Este documento descreve o projeto de modernização do Rio de Janeiro no início do século XX que visava transformar a cidade em uma "Europa possível". Isso envolveu a abertura de novas avenidas, a higienização da cidade e a remoção das camadas populares para a periferia. A cultura popular resistiu a essas mudanças através de comunidades como a casa da Tia Ciata, que preservava tradições africanas.
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O Rio se moderniza: sonhos e realidades do projeto urbanístico
1. "O Rio civiliza-se": sonhos e pesadelos da cidade moderna
Mônica Pimenta Veloso
No início do século XX, sob o governo Rodrigues Alves (1902-1906), assiste-se à
implementação do projeto modernizador no Rio de Janeiro. Tal projeto implicaria na
remodelação, higienização e saneamento da cidade, assim como na abertura de novas
avenidas e obras de reforma do cais do porto.
A intenção era a de tornar o Rio uma "Europa possível", e, para isso, era necessário
esconder ou mesmo destruir o que significava atraso ou motivo de vergonha aos olhos
das nossas elites. Vielas escuras e esburacadas, epidemias, becos mal afamados,
cortiços, povo, pobreza destoavam visivelmente do modelo civilizatório sonhado.
Face às revolucionárias conquistas do mundo moderno, como a vacina, o automóvel, a
luz elétrica, a fotografia, o cinematógrafo, era inadmissível que o Rio - capital da
República - mantivesse ainda as feições de uma cidade colonial. Baseadas nesses
argumentos, as nossas elites endossam com euforia o slogan, criado pelo cronista
Figueiredo Pimentel, que logo iria se tornar célebre: "O Rio civiliza-se" (Machado Neto,
1973). Era uma espécie de ordem.
Pressionado pelos interesses do capital internacional que exigia o controle das doenças
tropicais, o governo assume como sua meta prioritária a bandeira do saneamento. Ao
atrelar o projeto sanitário de Osvaldo Cruz ao projeto de reforma urbana, as autoridades
públicas tentavam minimizar o caráter autoritário e repressivo das medidas
modernizadoras. Em nome do saneamento científico e do progresso, a administração
pública vai converter o espaço urbano em valiosa fonte de arrecadação de capital.
Alegando garantir melhores condições de vida à população pobre, o governo
desapropria e põe abaixo grande parte dos prédios e casarões das ruas centrais da
cidade. Desalojadas do centro, as camadas populares são obrigadas a se deslocarem para
os subúrbios e favelas da periferia (Bodstein, 1986).
Com a construção da avenida Beira-Mar fica facilitado o acesso à zona sul,
configurando-se essa como local de moradia das classes mais abastadas. Surgem as
mansões art-nouveau de Botafogo, Gávea, Jardim Botânico e Laranjeiras, local da
residência de Pereira Passos, prefeito da cidade e autor do projeto urbanístico.
2. Confeitaria Carceler, na
rua Direita, ponto elegante
do Rio antigo (foto Marc
Ferrez).
Esta distribuição geográfica da população vai se constituir
na própria razão ordenadora do projeto, que busca
desenhar a "cidade ideal". A ordem social hierárquica é
transposta para uma ordem distributiva geométrica que
polariza norte (povo) e centro-sul (elites). Tal ordenação
do espaço físico revela claramente as intenções elitistas
do projeto:
O sonho de uma ordem servia para perpetuar o poder e
conservar a estrutura socioeconômica e cultural que esse
poder garantia. (Rama, 1985:32.)
De modo geral, essas são as linhas do projeto modernizador ocidental, inspirado
diretamente na remodelação de Paris. Por volta de 1880, sob o reinado de Napoleão III e
com o apoio do prefeito Haussmann, aquela cidade inaugura um modelo urbanístico que
viria a se tornar universal. Tal modelo transformaria a capital em um verdadeiro
espetáculo para os olhos e sentidos, dando origem à moderna geração de escritores,
pintores e fotógrafos (Berman, 1987: 127-59, "Baudelaire").
O Rio de Janeiro não foge à regra. No traçado arquitetônico de suas fachadas, avenidas,
jardins e bulevares, vemos reproduzir-se o sonho parisiense. A fotografia de Malta, a
pintura de Gustavo Dallara e os escritos de João do Rio e Lima Barreto se inspiram
diretamente na temática da modernidade urbana. Entretanto, como na poética
baudelairiana, eles se mostram sensíveis aos conflitos e contradições da metrópole
carioca.
A câmara de Malta, o pincel de Gustavo e a pena de Lima Barreto e João do Rio não se
detêm apenas na moderna cidade que surge. Eles também retratam, com igual paixão, a
cidade que desaparece: sobrados coloniais, quiosques, mafuás, mercados suburbanos,
favelas e morros tradicionais; tipos populares como os vendedores ambulantes,
seresteiros, funileiros e colhedores de carvão.
Já se conhece o caráter excludente do projeto modernizador em relação às camadas
populares. Imposto de forma autoritária, este iria entrar diretamente em confronto com
os anseios e tradições populares.
Neste contexto, onde é consagrado o modelo cultural cosmopolita, a identificação com
os grupos nativos está totalmente fora de cogitação. É pela cartilha do darwinismo
social que as nossas elites vão interpretar a realidade brasileira. Já se sabe a que
conclusões conduz tal leitura: o nativo é identificado como elemento inferior.
Responsabilizado pelo nosso atraso cultural e econômico, o mestiço se transforma em
motivo de vergonha nacional. Assim, para "recuperar" o país aos olhos das nações
européias, a única alternativa é a de esquecer esse Brasil mestiço...
A Nação passa a ser pensada em termos de natureza, já que a raça se constitui em
elemento prejudicial à idéia de unidade. Não apenas a raça, mas a religião e a língua são
identificadas com a diversidade, encarando-se esta como uma ameaça ao projeto de
integração nacional (Oliveira, 1986, "Belle Époque"). Neste contexto, em que a
diversidade cultural ameaça, a geografia e a natureza se transformam numa espécie de
tábua de salvação da nacionalidade e verdadeiro parâmetro para a ação política. Datam
3. dessa época uma série de obras que associam a Nação ao território, argumentando ser a
geografia a razão da nossa grandeza. Se o fator humano e o cultural causam "pejo", o
elemento natureza compensa magnificamente. O livro de Afonso Celso, Porque me
ufano do meu país, publicado em 1900, é o que melhor representa essa visão. Ao longo
da primeira década do século XX, a ideologia ufanista assume força inédita entre as
nossas elites políticas e intelectuais. O raciocínio desenvolve-se da seguinte forma: se a
raça avilta a Nação, a geografia a redime.
Na revista Kosmos, publicação destinada a difundir o novo modelo de sociedade, essa
idéia aparece de forma clara. "Ao redor e através do Brasil" e "Recordações de viagem"
são seções destinadas a enaltecer a nossa grandeza territorial, sua beleza ímpar e riqueza
de recursos inédita. Os igarapés do Amazonas, as montanhas de Minas, o território do
Acre são assuntos de longas e minuciosas reportagens, cuidadosamente documentadas
através de fotografias, ilustrações e mapas.
Neste contexto, onde a grandeza da Nação é atribuída ao território, a questão da
diversidade cultural não entra em pauta. Procura-se todo o tempo desconhecê-la. O
modelo cultural da Belle Époque é intolerante, impondo rígidos padrões de
sensibilidade, gosto e cultura.
Sacudidas pelo afã modernizador, as nossas elites mostram-se intransigentes com as
tradições populares. A alteridade é vista com profunda desconfiança, constituindo-se
mesmo em ameaça aos padrões civilizatórios idealizados. Assim, as manifestações
populares são identificadas com a barbárie, selvageria e primitivismo. Apesar de tantas
condições adversas, a cultura popular consegue sobreviver, criando estratégias próprias
de defesa. Um exemplo dessa resistência cultural é a casa da tia Ciata. Agregando
elementos marginalizados pelas propostas modernizadoras - normalmente ex-escravos -,
a tia Ciata, através do candomblé, consegue criar uma verdadeira comunidade popular.
Liderada pelos elementos negros, oriundos da Bahia, essa comunidade vai oferecer
alternativas de organização fora dos modelos da rotina fabril. Rejeitando os padrões
vigentes - fornecidos pelos sindicatos anarquistas - essa comunidade se estutura a partir
dos centros religiosos e festas (Moura, 1983).
O objetivo é o de garantir a permanência das tradições africanas que eram totalmente
discriminadas pela ideologia da Belle Époque. Entre nós, o terreiro funciona como
espaço delimitado da cultura negra, capaz de garantir, através dos rituais, a
solidariedade comunitária. A música, dança, canto, narração, artesanato, cozinha
aparecem, então, como algumas das possibilidades discursivas dessa cultura (Sodré,
1983: 117-82, "A cultura negra").
Essa idéia de pertencimento a uma comunidade, à qual se deve obrigações e respeito, é
clara. Não é à toa que os ranchos carnavalescos da época tinham uma obrigação: a de ir
cumprimentar as tias Ciata e Bibiana (Efegê, 1982: 131). Fazia parte do ritual
reverenciar as "tias" ou, mais propriamente, o terreiro. Essa prática denota o
reconhecimento e a legitimidade da comunidade negra encarnada pelas referidas
figuras.
Casada com um funcionário do gabinete do chefe de Polícia, a tia Ciata consegue
garantir a inviolabilidade da sua casa das investidas policiais. Estava assegurado, dessa
forma, um espaço cultural que seria de fundamental importância na história social do
4. Rio de Janeiro. Pois é dessa comunidade negra que nasce o embrião da cultura popular
carioca. Incorporando elementos de diversos códigos culturais, fornecidos pelos
migrantes nordestinos e latinos europeus, o referido grupo consegue habilmente
harmonizá-los, fazendo valer a sua liderança (Moura, 1983:58).
A influência desse grupo, disposto a resistir às investidas modernizadoras da Belle
Époque, tem sido minimizada pela nossa história social. Na realidade, a europeização da
cultura brasileira não foi aceita tão passivamente quanto se supõe. A denominação de
"Pequena África" à Cidade Nova registra o anseio de uma comunidade - que não se
reconhece enquanto branca - de fazer valer a sua identidade. Essa Pequena África vai se
constituir em um verdadeiro desafio à cidade ideal, quando oferece modelos alternativos
de integração.
Daí a repressão sistemática desencadeada pelo governo em relação às camadas
populares. Trata-se não apenas de deslocá-las do centro da cidade, mas de deslocá-las
também do eixo de influência da vida nacional. A modernização exige que se ponham
abaixo as construções antigas, da mesma forma que exige a extinção das manifestações
culturais tradicionais. Essa exigência é vista na época como uma espécie de fatalidade
imposta pelos novos tempos. Tal ponto de vista é defendido por um jornalista que
compara o morro do Castelo a um de seus habitantes: uma negra velha que dorme num
canto da rua. Ambos estariam fadados ao desaparecimento. O morro e a negra
representariam o passado e o espírito da tradição, que deve ser sacrificado na
instauração da modernidade (Fluminense, 1905).
Nos salões da moda, nos cafés e conferências literárias, a referência ao nativo atinge o
máximo de desqualificação. Falar nos "índios" era no mínimo deselegante,
inconveniente, gerando profundo mal-estar.
Essa ideologia da desqualificação é defendida com grande eficácia, tendo um raio de
ação maior do que se costuma supor. A Revista da Semana dá exemplos claros dessa
discriminação ideológica dirigida contra as mais variadas expressões da cultura popular.
Através de uma seção intitulada "Propaganda de higiene infantil", temos um exemplo
significativo dessa ofensiva ideológica. Em um dos seus artigos aparece um quadro
encimado pelos seguintes dizeres: "Os amuletos e crendices prejudiciais". Abaixo, fotos
e ilustrações de breves, figas e amuletos. Finalizando, temos a conclusão e o alerta: "As
crendices desta ordem são indício de ignorância. Muitas dessas bugigangas são
perigosas e todas inúteis".
Detalhe importante: esse quadro era afixado no hall de entrada das escolas, portanto
forçosamente era objeto de atenção dos olhos infantis. O ideal de assepsia é claramente
enunciado. Trata-se de uma questão de higiene não se envolver com as "bugigangas"
dos negros. Pela retórica das elites, a cidade ideal é a cidade higiênica. As camadas
pauperizadas são prontamente identificadas com a insalubridade, com a sujeira. Suas
superstições são atestado de atraso e ignorância, impedindo a realização do sonho da
cidade ideal.
Mas, logo adiante, num outro artigo, a própria revista acaba mostrando que não tem
nada contra a superstição. Tão antiga quanto a humanidade, a superstição já faz parte do
coração humano. Impossível extirpá-la, principalmente entre as mulheres. Feitas tais
considerações, a revista sugere o uso de porte-bonheurs, de acordo com a influência dos
5. astros. Um dicionário de ciências ocultas determina os dias da semana em que tal e tal
pedra preciosa devem ser usadas. O mago é francês, naturalmente...
Fragmento de As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro,
Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988, pp.11-17.
Mônica Veloso é pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas. É autora de O
modernismo. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996.