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XARQUEADAS
DE DANÚBIO GONÇALVES
  UM RESGATE PARA A HISTÓRIA




        Charqueada de Debret - 1820
José Antonio Mazza Leite




XARQUEADAS
DE DANÚBIO GONÇALVES
  UM RESGATE PARA A HISTÓRIA


     3a Edição Revista e Ampliada


           Desenhos e xilogravuras
   coloridas pelo autor Danúbio Gonçalves




                  Porto Alegre, 2011
© Todos os direitos desta edição estão reservados a José Antonio Mazza Leite proibida assim
qualquer reprodução, cópia ou qualquer alteração, manipulação das informações aqui conti-
das sem prévia autorização do autor.


Capa: Daniel Ferreira da Silva

Revisão: Daniela Ambrost

Editoração: Observatório Gráfico


Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960




L533x     Leite, José Antonio Mazza
              Xarqueadas de Danúbio Gonçalves: um resgate para a
          história / José Antônio Mazza Leite. -- 3.ed. rev. e ampl. -- Porto
          Alegre : s.c.p, 2011.
               213 p. : il.

              1. História – Rio Grande do Sul. 2. Xilogravura. 3. Arte –
          Aspectos Socias. 4. Charque – História – Rio Grande do Sul.
          5. Economia – Rio Grande do Sul. I. Gonçalves, Danúbio. II.Título

                                                 CDU: 981.65
                                                      761.1(816.5)




A grafia desta obra está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.




                            Patrocínio:                                         Apoio:
Dedico este livro a meu pai, Arthur Souza Leite (in memorian),
                     a meu avô Raphael Mazza (in memorian),
             a minha mãe Amelina Mazza Leite (in memorian,
  a Daniela Pieper e a psicóloga Gabriela Pieper Domingues.
                      A minha irmã querida, Branca Leite Hertz
                    e a Antonio Carlos Mazza Leite meu irmão.
HOMENAGENS

       A Danúbio Gonçalves, grande expoente das artes plásticas brasileira.

                  A todos os trabalhadores das Charqueadas riograndenses
                                            e os de suas co-irmãs do Prata.

                   A Carlos Reverbel jornalista e historiador (In memorian).

                A José Almeida Collares e Maria Angelina Collares Talaveira
                                                 pelo incentivo e amizade.

          Ao professor pelotense de História Pasqual Müller (In memorian).

    A Alvarino da Fontoura Marques, médico, fazendeiro e pesquisador, cuja
trilogia do Ciclo do Charque é obra obrigatória para conhecer nossa história
                                                            (In memorian).

         A Fernando O. Assunção academico, professor e historiador uruguaio
presidente do IHGU - Instituto Histórico Geográfico do Uruguai (In memorian).

A Paulo Xavier, médico, professor e pesquisador, certamente o maior conhece-
      dor da história do Ciclo do Charque no Rio Grande do Sul (In memorian).

             A Augusto Simões Lopes Neto, gaúcho e pelotense de coração,
                                                      amigo inesquecível
                                                          (In memorian).

                                     A Voltaire Schilling historiador e amigo.

                     Aos excursionistas da Ouro e Prata na França em 2010.
Sumário



Apresentação - Eduardo Bueno, 13

Apresentação de Danúbio Gonçalves para a Terceira Edição, 15

Depoimento de Danúbio Gonçalves - Primeira Edição - 2003, 17

A poética da charqueada - Mário Barbosa de Mattos, 19

Charqueada ou Xarqueada, 21

Introdução da 3a Edição, 23

A Charqueada, 25
HISTORIOGRAFIA SOBRE A CHARQUEADA, 25
OS VIAJANTES, 25
LUCCOCk, 25
JOSé CAETANO DA SILVA COUTINHO, 26
SAINT-HILAIRE, 27
JEAN BAPTISTE DEBRET, 28
NICOLAU DREyS, 30
MICHAEL MULHALL, 33
O TRABALHO DE LOUIS COUTy, 34
HERBERTT HUNTIG SMITH, 36
VITTORIO BUCCELLI, 37
PEIXOTO DE CASTRO, 38
TESTEMUNHA OCULAR: ANTENOR PEIXOTO DE CASTRO, 39
AS CHARQUEADAS, 48
A PRIMEIRA DESCRIçãO DE UMA CHARQUEADA, 48
AS CHARQUEADAS EM PELOTAS, 49
DESCRIçãO DA PRIMEIRA CHARQUEADA POR JOãO SIMõES LOPES NETO, 49
AS CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUçãO FARROUPILHA PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS, 51
A EXPANSãO DAS CHARQUEADAS APÓS A REVOLUçãO FARROUPILHA, 52
AS CHARQUEADAS EM BAGé, 53
OS ABATES DE GADO DURANTE O PERÍODO REVOLUCIONÁRIO, 54
CHARQUEADA SãO DOMINGOS, LOCAL DOS ESBOçOS DE DANÚBIO GONçALVES, 57
O olhar da arte, 59
UM OLHAR DE ARTE SOCIAL SOBRE OS TRABALHADORES DO CAMPO À CIDADE, 59
MOVIMENTOS PRECURSORES: O REALISMO EUROPEU, 59
O REALISMO DOS MURALISTAS E GRAVURISTAS MEXICANOS, 62
LEOPOLDO MENDEz, 63
UM ENCONTRO FUNDAMENTAL, 65
O GRUPO DE BAGé: UM DOS PRIMEIROS CLUBES DE GRAVURA, 67
DIFUSãO DOS CLUBES DE GRAVURA NO BRASIL E SEU LEGADO, 71
DANÚBIO GONçALVES: SUA TRAJETÓRIA, 72
O MENINO DE BAGé, 72
DA CARICATURA AOS MORROS CARIOCAS, 73
DANÚBIO AINDA ADOLESCENTE MERGULHA NA VANGUARDA ARTÍSTICA CARIOCA, 74
DANÚBIO SE INICIA NA XILOGRAVURA, 77
CARLOS REVERBEL – UMA LEMBRANçA, 79
CRÔNICAS DE CARLOS REVERBEL – NOTÍCIA DE UMA EXPOSIçãO, 80
PEDRO WAyNE, 83
PRIMEIRA EXPOSIçãO DE DANÚBIO EM BAGé, 87
MERECEU UMA CRÔNICA DE PEDRO WAyNE, 87
CORREIO DO SUL – BAGé; – 31/12/1939, 87
ANTÔNIO VIEIRA PIRES, 88
SAUDADES DE VIVER, 88
INTRODUçãO À GRAVURA, 93
UM POUCO DA SUA HISTÓRIA, 93

A gravura como documento, 93
TéCNICAS XILOGRÁFICAS, 94
OS CADERNOS DE DANÚBIO GONçALVES, 95
O APITO NAS CHARQUEADAS, 96
Esboço DE Zorra Com mEDiDas E EpliCaçõEs, 97
zORRA, 103
zORREIROS, 108
CARNEADORES, 1089
ESPERA, 114
ESPERA, 116
MANTEIRO, 118
MANTEIRO, 124
MATAMBREIROS, 128
PICADOR, 129
PICADOR, 133
LINGUEIRO, 133
TIRADOR DE CARRETILHA, 136
TIRADOR DE CARRETILHA, 139
SALGA, 142

Considerações finais, 145
BIBLIOGRAFIA REFERENCIAL, 147

Bibliografia, 147
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA, 149
LIVROS E DISSERTAçõES, 151

Anexos, 155
Breve história do Coronel Caetano Gonçalves da Silva e de sua
descendência , a partir , de seu filho mais velho, Bento Gonçalves
da Silva, 167

Danúbio Gonçalves, sobre o artista, 169
MOSTRAS E EXPOSIçõES, 169
EXPOSIçõES INDIVIDUAIS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 171
EXPOSIçõES COLETIVAS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 172
PREMIAçõES, 172
OBRAS EM MUSEUS, 173
LIVROS, 173

Mais alguns esboços de Danúbio Gonçalves, 175

Introdução para as fotos do Wolfgang Hoffmann Harnich Jr, 185

A Charqueada do Século XX e XXI, 203
CHARQUEDAS NO SéCULO XX E XXI, 203
RECORDAçõES DA INFÂNCIA, 203
Apresentação



H
            ouve um tempo em que o Rio Grande do Sul esteve por cima da carne
            seca. Foi a era de ouro das oficinas de desmontar boi e salgar carne,
            tudo isso com o suor dos escravos. Foi o tempo da courama e, acima de
tudo, o auge das charqueadas.
      O charque, é verdade, jamais trouxe ao Rio Grande a mesma pujança que
o açúcar concedeu ao Nordeste ou o café ao Sudoeste – mas o doce pó branco e
o amargo negro pó jamais teriam gerado tamanha riqueza se o charque gaúcho
não alimentasse os escravos que habitavam nos engenhos e nos cafezais. O
charque também não produziu bibliografias tão ricas quanto aquela dedicada
às lavouras que colocaram o Brasil no mapa da economia mundial. Quantos
hinos há sobre as charqueadas gaúchas, que deram músculos ao Rio Grande e
o levaram a enfrentar o império em dez anos de guerra civil? Demasiadamente
poucos. é por isso que esse belíssimo trabalho de José Antonio Mazza Leite vem
reforçar o cardápio historiográfico gaúcho com um traço literário saboroso e
consistente como um bom carreteiro. E não se trata apenas de uma bela com-
pilação de relatos de viajantes que visitavam as charqueadas em seu auge, nem
uma reconstituição de como funcionavam aquelas sanguinolentas oficinas de
salgar boi. Como o próprio título indica, Xarqueadas resgata também o dramáti-
co e comovente trabalho do artista plástico Danúbio Gonçalves. Ilustrado pelas
xilogravuras que encantaram Diego Rivera, esse estudo de Mazza Leite dá um
novo tempero a uma história de sangue, suor e sal. A história que transformou
os gaúchos e o Rio Grande no que hoje são. Bom Apetite!


                                                                  Eduardo Bueno
                                                          Jornalista e Historiador




                          “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   13
Apresentação de Danúbio
  Gonçalves para a Terceira Edição



S
         ugeri que esta edição fosse colorida e, com o apoio de patrocinadores, pode
         José Antonio Mazza Leite aumentar a tiragem da publicação. A importância
         maiúscula deste memorial de nossa época saladeira, incluindo o Uruguai e
a Argentina. Podendo-se sentir a unidade “pampeana”. José Antônio Mazza Leite
historiador, complementado por sequentes viagens ao estrangeiro, nos presenteia
com este livro – resgate – certamente, um dos mais destacados sobre a Charqueada.
Paralelamente ao término do filme “Grandes mestres”, de Henrique Freitas Lima,
após três anos de filmagem, focando também a charqueada São Domingos e Bagé,
onde por meses, desenhei pelos departamentos de matadouro (documento inédito
que me possibilitou a série de xilogravuras “charqueadas” e pinturas. Obra obtendo
o prêmio de viagens ao país no 2o Salão de Arte Moderna no Rio de Janeiro). Viaja-
ndo para Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, por nove meses, exigido pelo prêmio.
       O filme de Henrique tendo registrado minha visita ao pavilhão central, das
zorras, me emocionou ao retornar a esse local após mais de cinquenta anos. Pela
obra “charqueada” tive o estímulo e admiração dos bageense se adotados culturais
Pedro Wayne, Clóvis Assumpção, Carlos Scliar, Diego Rivera, Tarcísio Taborda, Mário
Lopes, Roberto Suñe, Ito Carvalho, Mario Mattos e mais. A presente edição, con-
tinuando a ser divulgada e a consagrada pelo Museu do Charque de Pelotas, ide-
alizado por Ediolanda Liedke e José Antonio Mazza Leite, com felicitação estadual.




                           “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   15
Tablada - desenho aquarelado, Danúbio Gonçalves, 2002 - acervo do museu do Charque.




16   José Antonio Mazza Leite
Depoimento de Danúbio Gonçalves
          Primeira Edição - 2004



A
          pós a viagem de estudo por um ano e dois meses na Europa, em 1950, retor-
          nei à Bagé. Encontrei-me com Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues, e juntos
          fundamos o Clube Amigos da Gravura de Bagé. Em sequência, fundamos o
Clube de Porto Alegre, com liderança de Carlos Scliar, que regressava de Paris. O chama-
do “Grupo de Bagé”, interessado na temática gaúcha, foi acolhido pelos irmãos Ismael e
Severino Collares, anfitriões nas estâncias das Palmas. Lá, desenhávamos e pintávamos,
tendo como motivação a paisagem local e os trabalhadores campeiros.
       Bento Gonçalves, meu pai, fornecia gado para a charqueada bageense,
ocasionando-me a oportunidade-surpresa de visitar a Charqueada São Domin-
gos (Bagé). Estupefato fiquei com a monumentalidade do tema encontrado nas
várias dependências do matadouro, em plena efervescência da safra. Trabalho
esse que aliciava pessoal vindo da lide campeira. Entusiasmado, por três meses
frequentei este estabelecimento industrial, desenhando, aquarelando e ano-
tando com croquis as variadas operações, da matança ao preparo do charque.
Trabalho, a seguir, complementando com a pintura e uma série de xilogravura
de topo, série gráfica mostrada no país e em diversos centros culturais estran-
geiros. Etapa de minha obra gráfica com que obtive o Prêmio de Viagem pelo
País, no Salão Nacional de Arte Moderna (Rio de Janeiro). Em viagem à Polônia,
Varsóvia, recebi elogios do grande artista polonês Tadeusz kuliziewicz, xilógrafo
e desenhista, e, na capital chilena, em entrevista para a revista “Horizonte”, tive
também honrosa e estimulante referência do famoso pintor muralista mexica-
no, Diego Rivera. A série “Xarqueada” faz parte do acervo da Pinacoteca de São
Paulo, da Coleção Gilberto Chateaubriand, do Museu Nacional de Belas Artes
(Rio de Janeiro) e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Essa fase foi,
representativa de minha obra e serviu de favorável estímulo para minha traje-
tória gráfica, parcelada entre xilogravura e litografia.
       Fato curioso em meu envolvimento com a charqueada foi estar vivenciando
o fim da Era do Charque e, sem saber, documentando-a, uma vez que não existe
registro fotográfico dos trabalhadores em ação, tanto no Brasil como no Uruguai ou
Argentina. Embora artisticamente motivado, o meu trabalho relativo à charqueada
alcançou a condição histórica, inédita, de memorial.




                             “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   17
Anos depois, é gratificante estar contribuindo com o Museu do Charque de
              Pelotas, criado por José Antonio Mazza Leite, apaixonado entusiasta da história
              universal e local, em relevante pesquisa favorável ao resgate da era saladeril. His-
              toricamente, um período social e econômico especificamente marcante para o Rio
              Grande do Sul.




18   José Antonio Mazza Leite
A poética da charqueada



A
          li, onde os bois eram martirizados e os homens eram os magarefes, as pes-
          soas passavam de longe, buscando evitar o próprio ar, empestado pelo
          cheiro do sangue e resíduos putrefatos dos animais abatidos. No entanto,
um historiador e um artista plástico, duas pessoas com motivações diferentes, mas
igualmente sedentas de beleza, uniram-se no resgate da poesia da charqueada.
Como isso foi possível?
       Aristóteles, pai da poética - vale dizer da arte - ocidental, já explicava há mais
de dois mil anos, que além da tendência congênita do ser humano para imitar po-
eticamente a vida, há uma outra causa do surgimento da poesia: a tendência do
ser humano ao aprendizado. O estagirita foi o primeiro a ensinar que a imitação,
mesmo das coisas que olhamos com repugnância, produz o prazer intelectual do re-
conhecimento. A arte é revelativa, e isso faz parte da produção de emoção estética.
       A poética histórica da charqueada, seu papel no surgimento e desenvolvi-
mento de civilizações como a da cidade de Pelotas, inspirou José Antonio Mazza
Leite a largar seus interesses importantes na cidade natal e buscar a capital gaúcha
para inscrever-se em pós-graduação de História.
       A busca de uma arte social e realista nos anos cinquenta, inspirara o jovem Da-
núbio Gonçalves a internar-se na última charqueada de Bagé – e descobrir ali a poética
dos homens em ação no trabalho saladeril, preservando com a destreza e paixão de seu
nervoso lápis, uma dinâmica de dois séculos que, não fora ele, ficaria irrevelada para a
ânsia de saber da humanidade póstera.
       Mas na charqueada de Danúbio, há uma diferença: os homens retratados na
labuta não são mais os infelizes negros da charqueada escravocrata. São gaúchos
egressos da lida campeira, isto é, saídos do capitalismo pastoril para o capitalismo
industrial. Já aceitaram, como o velho Blau Nunes, as regras do “manda quem pode,
obedece quem precisa”, mas deram um passo à frente como categoria social. Ha-
bituados até por atavismo à violência pampeana, não estranham o que fazem - e
ainda não têm consciência da envergadura do passo dado. Para eles, vale dizer, para
o gaúcho a pé, é um novo caminho da velha subalternidade. é o salário, o emprego,
embora sazonal, a sobrevivência da família... A partir daí, a qualificação progressiva
do trabalho assalariado mais a democracia política, vêm abrindo caminho à melhor




                             “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   19
qualidade de vida, à escolarização dos filhos, à educação tecnológica e à cidadania,
             plena de oportunidades para poderem voltar a cavalgar, dessa vez nas asas da re-
             volução técnico-científica. E um dia - quem sabe, por que não? – chegar à utopia de
             fraternidade sonhada pelos jovens socialistas do Clube da Gravura.
                    Portanto, suplico – aos senhores ecologistas, aos nobres protetores de ani-
             mais e outras pessoas de extrema sensibilidade que torcem o nariz ao próprio
             aprendizado – que abram alas para o extraordinário livro de Mazza Leite e às ricas
             ilustrações de mestre Danúbio, feito editorial inédito da concepção moderna e lúci-
             da de comunicar História. A poética da Charqueada pede passagem.


                                                                                   Mário Mattos

                                          Coordenador do NES (Núcleo de Estudos Simonianos)
                                         do IHGPEL (Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas)




20   José Antonio Mazza Leite
Charqueada ou Xarqueada


E
          ssa explicação deveria ter sido dada na primeira edição para explicar o por-
          que que Danúbio usou o X. Somente nesta terceira edição vou reparar essa
          falta. O jovem Pedro Wayne, depois de estudar em Pelotas, foi para Bagé.
O rapaz casou-se nessa cidade, indo trabalhar como contador na charqueada de seu
sogro. Aí começou sua vivência em uma charqueada. O que para outros seria uma
rotina, para o gênio de Pedro foi uma oportunidade de expandir sua veia literária e
também o profundo sentido de injustiça social que acontecia na sociedade gaúcha.
Daí saiu uma obra prima!
        Os manuscritos estavam prontos e Pedro remeteu a Jorge Amado, que estava no
Rio de Janeiro, para que esse opinasse sobre o futuro livro. A carta de resposta remetida
do Rio de Janeiro está no livro em que Ernesto lembrava o pai e publica o teor da carta
de Jorge Amado.
        Foi durante o carnaval de 1936, Jorge Amado estava com Osvaldo de Andrade
na livraria José Olimpio e, foi de lá que redigi a carta.
        Depois de tecer considerações sobre o conteúdo da obra que gostou, diz ter
uma implicância com o nome sugerido por Pedro e é enfático: “vocês aí do Sul tem
um nome tão forte como “Charque”, porque não usa esse nome para o livro? Aliás,
o Osvaldo de Andrade que está aqui do meu lado, diz que coloques Charque com X,
como era antigamente, aí fica mais forte ainda.”
        Como vemos, Pedro Wayne seguiu a sugestão dos amigos escritores (e que
escritores!) colocando o nome do seu livro de Xarqueadas com X.
        Danúbio, amigo de Ernesto, filho de Pedro e também grato a Pedro pelo
apoio e também pelas crônicas muito favoráveis que este fez a ele e a sua primeira
exposição em Bagé. Então denominou seu trabalho no saladeiro São Domingos de
Xarqueadas.
        São as xilogravuras que conhecemos que hoje estão nas melhores galerias do
Brasil, sendo uma glória para o Rio Grande do Sul e para seu autor. São suas cópias
que o Museu do Charque leva as escolas de Pelotas, percorrendo várias cidades
gaúchas, mostrando o trabalho dos homens das charqueadas, resgatado em arte
perene pelo maior artista plástico gaúcho do nosso tempo, Danúbio Gonçalves.




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   21
Logomarca do Clube de Gra-
                                                        Ferramenta para xilogravura
          vura de Porto Alegre
                                                            em madeira de topo




                                Danúbio Gonçalves gravando com buril em madeira de topo (1988)

22   José Antonio Mazza Leite
Introdução


A
         amizade é um presente dos deuses, diziam os gregos e, qualquer pessoa
         que partilhe desse sentimento com seus semelhantes, compreende como
         é profundo esse pensamento. Assim, que em um dos tradicionais almoços
de quarta-feira, no apartamento de Marisa Querubini, no Moinho de Vento, em
uma garfada do delicioso macarrão de Marisa, Danúbio Gonçalves me perguntou:
“tu não achas que poderíamos fazer uma nova edição, do teu livro Charquedas em
cores.” Respondi que achava ótimo que queria fazer uma nova edição colocando
textos que me pareciam pertinentes para um livro mais completo sobre esse assun-
to, que é fascinante. Em cores tudo se torna mais atraente.
       Passadas algumas, semanas Danúbio me convidou para ir a sua casa e me
apresentou a versão colorida do “Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves: um resgate
para a História”. Era uma colaboração de inestimável valor. A partir desse empurrão
amigo, fui à procura de textos que poderiam enriquecer essa nova terceira edição.
       Os artigos de Carlos Reverbel, escritor e cronista que tive o prazer de manter
uma boa amizade, pareceram-me uma ótima inclusão pois Carlos Reverbel viven-
ciou a época dos artistas de Bagé e de Pedro Wayne como político, repórter e escri-
tor. Assim, Carlos Reverbel tinha que participar da nova edição.
       Também um conto que ele que me indicou para ler: “Saudade de Viver”, de
Vieira Pires, que mostra o comportamento dos bovinos frente ao destino inexorável
que se desenha na faca que os espera no final do corredor do brete. Nesse conto
impactante, transformam-se os atores e temos o comportamento humano frente
ao destino inexorável da morte. Esse conto está no livro “Entrevero” que Carlos
Reverbel organizou e foi editado pela LPM e também uma série de fotos das char-
quedas do século XXI.


                          as charqueadas do século XXi

       Coloquei também a situação das charqueadas remanescentes nesse final de
2010. Continuam sendo uma atração marcante para a cidade. Sua bela arquitetura
portuguesa, realçada por novas pinturas, mantendo sua estrutura, estão prepara-
das para acolher as novas gerações de pelotenses.
       Os universitários fazem festas de formatura em suas dependências. Novos
casais ali começam suas vidas.




                          “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   23
Esses locais de macabra memória foram vitalizados para acolher os belos mo-
             mentos da vida, como festas, casamentos, formaturas etc. O progresso da cidade e
             de suas universidades atinge o centro saladeril.
                    O turismo vai procurá-las e festivais com a gastronomia do charque são rea-
             lizados pelos restaurantes locais. As charqueadas do século XXI pedem passagem.
                    Também entram nessa nova edição as documentações fotográficas de Wolfgang
             H. Harnich Jr., feitas na década de cinquenta e constituindo uma bela documenta-
             ção da iconografia da cultura da época das últimas charqueadas, fotos da mesma
             época em que Danúbio Gonçalves desenhava na charqueada São Domingos.

                                                                       José Antônio Mazza Leite




                                Carneador assentando o fio da faca com a chaira




24   José Antonio Mazza Leite
A Charqueada

                     HisTorioGraFia sobrE a CHarQUEaDa

                                   os viajanTEs

       Muitos olhares direcionaram-se para as Charqueadas no decorrer do tempo, mas
foram os viajantes quem primeiro as descreveram, como negociantes, jornalistas, biólo-
gos, artistas, um médico e um bispo. Mais recentemente, as teses de mestrado também
privilegiaram o charque e as Charqueadas. O método de charquear que veio dos Andes
e era elaborado com carne de lhamas e alpacas, tomou outra dimensão com a introdu-
ção do gado bovino europeu.
       Sobre a vinda do inglês John Luccock ao Brasil, em 1809, uma curiosidade nos é
contada pelo historiador Mário Osório Magalhães. John Luccock teria vindo ao Rio de
Janeiro em 1809, com a ilusão de fazer grandes negócios no comércio da lã, cutelaria e
ferragens. Porém, o comércio desta cidade já estava abarrotado de patrícios seus, que
trouxeram o mesmo tipo de mercadoria. Por isso, decidiu viajar para o Sul e aproximar-
se das colônias espanholas. Os tecidos de lã eram muito mais apropriados para Buenos
Aires e Rio Grande do Sul do que para o Rio de Janeiro.
       O inglês esteve na Capitania durante o período de dois meses, quando conheceu
as cidades de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas que, nessa época, era apenas um distri-
to da Vila de Rio Grande, sem autonomia administrativa ou concentração populacional.

                                      lUCCoCk

       Luccock (1951, p.139) percorreu a região da Fazenda de Pelotas e admirou-
se com o tamanho da propriedade, comparando o rio São Gonçalo ao Tâmisa de
Londres. No Passo dos Negros, descreve uma imensa mangueira com uma grande
paliçada para conduzir o gado rio a dentro. A casa, caiada de branco, ficava em
local elevado, tendo como fundo o verde escuro das matas. As habitações eram
encontradas em pontos esparsos, tendo, algumas, “pretensões ao luxo”, com
capelas anexas. Junto à casa principal, havia um casario menor destinado aos
agregados, escravos e ao pobrerio. Assim é que, antes de se formar o núcleo ur-
bano, como podemos constatar pela narração, as Charqueadas já eram comuns




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   25
na região de Pelotas. Sobre esta esteira econômica e social, erguer-se-ia, logo
             depois, o núcleo da futura cidade.
                   Luccock admirou-se com o número de reses abatidas por um indivíduo, 54 mil
             cabeças de gado, e a original pilha de ossos que “ultrapassam tudo quanto me era dado
             imaginar” e que depois de limpos eram transformados em cal.
                   Quanto ao abate dos animais, dá-nos um relato sucinto e objetivo:

                                  A denominação Charqueadas provém do charque que esse distrito pre-
                                  para e exporta [...] uma vez morto e esfolado o gado, arranca-se a carne
                                  dos flancos numa só peça larga, semelhante a um pano de toucinho; sal-
                                  pica-se em seguida ligeiramente com sal e seca-se ao sol. Nesse estado,
                                  constitui o alimento vulgar dos camponeses das partes mais quentes do
                                  Brasil, não sendo nada de se desprezar e, como se conserva por longo
                                  tempo, constitui excelente provisão de bordo, suportando transporte
                                  para distintas regiões do mundo. (Luccock, 1951, p. 139).

                     Essa descrição concisa, embora sem a riqueza de detalhes da que foi feita an-
             teriormente por Francisco Millau sobre uma Charqueada de Buenos Aires, em 1772,
             mostra que a técnica, nesses 38 anos (1771-1809) pouco mudou e que, no decorrer do
             séculos XIX e XX, a matança não sofreu grandes alterações.
                     Todos os viajantes referem-se às Charqueadas, pois a formação do sítio urbano deveu-se
             a razões econômicas e não a propósitos políticos ou acampamentos militares. Com o estabele-
             cimento das Charqueadas, formou- se a riqueza que veio propiciar a construção do sítio urbano.
                     O método de charquear já era bem conhecido no Rio Grande do Sul antes da vin-
             da de Pinto Martins. Porém, foi em Pelotas que as Charqueadas fixaram-se com suces-
             so, trazendo grandes progressos à região durante os séculos XVIII e XIX e nas primeiras
             décadas do século XX.

                                     josé CaETano Da silva CoUTinHo

                     Bispo do Rio de Janeiro, em visita pastoral ao sul, em 1815, foi o primeiro Bispo
             a visitar o povoado. Aqui, viu algumas manadas de gado chegando às Charqueadas e
             escreveu em seu diário:

                                  Cheguei aqui ao sol posto, no meio de um luzido acampamento de sa-
                                  cerdotes, de militares, de negociantes, piquetes de milicianos e um des-
                                  tacamento da Legião de São Paulo, que aqui se acha. No dia 8 de dezem-
                                  bro, às onze horas, dei a minha entrada sem pálio nem Irmandade, que
                                  não há; e depois dos atos de costume, preguei muito sobre o espírito da
                                  minha visita (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.17).

                    E, com mais detalhes, acrescenta:

                                  Vi algumas manadas de gado nestas vizinhanças que vinham do interior
                                  para as Charqueadas, que ocupam algumas léguas nesta banda d’água.
                                  Uma Charqueada é um grande matadouro com alguma ordem nas suas
                                  carniçarias. A atmosfera seca e mui ventosa, concorre para facilidade
                                  destas operações. Alguns dias senti aqui frio, e noutros, ventos furiosos
                                  do nordeste e sudoeste. (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.19).




26   José Antonio Mazza Leite
é significativo que este bispo sempre se refira à Freguesia de “Pelotas” e não
de São Francisco de Paula, nome dado à futura cidade, graças ao alvará conferido
por Dom João VI, em 1812. Assim, conclui-se que o nome Pelotas impunha-se sobre o
nome oficial. Porém, oficialmente, somente após vinte anos, ou seja, em 27 de junho de
1835, o nome de Pelotas substituiria o da Vila de São Francisco de Paula.

                                   Saint-Hilaire

      Por ocasião de sua viagem ao Rio Grande Sul, em 1820, Saint-Hilaire descreve
não só a geografia local, como também o povo e seus costumes. Observou:

                    Tenho o projeto de ir daqui, por água, a uma aldeia nova e muito
                    florescente, situada junto ao Rio São Gonçalo, canal que liga a lagoa
                    Mirim à dos Patos, acompanhando nessa viagem um charqueador
                    chamado Chaves no qual surpreendi um dos homens mais compe-
                    tentes da região. (Saint-Hilaire, 1974, p. 63).

       Na viagem de Rio Grande para Pelotas, partiu em uma lancha que o levou até o
iate do Sr. Chaves. Saint-Hilaire descreve a viagem como sendo muito agradável por ser
o Sr. Chaves:

                    [...] um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de
                    história natural, conversando muito bem. Pertence à classe dos char-
                    queadores ou fabricantes de carne seca. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67).

       Em 6 de setembro chegam à casa de Gonçalves Chaves, onde Saint-Hilaire atem-
se a todos os detalhes. No gramado da residência, ele observou várias fileiras de grossos
paus fincados na terra, sendo cada um deles terminado por pequena forquilha.
       Essas forquilhas recebiam varões transversais destinados a estender a carne para
secar. Ao lado desses secadouros, existia o edifício onde se salgava a carne e onde se
achava construído o reservatório, denominado tanque.

                    Quando o animal é abatido, retalham-no, salgam os pedaços e colo-
                    cam no tanque onde se impregnam de salmoura. Ao fim de 24 horas
                    vão para os secadouros, onde ficam durante 8 dias, quando há bom
                    tempo a carne seca não se conserva mais de um ano. é exportada
                    principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de
                    alimento para os negros. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67).

       De acordo com seu relato, durante o inverno o gado emagrece; no verão, porém,
logo que os campos se cobrem de pastagens, ele engorda. Por isso, em novembro já
começam as Charqueadas que vão até o mês de abril ou maio.
       A região que se estende entre o rio Pelotas, o rio São Gonçalo e a paróquia de São
Francisco de Paula, pertencia aos charqueadores. Isso facilitava tanto para a engorda
do gado nas pastagens situadas ao sul do Jacuí, como para a exportação da carne seca
e dos couros por iates que navegavam pelo arroio Pelotas e pelo canal São Gonçalo, na
época conhecidos como “Sangradouro”. Escreve então:




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História   27
A localização dos charqueadores à margem do rio São Gonçalo deu
                                lugar à formação da paróquia de São Francisco de Paula. (Saint-Hilai-
                                re, 1974, p. 69).

                   Confirmando que primeiro surgiram as Charqueadas e depois o núcleo urba-
             no, continua ele:

                                [...] apesar de ter cessado, há meses, a matança nas Charqueadas,
                                sente-se ainda nos arredores um forte cheiro de açougues, donde
                                se pode fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matan-
                                ça. Nessa época, dizem, não se pode aproximar das Charqueadas
                                sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa multidão de
                                animais decapitados, o sangue a correr aos borbotões, a prodigiosa
                                quantidade de carne exposta nos secadouros, vejo que tais lugares
                                devem inspirar contrariedade e pavor. (Saint-Hilaire, 1974, p.74).

                                          jEan bapTisTE DEbrET

                    Jean Baptiste Debret, quinze anos depois, descreveu e pintou as Charqueadas,
             e também São Francisco de Paula. Foi pintor da Corte que veio com a Missão France-
             sa, em 1816, para o Rio de Janeiro. O quadro mais popular sobre o panorama externo
             do trabalho de uma Charqueada é dele. A Charqueada de Debret, que ele denominou
             “engenho de carne seca”, é um dos mais completos estudos sobre o funcionamento
             desses estabelecimentos. é extremamente didático. Mostra desde o abate do bovino,
             até o embarque das mantas em uma escuna atracada junto à Charqueada. é nela que
             podemos ver o estreito canal, vermelho de sangue, que desaguava no rio. As graxeiras,
             os grandes panelões, os escravos em movimento nas atividades de estaquiar os couros,
             carnear, levar as mantas salgadas. O autor foi extremamente bem informado sobre o
             funcionamento de uma Charqueada. Porém, a cancha de carnear, por localizar-se no in-
             terior dos galpões, não foi representada na tela de Debret. Coube a Danúbio Gonçalves
             completar esta obra, fazendo as xilogravuras dos trabalhos na cancha, cento e dezoito
             anos depois, na Charqueada São Domingos, em Bagé – o foco do meu trabalho. Segun-
             do o historiador Mário Osório Magalhães,

                                Debret fez seis aquarelas conhecidas sobre Pelotas que nada ficam a
                                dever às que pintou sobre o Rio de Janeiro. As duas que constam da
                                Viagem Pitoresca e Histórica (“Canoa brasileira de couro” e “Viajantes
                                da Província do Rio Grande do Sul”) estão devidamente assinadas e da-
                                tadas de 1823. Uma terceira que mostra o abate do gado num potreiro
                                de Charqueadas, embora assinada, não tem data. “Engenho de Carne
                                Seca”, embora datada de 1825, não tem assinatura e a “Passo Rico no
                                São Gonçalo”, não tem data nem assinatura. Igualmente, sem data nem
                                assinatura chama-se “São Francisco de Paula”, que retrata uma cena de
                                campo, divisando-se, ao fundo, a pequena freguesia.

                   Debret assim descreve uma Charqueada, que ele chama de “Engenho”:

                                A carne seca é um alimento de primeira necessidade no Brasil, pre-
                                para-se na Província do Rio Grande do Sul, conhecida pelo número




28   José Antonio Mazza Leite
de Charqueadas, situadas em grande parte na margem esquerda do
                     rio de São Gonçalo, rio que facilita a exportação considerável desse
                     comestível feita a bordo de iates e sumacas, pequenos navios de ca-
                     botagem, empregados no abastecimento dos portos do Brasil e do
                     Chile. (Debret, 1940, p.242).


      A descrição, abaixo, retrata o que se vê na litografia, que reflete completamente sua ideia:

                     A Charqueada, vasto estabelecimento em que se prepara carne sal-
                     gada e secada ao sol, reúne dentro dos seus muros o curral, onde se
                     mantém os bois vivos, o matadouro, a salgadeira, edifício em forma
                     oblonga, o secadouro, vasto campo eriçado de estacas entre as quais
                     são esticadas cordas, e as caldeiras, bem como os fornos abrigados
                     sob um barracão espaçoso. Toda essa fábrica é dominada por um
                     pequeno platô no qual se ergue o edifício principal, habitada pela
                     família inteira do charqueador. (Debret, 1940, p.242).

     Depois de explicar o processo de secagem do charque, ele dirige sua atenção às
mangueiras.

                     O curral é um cercado de seis a sete pés de altura mais ou menos,
                     e formado pela reunião de grande quantidade de troncos colocados
                     uns ao lado dos outros e no qual se abre uma entrada fechada por
                     uma porteira. Um pequeno corredor de doze pés de comprimento
                     por quatro de largura, une o curral ao matadouro, as cercas constru-
                     ídas da mesma maneira que as do cercado, mais espesso, porém, e
                     com somente 5 pés de altura, servem de passagem elevada para o
                     negro encarregado de laçar os chifres do boi que deve ser puxado
                     para o corredor. A outra extremidade do laço, amarrada a uma ma-
                     nivela, força o boi a aproximar-se pouco a pouco do matadouro e
                     colocar a cabeça no lugar em que deve receber o golpe que o abate.
                     (Debret, 1940, p.242).

      Continua o autor:

                     Já colocado sobre o palanque de um guindaste giratório, o animal é
                     suspenso imediatamente e levado para o local em que deve ser es-
                     corchado, operação preliminar depois da qual retiram de cada lado
                     e num só pedaço toda a parte carnuda, desde o maxilar e até a coxa;
                     essa parte é transportada em seguida para a salgadeira, juntamente
                     com outros pedaços muito menores. O resto do boi, semi-descarna-
                     do, é reservado a outro destino. (Debret, 1940, p.243).

      Explica, com mais detalhes, o salgamento da carne e fala do pequeno canal de
esgoto que levava água e sangue para o rio.

                     A salgadeira é um rés-do-chão bastante espaçoso, coberto, de forma
                     oblonga, inteiramente guarnecido, de cada lado e em todo o com-
                     primento, por dois balcões inclinados sobre os quais se estendem




                             “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História           29
os pedaços de carne a serem salgados. Calhas de madeira aderen-
                                 tes aos balcões recebem as águas da salgação e as conduzem a um
                                 pequeno esgoto descoberto, destinado ao escoamento do sangue;
                                 um filete de água viva lava continuamente esse pequeno canal que
                                 deságua no rio. (Debret, 1940, p.243).

                     é interessante, como assinala Magalhães (2000), que Debret escreva que as ne-
             gras trabalhavam nas Charqueadas nos serviços mais minuciosos e, também, que o Rio
             Grande do Sul – leia-se Pelotas – era responsável, além do couro que exportava para o
             mundo inteiro, pela produção da maior parte da carne seca ou charque brasileiro, ali-
             mento de toda a população negra e indigente.
                     Assim, essa descrição do “engenho de carne seca” é, sem dúvida, a descrição da
             sua litografia sobre uma Charqueada em plena atividade. Desde os varais, os galpões,
             as roldanas, em que cordas suspendem o bovino, até o filete de sangue que corre pelo
             canal, desaguando no rio, levando detritos e os líquidos tintos de sangue, estão na des-
             crição de Debret. Também estão as pirâmides de charque cobertas pelos couros, a em-
             barcação esperando para ser carregada e a atividade dos negros escravos, na incessante
             lida da Charqueada que ele chamou de “engenho de carne seca”.

                                                niColaU DrEys

                    Negociante e escritor francês, lançou seu livro “Notícia Descritiva da Provín-
             cia do Rio Grande”, em 1839, durante a Revolução Farroupilha, certamente para
             aproveitar o interesse das pessoas das outras províncias sobretudo da corte no Rio
             de Janeiro pela Província que se rebelava em armas contra o Império. Dreys viveu
             quase dez anos no Rio Grande do Sul e boa parte deles na região de Pelotas. Ele
             dividiu seu livro em três partes: a geografia, o núcleo urbano e a população. As des-
             crições sobre o modo de charquear a campo coincidem com a gravura de Debret,
             relatando, minuciosamente, o processo de charquear e as condições dos escravos
             que trabalhavam nas Charqueadas. Segundo Magalhães,

                                 [...] podemos convir que “Notícia Descritiva” de Nicolau Dreys é o
                                 primeiro trabalho de grande divulgação sobre a gente e cultura do
                                 Rio Grande do Sul. (2000, p. 87).

                   A descrição de Dreys, sobre a técnica de matança usada nas Charqueadas pelo-
             tenses, mostra que pouco mudou nas diferentes fases da operação. Primeiro, descreve
             o modo de matar o gado em campo aberto:

                                 Os peões montam a cavalo; um deles estimula o animal recolhido
                                 num curral aberto, agitando ante seus olhos o poncho colorado e
                                 quando o novilho exasperado lança-se afinal sobre o agressor e en-
                                 tra a persegui-lo; outro peão, armado de uma lança comprida cujo
                                 ferro tem o feitio de meia lua, corre atrás do boi e corta-lhe o jarre-
                                 te, abandonando-o logo que cai, para ir atrás de outro boi, também
                                 excitado pelos mesmos meios; enquanto isso, um camarada ou um
                                 negro escravo toma conta do animal caído e sangra-o: esse método
                                 não é sem perigo, mas, por isso mesmo, agrada aos hábitos aventu-
                                 rosos dos gaúchos. (Dreys, 1990, p. 97).




30   José Antonio Mazza Leite
Desjarretamento, cortando o jarrete do bovino com lança,
                       que em seguida é sangrado - Debret


       Há uma pintura de Debret, em que se pode ver, exatamente, a cena descrita por
Dreys. Sobre os charqueadores comenta:

                   [...] homens tão esclarecidos como são em geral os charqueadores do Rio
                   Grande, não poderiam deixar de chamar a indústria em auxílio de seus tra-
                   balhos, tanto para economizarem os braços, como para minorarem, quanto
                   possível, não somente o perigo, como também as repugnâncias insepará-
                   veis do ato e das consequências da matança. (Dreys, 1990, p. 97).

      Completa, dizendo que:

                   [...] hoje em dia, nas Charqueadas mais bem organizadas, matam- se
                   os bois por um método mais expedito, mais seguro e menos cruel.
                   (Dreys, 1990, p.87).

      Dreys fala nas Charqueadas mais organizadas, ou seja, as que abatem de uma
forma racional e com planejamento industrial. é verdade, porém, que os dois tipos de
carnear, o ‘industrial’ e o ‘a campo’ conviveram durante quase todo o século XIX.




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História      31
O gado fechado no curral é impelido na direção de dois corredores,
                                 separados um do outro por uma espécie de esplanada, levantada a
                                 sete ou oito palmos do solo; um peão, de pé em cima dela, lança no
                                 boi, que aparece nesses corredores, um laço cuja extremidade está
                                 atada, fora do recinto, num cabrestante posto em movimento por
                                 uma roda de ferralho (trinquera) manejada por dois negros: quando
                                 o boi, puxado pelo laço, chega a encontrar-se com a cerca contra a
                                 qual a cabeça se acha comprimida, uma pessoa (ordinariamente um
                                 capataz) que o espera exteriormente, introduz-lhe a ponta da faca
                                 nas primeiras clavículas cerebrais, donde resulta ficar o boi espon-
                                 taneamente privado de movimento; nesse estado, um guindaste,
                                 rodando sobre seu eixo, eleva o animal asfixiado para fora do curral
                                 por cima do cercado, e o transporta para debaixo de um telheiro,
                                 sobre um lajeado disposto em segmento de esfera, onde se sangra,
                                 sem que, graças à disposição bem entendida do lugar, a operação
                                 deixe depois quase vestígio nenhum. (Dreys, 1990, p. 98).

                    Observa-se que tanto Dreys quanto Debret falam das roldanas e da introdução
             da faca nas primeiras clavículas.
                    é interessante observar que Saint-Hilaire, mesmo não estando presente durante
             as matanças, mas que sentiu o cheiro de carniça, vaticinou ser ele insuportável. Já seu
             patrício, Dreys, que certamente viveu muito mais tempo em Pelotas, foi um defensor do
             odor almiscarado desses estabelecimentos. Sendo os dois franceses, presume-se que
             sejam conhecedores dos mais finos odores. Essa diferença de opiniões é, no mínimo,
             curiosa. Nas suas descrições, Dreys segue a linha de Debret, ou de Francisco Millau. é
             um detalhamento repetitivo dos diferentes estágios a que o charque é submetido.

                                 Esgotada que seja, a carne é levada do salgadeiro para os varais, assim
                                 se denomina uma grande extensão de terreno plantado de espeques
                                 arruados, de 4 a 5 palmos de altura, atravessados por varas compridas
                                 em que se sustentam as mantas para secarem-se pela ação do sol e dos
                                 ventos; quando se receia alguma chuva repentina, o toque de um sino
                                 chama, para os varais, todos os negros da Charqueada, e coisa curiosa
                                 é ver como num instante a carne amontoada por porções nos mesmos
                                 varais se acha escondida debaixo de couros que não permitem o menor
                                 acesso às águas do céu. (Dreys, 1990, p.98).

                   A quantidade de ossos, que secavam ao relento, fazem a admiração do francês.

                                 O estrangeiro que chega pela primeira vez às Charqueadas avista com
                                 admiração paredes extensas tão brancas como alabastro; meio século
                                 mais tarde, se o destino o levasse ao mesmo lugar, havia de achar as
                                 mesmas paredes com a mesma alvura: é uma matéria que o tempo rói
                                 sem a sujar; são os ossos entrelaçados com arte e solidez, sem pedra
                                 nem cal, de maneira, todavia, a formarem uma cerca contínua capaz
                                 de opor-se mais eficazmente que qualquer outra aos esforços do gado
                                 recolhido nos currais que circunscrevem. (Dreys, 1990, p.99).

                    Dreys é a exceção da regra, ao elogiar o cheiro das Charqueadas. “Almiscarado”,
             diz ele.




32   José Antonio Mazza Leite
O certo é que, fora da estação da matança e nesta mesma estação, fora
                    das horas do trabalho, uma Charqueada não tem nada que repugne à vis-
                    ta; e sempre diremos, em abono da verdade, que, em tempo nenhum,
                    num estabelecimento desses bem administrado, nada se acha que ofenda
                    o olfato, não dizemos de um sibarita, mas de qualquer homem não pre-
                    venido nem efeminado. Certamente as emanações produzidas por tan-
                    tas matérias animais de natureza e preparações diversas não deixam de
                    produzir estranha impressão à primeira vez, porém nunca incomodam,
                    e ainda menos são letais; e aqueles que nas Charqueadas se demoram
                    alguns dias, não tardam em ver chegar o momento em que a combinação
                    de todos esses eflúvios heterogêneos determina uma sorte de sensação
                    agradável, mormente quando se lhe ajunta, como acontece nas aproxi-
                    mações de quase todas elas, o singular e intenso cheiro de almíscar que
                    deixa o gado em todos os currais em que estaciona. (Dreys, 1990, p. 99).

       é de Nicolau Dreys a frase que orgulha todos os pelotenses e que Fernando Osó-
rio usou na abertura do livro A Cidade de Pelotas: “[...] eles quiseram que o lugar pros-
perasse, e o lugar prosperou” (Dreys, 1990, p. 102).

                                 miCHaEl mUlHall

       Em Buenos Aires, possuía um jornal editado em língua inglesa, o semanário
“Standard”. A fama do jornal chegou ao Rio Grande de São Pedro e a colônia britânica o
convidou para visitar essa progressista Província, onde as companhias inglesas vinham
investindo. Quando chegou a Pelotas, em 1871, chovia muito. Para ir ao centro da cida-
de, teve que atravessar banhados até encontrar uma grande praça, hospedando-se no
Hotel Europa.
       Pelotas tinha, então, 12 mil habitantes e um ar de opulência por saber-se o prin-
cipal centro de produção e exportação nesta região do Brasil. Mulhall admirou-se da
hospitalidade, do espírito empreendedor dos brasileiros (pelotenses), que pareciam
ianques por serem muito vivos nos negócios empreendedores e ótimos comerciantes.
       Acrescentou que a maioria dos estrangeiros que vem a Pelotas progridem e, des-
ta forma, admirou-se por não haver colonos ingleses.
       Depois de algumas considerações sobre a cidade, o jornalista acrescenta que
quem quiser visitar uma Charqueada em funcionamento, o que:

                    [...] a meu ver, é uma das visões mais revoltantes que se possa ima-
                    ginar. A rês é morta, cortada e a carne e o couro são pendurados
                    para secar, quase no mesmo tempo que levo para descrever a cena.
                    Os peões ficam empapados de sangue, o chão transforma-se num
                    mar vermelho, o cheiro é o que seria de se esperar nesses matadou-
                    ros gigantescos, e miríades de moscas infectam o local. Entretanto,
                    dizem que, quando as pessoas se acostumam, é uma ocupação in-
                    teressante e agradável, e a experiência mostra que as Charqueadas
                    são lugares saudáveis de se frequentar. (Mulhall, 1974, p.137-138).

       Neste ponto, o jornalista irlandês concorda com o comerciante francês Nicolau
Dreys, que não achou nada enojoso o ambiente das Charqueadas.
       Por outro lado, vê-se pela descrição que Mulhall esteve no interior dos galpões
onde os carneadores atuavam. Sua visão é a mesma que, onze anos após, vai ter o ame-




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História      33
ricano Herbert Smith: homens banhados de sangue e os animais berrando. Danúbio,
             ao visitar a Charqueada São Domingos, oitenta e três anos após, lembrou o Inferno de
             Dante e as cenas dramáticas das águas fortes de Goya (Caprichos) e de Pirinesi (mas-
             morras) e, assim, a descreve:

                                  Algo dantesco plasticamente. Próximo das gravuras de Piranesi ou dos
                                  caprichos goiescos. Entusiasmado, fiz uma série de xilogravuras de topo,
                                  que muito surpreenderam. Expostas no Chile, vistas por Diego Rivera,
                                  foram elogiadas pelo grande pintor mexicano em entrevista a uma revis-
                                  ta nossa. (Gonçalves, 1995, p.50).


                                        o TrabalHo DE loUis CoUTy

                     Le mate et les conserves de viande, publicado em 1880, constitui-se em um dos
             clássicos da historiografia da erva mate e, particularmente, do charque. é um estudo
             científico, de manuseio obrigatório para todos aqueles que têm interesse em compre-
             ender as relações concretas de produção da região platina.
                     Um dos destaques é, justamente, o método comparativo que Couty utiliza, ado-
             tando o caráter científico nos seus objetivos de estudo. Nesse aspecto, ele se diferencia
             de outros “viajantes” que, de modo geral, preocupavam-se, apenas, com o ilustrativo e
             o pitoresco em suas considerações. é de se observar que Couty veio a esta região com
             a finalidade específica de fazer um estudo sobre o charque. Contratado pelo Ministério
             da Agricultura do Império, trouxe uma metodologia francesa e vários títulos científicos.
                     Traçando algumas observações sobre a matança dos bois, Couty refere-se a uma
             “zorra sobre os trilhos”.

                                  A mangueira figura, com bastante exatidão, o plano de dois troncos de
                                  cone encostados em uma larga base: um dos vértices corresponde ao
                                  curro ou brete: o outro mais importante é aquele onde os bois vão ser
                                  sucessivamente mortos. Neste lugar, o chão da mangueira continua com
                                  uma zorra móvel sobre os trilhos. (Couty, 2000, p.96).

                    Interessante é que nem Dreys nem Debret falam da zorra, e sim de guindastes
             com roldanas puxadas por cavalos que levantavam o boi. São as descrições da primeira
             metade do século XIX, antes da Revolução Farroupilha.
                    Já para Couty, depois Herbert Smith e as descrições que se seguem, inclusive de
             Antenor Peixoto de Castro e Danúbio Gonçalves, a zorra é parte importantíssima da téc-
             nica de transporte do boi para ser carneado. Acredito que, como a rapidez era um fator
             básico para o bom funcionamento do processo de carnear, a zorra cumpria essa finalidade
             com muito maior eficiência do que o guindaste. Uma vez o animal laçado, é suficiente
             puxar a corda para que o boi seja arrastado por alguns metros sobre o chão deslizante, e
             venha colocar-se diretamente sob a mão de um segundo operário (às vezes, o mesmo) o
             matador ou “desnucador”. “[...] que só tem que enterrar de alto a baixo um longo facão,
             muito resistente e mal afiado, entre o atlas e o occipital para o bulbo” (Couty, 2000, p.96).

                                  Todas essas manobras duraram apenas um minuto, dois no máximo, já
                                  que se podem matar até 1200 bois em menos de dezoito horas, e a mé-
                                  dia das matanças diárias varia conforme os saladeiros, entre 200 e 1000.
                                  Imediatamente após o golpe de facão, o boi cai, bruscamente, como




34   José Antonio Mazza Leite
que fulminado sobre a vagoneta: levanta-se a porta vertical que fecha
                    a abertura da mangueira, e arrasta-se o vagão e o boi sobre os trilhos.
                    Após alguns segundos, ou 1 a 2 minutos de imobilidade completa, este
                    boi pode, em alguns casos, apresentar movimentos variados, irregu-
                    lares, dos membros; nestes casos excessivamente raros, e ele poderia
                    mesmo levantar-se, mas mesmo assim, quase sem forças, ele não tarda
                    a cair de novo. (Couty, 2000, p.97).

        Danúbio conta que chegou a ver um boi levantar-se, dar alguns passos e, logo,
cair. Antenor afirmou que, mesmo sem a cabeça, o animal continuava debatendo-se.

                    A ferida feita pelo facão nos órgãos nervosos tem sido, também
                    muito variável, como fiquei convencido em Pelotas e Montevidéu
                    por autópsias bastante numerosas, cujos detalhes serão publi-
                    cados em outro trabalho: às vezes, a medula é completamente
                    cortada; outras vezes, ela é simplesmente puncionada. [...] O que
                    quer que seja, qual seja o ponto atingido desta região bulbo-me-
                    dular, o animal cai: ele está morto, mesmo que capaz ainda de
                    contrações reflexas dos membros e conservando seus movimen-
                    tos cardíacos, e mesmo, às vezes, alguns “esforços” diafragmáti-
                    cos respiratórios. (Couty, 2000, p.97).

       Na xilogravura “A Espera” (p.118), o charqueador, da extrema direita, traz em sua
mão um objeto longo e curvo. é uma cartilagem da rabada, que os próprios operários
usavam para destruir as terminações nervosas, colocando-a no local da ferida provoca-
da pela faca, mexendo-a para, com isso, paralisar os safanões dos membros dos bovinos
abatidos. Esta era a forma como obtinham segurança para evitar acidentes de trabalho.
       Sobre a transformação do boi em charque, Couty, narra:

                    O boi caído sobre o vagão e arrastado é, em seguida, deposita-
                    do sobre um piso de tijolos, levemente inclinado: são as “can-
                    chas”. Elas são construídas de um só lado ou dos dois lados dos
                    trilhos, recobertas, quase sempre, por um hangar e contíguas à
                    mangueira. Uma vez em terra, ele aí é tirado, seja por dois ho-
                    mens, seja, como em Fray-Bentos por uma corda fixada a uma das
                    duas partes da frente, e puxada por um homem a cavalo, o boi
                    é imediatamente despojado do seu couro. Faz-se uma incisão e
                    esfola-se primeiro a cabeça; depois, quando se chega ao pescoço,
                    ou às vezes, mesmo desde o início, se o animal se agitar, sangra-
                    se cravando o facão até o coração. Esta sangria é constante; ela é
                    indispensável, porque termina de matar animais dos quais alguns
                    teriam podido viver ½ hora a mais, e sobretudo porque, sem a
                    sangria, a carne seca mal e tem uma cor ruim. Entretanto, esta
                    sangria dá pouco sangue, seguramente muito menos que em um
                    animal normal, cerca de 12 a 15 quilos para um boi de tamanho
                    médio. (2000, p.98).

       Essa operação é citada por Peixoto de Castro ao narrar que, em Pelotas, na Char-
queada do Coronel Pedro Osório, usava-se um tipo de balde para aparar o sangue que
seria utilizado, posteriormente, no preparo de adubo.




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História     35
Acaba em alguns minutos de tirar o couro: o animal tem, muitas ve-
                                zes, reflexos muito marcados, mas irregulares, às vezes ele ensaiará
                                gritos afônicos: ele terá durante a hemorragia, convulsões, ou me-
                                lhor, abalos não coordenados dos membros, e já terá sido carneado
                                pela metade. Estes operários cobertos de sangue, que se agitam em
                                todos os sentidos, estes 30 ou 40 bois esfolados e ainda vivos, sen-
                                tindo o facão e não podendo reagir, mugindo e não podendo se fazer
                                ouvir, procurando levantar-se e só conseguindo executar safanões
                                desordenados, oferecem ao artista um curioso quadro, ao fisiolo-
                                gista, interessantes temas de estudo, e também aos filantropos que
                                preferem os animais aos homens, uma reforma para tentar. (Couty,
                                2000, p. 98).


                                        HErbErTT HUnTiG smiTH

                     Suspendendo a narração técnico-científica e permitindo que a emoção dite suas
             palavras, o Dr. Couty situa-se diante de um quadro dantesco. O artista Danúbio Gon-
             çalves mostra que também foi tocado pelo “curioso quadro” quando perpetuou essas
             cenas na sua série “Xarqueadas”, conforme consta no terceiro capítulo deste trabalho.
                     Devido a uma grande seca que se abateu sobre o Ceará, em 1877, veio ao Brasil
             o especialista em geologia e geomorfologia. Sua missão era fazer a cobertura, para um
             periódico norte-americano, da seca e das epidemias que se propagavam pela região do
             nordeste. Smith tornou-se amigo de Capristano de Abreu, tradutor de seus trabalhos.
             Sua vinda ao Brasil foi estimulada pelo mestre Frederic Hart, da Universidade de Cor-
             nell. Ele esteve em Pelotas no ano de 1882.
                     Dele, é uma das mais completas descrições sobre a Tablada pelotense, onde o
             gado era reunido e negociado. Vamos nos ater, porém, a sua descrição sobre o que
             acontecia na “cancha”. Smith, relata que

                                [...] a matança é feita de manhã. Um laço é atirado na cabeça de
                                um animal escolhido e através de um sistema de roldanas e cordas,
                                puxados por cavalos ou bois, arrastam o animal laçado até que seu
                                pescoço fique ao alcance da mão do desnucador, que levanta um
                                punhal comprido e afiado e embebe-o no pescoço do animal entre o
                                Atlas e o Occipital. Esse golpe não mata o animal instantaneamente,
                                porém priva-o de toda a sensibilidade. O boi cai em um carro de pla-
                                taforma (zorra), que é contínuo com o soalho da mangueira. (Smith,
                                1922, p. 137).

                   Os desenhos de Danúbio Gonçalves começam a partir daí, como se pode ver
             no terceiro capítulo deste estudo, a zorra e zorreiros, registra dois momentos dessa
             operação.

                                Levanta-se uma porta, tira-se rapidamente o carro (zorra), descar-
                                regam-no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro
                                animal que entremetentes foi laçado. A operação inteira, leva cerca
                                de um minuto, e muitas vezes, num só estabelecimento no mesmo
                                dia matam-se 600 a 700 animais. (Smith, 1922, p. 138).




36   José Antonio Mazza Leite
A morte definitiva do boi é narrada da seguinte forma:

                    As operações restantes são quase sempre efetuadas por escravos. Esfo-
                    la-se o couro, abre-se o pescoço e enterra-se uma faca no coração que
                    ainda bate. Acabada a esfolação tira-se limpadamente a carne dos ossos
                    e são cortados em oito pedaços, que são lançados em estacas horizon-
                    tais onde dois trabalhadores hábeis recortam e retalham-na então, de
                    maneira que cada pedaço fica reduzido à espessura uniforme de cerca
                    de quinze milímetros. (Smith, 1922, p. 139).

      Completa, então: “Para essa operação emprega-se o verbo charquear e dele de-
rivam os substantivos, charque, charqueada, charqueador” (1922, p.102).
      Smith também não se furtou de expor sua visão sobre o ambiente onde se pro-
cessavam as operações de Charqueada:

                    Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo de cativador
                    nestes grandes matadouros; os trabalhadores negros, seminus, es-
                    correndo sangue; os animais que lutam, os soalhos e sarjetas corren-
                    do rubros, os feitores estólidos, vigiando imóveis sessenta mortes
                    por hora, os montes de carne seca dessorando das caldeiras, a con-
                    fusão, que entretanto é ordem: tudo isso combina-se para formar
                    uma pintura tão peregrina e tórrida quanto pode caber na imagina-
                    ção. De toda essa carnificina originou a riqueza de Pelotas, uma das
                    mais prósperas entre as cidade menores do Brasil. (1922, p.100).

        Suas descrições sobre o trabalho dos homens, no interior dos galpões, são im-
pactantes. Ele escreve: “[...] tudo isso combina-se para formar uma pintura tão pere-
grina e tórrida quanto pode caber na imaginação” (Smith, 1922, p.100). As imagens,
tanto para Couty como para Smith, foram fixadas, graças às xilogravuras de Danúbio
Gonçalves na Charqueada São Domingos.
        Pela descrição acima, parece que o biólogo norte americano antevê como um
artista poderia fazer uso da vigorosa cena. Danúbio, quando a viu, lembrou as gravuras
de Pirinese, que teria se inspirado nas tétricas masmorras da inquisição.

                                viTTorio bUCCElli

       O italiano, em 1905, veio a Pelotas e daqui gostou tanto que fez derramados
elogios à cidade. Mas, como disse, seu principal interesse era ver as Charqueadas, con-
sideradas o motor econômico do estado e, por isso, dirigiu-se à Charqueada do Coro-
nel Pedro Osório. Lá, foi recebido com todas as honras pelo proprietário, então vice-
governador do estado, que o levou a acompanhar as diferentes etapas pelas quais que
passam os bovinos, até transformarem-se em mantas salgadas.
       Ao visitar a cidade, Vittorio tinha a incumbência de escrever um livro de propa-
ganda para a Exposição Internacional de Milão, em 1906. Suas informações foram cor-
retas em vários sentidos pois, na época, Pelotas era a segunda cidade do estado e tanto
no charque como no couro estava assentada sua economia.
       Porém, o panorama geral mudara. A ligação ferroviária Bagé – Rio Grande estava
esvaziando o pólo charqueador de Pelotas. Das trinta e cinco Charqueadas que funcio-
navam no século XIX, havia apenas nove com um abate de 130 mil cabeças de gado e




                            “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História    37
não as quatrocentas mil da época de Louis Couty e Herbert Smith. O funcionamento das
             Charqueadas de Bagé, Quaraí, São Gabriel, além das de Santana do Livramento, foram
             um duro golpe para o pólo charqueador pelotense.
                    Vittorio refere-se à visita que fez às Charqueadas, destacando a importância da
             água para seu funcionamento. Tanto as de Bagé, Santana, Quarai e Livramento, como
             as de Pelotas, estão situadas junto a rios ou arroios. Em Pelotas, há o canal do São Gon-
             çalo e o arroio Pelotas que cumprem essa função. Continua narrando sua visita ao local.
             Conforme sua descrição, uma Charqueada constituía-se num pequeno vilarejo porque,
             além da casa de habitação do proprietário, existiam muitas outras habitações para em-
             pregados, assim como galpões e diversos locais de trabalho. Buccelli discorre sobre a
             matança e fala das mangueiras, dos enormes alpendres para depósito dos produtos,
             caldeiras, depósitos com várias funções, estrebaria, chácaras, além das 200 ou 300 pes-
             soas que trabalhavam e viviam no local.
                    Fala então da Charqueada que “mais agradou-nos permanecer”: a do Coronel
             Pedro Osório.

                                                     pEiXoTo DE CasTro

                    Esta Charqueada tem uma importância bem particular para o autor deste livro, pois é
             a Charqueada em que trabalhou Antenor Peixoto de Castro, que fez um relato preciso sobre
             suas atividades desde 1930 até o derradeiro ano de 1939, quando foram encerradas as ma-
             tanças. Na época, era a Charqueada da Viúva do Coronel Pedro Osório.
                    A viva narração de Antenor mostra o tempo em que seu pai administrou o esta-
             belecimento, unindo-se a ela uma descrição poética das reminiscências, além de um
             apurado e limpo relato de todos os diferentes momentos pelos quais passava o animal
             abatido e as técnicas de preparação do charque.
                    O outro motivo é que, na História de Pelotas, de João Simões Lopes Neto26 , lê-se
             o seguinte sobre essa Charqueada:

                                      Rio São Gonçalo, na margem esquerda, os proprietários foram: Ma-
                                      nuel Batista Teixeira, passou ao filho de igual nome, deste a Paulino
                                      Teixeira de Costa Leite, deste à Companhia Pastoril Industrial Sul do
                                      Brasil, pertence hoje a Pedro Osorio & Cia. (Lopes, 1994, p.31).

                    O Sr. Paulino Teixeira da Costa Leite vem a ser meu bisavô. Só quando fiz este trabalho,
             percebi que esta era a Charqueada a que meu pai referia-se, por ter pertencido a seu avô. Fui
             procurar no 1º Cartório de Registro Civil de Pelotas e lá encontrei os seguintes dados:

                                      São Gonçalo: situada no Passo dos Negros (margem esquerda do
                                      São Gonçalo), fundada por Manuel Batista Teixeira, que a passou ao
                                      filho do mesmo nome, deste vendida em 3/10/1885 a Paulino Tei-
                                      xeira de Costa Leite - livro 4, folha 207, sob nº 2565 - depois vendi-
                                      da à Companhia Pastoril Industrial do Sul do Brasil (7/2/1891 - livro
                                      4ª, folha 354, nº 1392), que a vendeu ao Coronel Pedro Osório em
                                      31/12/1896 - livro 3ª, folha 297, nº 5103.
                                      Um estabelecimento de Charqueada, completamente montado, si-

             26
                LOPES NETO, João Simões, 1865 – 1916. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municí-
             pios da zona sul: São Lourenço e Canguçu organizada por Mário Osório Magalhães.




38   José Antonio Mazza Leite
tuado às margens do São Gonçalo, com casa de moradia, galpões,
                        mangueiras, currais, carroças, carrinhos de mão, balança e demais
                        acessórios.

       A mesma Charqueada onde o Dr. Antenor Peixoto de Castro viveu e trabalhou quan-
do jovem, deixando-nos excelente relato de suas atividades (1930-1939) e que, na época,
pertencia à viúva do Coronel Pedro Osório. é o que veremos no Testemunha Ocular.


                TEsTEmUnHa oCUlar: anTEnor pEiXoTo DE CasTro


       A descrição do funcionamento da Charqueada, feita por Antenor Peixoto de
Castro, adapta-se muito bem aos estudos e xilogravuras de Danúbio Gonçalves. A se-
melhança entre os fatos e as gravuras é tal, que as coincidências são dignas de serem
mostradas, uma vez que só vão enriquecer este trabalho.

        Transcrevo, na íntegra, o depoimento:

                        Eu tenho lido, se bem que em poucos lugares, alguns esclarecimentos
                        sobre as Charqueadas de Pelotas. A bem da verdade e para conhecimen-
                        tos definitivo sobre o que acontece em uma “matança”, venho trazer
                        a experiência de quem passou 10 anos dentro de um estabelecimento
                        saladeril. A última “matança” da qual participei deve ter ocorrido entre
                        os anos de 1938 e 1939, não recordo bem, quando durante a safra foram
                        abatidas cerca de 38.000 reses. Tratava-se da firma Vva. Pedro Osorio
                        Cia. Ltda., cuja Charqueada estava localizada no Passo dos Negros, con-
                        tígua ao Engenho São Gonçalo, às margens do Canal do São Gonçalo.27

      é o mesmo estabelecimento onde Vittorio Buccelli foi recebido pelo proprietário,
o Coronel Pedro Osório.

                        Meu pai foi chamado para administrar o estabelecimento e em
                        1931, transferimos residência para a casa grande da Charquea-
                        da, com cerca de 1.000 m2 de construção e áreas de quartos que
                        equivaliam a um excelente salão de festas. Ali nos instalamos e
                        permanecemos até 1941, acompanhando as safras que se suce-
                        diam e que movimentavam os trabalhadores do Areal, da Várzea
                        e do Passo, de 1° de janeiro até 30 de junho de cada ano, data
                        fixada para o encerramento da safra. Em 1934, formado Perito
                        Contador, fui admitido como Auxiliar de Escritório da Charquea-
                        da, com a incumbência, entre outras, de acompanhar o andamen-
                        to de todas as matanças. No primeiro dia útil de cada ano a safra
                        era iniciada, encerrando-se, impreterivelmente, em 30 de junho,
                        com a duração, portanto, de seis meses.28

27
  Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à escritora Heloisa Assumpção Nascimento,
fev./1988, p.7.
28
  Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988,
p.1.




                                  “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História                39
Neste ponto da narrativa, Peixoto de Castro relembra o antigo apito da Charqueada.

                                           As matanças iniciavam entre meia-noite e uma hora da madruga-
                                           da, quando deveriam estar a postos todos os empregados, o chamado
                                           de... “boi... boi... boi”, ecoava num raio de 5 quilômetros, convocando
                                           os operários. A tropa que deveria ser abatida, de propriedade da firma
                                           ou de custeio, de 300, 500 ou mesmo de 800 bois, já estava distribuída
                                           nos mangueirões interligados, que davam para um pequeno com capa-
                                           cidade para cerca de 20 bois. Aí, os animais encostados uns aos outros,
                                           aguardavam o laçador-matador, em geral um castelhano de boa cepa,
                                           com coragem bastante para desnucar as reses com um pequeno punhal
                                           de dois gumes, numa operação que muitas vezes entrava noite a dentro.
                                           Quinze minutos antes do início da matança, com o livro ponto debaixo
                                           do braço, recorria todos os setores do galpão para anotar a presença
                                           dos operários em seus postos, já distribuídos pelo “Capataz da Cancha”.
                                           Ali estavam alinhados, esperando o primeiro boi, zorreiros, cambonei-
                                           ros, coleiros, carneadores, charqueadores, aguateiros, salgadores, ma-
                                           tambreiros, foguistas, mergulhadores de carne e de couros, balanceiros,
                                           porteiros, guincheiros, carregadores de ossadas e buchadas, serradores
                                           de caracu, resfriadores, graxeiros, eletrecistas, tripeiros, etc e etc.29

                  Depois de falar sobre o grande número de operários que movimentavam a Char-
             queada, refere-se as suas instalações.

                                           Os tanques, com mais ou menos 6 metros de comprimento, por 1,50m de lar-
                                           gura e 1,20 m de altura, já estavam cheios de salmoura, com os medidores
                                           de salinidade boiando em seus interiores, um destinado à salga da carne e
                                           outro à dos couros. As fornalhas, com as bocas vermelhas escancaradas,
                                           iam pouco a pouco transmitindo aos manômetros a pressão das 4 caldeiras
                                           destinadas ao preparo da graxa amarelinha, acondicionadas em bordale-
                                           sas ou em bexigas, que enchiam os olhos pela qualidade. Montanhas de
                                           sal grosso, completamente branco, trazidas por barcos que atracavam nos
                                           trapiches da Charqueada, completavam o interior do enorme galpão, que
                                           se mantinha absolutamente limpo, aguardando a salga da carne e do cou-
                                           ro, para formarem as “pilhas de inverno” que, ao fim da safra, beiravam as
                                           telhas, com quase 5 metros de altura. Pela tarde, véspera da matança, as
                                           tropas que vinham trazidas pelos tropeiros, passavam pela Balança Muni-
                                           cipal (imediações do Parque Tênis Clube) e, em grupos de 50 animais eram
                                           pesados, fazendo-se ao final a média de peso da tropa. A seguir eram leva-
                                           dos para a Charqueada pela Estrada das Tropas (hoje Avenida São Francisco
                                           de Paula) para serem encerrados nos mangueirões.30

                         Narra, então, como era feita a contagem do gado.

                                           Aí, o Capataz da Cancha e mais eu, empoleirados cada um de um lado
                                           do portão da mangueira, com algumas pedrinhas no bolso, fazíamos a
                                           contagem dos animais componentes da tropa. Os tropeiros, para faci-
                                           litar a contagem, faziam alas para a passagem do gado, em pequenos
             29
                  Id., fev./1988, p.1.
             30
                  Ibid., fev./1988, p.2.




40   José Antonio Mazza Leite
lotes. Não era fácil a tarefa e ao final da contagem, antes que os tropeiros
                               falassem, nós já tínhamos o resultado que em geral conferia, havendo algu-
                               mas vezes pequenas divergências decorrentes do extravio de alguma rês ou
                               sacrifício de alguns novilhos para a alimentação dos boiadeiros que vinham
                               de fazendas muito distantes. O pequeno brete, uma vez abatida as reses
                               nele encerradas, era imediatamente reabastecido. Os rodeios crioulos nos
                               mostram seguidamente a perícia de um laçador perseguindo a rês em seu
                               cavalo para, num arremesso certo, laçá-la ou derrubá-la ao solo num pialo.
                               é maravilhoso! Não menos maravilhosa, no entanto, é a perícia de um la-
                               çador de brete! Ali estão 20 animais apertados uns contra os outros, chifre
                               a chifre, não restando mais de 5 cm separando as guampas dos animais!31


     O laçar do boi é mencionado por todos os viajantes, o que mostra a importância
de um bom tiro de laço. Peixoto de Castro explica, muito bem, esse momento.

                               O laçador preparava, então, sua laçada, quase exatamente da medi-
                               da do afastamento dos chifres do animal que pretendia laçar. Mos-
                               trava o animal e dizia: é aquele mestiço de zebu! O animal estava
                               apertado entre os outros! Será que dava? Distante mais ou menos
                               4m, o animal estava parado. Aí, então, a laçada voava sem rebolei-
                               ro e caía exatamente sobre os 2 chifres do animal indicado. Uma
                               façanha de craque! Fácil? Eu experimentei e em 50 tiros tive a nota
                               zero... O velho castelhano João Taborda não era mole! Laçado o boi,
                               ele gritava: Ala... Ala... Ala... E o laço enrolado ao guincho (máquina
                               a vapor), puxava o boi até encostar sua cabeça a um moirão colocado
                               horizontalmente, onde era desnucado com o punhal de 2 gumes.32

        A zorra, a que se refere Peixoto de Castro, aparece em duas xilogravuras de Danúbio Gon-
çalves, numa demonstração de sua importância para o bom funcionamento da Charqueada.

                               O animal caia sobre uma zorra colocada sobre trilhos e o zorreiro, abrin-
                               do uma portinhola, puxava a zorra e, juntamente com o coleiro e o cam-
                               boneiro, derrubavam o animal e o colocavam ao longo da cancha (local
                               de carneamento), onde os carneadores esperavam para o início dos tra-
                               balhos. O cambaneiro era o operário que passava uma grossa corrente
                               pelos chifres do boi e o coleiro o que puxava pela cola para, num esforço
                               conjunto, derrubar a rês, colocando-a na devida posição.33

            Parece que estamos observando as cenas dos zorreiros de Danúbio.

                               Tal serviço era repetido 20 a 30 vezes seguindo, conforme a capacidade
                               da cancha, distribuindo-se o trabalho entre igual número de carneado-
                               res. Quando o último carneador era servido, os primeiros já haviam car-
                               neado os seus animais e aguardavam novas peças.34

31
     Op.cit. fev./1988, p.2.
32
     Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.7.
33
     Id., fev./1988, p.3.
34
     Ibid., fev./1988, p.3.




                                        “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História                  41
A rapidez, com que os carneadores efetuavam o seu trabalho, era motivo de
             admiração e era também necessária para o andamento do processo, como bem
             salienta Antenor Peixoto de Castro.

                                             O local onde haviam carneado já estava completamente limpo. Por
                                             ali já haviam passado, devidamente montados em petiços, os carre-
                                             gadores de ossadas e buchadas, que, com ganchos fixados aos ar-
                                             reios, faziam o serviço, levando a buchada para o monturo e a ossa-
                                             da para a graxeira para a elaboração da graxa, colocada, como disse,
                                             em bordalesas e bexigas. Também haviam colaborado com o carne-
                                             ador 2 matambreiros que, com um instrumento especial, soltavam o
                                             matambre, parte mais difícil de ser trabalhada com a faca.35

                         O trabalho de faca exigia um conhecimento especial, muita habilidade e traquejo.

                                             O trabalho do carneador era dos mais importantes na matança. Ao re-
                                             ceber o boi ele o sangrava e todo o sangue era aparado dentro de uma
                                             espécie de forma de lata, colocada sob o pescoço do animal e posterior-
                                             mente levado a tonéis, para depois de coagulado e seco, ser misturado
                                             com farinha de ossos para fabricação de adubo (guano). Ao final do tra-
                                             balho do carneador, sobrava na cancha apenas o couro da rês, já que
                                             o aguateiro fazia a limpeza do local. Vinha, então, o “capatazes da can-
                                             cha” que examinava o couro. Qualquer furo em local importante que o
                                             desvalorizava, era motivo para o carneador não receber a ficha corres-
                                             pondente ao seu trabalho. Durante a matança o carneador recebia uma
                                             média de 25 fichas, que valiam, cada uma “um mil e quinhentos réis”.
                                             Este serviço, assim como o dos carneadores salgadores, eram os mais
                                             bem pagos. A carne tirada pelos carneadores era levada para os char-
                                             queadores, em números de três ou quatro, que faziam o seu corte em
                                             mantas e outros pedaços que compunham propriamente o “charque”,
                                             como produto final. Colocada a carne nos varais em setor contíguo à
                                             cancha, para resfriamento12 , era ela, pouco tempo depois devidamente
                                             pesada, para se conhecer a média de carne da tropa, sendo lançada
                                             após no tanque da salga. Ali dois homens, munidos de paus com uma
                                             rodela numa extremidade, mergulhavam a carne durante algum tempo
                                             até que ela estivesse completamente salgada.36


                  O tanque de salga é uma das xilogravuras de Danúbio, em que há vários pares de
             homens, e não só dois.

                                             Feito esse trabalho, retiravam a carne do tanque e a depositavam
                                             a sua borda, para que os salgadores efetuassem o seu trabalho. Os
                                             salgadores, em pequeno número, cobriam de sal grosso uma área de
                                             mais ou menos 8x5 m e ali iam depositando, devidamente aberta,
                                             a carne retirada do tanque. Coberta a área com carne, espalhavam
                                             nova camada de sal, agora sobre a carne e, alternadamente, iam co-
                                             locando carne e sal até que o charque de toda a tropa ali estivesse
             35
                  Op.cit., fev./1988, p.3.
             36
                  O resfriamento foi motivo de desenho mas não de xilogravura de Danúbio. 13 Loc. cit., fev./1988, p.4.




42   José Antonio Mazza Leite
depositado. Colocavam, após o término, uma espécie de rede de
                                cordas sobre a pilha, para separá-la da próxima tropa que para ali
                                viria. As anotações feitas: 1ª tropa, fulano; 2ª tropa, sicrano e assim
                                por diante, até que aquela imensa pilha quase encostava no teto do
                                galpão. Eram pilhas de inverno. Matanças que somente meses de-
                                pois seriam transformadas em charque e colocadas no mercado.37

      Sobre essas pilhas, Antenor relembra sua beleza: “Altas e brancas como monta-
nhas de neve” (testemunho oral).

                                Outras matanças, por interesse dos proprietários das tropas, eram
                                rapidamente tratadas para consumo. Sobre o preparo do charque
                                falaremos oportunamente. Estávamos, ainda, em plena “cancha”. A
                                ocorrência de matanças de grande número de reses, obrigava os tra-
                                balhadores a um regime de esforço fora do comum, pois muitas delas,
                                iniciadas à primeira hora da manhã, prolongavam-se até pela tardinha,
                                reiniciando os trabalhos novamente pela madrugada. Nesse contínuo
                                emendar de matanças, os operários andavam quase dormindo pelos
                                cantos. Nessas ocasiões, o meu pai, para acordar o pessoal, manda-
                                va soltar na cancha um animal que não fosse muito brabo. O bicho,
                                mediante um descuido propositado, passava pelo buraco da zorra e
                                enfrentava todo mundo que estava na cancha. Corre pra cá, foge pra
                                lá, esconde aqui, esconde acolá, todo mundo acordava.38

      Essa forma de acordar o pessoal, certamente será muito mal compreendida por
quem não conhece os trabalhadores das mangueiras, que unem coragem e habilidade
a um perigo calculado, vivendo num ambiente de camaradagem que a todos contagia.

                                Aí entrava em cena o Bernardino Gritão, um preto da zona do Areal,
                                meio surdo, que puxando a faca da cintura com a mão esquerda,
                                segurava o rabo do animal com a direita, e com dois rápidos movi-
                                mentos da faca desgarronava o dito cujo, que ficava se arrastando
                                pela cancha. Sua morte acontecia logo após.3916


       Conforme narrativa de Peixoto de Castro, abater o animal dessa forma, era retor-
nar ao passado, quando, usando as lanças de meia lua na ponta de uma taquara leve,
o “desgarretamento” cortava o tendão do bovino, que, logo a seguir, caia, sangrado
mortalmente. Esse trabalho era, geralmente, feito por um escravo.
       Dreys descreveu a cena com riqueza de detalhes, que depois foi pintada por De-
bret, e narrada por Peixoto de Castro noutro contexto.

                                Acontecia, às vezes, que o Bernardino não estava por perto e o ani-
                                mal percorria toda a cancha ameaçando uns e outros e, postava-se,
                                afinal, em um dos cantos do galpão. Aí, então, era acionado o ron-
                                da Baltazar, o seu Balta, que se encaminhava para o animal e cerca

37
     Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.4.
38
     Id., fev./1988, p.5.
39
     Op.cit., fev./1988, p.5.




                                        “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História                  43
de uns 20 metros, levantando o 38 com a mão esquerda, colocava
                                             uma bala na testa da vítima que arriava para o chão, sendo carneado
                                             ali mesmo, sob grande salva de palmas. Agora sim! Todo o mundo
                                             estava acordado e pronto para recomeçar o trabalho! Entrementes,
                                             o produto de algumas matanças ia ser preparado para consumo.
                                             Orientação do escritório central mandava preparar determinada ma-
                                             tança. Aí, então, entrava em ação o “Capataz de Rua”.40

                     Havia o capataz do interior do galpão e o capataz de rua. Nos estudos de Danúbio, o
             carrinho de mão aparece várias vezes, mas varais na rua não foram desenhados, o que mos-
             tra a sua preferência pela figura humana em movimento, mesmo porque seus desenhos,
             quase em sua totalidade, foram sobre o interior do galpão. Voltando a Antenor:

                                             O competente João Doralino, um preto que tinha em bondade e respei-
                                             to, tanto como os seus 120 quilos, botava em forma cerca de 30 operários,
                                             cada um com o seu carrinho de mão, para retirar o charque ainda pingando
                                             e depositá-lo sobre os varais que ocupavam mais de um hectare. Dia de
                                             sol, bonito, as peças iam perdendo a umidade e antes do cair da tarde já
                                             estavam novamente no galpão, agora em nova pilha. Durante alguns dias
                                             era repetida a operação, até que, completamente seco e mostrando uma
                                             gordura dourada, o charque apresentava um aspecto excelente.41

                    Peixoto de Castro mostra, orgulhoso, a vivência que seu pai tinha nessa ativida-
             de, evitando que a umidade pelotense estragasse o resultado de trabalho tão árduo.

                                             Em cerca de 10 anos, apenas em duas oportunidades houve corrida para
                                             o recolhimento dos varais. A experiência do meu pai sobre o assunto fazia
                                             com que mesmo em alguns dias de sol não se fizesse o trabalho, pois, con-
                                             forme previsão, o tempo mudava e passava a chover. Pronto o charque, os
                                             operários passavam a se ocupar de uma nova tarefa. Os sacos de aniagem
                                             eram devidamente carimbados com o nome da firma, o peso, o local de
                                             destino e a classificação do produto. O peso era determinado pela média
                                             da tropa, acusada por ocasião da matança, e variava entre 80 e 100 quilos.
                                             Finalizando o tratamento do charque, ele estava incluído dentro de uma
                                             das seguintes classificações: AA – SS – XX – BB – GG e MM. Considerava-
                                             se com o AA o charque especial, com uma camada de gordura dourada
                                             sobre as mantas, destacando-se dos demais; como SS, o mesmo tipo, com
                                             um pouco menos de gordura; como XX o charque um pouco gordo, muito
                                             parelho, e, como os anteriores, tipo exportação; a seguir vinham os tipos
                                             BB e GG, de pouca gordura e, finalmente o pelancudo MM. Era feito um
                                             amarrado com cordas finas e a carne devidamente ensacada. Cosido o
                                             saco, estava pronto para embarque. Os principais mercados eram do Nor-
                                             te e Nordeste, com Pernambuco e Bahia como as maiores expressões. 42

                   Comprova-se, assim, o que vários viajantes do século XIX afirmavam: o charque
             era consumido pelas populações do Norte e do Nordeste.

             40
                  Op.cit., fev./1988, p.5.
             41
                  Loc. cit., fev./1988, p.5-6.
             42
                  Op.cit., fev./1988, p.6.




44   José Antonio Mazza Leite
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  • 1. XARQUEADAS DE DANÚBIO GONÇALVES UM RESGATE PARA A HISTÓRIA Charqueada de Debret - 1820
  • 2.
  • 3. José Antonio Mazza Leite XARQUEADAS DE DANÚBIO GONÇALVES UM RESGATE PARA A HISTÓRIA 3a Edição Revista e Ampliada Desenhos e xilogravuras coloridas pelo autor Danúbio Gonçalves Porto Alegre, 2011
  • 4. © Todos os direitos desta edição estão reservados a José Antonio Mazza Leite proibida assim qualquer reprodução, cópia ou qualquer alteração, manipulação das informações aqui conti- das sem prévia autorização do autor. Capa: Daniel Ferreira da Silva Revisão: Daniela Ambrost Editoração: Observatório Gráfico Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 L533x Leite, José Antonio Mazza Xarqueadas de Danúbio Gonçalves: um resgate para a história / José Antônio Mazza Leite. -- 3.ed. rev. e ampl. -- Porto Alegre : s.c.p, 2011. 213 p. : il. 1. História – Rio Grande do Sul. 2. Xilogravura. 3. Arte – Aspectos Socias. 4. Charque – História – Rio Grande do Sul. 5. Economia – Rio Grande do Sul. I. Gonçalves, Danúbio. II.Título CDU: 981.65 761.1(816.5) A grafia desta obra está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Patrocínio: Apoio:
  • 5. Dedico este livro a meu pai, Arthur Souza Leite (in memorian), a meu avô Raphael Mazza (in memorian), a minha mãe Amelina Mazza Leite (in memorian, a Daniela Pieper e a psicóloga Gabriela Pieper Domingues. A minha irmã querida, Branca Leite Hertz e a Antonio Carlos Mazza Leite meu irmão.
  • 6.
  • 7. HOMENAGENS A Danúbio Gonçalves, grande expoente das artes plásticas brasileira. A todos os trabalhadores das Charqueadas riograndenses e os de suas co-irmãs do Prata. A Carlos Reverbel jornalista e historiador (In memorian). A José Almeida Collares e Maria Angelina Collares Talaveira pelo incentivo e amizade. Ao professor pelotense de História Pasqual Müller (In memorian). A Alvarino da Fontoura Marques, médico, fazendeiro e pesquisador, cuja trilogia do Ciclo do Charque é obra obrigatória para conhecer nossa história (In memorian). A Fernando O. Assunção academico, professor e historiador uruguaio presidente do IHGU - Instituto Histórico Geográfico do Uruguai (In memorian). A Paulo Xavier, médico, professor e pesquisador, certamente o maior conhece- dor da história do Ciclo do Charque no Rio Grande do Sul (In memorian). A Augusto Simões Lopes Neto, gaúcho e pelotense de coração, amigo inesquecível (In memorian). A Voltaire Schilling historiador e amigo. Aos excursionistas da Ouro e Prata na França em 2010.
  • 8.
  • 9. Sumário Apresentação - Eduardo Bueno, 13 Apresentação de Danúbio Gonçalves para a Terceira Edição, 15 Depoimento de Danúbio Gonçalves - Primeira Edição - 2003, 17 A poética da charqueada - Mário Barbosa de Mattos, 19 Charqueada ou Xarqueada, 21 Introdução da 3a Edição, 23 A Charqueada, 25 HISTORIOGRAFIA SOBRE A CHARQUEADA, 25 OS VIAJANTES, 25 LUCCOCk, 25 JOSé CAETANO DA SILVA COUTINHO, 26 SAINT-HILAIRE, 27 JEAN BAPTISTE DEBRET, 28 NICOLAU DREyS, 30 MICHAEL MULHALL, 33 O TRABALHO DE LOUIS COUTy, 34 HERBERTT HUNTIG SMITH, 36 VITTORIO BUCCELLI, 37 PEIXOTO DE CASTRO, 38 TESTEMUNHA OCULAR: ANTENOR PEIXOTO DE CASTRO, 39 AS CHARQUEADAS, 48 A PRIMEIRA DESCRIçãO DE UMA CHARQUEADA, 48 AS CHARQUEADAS EM PELOTAS, 49 DESCRIçãO DA PRIMEIRA CHARQUEADA POR JOãO SIMõES LOPES NETO, 49 AS CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUçãO FARROUPILHA PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS, 51 A EXPANSãO DAS CHARQUEADAS APÓS A REVOLUçãO FARROUPILHA, 52 AS CHARQUEADAS EM BAGé, 53 OS ABATES DE GADO DURANTE O PERÍODO REVOLUCIONÁRIO, 54 CHARQUEADA SãO DOMINGOS, LOCAL DOS ESBOçOS DE DANÚBIO GONçALVES, 57
  • 10. O olhar da arte, 59 UM OLHAR DE ARTE SOCIAL SOBRE OS TRABALHADORES DO CAMPO À CIDADE, 59 MOVIMENTOS PRECURSORES: O REALISMO EUROPEU, 59 O REALISMO DOS MURALISTAS E GRAVURISTAS MEXICANOS, 62 LEOPOLDO MENDEz, 63 UM ENCONTRO FUNDAMENTAL, 65 O GRUPO DE BAGé: UM DOS PRIMEIROS CLUBES DE GRAVURA, 67 DIFUSãO DOS CLUBES DE GRAVURA NO BRASIL E SEU LEGADO, 71 DANÚBIO GONçALVES: SUA TRAJETÓRIA, 72 O MENINO DE BAGé, 72 DA CARICATURA AOS MORROS CARIOCAS, 73 DANÚBIO AINDA ADOLESCENTE MERGULHA NA VANGUARDA ARTÍSTICA CARIOCA, 74 DANÚBIO SE INICIA NA XILOGRAVURA, 77 CARLOS REVERBEL – UMA LEMBRANçA, 79 CRÔNICAS DE CARLOS REVERBEL – NOTÍCIA DE UMA EXPOSIçãO, 80 PEDRO WAyNE, 83 PRIMEIRA EXPOSIçãO DE DANÚBIO EM BAGé, 87 MERECEU UMA CRÔNICA DE PEDRO WAyNE, 87 CORREIO DO SUL – BAGé; – 31/12/1939, 87 ANTÔNIO VIEIRA PIRES, 88 SAUDADES DE VIVER, 88 INTRODUçãO À GRAVURA, 93 UM POUCO DA SUA HISTÓRIA, 93 A gravura como documento, 93 TéCNICAS XILOGRÁFICAS, 94 OS CADERNOS DE DANÚBIO GONçALVES, 95 O APITO NAS CHARQUEADAS, 96 Esboço DE Zorra Com mEDiDas E EpliCaçõEs, 97 zORRA, 103 zORREIROS, 108 CARNEADORES, 1089 ESPERA, 114 ESPERA, 116 MANTEIRO, 118 MANTEIRO, 124 MATAMBREIROS, 128 PICADOR, 129 PICADOR, 133 LINGUEIRO, 133 TIRADOR DE CARRETILHA, 136 TIRADOR DE CARRETILHA, 139 SALGA, 142 Considerações finais, 145 BIBLIOGRAFIA REFERENCIAL, 147 Bibliografia, 147 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA, 149 LIVROS E DISSERTAçõES, 151 Anexos, 155
  • 11. Breve história do Coronel Caetano Gonçalves da Silva e de sua descendência , a partir , de seu filho mais velho, Bento Gonçalves da Silva, 167 Danúbio Gonçalves, sobre o artista, 169 MOSTRAS E EXPOSIçõES, 169 EXPOSIçõES INDIVIDUAIS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 171 EXPOSIçõES COLETIVAS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 172 PREMIAçõES, 172 OBRAS EM MUSEUS, 173 LIVROS, 173 Mais alguns esboços de Danúbio Gonçalves, 175 Introdução para as fotos do Wolfgang Hoffmann Harnich Jr, 185 A Charqueada do Século XX e XXI, 203 CHARQUEDAS NO SéCULO XX E XXI, 203 RECORDAçõES DA INFÂNCIA, 203
  • 12.
  • 13. Apresentação H ouve um tempo em que o Rio Grande do Sul esteve por cima da carne seca. Foi a era de ouro das oficinas de desmontar boi e salgar carne, tudo isso com o suor dos escravos. Foi o tempo da courama e, acima de tudo, o auge das charqueadas. O charque, é verdade, jamais trouxe ao Rio Grande a mesma pujança que o açúcar concedeu ao Nordeste ou o café ao Sudoeste – mas o doce pó branco e o amargo negro pó jamais teriam gerado tamanha riqueza se o charque gaúcho não alimentasse os escravos que habitavam nos engenhos e nos cafezais. O charque também não produziu bibliografias tão ricas quanto aquela dedicada às lavouras que colocaram o Brasil no mapa da economia mundial. Quantos hinos há sobre as charqueadas gaúchas, que deram músculos ao Rio Grande e o levaram a enfrentar o império em dez anos de guerra civil? Demasiadamente poucos. é por isso que esse belíssimo trabalho de José Antonio Mazza Leite vem reforçar o cardápio historiográfico gaúcho com um traço literário saboroso e consistente como um bom carreteiro. E não se trata apenas de uma bela com- pilação de relatos de viajantes que visitavam as charqueadas em seu auge, nem uma reconstituição de como funcionavam aquelas sanguinolentas oficinas de salgar boi. Como o próprio título indica, Xarqueadas resgata também o dramáti- co e comovente trabalho do artista plástico Danúbio Gonçalves. Ilustrado pelas xilogravuras que encantaram Diego Rivera, esse estudo de Mazza Leite dá um novo tempero a uma história de sangue, suor e sal. A história que transformou os gaúchos e o Rio Grande no que hoje são. Bom Apetite! Eduardo Bueno Jornalista e Historiador “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 13
  • 14.
  • 15. Apresentação de Danúbio Gonçalves para a Terceira Edição S ugeri que esta edição fosse colorida e, com o apoio de patrocinadores, pode José Antonio Mazza Leite aumentar a tiragem da publicação. A importância maiúscula deste memorial de nossa época saladeira, incluindo o Uruguai e a Argentina. Podendo-se sentir a unidade “pampeana”. José Antônio Mazza Leite historiador, complementado por sequentes viagens ao estrangeiro, nos presenteia com este livro – resgate – certamente, um dos mais destacados sobre a Charqueada. Paralelamente ao término do filme “Grandes mestres”, de Henrique Freitas Lima, após três anos de filmagem, focando também a charqueada São Domingos e Bagé, onde por meses, desenhei pelos departamentos de matadouro (documento inédito que me possibilitou a série de xilogravuras “charqueadas” e pinturas. Obra obtendo o prêmio de viagens ao país no 2o Salão de Arte Moderna no Rio de Janeiro). Viaja- ndo para Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, por nove meses, exigido pelo prêmio. O filme de Henrique tendo registrado minha visita ao pavilhão central, das zorras, me emocionou ao retornar a esse local após mais de cinquenta anos. Pela obra “charqueada” tive o estímulo e admiração dos bageense se adotados culturais Pedro Wayne, Clóvis Assumpção, Carlos Scliar, Diego Rivera, Tarcísio Taborda, Mário Lopes, Roberto Suñe, Ito Carvalho, Mario Mattos e mais. A presente edição, con- tinuando a ser divulgada e a consagrada pelo Museu do Charque de Pelotas, ide- alizado por Ediolanda Liedke e José Antonio Mazza Leite, com felicitação estadual. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 15
  • 16. Tablada - desenho aquarelado, Danúbio Gonçalves, 2002 - acervo do museu do Charque. 16 José Antonio Mazza Leite
  • 17. Depoimento de Danúbio Gonçalves Primeira Edição - 2004 A pós a viagem de estudo por um ano e dois meses na Europa, em 1950, retor- nei à Bagé. Encontrei-me com Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues, e juntos fundamos o Clube Amigos da Gravura de Bagé. Em sequência, fundamos o Clube de Porto Alegre, com liderança de Carlos Scliar, que regressava de Paris. O chama- do “Grupo de Bagé”, interessado na temática gaúcha, foi acolhido pelos irmãos Ismael e Severino Collares, anfitriões nas estâncias das Palmas. Lá, desenhávamos e pintávamos, tendo como motivação a paisagem local e os trabalhadores campeiros. Bento Gonçalves, meu pai, fornecia gado para a charqueada bageense, ocasionando-me a oportunidade-surpresa de visitar a Charqueada São Domin- gos (Bagé). Estupefato fiquei com a monumentalidade do tema encontrado nas várias dependências do matadouro, em plena efervescência da safra. Trabalho esse que aliciava pessoal vindo da lide campeira. Entusiasmado, por três meses frequentei este estabelecimento industrial, desenhando, aquarelando e ano- tando com croquis as variadas operações, da matança ao preparo do charque. Trabalho, a seguir, complementando com a pintura e uma série de xilogravura de topo, série gráfica mostrada no país e em diversos centros culturais estran- geiros. Etapa de minha obra gráfica com que obtive o Prêmio de Viagem pelo País, no Salão Nacional de Arte Moderna (Rio de Janeiro). Em viagem à Polônia, Varsóvia, recebi elogios do grande artista polonês Tadeusz kuliziewicz, xilógrafo e desenhista, e, na capital chilena, em entrevista para a revista “Horizonte”, tive também honrosa e estimulante referência do famoso pintor muralista mexica- no, Diego Rivera. A série “Xarqueada” faz parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo, da Coleção Gilberto Chateaubriand, do Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro) e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Essa fase foi, representativa de minha obra e serviu de favorável estímulo para minha traje- tória gráfica, parcelada entre xilogravura e litografia. Fato curioso em meu envolvimento com a charqueada foi estar vivenciando o fim da Era do Charque e, sem saber, documentando-a, uma vez que não existe registro fotográfico dos trabalhadores em ação, tanto no Brasil como no Uruguai ou Argentina. Embora artisticamente motivado, o meu trabalho relativo à charqueada alcançou a condição histórica, inédita, de memorial. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 17
  • 18. Anos depois, é gratificante estar contribuindo com o Museu do Charque de Pelotas, criado por José Antonio Mazza Leite, apaixonado entusiasta da história universal e local, em relevante pesquisa favorável ao resgate da era saladeril. His- toricamente, um período social e econômico especificamente marcante para o Rio Grande do Sul. 18 José Antonio Mazza Leite
  • 19. A poética da charqueada A li, onde os bois eram martirizados e os homens eram os magarefes, as pes- soas passavam de longe, buscando evitar o próprio ar, empestado pelo cheiro do sangue e resíduos putrefatos dos animais abatidos. No entanto, um historiador e um artista plástico, duas pessoas com motivações diferentes, mas igualmente sedentas de beleza, uniram-se no resgate da poesia da charqueada. Como isso foi possível? Aristóteles, pai da poética - vale dizer da arte - ocidental, já explicava há mais de dois mil anos, que além da tendência congênita do ser humano para imitar po- eticamente a vida, há uma outra causa do surgimento da poesia: a tendência do ser humano ao aprendizado. O estagirita foi o primeiro a ensinar que a imitação, mesmo das coisas que olhamos com repugnância, produz o prazer intelectual do re- conhecimento. A arte é revelativa, e isso faz parte da produção de emoção estética. A poética histórica da charqueada, seu papel no surgimento e desenvolvi- mento de civilizações como a da cidade de Pelotas, inspirou José Antonio Mazza Leite a largar seus interesses importantes na cidade natal e buscar a capital gaúcha para inscrever-se em pós-graduação de História. A busca de uma arte social e realista nos anos cinquenta, inspirara o jovem Da- núbio Gonçalves a internar-se na última charqueada de Bagé – e descobrir ali a poética dos homens em ação no trabalho saladeril, preservando com a destreza e paixão de seu nervoso lápis, uma dinâmica de dois séculos que, não fora ele, ficaria irrevelada para a ânsia de saber da humanidade póstera. Mas na charqueada de Danúbio, há uma diferença: os homens retratados na labuta não são mais os infelizes negros da charqueada escravocrata. São gaúchos egressos da lida campeira, isto é, saídos do capitalismo pastoril para o capitalismo industrial. Já aceitaram, como o velho Blau Nunes, as regras do “manda quem pode, obedece quem precisa”, mas deram um passo à frente como categoria social. Ha- bituados até por atavismo à violência pampeana, não estranham o que fazem - e ainda não têm consciência da envergadura do passo dado. Para eles, vale dizer, para o gaúcho a pé, é um novo caminho da velha subalternidade. é o salário, o emprego, embora sazonal, a sobrevivência da família... A partir daí, a qualificação progressiva do trabalho assalariado mais a democracia política, vêm abrindo caminho à melhor “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 19
  • 20. qualidade de vida, à escolarização dos filhos, à educação tecnológica e à cidadania, plena de oportunidades para poderem voltar a cavalgar, dessa vez nas asas da re- volução técnico-científica. E um dia - quem sabe, por que não? – chegar à utopia de fraternidade sonhada pelos jovens socialistas do Clube da Gravura. Portanto, suplico – aos senhores ecologistas, aos nobres protetores de ani- mais e outras pessoas de extrema sensibilidade que torcem o nariz ao próprio aprendizado – que abram alas para o extraordinário livro de Mazza Leite e às ricas ilustrações de mestre Danúbio, feito editorial inédito da concepção moderna e lúci- da de comunicar História. A poética da Charqueada pede passagem. Mário Mattos Coordenador do NES (Núcleo de Estudos Simonianos) do IHGPEL (Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas) 20 José Antonio Mazza Leite
  • 21. Charqueada ou Xarqueada E ssa explicação deveria ter sido dada na primeira edição para explicar o por- que que Danúbio usou o X. Somente nesta terceira edição vou reparar essa falta. O jovem Pedro Wayne, depois de estudar em Pelotas, foi para Bagé. O rapaz casou-se nessa cidade, indo trabalhar como contador na charqueada de seu sogro. Aí começou sua vivência em uma charqueada. O que para outros seria uma rotina, para o gênio de Pedro foi uma oportunidade de expandir sua veia literária e também o profundo sentido de injustiça social que acontecia na sociedade gaúcha. Daí saiu uma obra prima! Os manuscritos estavam prontos e Pedro remeteu a Jorge Amado, que estava no Rio de Janeiro, para que esse opinasse sobre o futuro livro. A carta de resposta remetida do Rio de Janeiro está no livro em que Ernesto lembrava o pai e publica o teor da carta de Jorge Amado. Foi durante o carnaval de 1936, Jorge Amado estava com Osvaldo de Andrade na livraria José Olimpio e, foi de lá que redigi a carta. Depois de tecer considerações sobre o conteúdo da obra que gostou, diz ter uma implicância com o nome sugerido por Pedro e é enfático: “vocês aí do Sul tem um nome tão forte como “Charque”, porque não usa esse nome para o livro? Aliás, o Osvaldo de Andrade que está aqui do meu lado, diz que coloques Charque com X, como era antigamente, aí fica mais forte ainda.” Como vemos, Pedro Wayne seguiu a sugestão dos amigos escritores (e que escritores!) colocando o nome do seu livro de Xarqueadas com X. Danúbio, amigo de Ernesto, filho de Pedro e também grato a Pedro pelo apoio e também pelas crônicas muito favoráveis que este fez a ele e a sua primeira exposição em Bagé. Então denominou seu trabalho no saladeiro São Domingos de Xarqueadas. São as xilogravuras que conhecemos que hoje estão nas melhores galerias do Brasil, sendo uma glória para o Rio Grande do Sul e para seu autor. São suas cópias que o Museu do Charque leva as escolas de Pelotas, percorrendo várias cidades gaúchas, mostrando o trabalho dos homens das charqueadas, resgatado em arte perene pelo maior artista plástico gaúcho do nosso tempo, Danúbio Gonçalves. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 21
  • 22. Logomarca do Clube de Gra- Ferramenta para xilogravura vura de Porto Alegre em madeira de topo Danúbio Gonçalves gravando com buril em madeira de topo (1988) 22 José Antonio Mazza Leite
  • 23. Introdução A amizade é um presente dos deuses, diziam os gregos e, qualquer pessoa que partilhe desse sentimento com seus semelhantes, compreende como é profundo esse pensamento. Assim, que em um dos tradicionais almoços de quarta-feira, no apartamento de Marisa Querubini, no Moinho de Vento, em uma garfada do delicioso macarrão de Marisa, Danúbio Gonçalves me perguntou: “tu não achas que poderíamos fazer uma nova edição, do teu livro Charquedas em cores.” Respondi que achava ótimo que queria fazer uma nova edição colocando textos que me pareciam pertinentes para um livro mais completo sobre esse assun- to, que é fascinante. Em cores tudo se torna mais atraente. Passadas algumas, semanas Danúbio me convidou para ir a sua casa e me apresentou a versão colorida do “Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História”. Era uma colaboração de inestimável valor. A partir desse empurrão amigo, fui à procura de textos que poderiam enriquecer essa nova terceira edição. Os artigos de Carlos Reverbel, escritor e cronista que tive o prazer de manter uma boa amizade, pareceram-me uma ótima inclusão pois Carlos Reverbel viven- ciou a época dos artistas de Bagé e de Pedro Wayne como político, repórter e escri- tor. Assim, Carlos Reverbel tinha que participar da nova edição. Também um conto que ele que me indicou para ler: “Saudade de Viver”, de Vieira Pires, que mostra o comportamento dos bovinos frente ao destino inexorável que se desenha na faca que os espera no final do corredor do brete. Nesse conto impactante, transformam-se os atores e temos o comportamento humano frente ao destino inexorável da morte. Esse conto está no livro “Entrevero” que Carlos Reverbel organizou e foi editado pela LPM e também uma série de fotos das char- quedas do século XXI. as charqueadas do século XXi Coloquei também a situação das charqueadas remanescentes nesse final de 2010. Continuam sendo uma atração marcante para a cidade. Sua bela arquitetura portuguesa, realçada por novas pinturas, mantendo sua estrutura, estão prepara- das para acolher as novas gerações de pelotenses. Os universitários fazem festas de formatura em suas dependências. Novos casais ali começam suas vidas. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 23
  • 24. Esses locais de macabra memória foram vitalizados para acolher os belos mo- mentos da vida, como festas, casamentos, formaturas etc. O progresso da cidade e de suas universidades atinge o centro saladeril. O turismo vai procurá-las e festivais com a gastronomia do charque são rea- lizados pelos restaurantes locais. As charqueadas do século XXI pedem passagem. Também entram nessa nova edição as documentações fotográficas de Wolfgang H. Harnich Jr., feitas na década de cinquenta e constituindo uma bela documenta- ção da iconografia da cultura da época das últimas charqueadas, fotos da mesma época em que Danúbio Gonçalves desenhava na charqueada São Domingos. José Antônio Mazza Leite Carneador assentando o fio da faca com a chaira 24 José Antonio Mazza Leite
  • 25. A Charqueada HisTorioGraFia sobrE a CHarQUEaDa os viajanTEs Muitos olhares direcionaram-se para as Charqueadas no decorrer do tempo, mas foram os viajantes quem primeiro as descreveram, como negociantes, jornalistas, biólo- gos, artistas, um médico e um bispo. Mais recentemente, as teses de mestrado também privilegiaram o charque e as Charqueadas. O método de charquear que veio dos Andes e era elaborado com carne de lhamas e alpacas, tomou outra dimensão com a introdu- ção do gado bovino europeu. Sobre a vinda do inglês John Luccock ao Brasil, em 1809, uma curiosidade nos é contada pelo historiador Mário Osório Magalhães. John Luccock teria vindo ao Rio de Janeiro em 1809, com a ilusão de fazer grandes negócios no comércio da lã, cutelaria e ferragens. Porém, o comércio desta cidade já estava abarrotado de patrícios seus, que trouxeram o mesmo tipo de mercadoria. Por isso, decidiu viajar para o Sul e aproximar- se das colônias espanholas. Os tecidos de lã eram muito mais apropriados para Buenos Aires e Rio Grande do Sul do que para o Rio de Janeiro. O inglês esteve na Capitania durante o período de dois meses, quando conheceu as cidades de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas que, nessa época, era apenas um distri- to da Vila de Rio Grande, sem autonomia administrativa ou concentração populacional. lUCCoCk Luccock (1951, p.139) percorreu a região da Fazenda de Pelotas e admirou- se com o tamanho da propriedade, comparando o rio São Gonçalo ao Tâmisa de Londres. No Passo dos Negros, descreve uma imensa mangueira com uma grande paliçada para conduzir o gado rio a dentro. A casa, caiada de branco, ficava em local elevado, tendo como fundo o verde escuro das matas. As habitações eram encontradas em pontos esparsos, tendo, algumas, “pretensões ao luxo”, com capelas anexas. Junto à casa principal, havia um casario menor destinado aos agregados, escravos e ao pobrerio. Assim é que, antes de se formar o núcleo ur- bano, como podemos constatar pela narração, as Charqueadas já eram comuns “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 25
  • 26. na região de Pelotas. Sobre esta esteira econômica e social, erguer-se-ia, logo depois, o núcleo da futura cidade. Luccock admirou-se com o número de reses abatidas por um indivíduo, 54 mil cabeças de gado, e a original pilha de ossos que “ultrapassam tudo quanto me era dado imaginar” e que depois de limpos eram transformados em cal. Quanto ao abate dos animais, dá-nos um relato sucinto e objetivo: A denominação Charqueadas provém do charque que esse distrito pre- para e exporta [...] uma vez morto e esfolado o gado, arranca-se a carne dos flancos numa só peça larga, semelhante a um pano de toucinho; sal- pica-se em seguida ligeiramente com sal e seca-se ao sol. Nesse estado, constitui o alimento vulgar dos camponeses das partes mais quentes do Brasil, não sendo nada de se desprezar e, como se conserva por longo tempo, constitui excelente provisão de bordo, suportando transporte para distintas regiões do mundo. (Luccock, 1951, p. 139). Essa descrição concisa, embora sem a riqueza de detalhes da que foi feita an- teriormente por Francisco Millau sobre uma Charqueada de Buenos Aires, em 1772, mostra que a técnica, nesses 38 anos (1771-1809) pouco mudou e que, no decorrer do séculos XIX e XX, a matança não sofreu grandes alterações. Todos os viajantes referem-se às Charqueadas, pois a formação do sítio urbano deveu-se a razões econômicas e não a propósitos políticos ou acampamentos militares. Com o estabele- cimento das Charqueadas, formou- se a riqueza que veio propiciar a construção do sítio urbano. O método de charquear já era bem conhecido no Rio Grande do Sul antes da vin- da de Pinto Martins. Porém, foi em Pelotas que as Charqueadas fixaram-se com suces- so, trazendo grandes progressos à região durante os séculos XVIII e XIX e nas primeiras décadas do século XX. josé CaETano Da silva CoUTinHo Bispo do Rio de Janeiro, em visita pastoral ao sul, em 1815, foi o primeiro Bispo a visitar o povoado. Aqui, viu algumas manadas de gado chegando às Charqueadas e escreveu em seu diário: Cheguei aqui ao sol posto, no meio de um luzido acampamento de sa- cerdotes, de militares, de negociantes, piquetes de milicianos e um des- tacamento da Legião de São Paulo, que aqui se acha. No dia 8 de dezem- bro, às onze horas, dei a minha entrada sem pálio nem Irmandade, que não há; e depois dos atos de costume, preguei muito sobre o espírito da minha visita (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.17). E, com mais detalhes, acrescenta: Vi algumas manadas de gado nestas vizinhanças que vinham do interior para as Charqueadas, que ocupam algumas léguas nesta banda d’água. Uma Charqueada é um grande matadouro com alguma ordem nas suas carniçarias. A atmosfera seca e mui ventosa, concorre para facilidade destas operações. Alguns dias senti aqui frio, e noutros, ventos furiosos do nordeste e sudoeste. (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.19). 26 José Antonio Mazza Leite
  • 27. é significativo que este bispo sempre se refira à Freguesia de “Pelotas” e não de São Francisco de Paula, nome dado à futura cidade, graças ao alvará conferido por Dom João VI, em 1812. Assim, conclui-se que o nome Pelotas impunha-se sobre o nome oficial. Porém, oficialmente, somente após vinte anos, ou seja, em 27 de junho de 1835, o nome de Pelotas substituiria o da Vila de São Francisco de Paula. Saint-Hilaire Por ocasião de sua viagem ao Rio Grande Sul, em 1820, Saint-Hilaire descreve não só a geografia local, como também o povo e seus costumes. Observou: Tenho o projeto de ir daqui, por água, a uma aldeia nova e muito florescente, situada junto ao Rio São Gonçalo, canal que liga a lagoa Mirim à dos Patos, acompanhando nessa viagem um charqueador chamado Chaves no qual surpreendi um dos homens mais compe- tentes da região. (Saint-Hilaire, 1974, p. 63). Na viagem de Rio Grande para Pelotas, partiu em uma lancha que o levou até o iate do Sr. Chaves. Saint-Hilaire descreve a viagem como sendo muito agradável por ser o Sr. Chaves: [...] um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem. Pertence à classe dos char- queadores ou fabricantes de carne seca. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67). Em 6 de setembro chegam à casa de Gonçalves Chaves, onde Saint-Hilaire atem- se a todos os detalhes. No gramado da residência, ele observou várias fileiras de grossos paus fincados na terra, sendo cada um deles terminado por pequena forquilha. Essas forquilhas recebiam varões transversais destinados a estender a carne para secar. Ao lado desses secadouros, existia o edifício onde se salgava a carne e onde se achava construído o reservatório, denominado tanque. Quando o animal é abatido, retalham-no, salgam os pedaços e colo- cam no tanque onde se impregnam de salmoura. Ao fim de 24 horas vão para os secadouros, onde ficam durante 8 dias, quando há bom tempo a carne seca não se conserva mais de um ano. é exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67). De acordo com seu relato, durante o inverno o gado emagrece; no verão, porém, logo que os campos se cobrem de pastagens, ele engorda. Por isso, em novembro já começam as Charqueadas que vão até o mês de abril ou maio. A região que se estende entre o rio Pelotas, o rio São Gonçalo e a paróquia de São Francisco de Paula, pertencia aos charqueadores. Isso facilitava tanto para a engorda do gado nas pastagens situadas ao sul do Jacuí, como para a exportação da carne seca e dos couros por iates que navegavam pelo arroio Pelotas e pelo canal São Gonçalo, na época conhecidos como “Sangradouro”. Escreve então: “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 27
  • 28. A localização dos charqueadores à margem do rio São Gonçalo deu lugar à formação da paróquia de São Francisco de Paula. (Saint-Hilai- re, 1974, p. 69). Confirmando que primeiro surgiram as Charqueadas e depois o núcleo urba- no, continua ele: [...] apesar de ter cessado, há meses, a matança nas Charqueadas, sente-se ainda nos arredores um forte cheiro de açougues, donde se pode fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matan- ça. Nessa época, dizem, não se pode aproximar das Charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa multidão de animais decapitados, o sangue a correr aos borbotões, a prodigiosa quantidade de carne exposta nos secadouros, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor. (Saint-Hilaire, 1974, p.74). jEan bapTisTE DEbrET Jean Baptiste Debret, quinze anos depois, descreveu e pintou as Charqueadas, e também São Francisco de Paula. Foi pintor da Corte que veio com a Missão France- sa, em 1816, para o Rio de Janeiro. O quadro mais popular sobre o panorama externo do trabalho de uma Charqueada é dele. A Charqueada de Debret, que ele denominou “engenho de carne seca”, é um dos mais completos estudos sobre o funcionamento desses estabelecimentos. é extremamente didático. Mostra desde o abate do bovino, até o embarque das mantas em uma escuna atracada junto à Charqueada. é nela que podemos ver o estreito canal, vermelho de sangue, que desaguava no rio. As graxeiras, os grandes panelões, os escravos em movimento nas atividades de estaquiar os couros, carnear, levar as mantas salgadas. O autor foi extremamente bem informado sobre o funcionamento de uma Charqueada. Porém, a cancha de carnear, por localizar-se no in- terior dos galpões, não foi representada na tela de Debret. Coube a Danúbio Gonçalves completar esta obra, fazendo as xilogravuras dos trabalhos na cancha, cento e dezoito anos depois, na Charqueada São Domingos, em Bagé – o foco do meu trabalho. Segun- do o historiador Mário Osório Magalhães, Debret fez seis aquarelas conhecidas sobre Pelotas que nada ficam a dever às que pintou sobre o Rio de Janeiro. As duas que constam da Viagem Pitoresca e Histórica (“Canoa brasileira de couro” e “Viajantes da Província do Rio Grande do Sul”) estão devidamente assinadas e da- tadas de 1823. Uma terceira que mostra o abate do gado num potreiro de Charqueadas, embora assinada, não tem data. “Engenho de Carne Seca”, embora datada de 1825, não tem assinatura e a “Passo Rico no São Gonçalo”, não tem data nem assinatura. Igualmente, sem data nem assinatura chama-se “São Francisco de Paula”, que retrata uma cena de campo, divisando-se, ao fundo, a pequena freguesia. Debret assim descreve uma Charqueada, que ele chama de “Engenho”: A carne seca é um alimento de primeira necessidade no Brasil, pre- para-se na Província do Rio Grande do Sul, conhecida pelo número 28 José Antonio Mazza Leite
  • 29. de Charqueadas, situadas em grande parte na margem esquerda do rio de São Gonçalo, rio que facilita a exportação considerável desse comestível feita a bordo de iates e sumacas, pequenos navios de ca- botagem, empregados no abastecimento dos portos do Brasil e do Chile. (Debret, 1940, p.242). A descrição, abaixo, retrata o que se vê na litografia, que reflete completamente sua ideia: A Charqueada, vasto estabelecimento em que se prepara carne sal- gada e secada ao sol, reúne dentro dos seus muros o curral, onde se mantém os bois vivos, o matadouro, a salgadeira, edifício em forma oblonga, o secadouro, vasto campo eriçado de estacas entre as quais são esticadas cordas, e as caldeiras, bem como os fornos abrigados sob um barracão espaçoso. Toda essa fábrica é dominada por um pequeno platô no qual se ergue o edifício principal, habitada pela família inteira do charqueador. (Debret, 1940, p.242). Depois de explicar o processo de secagem do charque, ele dirige sua atenção às mangueiras. O curral é um cercado de seis a sete pés de altura mais ou menos, e formado pela reunião de grande quantidade de troncos colocados uns ao lado dos outros e no qual se abre uma entrada fechada por uma porteira. Um pequeno corredor de doze pés de comprimento por quatro de largura, une o curral ao matadouro, as cercas constru- ídas da mesma maneira que as do cercado, mais espesso, porém, e com somente 5 pés de altura, servem de passagem elevada para o negro encarregado de laçar os chifres do boi que deve ser puxado para o corredor. A outra extremidade do laço, amarrada a uma ma- nivela, força o boi a aproximar-se pouco a pouco do matadouro e colocar a cabeça no lugar em que deve receber o golpe que o abate. (Debret, 1940, p.242). Continua o autor: Já colocado sobre o palanque de um guindaste giratório, o animal é suspenso imediatamente e levado para o local em que deve ser es- corchado, operação preliminar depois da qual retiram de cada lado e num só pedaço toda a parte carnuda, desde o maxilar e até a coxa; essa parte é transportada em seguida para a salgadeira, juntamente com outros pedaços muito menores. O resto do boi, semi-descarna- do, é reservado a outro destino. (Debret, 1940, p.243). Explica, com mais detalhes, o salgamento da carne e fala do pequeno canal de esgoto que levava água e sangue para o rio. A salgadeira é um rés-do-chão bastante espaçoso, coberto, de forma oblonga, inteiramente guarnecido, de cada lado e em todo o com- primento, por dois balcões inclinados sobre os quais se estendem “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 29
  • 30. os pedaços de carne a serem salgados. Calhas de madeira aderen- tes aos balcões recebem as águas da salgação e as conduzem a um pequeno esgoto descoberto, destinado ao escoamento do sangue; um filete de água viva lava continuamente esse pequeno canal que deságua no rio. (Debret, 1940, p.243). é interessante, como assinala Magalhães (2000), que Debret escreva que as ne- gras trabalhavam nas Charqueadas nos serviços mais minuciosos e, também, que o Rio Grande do Sul – leia-se Pelotas – era responsável, além do couro que exportava para o mundo inteiro, pela produção da maior parte da carne seca ou charque brasileiro, ali- mento de toda a população negra e indigente. Assim, essa descrição do “engenho de carne seca” é, sem dúvida, a descrição da sua litografia sobre uma Charqueada em plena atividade. Desde os varais, os galpões, as roldanas, em que cordas suspendem o bovino, até o filete de sangue que corre pelo canal, desaguando no rio, levando detritos e os líquidos tintos de sangue, estão na des- crição de Debret. Também estão as pirâmides de charque cobertas pelos couros, a em- barcação esperando para ser carregada e a atividade dos negros escravos, na incessante lida da Charqueada que ele chamou de “engenho de carne seca”. niColaU DrEys Negociante e escritor francês, lançou seu livro “Notícia Descritiva da Provín- cia do Rio Grande”, em 1839, durante a Revolução Farroupilha, certamente para aproveitar o interesse das pessoas das outras províncias sobretudo da corte no Rio de Janeiro pela Província que se rebelava em armas contra o Império. Dreys viveu quase dez anos no Rio Grande do Sul e boa parte deles na região de Pelotas. Ele dividiu seu livro em três partes: a geografia, o núcleo urbano e a população. As des- crições sobre o modo de charquear a campo coincidem com a gravura de Debret, relatando, minuciosamente, o processo de charquear e as condições dos escravos que trabalhavam nas Charqueadas. Segundo Magalhães, [...] podemos convir que “Notícia Descritiva” de Nicolau Dreys é o primeiro trabalho de grande divulgação sobre a gente e cultura do Rio Grande do Sul. (2000, p. 87). A descrição de Dreys, sobre a técnica de matança usada nas Charqueadas pelo- tenses, mostra que pouco mudou nas diferentes fases da operação. Primeiro, descreve o modo de matar o gado em campo aberto: Os peões montam a cavalo; um deles estimula o animal recolhido num curral aberto, agitando ante seus olhos o poncho colorado e quando o novilho exasperado lança-se afinal sobre o agressor e en- tra a persegui-lo; outro peão, armado de uma lança comprida cujo ferro tem o feitio de meia lua, corre atrás do boi e corta-lhe o jarre- te, abandonando-o logo que cai, para ir atrás de outro boi, também excitado pelos mesmos meios; enquanto isso, um camarada ou um negro escravo toma conta do animal caído e sangra-o: esse método não é sem perigo, mas, por isso mesmo, agrada aos hábitos aventu- rosos dos gaúchos. (Dreys, 1990, p. 97). 30 José Antonio Mazza Leite
  • 31. Desjarretamento, cortando o jarrete do bovino com lança, que em seguida é sangrado - Debret Há uma pintura de Debret, em que se pode ver, exatamente, a cena descrita por Dreys. Sobre os charqueadores comenta: [...] homens tão esclarecidos como são em geral os charqueadores do Rio Grande, não poderiam deixar de chamar a indústria em auxílio de seus tra- balhos, tanto para economizarem os braços, como para minorarem, quanto possível, não somente o perigo, como também as repugnâncias insepará- veis do ato e das consequências da matança. (Dreys, 1990, p. 97). Completa, dizendo que: [...] hoje em dia, nas Charqueadas mais bem organizadas, matam- se os bois por um método mais expedito, mais seguro e menos cruel. (Dreys, 1990, p.87). Dreys fala nas Charqueadas mais organizadas, ou seja, as que abatem de uma forma racional e com planejamento industrial. é verdade, porém, que os dois tipos de carnear, o ‘industrial’ e o ‘a campo’ conviveram durante quase todo o século XIX. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 31
  • 32. O gado fechado no curral é impelido na direção de dois corredores, separados um do outro por uma espécie de esplanada, levantada a sete ou oito palmos do solo; um peão, de pé em cima dela, lança no boi, que aparece nesses corredores, um laço cuja extremidade está atada, fora do recinto, num cabrestante posto em movimento por uma roda de ferralho (trinquera) manejada por dois negros: quando o boi, puxado pelo laço, chega a encontrar-se com a cerca contra a qual a cabeça se acha comprimida, uma pessoa (ordinariamente um capataz) que o espera exteriormente, introduz-lhe a ponta da faca nas primeiras clavículas cerebrais, donde resulta ficar o boi espon- taneamente privado de movimento; nesse estado, um guindaste, rodando sobre seu eixo, eleva o animal asfixiado para fora do curral por cima do cercado, e o transporta para debaixo de um telheiro, sobre um lajeado disposto em segmento de esfera, onde se sangra, sem que, graças à disposição bem entendida do lugar, a operação deixe depois quase vestígio nenhum. (Dreys, 1990, p. 98). Observa-se que tanto Dreys quanto Debret falam das roldanas e da introdução da faca nas primeiras clavículas. é interessante observar que Saint-Hilaire, mesmo não estando presente durante as matanças, mas que sentiu o cheiro de carniça, vaticinou ser ele insuportável. Já seu patrício, Dreys, que certamente viveu muito mais tempo em Pelotas, foi um defensor do odor almiscarado desses estabelecimentos. Sendo os dois franceses, presume-se que sejam conhecedores dos mais finos odores. Essa diferença de opiniões é, no mínimo, curiosa. Nas suas descrições, Dreys segue a linha de Debret, ou de Francisco Millau. é um detalhamento repetitivo dos diferentes estágios a que o charque é submetido. Esgotada que seja, a carne é levada do salgadeiro para os varais, assim se denomina uma grande extensão de terreno plantado de espeques arruados, de 4 a 5 palmos de altura, atravessados por varas compridas em que se sustentam as mantas para secarem-se pela ação do sol e dos ventos; quando se receia alguma chuva repentina, o toque de um sino chama, para os varais, todos os negros da Charqueada, e coisa curiosa é ver como num instante a carne amontoada por porções nos mesmos varais se acha escondida debaixo de couros que não permitem o menor acesso às águas do céu. (Dreys, 1990, p.98). A quantidade de ossos, que secavam ao relento, fazem a admiração do francês. O estrangeiro que chega pela primeira vez às Charqueadas avista com admiração paredes extensas tão brancas como alabastro; meio século mais tarde, se o destino o levasse ao mesmo lugar, havia de achar as mesmas paredes com a mesma alvura: é uma matéria que o tempo rói sem a sujar; são os ossos entrelaçados com arte e solidez, sem pedra nem cal, de maneira, todavia, a formarem uma cerca contínua capaz de opor-se mais eficazmente que qualquer outra aos esforços do gado recolhido nos currais que circunscrevem. (Dreys, 1990, p.99). Dreys é a exceção da regra, ao elogiar o cheiro das Charqueadas. “Almiscarado”, diz ele. 32 José Antonio Mazza Leite
  • 33. O certo é que, fora da estação da matança e nesta mesma estação, fora das horas do trabalho, uma Charqueada não tem nada que repugne à vis- ta; e sempre diremos, em abono da verdade, que, em tempo nenhum, num estabelecimento desses bem administrado, nada se acha que ofenda o olfato, não dizemos de um sibarita, mas de qualquer homem não pre- venido nem efeminado. Certamente as emanações produzidas por tan- tas matérias animais de natureza e preparações diversas não deixam de produzir estranha impressão à primeira vez, porém nunca incomodam, e ainda menos são letais; e aqueles que nas Charqueadas se demoram alguns dias, não tardam em ver chegar o momento em que a combinação de todos esses eflúvios heterogêneos determina uma sorte de sensação agradável, mormente quando se lhe ajunta, como acontece nas aproxi- mações de quase todas elas, o singular e intenso cheiro de almíscar que deixa o gado em todos os currais em que estaciona. (Dreys, 1990, p. 99). é de Nicolau Dreys a frase que orgulha todos os pelotenses e que Fernando Osó- rio usou na abertura do livro A Cidade de Pelotas: “[...] eles quiseram que o lugar pros- perasse, e o lugar prosperou” (Dreys, 1990, p. 102). miCHaEl mUlHall Em Buenos Aires, possuía um jornal editado em língua inglesa, o semanário “Standard”. A fama do jornal chegou ao Rio Grande de São Pedro e a colônia britânica o convidou para visitar essa progressista Província, onde as companhias inglesas vinham investindo. Quando chegou a Pelotas, em 1871, chovia muito. Para ir ao centro da cida- de, teve que atravessar banhados até encontrar uma grande praça, hospedando-se no Hotel Europa. Pelotas tinha, então, 12 mil habitantes e um ar de opulência por saber-se o prin- cipal centro de produção e exportação nesta região do Brasil. Mulhall admirou-se da hospitalidade, do espírito empreendedor dos brasileiros (pelotenses), que pareciam ianques por serem muito vivos nos negócios empreendedores e ótimos comerciantes. Acrescentou que a maioria dos estrangeiros que vem a Pelotas progridem e, des- ta forma, admirou-se por não haver colonos ingleses. Depois de algumas considerações sobre a cidade, o jornalista acrescenta que quem quiser visitar uma Charqueada em funcionamento, o que: [...] a meu ver, é uma das visões mais revoltantes que se possa ima- ginar. A rês é morta, cortada e a carne e o couro são pendurados para secar, quase no mesmo tempo que levo para descrever a cena. Os peões ficam empapados de sangue, o chão transforma-se num mar vermelho, o cheiro é o que seria de se esperar nesses matadou- ros gigantescos, e miríades de moscas infectam o local. Entretanto, dizem que, quando as pessoas se acostumam, é uma ocupação in- teressante e agradável, e a experiência mostra que as Charqueadas são lugares saudáveis de se frequentar. (Mulhall, 1974, p.137-138). Neste ponto, o jornalista irlandês concorda com o comerciante francês Nicolau Dreys, que não achou nada enojoso o ambiente das Charqueadas. Por outro lado, vê-se pela descrição que Mulhall esteve no interior dos galpões onde os carneadores atuavam. Sua visão é a mesma que, onze anos após, vai ter o ame- “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 33
  • 34. ricano Herbert Smith: homens banhados de sangue e os animais berrando. Danúbio, ao visitar a Charqueada São Domingos, oitenta e três anos após, lembrou o Inferno de Dante e as cenas dramáticas das águas fortes de Goya (Caprichos) e de Pirinesi (mas- morras) e, assim, a descreve: Algo dantesco plasticamente. Próximo das gravuras de Piranesi ou dos caprichos goiescos. Entusiasmado, fiz uma série de xilogravuras de topo, que muito surpreenderam. Expostas no Chile, vistas por Diego Rivera, foram elogiadas pelo grande pintor mexicano em entrevista a uma revis- ta nossa. (Gonçalves, 1995, p.50). o TrabalHo DE loUis CoUTy Le mate et les conserves de viande, publicado em 1880, constitui-se em um dos clássicos da historiografia da erva mate e, particularmente, do charque. é um estudo científico, de manuseio obrigatório para todos aqueles que têm interesse em compre- ender as relações concretas de produção da região platina. Um dos destaques é, justamente, o método comparativo que Couty utiliza, ado- tando o caráter científico nos seus objetivos de estudo. Nesse aspecto, ele se diferencia de outros “viajantes” que, de modo geral, preocupavam-se, apenas, com o ilustrativo e o pitoresco em suas considerações. é de se observar que Couty veio a esta região com a finalidade específica de fazer um estudo sobre o charque. Contratado pelo Ministério da Agricultura do Império, trouxe uma metodologia francesa e vários títulos científicos. Traçando algumas observações sobre a matança dos bois, Couty refere-se a uma “zorra sobre os trilhos”. A mangueira figura, com bastante exatidão, o plano de dois troncos de cone encostados em uma larga base: um dos vértices corresponde ao curro ou brete: o outro mais importante é aquele onde os bois vão ser sucessivamente mortos. Neste lugar, o chão da mangueira continua com uma zorra móvel sobre os trilhos. (Couty, 2000, p.96). Interessante é que nem Dreys nem Debret falam da zorra, e sim de guindastes com roldanas puxadas por cavalos que levantavam o boi. São as descrições da primeira metade do século XIX, antes da Revolução Farroupilha. Já para Couty, depois Herbert Smith e as descrições que se seguem, inclusive de Antenor Peixoto de Castro e Danúbio Gonçalves, a zorra é parte importantíssima da téc- nica de transporte do boi para ser carneado. Acredito que, como a rapidez era um fator básico para o bom funcionamento do processo de carnear, a zorra cumpria essa finalidade com muito maior eficiência do que o guindaste. Uma vez o animal laçado, é suficiente puxar a corda para que o boi seja arrastado por alguns metros sobre o chão deslizante, e venha colocar-se diretamente sob a mão de um segundo operário (às vezes, o mesmo) o matador ou “desnucador”. “[...] que só tem que enterrar de alto a baixo um longo facão, muito resistente e mal afiado, entre o atlas e o occipital para o bulbo” (Couty, 2000, p.96). Todas essas manobras duraram apenas um minuto, dois no máximo, já que se podem matar até 1200 bois em menos de dezoito horas, e a mé- dia das matanças diárias varia conforme os saladeiros, entre 200 e 1000. Imediatamente após o golpe de facão, o boi cai, bruscamente, como 34 José Antonio Mazza Leite
  • 35. que fulminado sobre a vagoneta: levanta-se a porta vertical que fecha a abertura da mangueira, e arrasta-se o vagão e o boi sobre os trilhos. Após alguns segundos, ou 1 a 2 minutos de imobilidade completa, este boi pode, em alguns casos, apresentar movimentos variados, irregu- lares, dos membros; nestes casos excessivamente raros, e ele poderia mesmo levantar-se, mas mesmo assim, quase sem forças, ele não tarda a cair de novo. (Couty, 2000, p.97). Danúbio conta que chegou a ver um boi levantar-se, dar alguns passos e, logo, cair. Antenor afirmou que, mesmo sem a cabeça, o animal continuava debatendo-se. A ferida feita pelo facão nos órgãos nervosos tem sido, também muito variável, como fiquei convencido em Pelotas e Montevidéu por autópsias bastante numerosas, cujos detalhes serão publi- cados em outro trabalho: às vezes, a medula é completamente cortada; outras vezes, ela é simplesmente puncionada. [...] O que quer que seja, qual seja o ponto atingido desta região bulbo-me- dular, o animal cai: ele está morto, mesmo que capaz ainda de contrações reflexas dos membros e conservando seus movimen- tos cardíacos, e mesmo, às vezes, alguns “esforços” diafragmáti- cos respiratórios. (Couty, 2000, p.97). Na xilogravura “A Espera” (p.118), o charqueador, da extrema direita, traz em sua mão um objeto longo e curvo. é uma cartilagem da rabada, que os próprios operários usavam para destruir as terminações nervosas, colocando-a no local da ferida provoca- da pela faca, mexendo-a para, com isso, paralisar os safanões dos membros dos bovinos abatidos. Esta era a forma como obtinham segurança para evitar acidentes de trabalho. Sobre a transformação do boi em charque, Couty, narra: O boi caído sobre o vagão e arrastado é, em seguida, deposita- do sobre um piso de tijolos, levemente inclinado: são as “can- chas”. Elas são construídas de um só lado ou dos dois lados dos trilhos, recobertas, quase sempre, por um hangar e contíguas à mangueira. Uma vez em terra, ele aí é tirado, seja por dois ho- mens, seja, como em Fray-Bentos por uma corda fixada a uma das duas partes da frente, e puxada por um homem a cavalo, o boi é imediatamente despojado do seu couro. Faz-se uma incisão e esfola-se primeiro a cabeça; depois, quando se chega ao pescoço, ou às vezes, mesmo desde o início, se o animal se agitar, sangra- se cravando o facão até o coração. Esta sangria é constante; ela é indispensável, porque termina de matar animais dos quais alguns teriam podido viver ½ hora a mais, e sobretudo porque, sem a sangria, a carne seca mal e tem uma cor ruim. Entretanto, esta sangria dá pouco sangue, seguramente muito menos que em um animal normal, cerca de 12 a 15 quilos para um boi de tamanho médio. (2000, p.98). Essa operação é citada por Peixoto de Castro ao narrar que, em Pelotas, na Char- queada do Coronel Pedro Osório, usava-se um tipo de balde para aparar o sangue que seria utilizado, posteriormente, no preparo de adubo. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 35
  • 36. Acaba em alguns minutos de tirar o couro: o animal tem, muitas ve- zes, reflexos muito marcados, mas irregulares, às vezes ele ensaiará gritos afônicos: ele terá durante a hemorragia, convulsões, ou me- lhor, abalos não coordenados dos membros, e já terá sido carneado pela metade. Estes operários cobertos de sangue, que se agitam em todos os sentidos, estes 30 ou 40 bois esfolados e ainda vivos, sen- tindo o facão e não podendo reagir, mugindo e não podendo se fazer ouvir, procurando levantar-se e só conseguindo executar safanões desordenados, oferecem ao artista um curioso quadro, ao fisiolo- gista, interessantes temas de estudo, e também aos filantropos que preferem os animais aos homens, uma reforma para tentar. (Couty, 2000, p. 98). HErbErTT HUnTiG smiTH Suspendendo a narração técnico-científica e permitindo que a emoção dite suas palavras, o Dr. Couty situa-se diante de um quadro dantesco. O artista Danúbio Gon- çalves mostra que também foi tocado pelo “curioso quadro” quando perpetuou essas cenas na sua série “Xarqueadas”, conforme consta no terceiro capítulo deste trabalho. Devido a uma grande seca que se abateu sobre o Ceará, em 1877, veio ao Brasil o especialista em geologia e geomorfologia. Sua missão era fazer a cobertura, para um periódico norte-americano, da seca e das epidemias que se propagavam pela região do nordeste. Smith tornou-se amigo de Capristano de Abreu, tradutor de seus trabalhos. Sua vinda ao Brasil foi estimulada pelo mestre Frederic Hart, da Universidade de Cor- nell. Ele esteve em Pelotas no ano de 1882. Dele, é uma das mais completas descrições sobre a Tablada pelotense, onde o gado era reunido e negociado. Vamos nos ater, porém, a sua descrição sobre o que acontecia na “cancha”. Smith, relata que [...] a matança é feita de manhã. Um laço é atirado na cabeça de um animal escolhido e através de um sistema de roldanas e cordas, puxados por cavalos ou bois, arrastam o animal laçado até que seu pescoço fique ao alcance da mão do desnucador, que levanta um punhal comprido e afiado e embebe-o no pescoço do animal entre o Atlas e o Occipital. Esse golpe não mata o animal instantaneamente, porém priva-o de toda a sensibilidade. O boi cai em um carro de pla- taforma (zorra), que é contínuo com o soalho da mangueira. (Smith, 1922, p. 137). Os desenhos de Danúbio Gonçalves começam a partir daí, como se pode ver no terceiro capítulo deste estudo, a zorra e zorreiros, registra dois momentos dessa operação. Levanta-se uma porta, tira-se rapidamente o carro (zorra), descar- regam-no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro animal que entremetentes foi laçado. A operação inteira, leva cerca de um minuto, e muitas vezes, num só estabelecimento no mesmo dia matam-se 600 a 700 animais. (Smith, 1922, p. 138). 36 José Antonio Mazza Leite
  • 37. A morte definitiva do boi é narrada da seguinte forma: As operações restantes são quase sempre efetuadas por escravos. Esfo- la-se o couro, abre-se o pescoço e enterra-se uma faca no coração que ainda bate. Acabada a esfolação tira-se limpadamente a carne dos ossos e são cortados em oito pedaços, que são lançados em estacas horizon- tais onde dois trabalhadores hábeis recortam e retalham-na então, de maneira que cada pedaço fica reduzido à espessura uniforme de cerca de quinze milímetros. (Smith, 1922, p. 139). Completa, então: “Para essa operação emprega-se o verbo charquear e dele de- rivam os substantivos, charque, charqueada, charqueador” (1922, p.102). Smith também não se furtou de expor sua visão sobre o ambiente onde se pro- cessavam as operações de Charqueada: Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo de cativador nestes grandes matadouros; os trabalhadores negros, seminus, es- correndo sangue; os animais que lutam, os soalhos e sarjetas corren- do rubros, os feitores estólidos, vigiando imóveis sessenta mortes por hora, os montes de carne seca dessorando das caldeiras, a con- fusão, que entretanto é ordem: tudo isso combina-se para formar uma pintura tão peregrina e tórrida quanto pode caber na imagina- ção. De toda essa carnificina originou a riqueza de Pelotas, uma das mais prósperas entre as cidade menores do Brasil. (1922, p.100). Suas descrições sobre o trabalho dos homens, no interior dos galpões, são im- pactantes. Ele escreve: “[...] tudo isso combina-se para formar uma pintura tão pere- grina e tórrida quanto pode caber na imaginação” (Smith, 1922, p.100). As imagens, tanto para Couty como para Smith, foram fixadas, graças às xilogravuras de Danúbio Gonçalves na Charqueada São Domingos. Pela descrição acima, parece que o biólogo norte americano antevê como um artista poderia fazer uso da vigorosa cena. Danúbio, quando a viu, lembrou as gravuras de Pirinese, que teria se inspirado nas tétricas masmorras da inquisição. viTTorio bUCCElli O italiano, em 1905, veio a Pelotas e daqui gostou tanto que fez derramados elogios à cidade. Mas, como disse, seu principal interesse era ver as Charqueadas, con- sideradas o motor econômico do estado e, por isso, dirigiu-se à Charqueada do Coro- nel Pedro Osório. Lá, foi recebido com todas as honras pelo proprietário, então vice- governador do estado, que o levou a acompanhar as diferentes etapas pelas quais que passam os bovinos, até transformarem-se em mantas salgadas. Ao visitar a cidade, Vittorio tinha a incumbência de escrever um livro de propa- ganda para a Exposição Internacional de Milão, em 1906. Suas informações foram cor- retas em vários sentidos pois, na época, Pelotas era a segunda cidade do estado e tanto no charque como no couro estava assentada sua economia. Porém, o panorama geral mudara. A ligação ferroviária Bagé – Rio Grande estava esvaziando o pólo charqueador de Pelotas. Das trinta e cinco Charqueadas que funcio- navam no século XIX, havia apenas nove com um abate de 130 mil cabeças de gado e “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 37
  • 38. não as quatrocentas mil da época de Louis Couty e Herbert Smith. O funcionamento das Charqueadas de Bagé, Quaraí, São Gabriel, além das de Santana do Livramento, foram um duro golpe para o pólo charqueador pelotense. Vittorio refere-se à visita que fez às Charqueadas, destacando a importância da água para seu funcionamento. Tanto as de Bagé, Santana, Quarai e Livramento, como as de Pelotas, estão situadas junto a rios ou arroios. Em Pelotas, há o canal do São Gon- çalo e o arroio Pelotas que cumprem essa função. Continua narrando sua visita ao local. Conforme sua descrição, uma Charqueada constituía-se num pequeno vilarejo porque, além da casa de habitação do proprietário, existiam muitas outras habitações para em- pregados, assim como galpões e diversos locais de trabalho. Buccelli discorre sobre a matança e fala das mangueiras, dos enormes alpendres para depósito dos produtos, caldeiras, depósitos com várias funções, estrebaria, chácaras, além das 200 ou 300 pes- soas que trabalhavam e viviam no local. Fala então da Charqueada que “mais agradou-nos permanecer”: a do Coronel Pedro Osório. pEiXoTo DE CasTro Esta Charqueada tem uma importância bem particular para o autor deste livro, pois é a Charqueada em que trabalhou Antenor Peixoto de Castro, que fez um relato preciso sobre suas atividades desde 1930 até o derradeiro ano de 1939, quando foram encerradas as ma- tanças. Na época, era a Charqueada da Viúva do Coronel Pedro Osório. A viva narração de Antenor mostra o tempo em que seu pai administrou o esta- belecimento, unindo-se a ela uma descrição poética das reminiscências, além de um apurado e limpo relato de todos os diferentes momentos pelos quais passava o animal abatido e as técnicas de preparação do charque. O outro motivo é que, na História de Pelotas, de João Simões Lopes Neto26 , lê-se o seguinte sobre essa Charqueada: Rio São Gonçalo, na margem esquerda, os proprietários foram: Ma- nuel Batista Teixeira, passou ao filho de igual nome, deste a Paulino Teixeira de Costa Leite, deste à Companhia Pastoril Industrial Sul do Brasil, pertence hoje a Pedro Osorio & Cia. (Lopes, 1994, p.31). O Sr. Paulino Teixeira da Costa Leite vem a ser meu bisavô. Só quando fiz este trabalho, percebi que esta era a Charqueada a que meu pai referia-se, por ter pertencido a seu avô. Fui procurar no 1º Cartório de Registro Civil de Pelotas e lá encontrei os seguintes dados: São Gonçalo: situada no Passo dos Negros (margem esquerda do São Gonçalo), fundada por Manuel Batista Teixeira, que a passou ao filho do mesmo nome, deste vendida em 3/10/1885 a Paulino Tei- xeira de Costa Leite - livro 4, folha 207, sob nº 2565 - depois vendi- da à Companhia Pastoril Industrial do Sul do Brasil (7/2/1891 - livro 4ª, folha 354, nº 1392), que a vendeu ao Coronel Pedro Osório em 31/12/1896 - livro 3ª, folha 297, nº 5103. Um estabelecimento de Charqueada, completamente montado, si- 26 LOPES NETO, João Simões, 1865 – 1916. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municí- pios da zona sul: São Lourenço e Canguçu organizada por Mário Osório Magalhães. 38 José Antonio Mazza Leite
  • 39. tuado às margens do São Gonçalo, com casa de moradia, galpões, mangueiras, currais, carroças, carrinhos de mão, balança e demais acessórios. A mesma Charqueada onde o Dr. Antenor Peixoto de Castro viveu e trabalhou quan- do jovem, deixando-nos excelente relato de suas atividades (1930-1939) e que, na época, pertencia à viúva do Coronel Pedro Osório. é o que veremos no Testemunha Ocular. TEsTEmUnHa oCUlar: anTEnor pEiXoTo DE CasTro A descrição do funcionamento da Charqueada, feita por Antenor Peixoto de Castro, adapta-se muito bem aos estudos e xilogravuras de Danúbio Gonçalves. A se- melhança entre os fatos e as gravuras é tal, que as coincidências são dignas de serem mostradas, uma vez que só vão enriquecer este trabalho. Transcrevo, na íntegra, o depoimento: Eu tenho lido, se bem que em poucos lugares, alguns esclarecimentos sobre as Charqueadas de Pelotas. A bem da verdade e para conhecimen- tos definitivo sobre o que acontece em uma “matança”, venho trazer a experiência de quem passou 10 anos dentro de um estabelecimento saladeril. A última “matança” da qual participei deve ter ocorrido entre os anos de 1938 e 1939, não recordo bem, quando durante a safra foram abatidas cerca de 38.000 reses. Tratava-se da firma Vva. Pedro Osorio Cia. Ltda., cuja Charqueada estava localizada no Passo dos Negros, con- tígua ao Engenho São Gonçalo, às margens do Canal do São Gonçalo.27 é o mesmo estabelecimento onde Vittorio Buccelli foi recebido pelo proprietário, o Coronel Pedro Osório. Meu pai foi chamado para administrar o estabelecimento e em 1931, transferimos residência para a casa grande da Charquea- da, com cerca de 1.000 m2 de construção e áreas de quartos que equivaliam a um excelente salão de festas. Ali nos instalamos e permanecemos até 1941, acompanhando as safras que se suce- diam e que movimentavam os trabalhadores do Areal, da Várzea e do Passo, de 1° de janeiro até 30 de junho de cada ano, data fixada para o encerramento da safra. Em 1934, formado Perito Contador, fui admitido como Auxiliar de Escritório da Charquea- da, com a incumbência, entre outras, de acompanhar o andamen- to de todas as matanças. No primeiro dia útil de cada ano a safra era iniciada, encerrando-se, impreterivelmente, em 30 de junho, com a duração, portanto, de seis meses.28 27 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à escritora Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.7. 28 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.1. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 39
  • 40. Neste ponto da narrativa, Peixoto de Castro relembra o antigo apito da Charqueada. As matanças iniciavam entre meia-noite e uma hora da madruga- da, quando deveriam estar a postos todos os empregados, o chamado de... “boi... boi... boi”, ecoava num raio de 5 quilômetros, convocando os operários. A tropa que deveria ser abatida, de propriedade da firma ou de custeio, de 300, 500 ou mesmo de 800 bois, já estava distribuída nos mangueirões interligados, que davam para um pequeno com capa- cidade para cerca de 20 bois. Aí, os animais encostados uns aos outros, aguardavam o laçador-matador, em geral um castelhano de boa cepa, com coragem bastante para desnucar as reses com um pequeno punhal de dois gumes, numa operação que muitas vezes entrava noite a dentro. Quinze minutos antes do início da matança, com o livro ponto debaixo do braço, recorria todos os setores do galpão para anotar a presença dos operários em seus postos, já distribuídos pelo “Capataz da Cancha”. Ali estavam alinhados, esperando o primeiro boi, zorreiros, cambonei- ros, coleiros, carneadores, charqueadores, aguateiros, salgadores, ma- tambreiros, foguistas, mergulhadores de carne e de couros, balanceiros, porteiros, guincheiros, carregadores de ossadas e buchadas, serradores de caracu, resfriadores, graxeiros, eletrecistas, tripeiros, etc e etc.29 Depois de falar sobre o grande número de operários que movimentavam a Char- queada, refere-se as suas instalações. Os tanques, com mais ou menos 6 metros de comprimento, por 1,50m de lar- gura e 1,20 m de altura, já estavam cheios de salmoura, com os medidores de salinidade boiando em seus interiores, um destinado à salga da carne e outro à dos couros. As fornalhas, com as bocas vermelhas escancaradas, iam pouco a pouco transmitindo aos manômetros a pressão das 4 caldeiras destinadas ao preparo da graxa amarelinha, acondicionadas em bordale- sas ou em bexigas, que enchiam os olhos pela qualidade. Montanhas de sal grosso, completamente branco, trazidas por barcos que atracavam nos trapiches da Charqueada, completavam o interior do enorme galpão, que se mantinha absolutamente limpo, aguardando a salga da carne e do cou- ro, para formarem as “pilhas de inverno” que, ao fim da safra, beiravam as telhas, com quase 5 metros de altura. Pela tarde, véspera da matança, as tropas que vinham trazidas pelos tropeiros, passavam pela Balança Muni- cipal (imediações do Parque Tênis Clube) e, em grupos de 50 animais eram pesados, fazendo-se ao final a média de peso da tropa. A seguir eram leva- dos para a Charqueada pela Estrada das Tropas (hoje Avenida São Francisco de Paula) para serem encerrados nos mangueirões.30 Narra, então, como era feita a contagem do gado. Aí, o Capataz da Cancha e mais eu, empoleirados cada um de um lado do portão da mangueira, com algumas pedrinhas no bolso, fazíamos a contagem dos animais componentes da tropa. Os tropeiros, para faci- litar a contagem, faziam alas para a passagem do gado, em pequenos 29 Id., fev./1988, p.1. 30 Ibid., fev./1988, p.2. 40 José Antonio Mazza Leite
  • 41. lotes. Não era fácil a tarefa e ao final da contagem, antes que os tropeiros falassem, nós já tínhamos o resultado que em geral conferia, havendo algu- mas vezes pequenas divergências decorrentes do extravio de alguma rês ou sacrifício de alguns novilhos para a alimentação dos boiadeiros que vinham de fazendas muito distantes. O pequeno brete, uma vez abatida as reses nele encerradas, era imediatamente reabastecido. Os rodeios crioulos nos mostram seguidamente a perícia de um laçador perseguindo a rês em seu cavalo para, num arremesso certo, laçá-la ou derrubá-la ao solo num pialo. é maravilhoso! Não menos maravilhosa, no entanto, é a perícia de um la- çador de brete! Ali estão 20 animais apertados uns contra os outros, chifre a chifre, não restando mais de 5 cm separando as guampas dos animais!31 O laçar do boi é mencionado por todos os viajantes, o que mostra a importância de um bom tiro de laço. Peixoto de Castro explica, muito bem, esse momento. O laçador preparava, então, sua laçada, quase exatamente da medi- da do afastamento dos chifres do animal que pretendia laçar. Mos- trava o animal e dizia: é aquele mestiço de zebu! O animal estava apertado entre os outros! Será que dava? Distante mais ou menos 4m, o animal estava parado. Aí, então, a laçada voava sem rebolei- ro e caía exatamente sobre os 2 chifres do animal indicado. Uma façanha de craque! Fácil? Eu experimentei e em 50 tiros tive a nota zero... O velho castelhano João Taborda não era mole! Laçado o boi, ele gritava: Ala... Ala... Ala... E o laço enrolado ao guincho (máquina a vapor), puxava o boi até encostar sua cabeça a um moirão colocado horizontalmente, onde era desnucado com o punhal de 2 gumes.32 A zorra, a que se refere Peixoto de Castro, aparece em duas xilogravuras de Danúbio Gon- çalves, numa demonstração de sua importância para o bom funcionamento da Charqueada. O animal caia sobre uma zorra colocada sobre trilhos e o zorreiro, abrin- do uma portinhola, puxava a zorra e, juntamente com o coleiro e o cam- boneiro, derrubavam o animal e o colocavam ao longo da cancha (local de carneamento), onde os carneadores esperavam para o início dos tra- balhos. O cambaneiro era o operário que passava uma grossa corrente pelos chifres do boi e o coleiro o que puxava pela cola para, num esforço conjunto, derrubar a rês, colocando-a na devida posição.33 Parece que estamos observando as cenas dos zorreiros de Danúbio. Tal serviço era repetido 20 a 30 vezes seguindo, conforme a capacidade da cancha, distribuindo-se o trabalho entre igual número de carneado- res. Quando o último carneador era servido, os primeiros já haviam car- neado os seus animais e aguardavam novas peças.34 31 Op.cit. fev./1988, p.2. 32 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.7. 33 Id., fev./1988, p.3. 34 Ibid., fev./1988, p.3. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 41
  • 42. A rapidez, com que os carneadores efetuavam o seu trabalho, era motivo de admiração e era também necessária para o andamento do processo, como bem salienta Antenor Peixoto de Castro. O local onde haviam carneado já estava completamente limpo. Por ali já haviam passado, devidamente montados em petiços, os carre- gadores de ossadas e buchadas, que, com ganchos fixados aos ar- reios, faziam o serviço, levando a buchada para o monturo e a ossa- da para a graxeira para a elaboração da graxa, colocada, como disse, em bordalesas e bexigas. Também haviam colaborado com o carne- ador 2 matambreiros que, com um instrumento especial, soltavam o matambre, parte mais difícil de ser trabalhada com a faca.35 O trabalho de faca exigia um conhecimento especial, muita habilidade e traquejo. O trabalho do carneador era dos mais importantes na matança. Ao re- ceber o boi ele o sangrava e todo o sangue era aparado dentro de uma espécie de forma de lata, colocada sob o pescoço do animal e posterior- mente levado a tonéis, para depois de coagulado e seco, ser misturado com farinha de ossos para fabricação de adubo (guano). Ao final do tra- balho do carneador, sobrava na cancha apenas o couro da rês, já que o aguateiro fazia a limpeza do local. Vinha, então, o “capatazes da can- cha” que examinava o couro. Qualquer furo em local importante que o desvalorizava, era motivo para o carneador não receber a ficha corres- pondente ao seu trabalho. Durante a matança o carneador recebia uma média de 25 fichas, que valiam, cada uma “um mil e quinhentos réis”. Este serviço, assim como o dos carneadores salgadores, eram os mais bem pagos. A carne tirada pelos carneadores era levada para os char- queadores, em números de três ou quatro, que faziam o seu corte em mantas e outros pedaços que compunham propriamente o “charque”, como produto final. Colocada a carne nos varais em setor contíguo à cancha, para resfriamento12 , era ela, pouco tempo depois devidamente pesada, para se conhecer a média de carne da tropa, sendo lançada após no tanque da salga. Ali dois homens, munidos de paus com uma rodela numa extremidade, mergulhavam a carne durante algum tempo até que ela estivesse completamente salgada.36 O tanque de salga é uma das xilogravuras de Danúbio, em que há vários pares de homens, e não só dois. Feito esse trabalho, retiravam a carne do tanque e a depositavam a sua borda, para que os salgadores efetuassem o seu trabalho. Os salgadores, em pequeno número, cobriam de sal grosso uma área de mais ou menos 8x5 m e ali iam depositando, devidamente aberta, a carne retirada do tanque. Coberta a área com carne, espalhavam nova camada de sal, agora sobre a carne e, alternadamente, iam co- locando carne e sal até que o charque de toda a tropa ali estivesse 35 Op.cit., fev./1988, p.3. 36 O resfriamento foi motivo de desenho mas não de xilogravura de Danúbio. 13 Loc. cit., fev./1988, p.4. 42 José Antonio Mazza Leite
  • 43. depositado. Colocavam, após o término, uma espécie de rede de cordas sobre a pilha, para separá-la da próxima tropa que para ali viria. As anotações feitas: 1ª tropa, fulano; 2ª tropa, sicrano e assim por diante, até que aquela imensa pilha quase encostava no teto do galpão. Eram pilhas de inverno. Matanças que somente meses de- pois seriam transformadas em charque e colocadas no mercado.37 Sobre essas pilhas, Antenor relembra sua beleza: “Altas e brancas como monta- nhas de neve” (testemunho oral). Outras matanças, por interesse dos proprietários das tropas, eram rapidamente tratadas para consumo. Sobre o preparo do charque falaremos oportunamente. Estávamos, ainda, em plena “cancha”. A ocorrência de matanças de grande número de reses, obrigava os tra- balhadores a um regime de esforço fora do comum, pois muitas delas, iniciadas à primeira hora da manhã, prolongavam-se até pela tardinha, reiniciando os trabalhos novamente pela madrugada. Nesse contínuo emendar de matanças, os operários andavam quase dormindo pelos cantos. Nessas ocasiões, o meu pai, para acordar o pessoal, manda- va soltar na cancha um animal que não fosse muito brabo. O bicho, mediante um descuido propositado, passava pelo buraco da zorra e enfrentava todo mundo que estava na cancha. Corre pra cá, foge pra lá, esconde aqui, esconde acolá, todo mundo acordava.38 Essa forma de acordar o pessoal, certamente será muito mal compreendida por quem não conhece os trabalhadores das mangueiras, que unem coragem e habilidade a um perigo calculado, vivendo num ambiente de camaradagem que a todos contagia. Aí entrava em cena o Bernardino Gritão, um preto da zona do Areal, meio surdo, que puxando a faca da cintura com a mão esquerda, segurava o rabo do animal com a direita, e com dois rápidos movi- mentos da faca desgarronava o dito cujo, que ficava se arrastando pela cancha. Sua morte acontecia logo após.3916 Conforme narrativa de Peixoto de Castro, abater o animal dessa forma, era retor- nar ao passado, quando, usando as lanças de meia lua na ponta de uma taquara leve, o “desgarretamento” cortava o tendão do bovino, que, logo a seguir, caia, sangrado mortalmente. Esse trabalho era, geralmente, feito por um escravo. Dreys descreveu a cena com riqueza de detalhes, que depois foi pintada por De- bret, e narrada por Peixoto de Castro noutro contexto. Acontecia, às vezes, que o Bernardino não estava por perto e o ani- mal percorria toda a cancha ameaçando uns e outros e, postava-se, afinal, em um dos cantos do galpão. Aí, então, era acionado o ron- da Baltazar, o seu Balta, que se encaminhava para o animal e cerca 37 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.4. 38 Id., fev./1988, p.5. 39 Op.cit., fev./1988, p.5. “Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 43
  • 44. de uns 20 metros, levantando o 38 com a mão esquerda, colocava uma bala na testa da vítima que arriava para o chão, sendo carneado ali mesmo, sob grande salva de palmas. Agora sim! Todo o mundo estava acordado e pronto para recomeçar o trabalho! Entrementes, o produto de algumas matanças ia ser preparado para consumo. Orientação do escritório central mandava preparar determinada ma- tança. Aí, então, entrava em ação o “Capataz de Rua”.40 Havia o capataz do interior do galpão e o capataz de rua. Nos estudos de Danúbio, o carrinho de mão aparece várias vezes, mas varais na rua não foram desenhados, o que mos- tra a sua preferência pela figura humana em movimento, mesmo porque seus desenhos, quase em sua totalidade, foram sobre o interior do galpão. Voltando a Antenor: O competente João Doralino, um preto que tinha em bondade e respei- to, tanto como os seus 120 quilos, botava em forma cerca de 30 operários, cada um com o seu carrinho de mão, para retirar o charque ainda pingando e depositá-lo sobre os varais que ocupavam mais de um hectare. Dia de sol, bonito, as peças iam perdendo a umidade e antes do cair da tarde já estavam novamente no galpão, agora em nova pilha. Durante alguns dias era repetida a operação, até que, completamente seco e mostrando uma gordura dourada, o charque apresentava um aspecto excelente.41 Peixoto de Castro mostra, orgulhoso, a vivência que seu pai tinha nessa ativida- de, evitando que a umidade pelotense estragasse o resultado de trabalho tão árduo. Em cerca de 10 anos, apenas em duas oportunidades houve corrida para o recolhimento dos varais. A experiência do meu pai sobre o assunto fazia com que mesmo em alguns dias de sol não se fizesse o trabalho, pois, con- forme previsão, o tempo mudava e passava a chover. Pronto o charque, os operários passavam a se ocupar de uma nova tarefa. Os sacos de aniagem eram devidamente carimbados com o nome da firma, o peso, o local de destino e a classificação do produto. O peso era determinado pela média da tropa, acusada por ocasião da matança, e variava entre 80 e 100 quilos. Finalizando o tratamento do charque, ele estava incluído dentro de uma das seguintes classificações: AA – SS – XX – BB – GG e MM. Considerava- se com o AA o charque especial, com uma camada de gordura dourada sobre as mantas, destacando-se dos demais; como SS, o mesmo tipo, com um pouco menos de gordura; como XX o charque um pouco gordo, muito parelho, e, como os anteriores, tipo exportação; a seguir vinham os tipos BB e GG, de pouca gordura e, finalmente o pelancudo MM. Era feito um amarrado com cordas finas e a carne devidamente ensacada. Cosido o saco, estava pronto para embarque. Os principais mercados eram do Nor- te e Nordeste, com Pernambuco e Bahia como as maiores expressões. 42 Comprova-se, assim, o que vários viajantes do século XIX afirmavam: o charque era consumido pelas populações do Norte e do Nordeste. 40 Op.cit., fev./1988, p.5. 41 Loc. cit., fev./1988, p.5-6. 42 Op.cit., fev./1988, p.6. 44 José Antonio Mazza Leite