: Rádio, Humour, Portugal, Voz dos Ridículos.
469
Rogério SantoS
abstract:
The humour on the radio followed some features taken from newspapers and
magazines. Short stories about the present days and almost universal characters
were born in Portugal after the Second World War. What was lost in image it was
earned in sound, leading the listener to imagine people and environment.
The comedy program A Voz dos Ridículos (The Voice of the Ridiculous) was
issued on Sundays between 12:00 and 13:00 from April 1947 at a radio station
in Oporto (Portugal). The team’s Voice Ridiculous meeting on Thursdays in the
evenings to rehearse and record the texts of three comedians: João Manuel, B. Veludo
and Castro Maia. Besides the humor, the group had a small private orchestra and they
sang. For many years, the group was limited to men, including a great imitator (Mena
Matos). In each program, it had a poetry contest, with weekly prizes.
At that time, the country was a dictatorship (1926-1974) and the humour had
to attend the political conditions. Sometimes, the program director went to the
political police to justify irradiated subjects.
Keywords: Radio, Humour, Portugal, The Voice of the Ridiculous.
sumario
1. o amadurecimento na ideal rádio
2. profissões dos membros do programa e estrutura do programa
3. Entre a solidariedade e o engenho de fugir à censura
4. conclusões
A Voz dos Ridículos, programa de humor radiofónico, começou a ser transmitido
na estação Portuense Rádio Clube a 17 de abril de 1945 e acabou na Rádio Festival
a 25 de julho de 2013. Foram sessenta e oito anos de emissão, a que aparece ligado o
nome de João ManuelAntão, um dos fundadores que acompanhou o programa até ao
fim. Juntamente com programas infantis, variedades e desporto, o humor foi um tipo
de programa que despertou, desde cedo, muito carinho junto do auditório da rádio.
Nessa altura, o humor tinha de atender às condições políticas: o país vivia em
ditadura (1926-1974). Por algumas vezes, o diretor do programa foi à polícia polí
tica justificar temas irradiados, como se verá à frente. Havia ainda uma relação com
um censor do governo nomeado pelo governo junto da estação emissora, que ouvia
os programas e zelava pelo cumprimento de diretivas da ditadura. As metodologias
empregues são análise documental e entrevistas em profundidade a elementos do
programa. Como resultado previsto pretendo compreender o papel do humor na
programação de uma rádio que servia uma cidade e a sua relação com a cultura e
a sociedade local.
470
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
Programa de maior duração na história da rádio portuguesa, A Voz dos Ridículos
foi o resultado da confluência de diversos fatores. Um deles foi a longevidade do
seu criador principal, João Manuel Antão, mais conhecido simplesmente como João
Manuel. Outro dos fatores essenciais para o longo êxito foi a sua popularidade junto
de camadas sociais médias e baixas da sociedade do Porto. Um terceiro elemento a
realçar do programa foi o de ser feito por amadores, com ocupação de tempos livres
dedicada à rádio e que ilustra um modo particular de estar nos media. Como quarto,
o programa reuniu à sua volta duas gerações, pais e filhos, permitindo a entrada de
mulheres na segunda geração. Os pioneiros foram todos do sexo masculino. Pos
sivelmente, as condições de protocolo social inibiram o ingresso de mulheres na
geração inicial, o que levou a uma escolha de papéis femininos atribuidos a alguns
elementos. Além de Portuense Rádio Clube, o programa esteve sucessivamente em
Ideal Rádio, onde se manteve durante décadas, Rádio Placard, Rádio Comercial,
Rádio Clube de Matosinhos e Rádio Festival, sempre na cidade portuense e refle
tindo questões e problemas da região. Como quinto e último elemento, o programa
foi sempre feito por um produtor independente, comprando o tempo de antena e
vivendo da publicidade explorada diretamente1.
Com o decorrer dos anos, a programação ficava mais variada, caso do popular
programa de humor A Voz dos Ridículos e uma expressão aí utilizada. Transmitido
aos domingos às 13:00 na Ideal Rádio, dos Emissores do Norte Reunidos, a partir
também de 1953, o programa criou uma espécie de folhetim humorístico, onde um
dos maiores imitadores da época, Mena Matos, criou a expressão pincha, Mala
quias, pincha2. Podemos atribuir à expressão o presente valor de «desenrasca-te»,
tão popularizada nas décadas de 1950 e 1960 e usada a propósito e a despropósito
(equivalente ao mais recente «não havia nexexidade», de Herman José, na perso
nagem do provedor Diácono Remédios). Assim como o trabalha dedo, não tenhas
medo, a expressão «refrão» de um dos intervenientes quando «usava» o telefone
para fazer queixas de teor social, para a Câmara, a caixa de previdência, um hospi
tal ou qualquer serviço público que estivesse ao alcance da crítica popular. Algumas
expressões que se tornaram populares foram «afinfa-lhe», «olha o boneco», «esca
cha pessegueiro» e «rebimba o malho»3.
Mena Matos era uma das figuras maiores (o linotipista) e como autores sobres
saíam João Manuel, o diretor do programa, Bê Veludo e Antero Nunes (posterior
mente aproveitados pelos Parodiantes de Lisboa), António Santos (o Bigodes de
1 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998.
2 Com base em email de Rui de Melo (locutor, realizador de rádio e docente universitário), por
solicitação minha sobre a expressão pincha, Malaquias, pincha (3 de julho de 2012). Na linguagem
popular do Porto, pinchar significa saltar.
3 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998.
471
Rogério SantoS
Arame) e Alberto Caldeira (o homem dos discos). Também havia cantigas, ao jeito
de revista, com o maestro José Quelhas ao piano, a orquestra Vou Ali e Já Venho
e o locutor Ferreira da Cunha (o repórter) a cantar com letras trabalhadas sobre
músicas populares mas de temas de incindência crítica diversificada. Todos funcio
navam como um grupo de amigos e a receita publicitária era distribuída ao estilo
«cooperativa». O programa A Voz dos Ridículos, criado no Portuense Rádio Clube,
manteve-se na Ideal Rádio, passou incólume à compra dos Emissores do Norte
Reunidos pela Emissora Nacional e à nacionalização de dezembro de 1975. Só saíu
daquela antena, a emitir da rua Alferes Malheiro, no Porto, porque a estação fechou.
Na década de 1980, passou para a Rádio Festival.
Os programas de variedades tinham regularidade, como noticiou um dos jornais
da rádio: por exemplo, em maio de 1946, apresentaram-se três programas4. A rádio
distribuia convites e o público assistente era incitado a tornar-se associado. Nos
programas de música, uma das rubricas mais apreciadas era contar histórias leves,
a que chamavam anedotas, apresentadas por António Raimundo. Como testemunha
uma carta enviada a este colaborador da estação e fundador de A Voz dos Ridículos:
«Como grandes apreciadores de Portuense Rádio Clube, enviamos estas anedotas
para serem ditas nas Variedades pelo exmº sr. António Raimundo, caso acharem
aproveitáveis»5. Um ouvinte, Sérgio Lima, enviou ao «exmº senhor que costuma
contar as anedotas na Hora das Variedades»6. Numa terceira, de António Júlio,
datada de 9 de fevereiro de 1945, lia-se: «Se achar que lhe serve para o seu arquivo
humorístico, permita-nos que lhe contemos uma anedota».
Numa sessão de variedades, João Manuel Antão, representante do jornal Os
Ridículos no Porto, lembrou-se de incluir versos humorísticos e diálogos e quis
integrá-los em programa próprio de Portuense Rádio Clube, transmitido em direto.
À colaboração espontânea e quase anónima, A Voz dos Ridículos ia constituir uma
equipa fixa. Como pertencia ao grupo de correspondentes do jornal Os Ridículos,
sedeado em Lisboa, lembrou-se do nome Vozes dos Ridículos. Vivia-se no final
da II Guerra Mundial e o locutor Fernando Peça nas suas reportagens de Londres
dizia: «A BBC fala e o mundo acredita». O programa de João Manuel aproveitou a
ideia e dizia «A Voz dos Ridículos fala e o mundo acredita e ri», mote que se man
teve até ao fim do programa. Para João Manuel, a verdadeira função do programa
era fazer rir, dar e fazer. Dito pelo próprio: «dávamos o que podíamos e fazíamos
o que sabiámos». João Manuel Antão fazia parte da direção do Portuense Rádio
Clube em 1946, ao lado de outros nomes de que destaco Manuel Correia de Brito
4 Portuense Rádio Clube, nº 3, abril de 1946.
5 Coleção particular de António Raimundo (pai de Zulmiro Raimundo, a quem agradeço o ter
me dado a conhecer estas cartas e muitos recortes de imprensa sobre o programa).
6 Coleção particular de António Raimundo.
472
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
e Alberto Ferraz Carneiro, os três responsáveis pelo jornal da estação. Correia de
Brito, além de hoquista de renome, fez o papel da série do menino Quim, aluno
cábula diante do professor, interpretado por Júlio Guimarães, espécie de resposta
ao lisboeta menino Tonecas, criado por José Oliveira Cosme. Além de João Manuel
Antão e António Raimundo, os outros fundadores do programa seriam Gomes de
Oliveira, Eduardo Augusto, Castro Silva (maestro da orquestra «Trunfo de Copas»)
e Peixoto Alves7.
1. o amadurEcimEnto na idEal rádio
A estação Portuense Rádio Clube deixou de emitir em 1954. Das pequenas
estações existentes na cidade, o dono da Ideal Rádio, Júlio Silva, telefonou a João
Manuel Antão: «já sei que vocês ficaram sem emissor. Querem vir para aqui»? O
humorista reuniu com os seus colegas e aceitou. Na Ideal Rádio, estação a funcio
nar na rua de Alferes Malheiro, dentro do grupo dos Emissores do Norte Reunidos,
o programa foi para o ar ainda em 1953 e aí permaneceu mais de três décadas,
no horário dominical das 13:00 às 14:00. A emissão era em ondas médias e, com
alguma rapidez, o programa passou a ser gravado e transmitido ao domingo com
repetição durante a semana. Uma nova função e profissão nasciam, a de sonoplas
ta. Alguns ficaram conhecidos pelo seu trabalho, caso de Octávio Frias, na Rádio
Graça. Em A Voz dos Ridículos, Alberto Caldeira tinha a missão de colocar os dis
cos8, o que equivale a dizer que era ele o responsável pelos sons. Outros programas
e, em especial a publicidade, beneficiariam muito com o registo magnético. Na
publicidade, seria usada uma tecnologia intermédia entre o disco e a fita magnética,
o cartucho9.
O estúdio da Ideal Rádio funcionava no fundo da loja de rádios e artigos elétri
cos, a principal atividade do seu proprietário. Na época, Júlio Silva tinha bastante
peso no setor, pois ele era vice-presidente do Grémio Concelhio dos Comerciantes
de Artigos Musicais e de Rádio-Electricidade do Porto, ao lado do presidente Janu
ário Trindade, pai de Arnaldo Trindade (que se notabilizaria como um dos mais
importantes editores discográficos do país). A Voz dos Ridículos fazia festas de
confraternização, muitas delas em casa do Júlio Silva, que tinha uma propriedade
em Vila do Conde além da casa onde habitava no Porto, na rua de Alferes Malheiro.
No período mais áureo, nas décadas de 1950 e 1960, os autores dos textos foram
João Manuel, Bê Veludo e Castro Maia. Bê Veludo era o nome artístico de Ben
jamin Veludo, depois consagrado como co-autor da peça Um Cálice de Vinho do
7 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998.
8 A Voz dos Ridículos, nº 1, junho de 1956.
9 Entrevista a António Rêgo feita pelo autor, 28 de maio de 2012.
473
Rogério SantoS
Porto do grupo de teatro Seiva Troupe (escrita conjuntamente com Manuel Dias e
Norberto Barroca, a peças esteve dois anos em cena e recebeu o prémio de melhor
peça em 1982)10. Bê Veludo entrou para A Voz dos Ridículos quando o programa
já emitia na Ideal Rádio. Num dos concursos de perguntas do Armazém Popular,
ele ficou em quarto lugar, com João Manuel Antão a ver grandes potencialidades
pelo que o convidou para colaborador. Ele seria considerado o melhor humorista
ao serviço do programa. Semanalmente, Bê Veludo e Castro Maia davam os seus
textos a João Manuel Antão que os passava à máquina de escrever, num total de
dez a onze páginas semanais. Muitas vezes, com quadras e textos dedicados a um
motivo ou acontecimento específico, como o S. João ou outra festa de realce. João
Manuel Antão tinha também a condução de outro programa na Ideal Rádio: A Voz
do Futebol Clube do Porto, à terça-feira, às 19:3011, ele que fora o letrista da mar
cha daquele clube.
Inicialmente, José Pinto da Costa também escreveu. Mas, por pertencer ao
Sindicato dos Ferroviários (estação de Campanhã), a censura proibiu a sua colabo
ração. A partir daí, ficou com a designação de Poeta sem Destino. Pinto da Costa
escreveria uma crítica de teatro à revista Feira do Porto, de Manuel Gustavo de
Abreu e Sousa (capitão de artilharia) e Athaíde Perry, que os autores não apre
ciaram e apresentaram queixa12. Num dos programas de A Voz dos Ridículos, o
locutor diria: «D. Luísa [Satanela?] e senhor Costinha [atores] estão bem? Ah, não
vieram. Já se sabe. Há dias fizeram uma crítica à revista e não gostaram. Por isso
não vieram ao posto. Damos um louvor à D. Luísa e ao Costinha e à empresa do
Sá da Bandeira os sentimentos» Apesar do peso da classe trabalhadora no grupo do
programa, os elementos mais ativistas do operariado eram acompanhados de muito
perto pela censura, que temia a propagação de influências marxistas.
O programa teve ainda outro grande humorista, Eduardo Augusto, autor da
marcha da Voz dos Ridículos13: «A nossa Voz / De «Os Ridículos» chamada, / É
uma voz endiabrada / mas de perfeito otimismo; / e somos nós, /Dando graças ao
manifesto /Que quando alguém sai do texto /Lhe pomos o sinapismo»14. Aos ele
mentos idos do Portuense Rádio Clube, juntaram-se na Ideal Rádio estrelas como
Alberto Caldeira (o homem dos discos), Ferreira da Cunha (locutor e repórter), a
cantar com letras trabalhadas sobre músicas populares ao jeito de revista mas de
temas de incidência crítica diversificada15, António Santos (o Bigodes de Arame),
10 Entrevista a Benjamim Veludo feita pelo autor, 24 de agosto de 2013.
11 Jornal de Notícias, 1 de janeiro de 1957.
12 SNI, Caixa 1395, 22 de novembro de 1946.
13 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013.
14 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998.
15 E-mail de Rui de Melo ao autor, 3 de julho de 2012.
474
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
José Carneiro, Castro Maia, Silva Campos, José Moreira, Mena Matos16, o maes
tro José Quelhas, ao piano e com a orquestra Vou Ali e Já Venho17.
Algumas das personagens seriam o Finfas, que casara com a Micas da Calçada,
o Tirone, o senhor Perfeito, o Sebastião Come Tudo. No tempo da censura, uma
das figuras foi o Saraiva, que andava sempre rouco, preso da garganta, como dizia
o texto de 4 de janeiro de 196818. Nas primeiras décadas, os tipos ridículos eram
produzidos nos fados de Neca Rafael, nas revistas de Arnaldo Leite e de Carvalho
Barbosa e nos trocadilhos de João Manuel e Bê Veludo19. Após 1974, temas como a
liberdade, a Expo 98 e o euro entrariam no humor de A Voz dos Ridículos: «O euro
/ Uma moeda bem diferente… / A moeda, enfim, que é europeia… /Que andará nas
mãos de toda a gente / Fidalga ou até plebeia»20. Manuel Ramos, o Raminhos do
Notícias (Jornal de Notícias), estaria com João Manuel Antão no apoio às Cruzadas
de Bem Fazer da década de 195021.
A Voz dos Ridículos manteve-se na Ideal Rádio e passou incólume à compra dos
Emissores do Norte Reunidos pela Emissora Nacional no princípio da década de
1970 e à nacionalização de dezembro de 1975. Só saíu daquela antena, a emitir da
rua Alferes Malheiro, no Porto, quando a estação fechou, sendo integrado na Rádio
Comercial, ainda no tempo da rádio nacionalizada. Na década de 1980, passou
para a Rádio Clube de Matosinhos e, após o encerramento desta por compra de
Luís Montez, entrou na grelha de programas da Rádio Festival, onde permaneceu
até 2013. Por falecimento dos restantes membros do programa e desinteresse de Bê
Veludo, apenas contaria com João Manuel do grupo fundador. Tirando o período da
emissão de Rádio Comercial, uma estação de âmbito nacional, o programa esteve
sempre em estações locais do Porto, o que significa uma ligação forte à cidade e
região. Daí se poder afirmar com clareza que A Voz dos Ridículos foi, e teve orgulho
nisso, um programa regional. A imagem de marca, um locutor sentado em cima de
um microfone à pesca de piadas «arrolhadas», manteve-se ao longo do tempo22.
Do começo em 1945 até ao começo da década de 1980, a emissão fez-se em
ondas médias e em rádios locais, com grande audiência local. A partir da passa
gem para a onda da Rádio Comercial e das outras estações, a transmissão passou
a efetuar-se em frequência modulada, no momento de transição da audição de
ondas médias para a frequência modulada, com mais concorrência entre estações
16 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997.
17 Ao longo dos programas, a designação mudava, prova da plasticidade de personagens e ideias.
18 Jornal de Notícias, 18 de abril de 1998.
19 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998.
20 Helder Pacheco, Jornal de Notícias, 30 de maio de 2002.
21 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997.
22 Jornal de Notícias, 11 de julho de 1997.
475
Rogério SantoS
de rádio e também com a emissão de televisão à hora do programa. O impacto de
A Voz dos Ridículos diminuia. A equipa mais recente mantinha João Manuel Antão,
Júlio Couto, Salazar Ribeiro, Virgílio Cervantes, Manuel Morais23, Alberto Mourão,
Alfredo Lucas e Manuel Baptista e alguns filhos de fundadores como Elisabete
Moreira e Zulmiro Raimundo24. Era já o tempo de consagrar o programa como
«Património Mundial de Hilariedade», com um «desfile de «rusgas da laracha»
e cimeiras como uma visita à Torre dos Clérigos25! Para João Manuel, A Voz dos
Ridículos nunca teve um partido, pois foi «sempre pelas coisas inteiras» e «somos
todos muito católicos. Por causa dos buracos na rua, andamos sempre com o credo
na boca»26. Aqui, juntar-se-iam «non sense», burlesco e surrealismo.
2. proFissõEs dos mEmbros do proGrama E Estrutura do
proGrama
O programa foi sempre feito na perspetiva de trabalho amador, articulando
interesses pelo humor e pelas causas de solidariedade, como abaixo se indica. Os
elementos de A Voz dos Ridículos não ganhavam dinheiro com o programa, mas o
saldo positivo com a publicidade era aplicado pragmaticamente em almoços e jan
tares dos colaboradores, bem como deslocações que faziam fora da cidade. Outra
parte do dinheiro servia para apoio a atividades sociais.
Cada elemento do programa tinha a sua atividade profissional, bastante diversi
ficada entre si. A sua ligação à rádio era dentro da qualidade de amador. O tipo de
profissões dos colaboradores do programa talvez justifique as raizes populares de
A Voz dos Ridículos e a sua adesão por parte dos ouvintes. João Manuel Antão era
vendedor representante de produtos e empresas, e vendia estes em lojas e feiras,
profissão que o obrigava a contactar com muita gente e a conhecer muitas histó
rias. Bê Veludo era tipógrafo na tipografia do pai, o que lhe deu um lado letrado
útil para a escrita regular do programa. O terceiro elemento escritor do programa,
Castro Maia, era representante dos relógios da marca Zephyr, então muito concei
tuada e que a classe média ambicionava possuir. António Santos, ferrageiro na rua
do Almada, organizou um Carnaval dos Fenianos no Porto e arranjou um carro
alegórico de A Voz dos Ridículos, contribuindo para o reconhecimento público do
programa junto dos seus ouvintes. De outros elementos do programa, José Moreira
trabalhava como funcionário superior dos Correios, Ferreira da Cunha numa fábrica
de explosivos para minas e pedreiras, Feliz dos Santos numa empresa de metalo
mecânica em S. Mamede de Infesta, Silva Campos na Companhia de Seguros A
23 Jornal de Notícias, 18 de abril de 1998.
24 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997.
25 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1998.
26 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997.
476
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
Garantia e José Carneiro era sócio da firma Tamegão, na rua Sá da Bandeira27.
António Raimundo (1908-1946), empregado de balcão no Armazém do Anjo, na
rua dos Carmelitas, Porto, além de grande contador de histórias e de anedotas era
exímio tocador de guitarra28. A grande maioria dos colaboradores do programa
pertencia à classe trabalhadora, pelo que veiculava valores e aspirações das classes
populares da cidade do Porto.
A estrutura do programa era constituida por diálogos e cantigas humorísticas. Os
textos versavam a atualidade, muitos deles a partir de ideias de leitura dos jornais
(e, depois, dos noticiários da televisão)29 na forma de poesia. As letras das cantigas
apropriavam-se às situações. Por exemplo, o tango À Média Luz, com letra ade
quada, era interpretado quando havia problemas com a eletricidade, caso de um
aumento de tarifas30. A receita para a forte recetividade era a existência de diálogos
curtos, incisivos e de fácil compreensão31. Os autores e outros colaboradores diziam
os diálogos e depois cantavam. Dos cantores, destacaram-se José Moreira, exce
lente cantor do tango, e Ferreira da Cunha, «capaz de cantar qualquer género»32.
Mena Matos foi o grande imitador do grupo. Por exemplo, ele imitava na perfeição
o ditador Salazar. Os vários elementos do programa cantavam afinadinhos com o
apoio de uma pequena orquestra constituida por amadores e alguns profissionais
que apoiavam graciosamente o programa.
A veia humorística de João Manuel Antão ficou gravada em múltiplas peças e
revistas que ele e outros colaboradores apresentaram em teatros do Porto. Exem
plos: Grelos à Provinciana, em parceria com Aníbal Nazaré e Nélson de Barros.
Ela Está Aqui, Toma lá Piadas, esta sempre com lotação esgotada, e Serviço à
Lista, entre 1962 e 1965, foram peças que contaram com a colaboração do humo
rista Bê Veludo. Se, geralmente, iniciavam as representações das peças no teatro Sá
da Bandeira, atuações posteriores ocorriam em salas do norte do país, como Vila
Nova de Gaia, Penafiel, Braga (Teatro Circo), Aveiro (Aveirense), Ovar e Póvoa
do Varzim.
Também houve peças transmitidas através da rádio, como no final de 1942 no
Portuense Rádio Clube, Ao Preço da Casa, peça em dois atos e dez quadros, e 6 de
abril de 1945, Haja Alegria, original de João Manuel e Manuel João e música de
Castro e Silva. Manuel João era diretor do teatro Sá da Bandeira e também diretor
de cena. O cartaz do nono programa oficial das Variedades da estação anunciava a
27 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013.
28 Informação pessoal dada pelo filho Zulmiro Raimundo, 26 de agosto de 2013.
29 Tal & Qual, 3 de outubro de 2003.
30 Entrevista a Benjamin Veludo feita pelo autor, 24 de agosto de 2013.
31 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998.
32 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013.
477
Rogério SantoS
interpretação de António Raimundo, Maria Augusta, Mali Socorro, Beatriz Socorro,
António Santos, Jaime Rodrigues, Feliz dos Santos, Júlio Guimarães, Rolando Ver
dial e José Carneiro, com apresentação pelo locutor Gomes de Oliveira, montagem
técnica de Ernesto Dolgner e direção de orquestra de Castro e Silva. No intervalo
da última peça, António Raimundo lia anedotas no intervalo.
O programa teve um folhetim humorístico chamado Pincha Malaquias Pincha,
de João de Queirós, espécie de rubrica dentro do programa. Os participantes do
programa começaram a interpretar apenas com homens porque então o programa
não tinha participação de mulheres. António Santos era um dos intérpretes que
representava vozes femininas33. João de Queirós faleceria pouco tempo depois, pelo
que não houve continuidade do género dentro do programa.
Ao longo da década de 1950 foi introduzida a gravação magnética, o que permi
tiu a repetição do programa além da emissão ao domingo. Regularmente, o trabalho
de ensaio e de gravação de A Voz dos Ridículos decorria às quintas-feiras, entre as
20:00/20:30 e as 23:00/23:30, a que se seguia um lanche de confraternização. João
Manuel distribuia os papéis e o ensaio era rápido. Para ele, «já estavam tão calha
dos que praticamente a gente não fazia os ensaios. «Oh, Zé Carneiro, oh, Santos,
faz de parolo». «Tu fazes aqui de Visconde: oh, senhora minha»».
O programa tinha um concurso semanal muito popular e que servia para aferir
a sua audiência. Concurso mantido durante muitos anos, nele era formulada uma
pergunta, com as respostas enviadas em postais dos correios para o programa. Um
exemplo de pergunta e resposta: «O que é um pedreiro? É aquele que volta e meia
dá um tiro no trabalho» (Gracinda Gomes Teixeira, Mariz)34. Outro exemplo: «O
que é um pescador? É um tipo tão fraco que precisa de um pau para meter os peixes
na linha» (Eneida Carvalho, Porto). Enquanto os críticos escreviam que os mais
graciosos larachistas da região do Porto eram premiados com um par de soquetes
do Armazém Popular35, para João Manuel Antão, o diretor do programa, «algumas
das respostas eram de antologia, algumas marotas, outras políticas», destacando:
«Havia lá uma, malandra, estou-me a lembrar agora. Dizia: «o noivo para
onde vai na noite de núpcias»? Era a pergunta. E a resposta era: «Umas vezes
julga que vai para o Furadouro e outras vezes vai para a Afurada». Escolhia
se e davam-se prémios. Uma peça de malha do Armazém Popular, um relógio
ou bolsinha de prata da ourivesaria do Bolhão e ainda artigos para senhora
da casa Tito Cunha, que era a casa de noivos e noivas. […] Uma vez fizemos
«o que era a cadeia de Custóias»? Telefonaram muito zangados, de Custóias.
33 Entrevista a Zulmiro Raimundo e Elisabete Moreira feita pelo autor, 21 de agosto de 2013.
34 A Voz dos Ridículos, nº 1, junho de 1956.
35 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998.
478
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
Eu disse: «não se preocupe. Preocupe-se com a resposta». E então vem uma
resposta daquelas de se lhe tirar o chapéu. «O que é a cadeia de Custóias»?
«É um móvel com muitas gavetas e todas elas cheias de artigo com defeito».
[…] A gente tira os postais: «oh, pá, escolhe aí». «Oh, esta está formidável».
Primeiro, segundo e terceiro prémio. E dizíamos: «fulano de tal da rua tal,
vai ter a peça de malha do «Armazém Popular, que tem malhas até fartar».
Ourivesaria do Bolhão, segundo prémio. E depois lá iam receber à casa. Não
era nada com a gente. Já sabiam. A gente enviava o postal com a quadra
premiada e iam lá receber»36.
3. EntrE a solidariEdadE E o EnGEnho dE FuGir à cEnsura
A Voz dos Ridículos também se caracterizou por fazer obras de bem estar. O
padre Américo, famoso pela sua obra de apoio a rapazes sem família, começou em
A Voz dos Ridículos a fazer peditórios. Depois, os elementos do programa realiza
ram espetáculos na Casa do Gaiato e no Coliseu do Porto a favor dessa obra. O
padre Américo falava diretamente no programa. Houve ainda excursões à Casa do
Gaiato e ao Lar do Comércio, organizadas através do microfone do programa. João
Manuel Antão, então diretor do Lar do Comércio e do hospital Maria Pia, promoveu
o aspeto filantrópico que se julga associado à rádio. Júlio Silva, o dono da estação,
também colaborou de modo ativo na campanha. Espetáculos de beneficiência feitos
por A Voz dos Ridículos seriam as revistas citadas acima, no teatro Sá da Bandeira.
Em especial durante as décadas de 1950 e 1960, o programa humorístico teve uma
pequena orquestra de boa qualidade.
Durante a longa ditadura, o programa enfrentou semanalmente a censura. Todos
os textos tinham de passar pelo censor do SNI antes de gravados e emitidos. Quan
do o tema era delicado, o grupo votava e decidia: «quando a tesoura da censura
cortava, ficávamos aborrecidos, claro, mas quando passava alguma coisa, era uma
festa»37. Um número que teve muito êxito foi «Pipa Velha, Pipa Nova», de Castro
Maia, em que a primeira representava a União Nacional, o partido único do Estado
Novo, e a segunda a oposição38. Apesar da bonomia relativa na relação entre humo
ristas e censura, dada a popularidade e o modo burlesco como os acontecimentos
eram observados, o programa teve vários casos de índole política, contornados com
o riso e o pagamento de multas mas nunca a suspensão do programa. Num dos
textos do programa, os autores escreveram «o sol estava a dar no Zé que estava na
praia, e coitado do Zé nem podia falar cada vez mais mirrado. Porquê? Por causa do
36 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013.
37 Jornal de Notícias, 4 de maio de 1999.
38 Jornal de Notícias, 4 de maio de 1999.
479
Rogério SantoS
sol a dar, do sol a dar, o sol a dar»39. «Sol a dar» aproximava-se do som da palavra
Salazar, o nome do ditador. Chamaram João Manuel às instalações da PIDE, na rua
do Heroísmo, no Porto:
«Eram sete e tal da tarde, estive lá até às duas e meia da manhã, no gabinete.
Vá lá que não me tocaram. Depois é que me disseram: «o senhor inspetor
não chegou e diz para você se ir embora». Vim-me embora. Mas, de outra
vez… tivemos… quando foi daquela coisa do Solnado «podia-o chamá-lo».
Veio cá o presidente da República e nós dissemos: «Podia-o empurrá-lo»?
Uma multa. […] tínhamos uns amigos, os anunciantes, cem paus aqui, tre
zentos acolá. Lá pagávamos a multa e safávamo-nos. Era muito forte A Voz
dos Ridículos naquela altura em que não havia televisão. A malta esperava,
que sabia… Eu ia no elétrico e às vezes aconteciam coisas […] e diziam…
Eu ouvia: «vamos a ver o que eles dizem no domingo». […] E depois: «olha,
ouviste no domingo»? «Oh, pá, eles falaram assim assim»».
O programa teve um colaborador chamado Gastão Mineiro, dono de uma pada
ria, na ocasião em que houve um problema com mineiros de S. Pedro da Cova.
Durante a gravação falaram da «pouca massa do mineiro e do pão que o diabo
amassou», o que levou os humoristas à censura40. Explicada a coincidência, o
assunto morreu ali. Num caso particular, o das eleições presidenciais em que Hum
berto Delgado foi o candidato da oposição (1958), João Manuel esteve presente na
receção popular a este general dissidente do Estado Novo, na estação ferroviária de
S. Bento. Cruzou-se com o inspetor da PIDE, a polícia política. Este chegou-se ao
ouvido do humorista e disse: «o senhor também aqui»? João Manuel olhou para ele
e disse: «Por causa deste regime, estou farto de ver gordos. Vim ver um delgado».
Era a reação rápida do fazer humor em qualquer situação, mais normal ou mais difí
cil. No período a seguir a 1974, quando emitiam no canal que seria depois a Rádio
Comercial, a relação com os militares foi controversa. Um oficial entendia que o
programa trabalhava para o patronato, ao que João Manuel respondeu: «o senhor
acha que são os operários que nos pagam a publicidade»41?
4. conclusõEs
A Voz dos Ridículos foi um dos programas de maior duração ao longo do tempo
da rádio portuguesa, entre 1945 e 2013, sempre ao domingo entre as 13:00 e as
39 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013.
40 O Primeiro de Janeiro, 12 de setembro de 2003.
41 O Primeiro de Janeiro, 12 de setembro de 2003.
480
Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013)
14:00. Este horário de almoço, quando combinou com a época em que a televisão
ainda não existia ou não era prevalecente, atingia um vasto auditório. De um humor
claro e tranquilo sobre a realidade local do Porto, cidade onde emitiu sempre, mas
também relevando acontecimentos nacionais, o programa combinava textos em
poesia e cantigas de letras adaptadas a músicas populares ou em voga. Tal facilitava
a aprendizagem dos ouvintes. Uma pequena orquestra permitia colorir musicalmen
te os programas. Durante muitos anos, teve um concurso de perguntas, com prémios
em objetos de vestuário e de ourivesaria, que as classes populares apreciavam bas
tante, num momento em que a sociedade de consumo arrancava lentamente no país.
Pela origem social da primeira geração de autores e colaboradores, houve
uma presença grande da classe trabalhadora em A Voz dos Ridículos, com preo
cupações sociais e culturais. Isso é constatado em outros elementos pioneiros da
rádio local no Porto, como Carlos Silva, empregado em escritório de advogados
e vendedor das máquinas de costura Oliva, profissionalizado como locutor da
Rádio Porto42, e Américo da Graça Júnior, barbeiro e cabeleireiro e, depois, autor
de folhetins na ORSEC43.
A proveniência social aliada à ideia de riso e festa que cada indivíduo levou para
o grupo moldou o programa num estilo popular, identificável numa cidade e região
em que o trabalho fabril e artesanal era a marca de identidade forte. A irradiação num
emissor local, os Emissores do Norte Reunidos, numa grande parte da vida de A Voz
dos Ridículos, reforçou os laços com a comunidade ouvinte, como aliás o fundador
João Manuel consideraria quando se referia às expectativas dos ouvintes, tornando o
programa, pela sua proximidade, uma espécie de voz da cidade e da região.
Como em toda a rádio comercial, a publicidade foi a segurança financeira do
programa, sempre uma publicidade local e regional em épocas de afirmação eco
nómica da cidade e da região. Quando adveio a crise financeira de 2008, associada
ao desaparecimento e cansaço dos seus autores, o programa perderia a força do
investimento publicitário que teve ao longo de muitas décadas de atividade.
O programa fez grande parte da sua carreira em ondas médias, mudando-se para
a frequência modulada quando a tecnologia de emissão e receção se popularizou
nesta última. Porém, a audiência desceu dada a maior concorrência de estações de
rádio empregando frequências diferentes, a somar à mudança de hábitos consumi
dores agora mais voltados para a televisão.
Um elemento a realçar é a do programa refletir um universo masculino. Devi
do a questões culturais, a primeira geração de A Voz dos Ridículos não permitiu a
entrada de mulheres. Isso obrigou à existência de um núcleo de colaboradores bem
42 Entrevista a Carlos Silva feita pelo autor, 13 de agosto de 2012.
43 A Defesa, 15 de fevereiro de 1955.
481
Rogério SantoS
pequeno, com os papéis femininos distribuídos por apenas alguns elementos do
grupo. Na segunda geração do programa, com o ingresso de filhas dos fundadores,
foi possível ultrapassar a dificuldade. Pode considerar-se isso como um fator inicial
de censura, parecendo ter a rádio demorado a abrir-se à colaboração feminina. Con
tudo, na rádio já operavam locutoras e autoras de folhetins, por exemplo. À censura
de vozes femininas juntar-se-ia a necessidade dos textos semanais passarem pela
censura política, o que reduzia o impacto do dito ao microfone. Qualquer texto, e
em especial o texto humorístico, pode ter interpretações variadas e, com tal, intro
duzir perigo ao permitido pelo regime. Mas o humor acabou por ser um escape,
com os responsáveis do programa a saberem ultrapassar os problemas.
A Voz dos Ridículos acompanhou o progresso tecnológico, caso da gravação
magnética, o que possibilitou o registo prévio, com ensaio e gravação, e transmis
são e repetição da transmissão. Durante a década de 1950, foi possível introduzir
essa vantagem, tal como outros programas na rádio portuguesa. Pelo facto, uma
nova profissão emergia, a do montador ou sonoplasta.
482

Contenu connexe

Tendances

Tendances (20)

Temples Grecs
Temples GrecsTemples Grecs
Temples Grecs
 
Tema 3 el moviment obrer
Tema 3 el moviment obrerTema 3 el moviment obrer
Tema 3 el moviment obrer
 
LA GUERRA CIVIL ESPANYOLA I EL FRANQUISME. 4rt ESO.
LA GUERRA CIVIL ESPANYOLA I EL FRANQUISME. 4rt ESO.LA GUERRA CIVIL ESPANYOLA I EL FRANQUISME. 4rt ESO.
LA GUERRA CIVIL ESPANYOLA I EL FRANQUISME. 4rt ESO.
 
Las vanguardias antes de 1945
Las vanguardias antes de 1945Las vanguardias antes de 1945
Las vanguardias antes de 1945
 
3. La industrialització de les societats europees.
3. La industrialització de les societats europees.3. La industrialització de les societats europees.
3. La industrialització de les societats europees.
 
Romanticismo mexicano
Romanticismo mexicanoRomanticismo mexicano
Romanticismo mexicano
 
La generalitat republicana_13
La generalitat republicana_13La generalitat republicana_13
La generalitat republicana_13
 
El Palau Reial Major
El Palau Reial MajorEl Palau Reial Major
El Palau Reial Major
 
2. la mancomunitat
2. la  mancomunitat2. la  mancomunitat
2. la mancomunitat
 
TEMA 12. Laciutat a Espanya i Catalunya (2). GEOGRAFIA 2n BATXILLERAT
TEMA 12. Laciutat a Espanya i Catalunya (2). GEOGRAFIA 2n BATXILLERATTEMA 12. Laciutat a Espanya i Catalunya (2). GEOGRAFIA 2n BATXILLERAT
TEMA 12. Laciutat a Espanya i Catalunya (2). GEOGRAFIA 2n BATXILLERAT
 
Art Romà (Batxillerat)
Art Romà (Batxillerat)Art Romà (Batxillerat)
Art Romà (Batxillerat)
 
Model Canvas
Model CanvasModel Canvas
Model Canvas
 
LA REVOLUCIÓ INDUSTRIAL
LA REVOLUCIÓ INDUSTRIALLA REVOLUCIÓ INDUSTRIAL
LA REVOLUCIÓ INDUSTRIAL
 
Polimetría en Don Juan Tenorio
Polimetría en Don Juan TenorioPolimetría en Don Juan Tenorio
Polimetría en Don Juan Tenorio
 
Treball de recerca: El manga
Treball de recerca: El mangaTreball de recerca: El manga
Treball de recerca: El manga
 
L'art del Renaixement
L'art del RenaixementL'art del Renaixement
L'art del Renaixement
 
Hispano musulmà
Hispano musulmàHispano musulmà
Hispano musulmà
 
La Maison Carrée
La Maison CarréeLa Maison Carrée
La Maison Carrée
 
Art Del Segle XIX
Art Del Segle XIXArt Del Segle XIX
Art Del Segle XIX
 
2 unitat ii_republica_11
2 unitat ii_republica_112 unitat ii_republica_11
2 unitat ii_republica_11
 

Similaire à A Voz dos Ridículos

História da mídia no Brasil 2
História da mídia no Brasil 2História da mídia no Brasil 2
História da mídia no Brasil 2Laércio Góes
 
Rádio Clube Português em 1963
Rádio Clube Português em 1963Rádio Clube Português em 1963
Rádio Clube Português em 1963RogrioSantos115
 
História do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsHistória do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsRogério Santos
 
Texto43-Pipn-P7
Texto43-Pipn-P7Texto43-Pipn-P7
Texto43-Pipn-P7renatotf
 
Rádio - midia sonora
Rádio - midia sonoraRádio - midia sonora
Rádio - midia sonoraCláudia
 
90 anos do rádio
90 anos do rádio90 anos do rádio
90 anos do rádiomaxjic
 
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidade
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidadeRádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidade
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidadeRogério Santos
 
História do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsHistória do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsRogério Santos
 
Cultura de massas anos 30
Cultura de massas anos 30Cultura de massas anos 30
Cultura de massas anos 30cecilianoclaro
 
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.Andressa Azevedo
 
Realese do livro historias que o radio nao contou
Realese do livro historias que o radio nao contouRealese do livro historias que o radio nao contou
Realese do livro historias que o radio nao contouFmoreira4
 
A vida musical em Manaus
A vida musical em Manaus A vida musical em Manaus
A vida musical em Manaus Durango Duarte
 
midias e meios de comunicao - radio.pdf
midias e meios de comunicao - radio.pdfmidias e meios de comunicao - radio.pdf
midias e meios de comunicao - radio.pdfwarosay680
 
A Portuguesa David Santos 6 A
A Portuguesa David Santos 6 AA Portuguesa David Santos 6 A
A Portuguesa David Santos 6 Aricardocostacruz
 

Similaire à A Voz dos Ridículos (20)

História da mídia no Brasil 2
História da mídia no Brasil 2História da mídia no Brasil 2
História da mídia no Brasil 2
 
Rádio Clube Português em 1963
Rádio Clube Português em 1963Rádio Clube Português em 1963
Rádio Clube Português em 1963
 
História do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsHistória do rádio clube português
História do rádio clube português
 
Texto43-Pipn-P7
Texto43-Pipn-P7Texto43-Pipn-P7
Texto43-Pipn-P7
 
Rádio - midia sonora
Rádio - midia sonoraRádio - midia sonora
Rádio - midia sonora
 
90 anos do rádio
90 anos do rádio90 anos do rádio
90 anos do rádio
 
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidade
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidadeRádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidade
Rádio em Portugal: tendências e grupos de comunicação na actualidade
 
História do rádio clube português
História do rádio clube portuguêsHistória do rádio clube português
História do rádio clube português
 
Mídias e meios de comunicação rádio
Mídias e meios de comunicação   rádioMídias e meios de comunicação   rádio
Mídias e meios de comunicação rádio
 
Cultura de massas anos 30
Cultura de massas anos 30Cultura de massas anos 30
Cultura de massas anos 30
 
Radio e tv
Radio e tvRadio e tv
Radio e tv
 
Radio e tv
Radio e tvRadio e tv
Radio e tv
 
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.
Grupo Brainstorm - Introdução às Profissões em comunicação.
 
Historiadoradio
HistoriadoradioHistoriadoradio
Historiadoradio
 
A era do rádio
A era do rádioA era do rádio
A era do rádio
 
Uma história do rádio
Uma história do rádioUma história do rádio
Uma história do rádio
 
Realese do livro historias que o radio nao contou
Realese do livro historias que o radio nao contouRealese do livro historias que o radio nao contou
Realese do livro historias que o radio nao contou
 
A vida musical em Manaus
A vida musical em Manaus A vida musical em Manaus
A vida musical em Manaus
 
midias e meios de comunicao - radio.pdf
midias e meios de comunicao - radio.pdfmidias e meios de comunicao - radio.pdf
midias e meios de comunicao - radio.pdf
 
A Portuguesa David Santos 6 A
A Portuguesa David Santos 6 AA Portuguesa David Santos 6 A
A Portuguesa David Santos 6 A
 

A Voz dos Ridículos

  • 1. capÍtulo 13 o humor dE a voz dos ridícuLos (1945-2013) roGério santos Universidade Católica Portuguesa rogerio.santos@fch.lisboa.ucp.pt rEsumo: O humor na rádio seguiu algumas características retiradas de jornais e revistas. Histórias curtas, sobre a atualidade e com personagens quase universais nasceram em Portugal a seguir à Segunda Guerra Mundial. O que se perdia em imagem ganhava-se em som, levando o ouvinte a imaginar pessoas e ambientes. O programa humorístico A Voz dos Ridículos foi emitido aos domingos entre as 12:00 e as 13:00 a partir de abril de 1947 numa estação de rádio no Porto (Portu gal). A equipa de A Voz dos Ridículos reunia às quintas-feiras ao fim da tarde para ensaiar e gravar os textos de três humoristas: João Manuel, B. Veludo e Castro Maia. Além do humor, o grupo tinha uma pequena orquestra privativa e cantava. Durante muitos anos, o grupo foi constituído apenas por homens, entre os quais um grande imitador (Mena Matos). Em cada programa havia um concurso de poesia (quadras), com prémios semanais. Nessa altura, o país vivia em ditadura (1926-1974) e o humor tinha de atender às condições políticas. Por algumas vezes, o diretor do programa foi à polícia política justificar temas irradiados. palavras-chave: Rádio, Humour, Portugal, Voz dos Ridículos. 469
  • 2. Rogério SantoS abstract: The humour on the radio followed some features taken from newspapers and magazines. Short stories about the present days and almost universal characters were born in Portugal after the Second World War. What was lost in image it was earned in sound, leading the listener to imagine people and environment. The comedy program A Voz dos Ridículos (The Voice of the Ridiculous) was issued on Sundays between 12:00 and 13:00 from April 1947 at a radio station in Oporto (Portugal). The team’s Voice Ridiculous meeting on Thursdays in the evenings to rehearse and record the texts of three comedians: João Manuel, B. Veludo and Castro Maia. Besides the humor, the group had a small private orchestra and they sang. For many years, the group was limited to men, including a great imitator (Mena Matos). In each program, it had a poetry contest, with weekly prizes. At that time, the country was a dictatorship (1926-1974) and the humour had to attend the political conditions. Sometimes, the program director went to the political police to justify irradiated subjects. Keywords: Radio, Humour, Portugal, The Voice of the Ridiculous. sumario 1. o amadurecimento na ideal rádio 2. profissões dos membros do programa e estrutura do programa 3. Entre a solidariedade e o engenho de fugir à censura 4. conclusões A Voz dos Ridículos, programa de humor radiofónico, começou a ser transmitido na estação Portuense Rádio Clube a 17 de abril de 1945 e acabou na Rádio Festival a 25 de julho de 2013. Foram sessenta e oito anos de emissão, a que aparece ligado o nome de João ManuelAntão, um dos fundadores que acompanhou o programa até ao fim. Juntamente com programas infantis, variedades e desporto, o humor foi um tipo de programa que despertou, desde cedo, muito carinho junto do auditório da rádio. Nessa altura, o humor tinha de atender às condições políticas: o país vivia em ditadura (1926-1974). Por algumas vezes, o diretor do programa foi à polícia polí tica justificar temas irradiados, como se verá à frente. Havia ainda uma relação com um censor do governo nomeado pelo governo junto da estação emissora, que ouvia os programas e zelava pelo cumprimento de diretivas da ditadura. As metodologias empregues são análise documental e entrevistas em profundidade a elementos do programa. Como resultado previsto pretendo compreender o papel do humor na programação de uma rádio que servia uma cidade e a sua relação com a cultura e a sociedade local. 470
  • 3. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) Programa de maior duração na história da rádio portuguesa, A Voz dos Ridículos foi o resultado da confluência de diversos fatores. Um deles foi a longevidade do seu criador principal, João Manuel Antão, mais conhecido simplesmente como João Manuel. Outro dos fatores essenciais para o longo êxito foi a sua popularidade junto de camadas sociais médias e baixas da sociedade do Porto. Um terceiro elemento a realçar do programa foi o de ser feito por amadores, com ocupação de tempos livres dedicada à rádio e que ilustra um modo particular de estar nos media. Como quarto, o programa reuniu à sua volta duas gerações, pais e filhos, permitindo a entrada de mulheres na segunda geração. Os pioneiros foram todos do sexo masculino. Pos sivelmente, as condições de protocolo social inibiram o ingresso de mulheres na geração inicial, o que levou a uma escolha de papéis femininos atribuidos a alguns elementos. Além de Portuense Rádio Clube, o programa esteve sucessivamente em Ideal Rádio, onde se manteve durante décadas, Rádio Placard, Rádio Comercial, Rádio Clube de Matosinhos e Rádio Festival, sempre na cidade portuense e refle tindo questões e problemas da região. Como quinto e último elemento, o programa foi sempre feito por um produtor independente, comprando o tempo de antena e vivendo da publicidade explorada diretamente1. Com o decorrer dos anos, a programação ficava mais variada, caso do popular programa de humor A Voz dos Ridículos e uma expressão aí utilizada. Transmitido aos domingos às 13:00 na Ideal Rádio, dos Emissores do Norte Reunidos, a partir também de 1953, o programa criou uma espécie de folhetim humorístico, onde um dos maiores imitadores da época, Mena Matos, criou a expressão pincha, Mala quias, pincha2. Podemos atribuir à expressão o presente valor de «desenrasca-te», tão popularizada nas décadas de 1950 e 1960 e usada a propósito e a despropósito (equivalente ao mais recente «não havia nexexidade», de Herman José, na perso nagem do provedor Diácono Remédios). Assim como o trabalha dedo, não tenhas medo, a expressão «refrão» de um dos intervenientes quando «usava» o telefone para fazer queixas de teor social, para a Câmara, a caixa de previdência, um hospi tal ou qualquer serviço público que estivesse ao alcance da crítica popular. Algumas expressões que se tornaram populares foram «afinfa-lhe», «olha o boneco», «esca cha pessegueiro» e «rebimba o malho»3. Mena Matos era uma das figuras maiores (o linotipista) e como autores sobres saíam João Manuel, o diretor do programa, Bê Veludo e Antero Nunes (posterior mente aproveitados pelos Parodiantes de Lisboa), António Santos (o Bigodes de 1 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998. 2 Com base em email de Rui de Melo (locutor, realizador de rádio e docente universitário), por solicitação minha sobre a expressão pincha, Malaquias, pincha (3 de julho de 2012). Na linguagem popular do Porto, pinchar significa saltar. 3 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998. 471
  • 4. Rogério SantoS Arame) e Alberto Caldeira (o homem dos discos). Também havia cantigas, ao jeito de revista, com o maestro José Quelhas ao piano, a orquestra Vou Ali e Já Venho e o locutor Ferreira da Cunha (o repórter) a cantar com letras trabalhadas sobre músicas populares mas de temas de incindência crítica diversificada. Todos funcio navam como um grupo de amigos e a receita publicitária era distribuída ao estilo «cooperativa». O programa A Voz dos Ridículos, criado no Portuense Rádio Clube, manteve-se na Ideal Rádio, passou incólume à compra dos Emissores do Norte Reunidos pela Emissora Nacional e à nacionalização de dezembro de 1975. Só saíu daquela antena, a emitir da rua Alferes Malheiro, no Porto, porque a estação fechou. Na década de 1980, passou para a Rádio Festival. Os programas de variedades tinham regularidade, como noticiou um dos jornais da rádio: por exemplo, em maio de 1946, apresentaram-se três programas4. A rádio distribuia convites e o público assistente era incitado a tornar-se associado. Nos programas de música, uma das rubricas mais apreciadas era contar histórias leves, a que chamavam anedotas, apresentadas por António Raimundo. Como testemunha uma carta enviada a este colaborador da estação e fundador de A Voz dos Ridículos: «Como grandes apreciadores de Portuense Rádio Clube, enviamos estas anedotas para serem ditas nas Variedades pelo exmº sr. António Raimundo, caso acharem aproveitáveis»5. Um ouvinte, Sérgio Lima, enviou ao «exmº senhor que costuma contar as anedotas na Hora das Variedades»6. Numa terceira, de António Júlio, datada de 9 de fevereiro de 1945, lia-se: «Se achar que lhe serve para o seu arquivo humorístico, permita-nos que lhe contemos uma anedota». Numa sessão de variedades, João Manuel Antão, representante do jornal Os Ridículos no Porto, lembrou-se de incluir versos humorísticos e diálogos e quis integrá-los em programa próprio de Portuense Rádio Clube, transmitido em direto. À colaboração espontânea e quase anónima, A Voz dos Ridículos ia constituir uma equipa fixa. Como pertencia ao grupo de correspondentes do jornal Os Ridículos, sedeado em Lisboa, lembrou-se do nome Vozes dos Ridículos. Vivia-se no final da II Guerra Mundial e o locutor Fernando Peça nas suas reportagens de Londres dizia: «A BBC fala e o mundo acredita». O programa de João Manuel aproveitou a ideia e dizia «A Voz dos Ridículos fala e o mundo acredita e ri», mote que se man teve até ao fim do programa. Para João Manuel, a verdadeira função do programa era fazer rir, dar e fazer. Dito pelo próprio: «dávamos o que podíamos e fazíamos o que sabiámos». João Manuel Antão fazia parte da direção do Portuense Rádio Clube em 1946, ao lado de outros nomes de que destaco Manuel Correia de Brito 4 Portuense Rádio Clube, nº 3, abril de 1946. 5 Coleção particular de António Raimundo (pai de Zulmiro Raimundo, a quem agradeço o ter me dado a conhecer estas cartas e muitos recortes de imprensa sobre o programa). 6 Coleção particular de António Raimundo. 472
  • 5. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) e Alberto Ferraz Carneiro, os três responsáveis pelo jornal da estação. Correia de Brito, além de hoquista de renome, fez o papel da série do menino Quim, aluno cábula diante do professor, interpretado por Júlio Guimarães, espécie de resposta ao lisboeta menino Tonecas, criado por José Oliveira Cosme. Além de João Manuel Antão e António Raimundo, os outros fundadores do programa seriam Gomes de Oliveira, Eduardo Augusto, Castro Silva (maestro da orquestra «Trunfo de Copas») e Peixoto Alves7. 1. o amadurEcimEnto na idEal rádio A estação Portuense Rádio Clube deixou de emitir em 1954. Das pequenas estações existentes na cidade, o dono da Ideal Rádio, Júlio Silva, telefonou a João Manuel Antão: «já sei que vocês ficaram sem emissor. Querem vir para aqui»? O humorista reuniu com os seus colegas e aceitou. Na Ideal Rádio, estação a funcio nar na rua de Alferes Malheiro, dentro do grupo dos Emissores do Norte Reunidos, o programa foi para o ar ainda em 1953 e aí permaneceu mais de três décadas, no horário dominical das 13:00 às 14:00. A emissão era em ondas médias e, com alguma rapidez, o programa passou a ser gravado e transmitido ao domingo com repetição durante a semana. Uma nova função e profissão nasciam, a de sonoplas ta. Alguns ficaram conhecidos pelo seu trabalho, caso de Octávio Frias, na Rádio Graça. Em A Voz dos Ridículos, Alberto Caldeira tinha a missão de colocar os dis cos8, o que equivale a dizer que era ele o responsável pelos sons. Outros programas e, em especial a publicidade, beneficiariam muito com o registo magnético. Na publicidade, seria usada uma tecnologia intermédia entre o disco e a fita magnética, o cartucho9. O estúdio da Ideal Rádio funcionava no fundo da loja de rádios e artigos elétri cos, a principal atividade do seu proprietário. Na época, Júlio Silva tinha bastante peso no setor, pois ele era vice-presidente do Grémio Concelhio dos Comerciantes de Artigos Musicais e de Rádio-Electricidade do Porto, ao lado do presidente Janu ário Trindade, pai de Arnaldo Trindade (que se notabilizaria como um dos mais importantes editores discográficos do país). A Voz dos Ridículos fazia festas de confraternização, muitas delas em casa do Júlio Silva, que tinha uma propriedade em Vila do Conde além da casa onde habitava no Porto, na rua de Alferes Malheiro. No período mais áureo, nas décadas de 1950 e 1960, os autores dos textos foram João Manuel, Bê Veludo e Castro Maia. Bê Veludo era o nome artístico de Ben jamin Veludo, depois consagrado como co-autor da peça Um Cálice de Vinho do 7 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998. 8 A Voz dos Ridículos, nº 1, junho de 1956. 9 Entrevista a António Rêgo feita pelo autor, 28 de maio de 2012. 473
  • 6. Rogério SantoS Porto do grupo de teatro Seiva Troupe (escrita conjuntamente com Manuel Dias e Norberto Barroca, a peças esteve dois anos em cena e recebeu o prémio de melhor peça em 1982)10. Bê Veludo entrou para A Voz dos Ridículos quando o programa já emitia na Ideal Rádio. Num dos concursos de perguntas do Armazém Popular, ele ficou em quarto lugar, com João Manuel Antão a ver grandes potencialidades pelo que o convidou para colaborador. Ele seria considerado o melhor humorista ao serviço do programa. Semanalmente, Bê Veludo e Castro Maia davam os seus textos a João Manuel Antão que os passava à máquina de escrever, num total de dez a onze páginas semanais. Muitas vezes, com quadras e textos dedicados a um motivo ou acontecimento específico, como o S. João ou outra festa de realce. João Manuel Antão tinha também a condução de outro programa na Ideal Rádio: A Voz do Futebol Clube do Porto, à terça-feira, às 19:3011, ele que fora o letrista da mar cha daquele clube. Inicialmente, José Pinto da Costa também escreveu. Mas, por pertencer ao Sindicato dos Ferroviários (estação de Campanhã), a censura proibiu a sua colabo ração. A partir daí, ficou com a designação de Poeta sem Destino. Pinto da Costa escreveria uma crítica de teatro à revista Feira do Porto, de Manuel Gustavo de Abreu e Sousa (capitão de artilharia) e Athaíde Perry, que os autores não apre ciaram e apresentaram queixa12. Num dos programas de A Voz dos Ridículos, o locutor diria: «D. Luísa [Satanela?] e senhor Costinha [atores] estão bem? Ah, não vieram. Já se sabe. Há dias fizeram uma crítica à revista e não gostaram. Por isso não vieram ao posto. Damos um louvor à D. Luísa e ao Costinha e à empresa do Sá da Bandeira os sentimentos» Apesar do peso da classe trabalhadora no grupo do programa, os elementos mais ativistas do operariado eram acompanhados de muito perto pela censura, que temia a propagação de influências marxistas. O programa teve ainda outro grande humorista, Eduardo Augusto, autor da marcha da Voz dos Ridículos13: «A nossa Voz / De «Os Ridículos» chamada, / É uma voz endiabrada / mas de perfeito otimismo; / e somos nós, /Dando graças ao manifesto /Que quando alguém sai do texto /Lhe pomos o sinapismo»14. Aos ele mentos idos do Portuense Rádio Clube, juntaram-se na Ideal Rádio estrelas como Alberto Caldeira (o homem dos discos), Ferreira da Cunha (locutor e repórter), a cantar com letras trabalhadas sobre músicas populares ao jeito de revista mas de temas de incidência crítica diversificada15, António Santos (o Bigodes de Arame), 10 Entrevista a Benjamim Veludo feita pelo autor, 24 de agosto de 2013. 11 Jornal de Notícias, 1 de janeiro de 1957. 12 SNI, Caixa 1395, 22 de novembro de 1946. 13 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013. 14 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998. 15 E-mail de Rui de Melo ao autor, 3 de julho de 2012. 474
  • 7. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) José Carneiro, Castro Maia, Silva Campos, José Moreira, Mena Matos16, o maes tro José Quelhas, ao piano e com a orquestra Vou Ali e Já Venho17. Algumas das personagens seriam o Finfas, que casara com a Micas da Calçada, o Tirone, o senhor Perfeito, o Sebastião Come Tudo. No tempo da censura, uma das figuras foi o Saraiva, que andava sempre rouco, preso da garganta, como dizia o texto de 4 de janeiro de 196818. Nas primeiras décadas, os tipos ridículos eram produzidos nos fados de Neca Rafael, nas revistas de Arnaldo Leite e de Carvalho Barbosa e nos trocadilhos de João Manuel e Bê Veludo19. Após 1974, temas como a liberdade, a Expo 98 e o euro entrariam no humor de A Voz dos Ridículos: «O euro / Uma moeda bem diferente… / A moeda, enfim, que é europeia… /Que andará nas mãos de toda a gente / Fidalga ou até plebeia»20. Manuel Ramos, o Raminhos do Notícias (Jornal de Notícias), estaria com João Manuel Antão no apoio às Cruzadas de Bem Fazer da década de 195021. A Voz dos Ridículos manteve-se na Ideal Rádio e passou incólume à compra dos Emissores do Norte Reunidos pela Emissora Nacional no princípio da década de 1970 e à nacionalização de dezembro de 1975. Só saíu daquela antena, a emitir da rua Alferes Malheiro, no Porto, quando a estação fechou, sendo integrado na Rádio Comercial, ainda no tempo da rádio nacionalizada. Na década de 1980, passou para a Rádio Clube de Matosinhos e, após o encerramento desta por compra de Luís Montez, entrou na grelha de programas da Rádio Festival, onde permaneceu até 2013. Por falecimento dos restantes membros do programa e desinteresse de Bê Veludo, apenas contaria com João Manuel do grupo fundador. Tirando o período da emissão de Rádio Comercial, uma estação de âmbito nacional, o programa esteve sempre em estações locais do Porto, o que significa uma ligação forte à cidade e região. Daí se poder afirmar com clareza que A Voz dos Ridículos foi, e teve orgulho nisso, um programa regional. A imagem de marca, um locutor sentado em cima de um microfone à pesca de piadas «arrolhadas», manteve-se ao longo do tempo22. Do começo em 1945 até ao começo da década de 1980, a emissão fez-se em ondas médias e em rádios locais, com grande audiência local. A partir da passa gem para a onda da Rádio Comercial e das outras estações, a transmissão passou a efetuar-se em frequência modulada, no momento de transição da audição de ondas médias para a frequência modulada, com mais concorrência entre estações 16 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997. 17 Ao longo dos programas, a designação mudava, prova da plasticidade de personagens e ideias. 18 Jornal de Notícias, 18 de abril de 1998. 19 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998. 20 Helder Pacheco, Jornal de Notícias, 30 de maio de 2002. 21 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997. 22 Jornal de Notícias, 11 de julho de 1997. 475
  • 8. Rogério SantoS de rádio e também com a emissão de televisão à hora do programa. O impacto de A Voz dos Ridículos diminuia. A equipa mais recente mantinha João Manuel Antão, Júlio Couto, Salazar Ribeiro, Virgílio Cervantes, Manuel Morais23, Alberto Mourão, Alfredo Lucas e Manuel Baptista e alguns filhos de fundadores como Elisabete Moreira e Zulmiro Raimundo24. Era já o tempo de consagrar o programa como «Património Mundial de Hilariedade», com um «desfile de «rusgas da laracha» e cimeiras como uma visita à Torre dos Clérigos25! Para João Manuel, A Voz dos Ridículos nunca teve um partido, pois foi «sempre pelas coisas inteiras» e «somos todos muito católicos. Por causa dos buracos na rua, andamos sempre com o credo na boca»26. Aqui, juntar-se-iam «non sense», burlesco e surrealismo. 2. proFissõEs dos mEmbros do proGrama E Estrutura do proGrama O programa foi sempre feito na perspetiva de trabalho amador, articulando interesses pelo humor e pelas causas de solidariedade, como abaixo se indica. Os elementos de A Voz dos Ridículos não ganhavam dinheiro com o programa, mas o saldo positivo com a publicidade era aplicado pragmaticamente em almoços e jan tares dos colaboradores, bem como deslocações que faziam fora da cidade. Outra parte do dinheiro servia para apoio a atividades sociais. Cada elemento do programa tinha a sua atividade profissional, bastante diversi ficada entre si. A sua ligação à rádio era dentro da qualidade de amador. O tipo de profissões dos colaboradores do programa talvez justifique as raizes populares de A Voz dos Ridículos e a sua adesão por parte dos ouvintes. João Manuel Antão era vendedor representante de produtos e empresas, e vendia estes em lojas e feiras, profissão que o obrigava a contactar com muita gente e a conhecer muitas histó rias. Bê Veludo era tipógrafo na tipografia do pai, o que lhe deu um lado letrado útil para a escrita regular do programa. O terceiro elemento escritor do programa, Castro Maia, era representante dos relógios da marca Zephyr, então muito concei tuada e que a classe média ambicionava possuir. António Santos, ferrageiro na rua do Almada, organizou um Carnaval dos Fenianos no Porto e arranjou um carro alegórico de A Voz dos Ridículos, contribuindo para o reconhecimento público do programa junto dos seus ouvintes. De outros elementos do programa, José Moreira trabalhava como funcionário superior dos Correios, Ferreira da Cunha numa fábrica de explosivos para minas e pedreiras, Feliz dos Santos numa empresa de metalo mecânica em S. Mamede de Infesta, Silva Campos na Companhia de Seguros A 23 Jornal de Notícias, 18 de abril de 1998. 24 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997. 25 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1998. 26 Jornal de Notícias, 17 de abril de 1997. 476
  • 9. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) Garantia e José Carneiro era sócio da firma Tamegão, na rua Sá da Bandeira27. António Raimundo (1908-1946), empregado de balcão no Armazém do Anjo, na rua dos Carmelitas, Porto, além de grande contador de histórias e de anedotas era exímio tocador de guitarra28. A grande maioria dos colaboradores do programa pertencia à classe trabalhadora, pelo que veiculava valores e aspirações das classes populares da cidade do Porto. A estrutura do programa era constituida por diálogos e cantigas humorísticas. Os textos versavam a atualidade, muitos deles a partir de ideias de leitura dos jornais (e, depois, dos noticiários da televisão)29 na forma de poesia. As letras das cantigas apropriavam-se às situações. Por exemplo, o tango À Média Luz, com letra ade quada, era interpretado quando havia problemas com a eletricidade, caso de um aumento de tarifas30. A receita para a forte recetividade era a existência de diálogos curtos, incisivos e de fácil compreensão31. Os autores e outros colaboradores diziam os diálogos e depois cantavam. Dos cantores, destacaram-se José Moreira, exce lente cantor do tango, e Ferreira da Cunha, «capaz de cantar qualquer género»32. Mena Matos foi o grande imitador do grupo. Por exemplo, ele imitava na perfeição o ditador Salazar. Os vários elementos do programa cantavam afinadinhos com o apoio de uma pequena orquestra constituida por amadores e alguns profissionais que apoiavam graciosamente o programa. A veia humorística de João Manuel Antão ficou gravada em múltiplas peças e revistas que ele e outros colaboradores apresentaram em teatros do Porto. Exem plos: Grelos à Provinciana, em parceria com Aníbal Nazaré e Nélson de Barros. Ela Está Aqui, Toma lá Piadas, esta sempre com lotação esgotada, e Serviço à Lista, entre 1962 e 1965, foram peças que contaram com a colaboração do humo rista Bê Veludo. Se, geralmente, iniciavam as representações das peças no teatro Sá da Bandeira, atuações posteriores ocorriam em salas do norte do país, como Vila Nova de Gaia, Penafiel, Braga (Teatro Circo), Aveiro (Aveirense), Ovar e Póvoa do Varzim. Também houve peças transmitidas através da rádio, como no final de 1942 no Portuense Rádio Clube, Ao Preço da Casa, peça em dois atos e dez quadros, e 6 de abril de 1945, Haja Alegria, original de João Manuel e Manuel João e música de Castro e Silva. Manuel João era diretor do teatro Sá da Bandeira e também diretor de cena. O cartaz do nono programa oficial das Variedades da estação anunciava a 27 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013. 28 Informação pessoal dada pelo filho Zulmiro Raimundo, 26 de agosto de 2013. 29 Tal & Qual, 3 de outubro de 2003. 30 Entrevista a Benjamin Veludo feita pelo autor, 24 de agosto de 2013. 31 Jornal da Rádio, julho-agosto 1998. 32 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013. 477
  • 10. Rogério SantoS interpretação de António Raimundo, Maria Augusta, Mali Socorro, Beatriz Socorro, António Santos, Jaime Rodrigues, Feliz dos Santos, Júlio Guimarães, Rolando Ver dial e José Carneiro, com apresentação pelo locutor Gomes de Oliveira, montagem técnica de Ernesto Dolgner e direção de orquestra de Castro e Silva. No intervalo da última peça, António Raimundo lia anedotas no intervalo. O programa teve um folhetim humorístico chamado Pincha Malaquias Pincha, de João de Queirós, espécie de rubrica dentro do programa. Os participantes do programa começaram a interpretar apenas com homens porque então o programa não tinha participação de mulheres. António Santos era um dos intérpretes que representava vozes femininas33. João de Queirós faleceria pouco tempo depois, pelo que não houve continuidade do género dentro do programa. Ao longo da década de 1950 foi introduzida a gravação magnética, o que permi tiu a repetição do programa além da emissão ao domingo. Regularmente, o trabalho de ensaio e de gravação de A Voz dos Ridículos decorria às quintas-feiras, entre as 20:00/20:30 e as 23:00/23:30, a que se seguia um lanche de confraternização. João Manuel distribuia os papéis e o ensaio era rápido. Para ele, «já estavam tão calha dos que praticamente a gente não fazia os ensaios. «Oh, Zé Carneiro, oh, Santos, faz de parolo». «Tu fazes aqui de Visconde: oh, senhora minha»». O programa tinha um concurso semanal muito popular e que servia para aferir a sua audiência. Concurso mantido durante muitos anos, nele era formulada uma pergunta, com as respostas enviadas em postais dos correios para o programa. Um exemplo de pergunta e resposta: «O que é um pedreiro? É aquele que volta e meia dá um tiro no trabalho» (Gracinda Gomes Teixeira, Mariz)34. Outro exemplo: «O que é um pescador? É um tipo tão fraco que precisa de um pau para meter os peixes na linha» (Eneida Carvalho, Porto). Enquanto os críticos escreviam que os mais graciosos larachistas da região do Porto eram premiados com um par de soquetes do Armazém Popular35, para João Manuel Antão, o diretor do programa, «algumas das respostas eram de antologia, algumas marotas, outras políticas», destacando: «Havia lá uma, malandra, estou-me a lembrar agora. Dizia: «o noivo para onde vai na noite de núpcias»? Era a pergunta. E a resposta era: «Umas vezes julga que vai para o Furadouro e outras vezes vai para a Afurada». Escolhia se e davam-se prémios. Uma peça de malha do Armazém Popular, um relógio ou bolsinha de prata da ourivesaria do Bolhão e ainda artigos para senhora da casa Tito Cunha, que era a casa de noivos e noivas. […] Uma vez fizemos «o que era a cadeia de Custóias»? Telefonaram muito zangados, de Custóias. 33 Entrevista a Zulmiro Raimundo e Elisabete Moreira feita pelo autor, 21 de agosto de 2013. 34 A Voz dos Ridículos, nº 1, junho de 1956. 35 O Comércio do Porto, 1 de novembro de 1998. 478
  • 11. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) Eu disse: «não se preocupe. Preocupe-se com a resposta». E então vem uma resposta daquelas de se lhe tirar o chapéu. «O que é a cadeia de Custóias»? «É um móvel com muitas gavetas e todas elas cheias de artigo com defeito». […] A gente tira os postais: «oh, pá, escolhe aí». «Oh, esta está formidável». Primeiro, segundo e terceiro prémio. E dizíamos: «fulano de tal da rua tal, vai ter a peça de malha do «Armazém Popular, que tem malhas até fartar». Ourivesaria do Bolhão, segundo prémio. E depois lá iam receber à casa. Não era nada com a gente. Já sabiam. A gente enviava o postal com a quadra premiada e iam lá receber»36. 3. EntrE a solidariEdadE E o EnGEnho dE FuGir à cEnsura A Voz dos Ridículos também se caracterizou por fazer obras de bem estar. O padre Américo, famoso pela sua obra de apoio a rapazes sem família, começou em A Voz dos Ridículos a fazer peditórios. Depois, os elementos do programa realiza ram espetáculos na Casa do Gaiato e no Coliseu do Porto a favor dessa obra. O padre Américo falava diretamente no programa. Houve ainda excursões à Casa do Gaiato e ao Lar do Comércio, organizadas através do microfone do programa. João Manuel Antão, então diretor do Lar do Comércio e do hospital Maria Pia, promoveu o aspeto filantrópico que se julga associado à rádio. Júlio Silva, o dono da estação, também colaborou de modo ativo na campanha. Espetáculos de beneficiência feitos por A Voz dos Ridículos seriam as revistas citadas acima, no teatro Sá da Bandeira. Em especial durante as décadas de 1950 e 1960, o programa humorístico teve uma pequena orquestra de boa qualidade. Durante a longa ditadura, o programa enfrentou semanalmente a censura. Todos os textos tinham de passar pelo censor do SNI antes de gravados e emitidos. Quan do o tema era delicado, o grupo votava e decidia: «quando a tesoura da censura cortava, ficávamos aborrecidos, claro, mas quando passava alguma coisa, era uma festa»37. Um número que teve muito êxito foi «Pipa Velha, Pipa Nova», de Castro Maia, em que a primeira representava a União Nacional, o partido único do Estado Novo, e a segunda a oposição38. Apesar da bonomia relativa na relação entre humo ristas e censura, dada a popularidade e o modo burlesco como os acontecimentos eram observados, o programa teve vários casos de índole política, contornados com o riso e o pagamento de multas mas nunca a suspensão do programa. Num dos textos do programa, os autores escreveram «o sol estava a dar no Zé que estava na praia, e coitado do Zé nem podia falar cada vez mais mirrado. Porquê? Por causa do 36 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013. 37 Jornal de Notícias, 4 de maio de 1999. 38 Jornal de Notícias, 4 de maio de 1999. 479
  • 12. Rogério SantoS sol a dar, do sol a dar, o sol a dar»39. «Sol a dar» aproximava-se do som da palavra Salazar, o nome do ditador. Chamaram João Manuel às instalações da PIDE, na rua do Heroísmo, no Porto: «Eram sete e tal da tarde, estive lá até às duas e meia da manhã, no gabinete. Vá lá que não me tocaram. Depois é que me disseram: «o senhor inspetor não chegou e diz para você se ir embora». Vim-me embora. Mas, de outra vez… tivemos… quando foi daquela coisa do Solnado «podia-o chamá-lo». Veio cá o presidente da República e nós dissemos: «Podia-o empurrá-lo»? Uma multa. […] tínhamos uns amigos, os anunciantes, cem paus aqui, tre zentos acolá. Lá pagávamos a multa e safávamo-nos. Era muito forte A Voz dos Ridículos naquela altura em que não havia televisão. A malta esperava, que sabia… Eu ia no elétrico e às vezes aconteciam coisas […] e diziam… Eu ouvia: «vamos a ver o que eles dizem no domingo». […] E depois: «olha, ouviste no domingo»? «Oh, pá, eles falaram assim assim»». O programa teve um colaborador chamado Gastão Mineiro, dono de uma pada ria, na ocasião em que houve um problema com mineiros de S. Pedro da Cova. Durante a gravação falaram da «pouca massa do mineiro e do pão que o diabo amassou», o que levou os humoristas à censura40. Explicada a coincidência, o assunto morreu ali. Num caso particular, o das eleições presidenciais em que Hum berto Delgado foi o candidato da oposição (1958), João Manuel esteve presente na receção popular a este general dissidente do Estado Novo, na estação ferroviária de S. Bento. Cruzou-se com o inspetor da PIDE, a polícia política. Este chegou-se ao ouvido do humorista e disse: «o senhor também aqui»? João Manuel olhou para ele e disse: «Por causa deste regime, estou farto de ver gordos. Vim ver um delgado». Era a reação rápida do fazer humor em qualquer situação, mais normal ou mais difí cil. No período a seguir a 1974, quando emitiam no canal que seria depois a Rádio Comercial, a relação com os militares foi controversa. Um oficial entendia que o programa trabalhava para o patronato, ao que João Manuel respondeu: «o senhor acha que são os operários que nos pagam a publicidade»41? 4. conclusõEs A Voz dos Ridículos foi um dos programas de maior duração ao longo do tempo da rádio portuguesa, entre 1945 e 2013, sempre ao domingo entre as 13:00 e as 39 Entrevista a João Manuel Antão feita pelo autor, 22 de junho de 2013. 40 O Primeiro de Janeiro, 12 de setembro de 2003. 41 O Primeiro de Janeiro, 12 de setembro de 2003. 480
  • 13. Capítulo 13. O humor de A Voz dos Ridículos (1945-2013) 14:00. Este horário de almoço, quando combinou com a época em que a televisão ainda não existia ou não era prevalecente, atingia um vasto auditório. De um humor claro e tranquilo sobre a realidade local do Porto, cidade onde emitiu sempre, mas também relevando acontecimentos nacionais, o programa combinava textos em poesia e cantigas de letras adaptadas a músicas populares ou em voga. Tal facilitava a aprendizagem dos ouvintes. Uma pequena orquestra permitia colorir musicalmen te os programas. Durante muitos anos, teve um concurso de perguntas, com prémios em objetos de vestuário e de ourivesaria, que as classes populares apreciavam bas tante, num momento em que a sociedade de consumo arrancava lentamente no país. Pela origem social da primeira geração de autores e colaboradores, houve uma presença grande da classe trabalhadora em A Voz dos Ridículos, com preo cupações sociais e culturais. Isso é constatado em outros elementos pioneiros da rádio local no Porto, como Carlos Silva, empregado em escritório de advogados e vendedor das máquinas de costura Oliva, profissionalizado como locutor da Rádio Porto42, e Américo da Graça Júnior, barbeiro e cabeleireiro e, depois, autor de folhetins na ORSEC43. A proveniência social aliada à ideia de riso e festa que cada indivíduo levou para o grupo moldou o programa num estilo popular, identificável numa cidade e região em que o trabalho fabril e artesanal era a marca de identidade forte. A irradiação num emissor local, os Emissores do Norte Reunidos, numa grande parte da vida de A Voz dos Ridículos, reforçou os laços com a comunidade ouvinte, como aliás o fundador João Manuel consideraria quando se referia às expectativas dos ouvintes, tornando o programa, pela sua proximidade, uma espécie de voz da cidade e da região. Como em toda a rádio comercial, a publicidade foi a segurança financeira do programa, sempre uma publicidade local e regional em épocas de afirmação eco nómica da cidade e da região. Quando adveio a crise financeira de 2008, associada ao desaparecimento e cansaço dos seus autores, o programa perderia a força do investimento publicitário que teve ao longo de muitas décadas de atividade. O programa fez grande parte da sua carreira em ondas médias, mudando-se para a frequência modulada quando a tecnologia de emissão e receção se popularizou nesta última. Porém, a audiência desceu dada a maior concorrência de estações de rádio empregando frequências diferentes, a somar à mudança de hábitos consumi dores agora mais voltados para a televisão. Um elemento a realçar é a do programa refletir um universo masculino. Devi do a questões culturais, a primeira geração de A Voz dos Ridículos não permitiu a entrada de mulheres. Isso obrigou à existência de um núcleo de colaboradores bem 42 Entrevista a Carlos Silva feita pelo autor, 13 de agosto de 2012. 43 A Defesa, 15 de fevereiro de 1955. 481
  • 14. Rogério SantoS pequeno, com os papéis femininos distribuídos por apenas alguns elementos do grupo. Na segunda geração do programa, com o ingresso de filhas dos fundadores, foi possível ultrapassar a dificuldade. Pode considerar-se isso como um fator inicial de censura, parecendo ter a rádio demorado a abrir-se à colaboração feminina. Con tudo, na rádio já operavam locutoras e autoras de folhetins, por exemplo. À censura de vozes femininas juntar-se-ia a necessidade dos textos semanais passarem pela censura política, o que reduzia o impacto do dito ao microfone. Qualquer texto, e em especial o texto humorístico, pode ter interpretações variadas e, com tal, intro duzir perigo ao permitido pelo regime. Mas o humor acabou por ser um escape, com os responsáveis do programa a saberem ultrapassar os problemas. A Voz dos Ridículos acompanhou o progresso tecnológico, caso da gravação magnética, o que possibilitou o registo prévio, com ensaio e gravação, e transmis são e repetição da transmissão. Durante a década de 1950, foi possível introduzir essa vantagem, tal como outros programas na rádio portuguesa. Pelo facto, uma nova profissão emergia, a do montador ou sonoplasta. 482