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Castanheiro da Princesa
agosto 2018
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Castanheiro da Princesa
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I
Percorria-se um longo caminho estreito, onde mal se cruzava
um carro de bois com uma pessoa a pé, que se estendia por entre
vários montes repletos de pinheiros e vales verdejantes.
Depois de percorrida a poeirenta passagem ziguezagueante
desenhada pelo tempo e pela força resistente do homem,
contornadas as diversas pedras que por lá se encontravam
semeadas, chegava-se a uma pequena aldeia no meio de
campos castanhos viçosos onde eram guardadas, por árvores de
fruto e trémulas cearas, umas quantas pequenas casas rústicas e
humildes.
Poucas pessoas escolhiam aquele irregular caminho para
passar de carro e mesmo a pé não era fácil percorrê-lo e superá-lo.
Só quem soubesse da existência da pequena povoação se
arriscava a levar a viagem atribulada até ao fim.
Não se via vivalma até poucos metros antes de se entrar no
aglomerado de casas plantadas irregularmente naquele sítio de
ninguém.
O que se via primeiro, logo depois da térrea passagem e
antes de chegar ao largo da igreja que encimava a aldeia, era um
velho castanheiro pejado de folhas que escondiam ouriços verdes
e castanhos. Um castanheiro que todos recordavam ser já muito
alto na altura em que nasceram e do qual ouviram falar nas
histórias contadas, à noite em frente ao fogo do lar, pelos pais e
pelos avós antes daqueles em literários encontros familiares.
- 4 -
Havia um amontoado enorme de ouriços que se estendiam
copiosamente pelo chão de terra e pelos terrenos próximos que
rodeavam o tronco impossível de abraçar por dois homens. Eram
em tanta quantidade que cobriam, na sua totalidade, a terra
circundante, não deixando as ervas, que tentavam crescer por
baixo, espreitar o sol para dele se alimentarem e crescerem.
Numa dessas histórias antigas, contadas com a intenção de
despertar sentimentos de tristeza e paixão nos ouvintes, falava-se
de um cavaleiro em armadura reluzente que teria chegado
àquelas bandas montado no seu cavalo preto como a noite que
viria a dominar o seu coração empedernido pela vida.
Dizia-se que viera em busca de uma bela princesa que fugira
do castelo do Rei, seu pai, e com quem teria sonhado durante
uma batalha.
Partira o cavaleiro a meio da contenda, em que estava a
comandar as tropas, deixando os seus companheiros sozinhos e
entregues à morte certa em glorioso e sanguinário combate.
Esse elegante cavaleiro teria escrito o nome da sua princesa
de sonho naquele castanheiro e ali ficara registado ao longo dos
tempos como sinal do seu sofrimento e da sua desgraça amorosa.
O cavaleiro procurara a sua amada por entre montes e
vales, mas acabara por não a encontrar até parar para repousar à
sombra dos ramos daquele castanheiro onde gravara, com a sua
espada ensanguentada, o seu nome sonhado.
- 5 -
A princesa teria sido já levada por uns nobres, enviados pelo
Rei, que cavalgavam furiosamente para apoiar na batalha de
onde o cavaleiro se teria retirado numa manhã de nevoeiro denso
e terra vermelha.
Falavam os mais velhos que aquele cavaleiro, logo que
voltara ao campo de batalha, vira a sua princesa estendida no
chão, no meio dos corpos destruídos dos seus companheiros de
luta e dos nobres, sem vida e com uma mensagem escrita em
sangue, ao lado de um punhal cravejado de pedras preciosas e
que lhe era dirigida.
"Procurei Vossa Mercê por todas as partes do reino,
sabendo que o encontraria em um qualquer canto.
Neste campo de batalha, perguntei onde estaria o meu
Senhor e um bravo soldado disse-me que tinha sido morto
e que se encontrava inumado neste campo de extinção.
Não vos encontrei.
A minha vida não faz sentido sem o Vosso amor e por isso
aqui fico."
O cavaleiro, destroçado com a perda da sua amada de
sonho desconhecida, partira no seu cavalo negro para lugar
incerto, nunca mais tendo sido visto por ninguém naquelas
paragens ou em outras do reino de sua majestade. Foi procurado
pelo soberano para aplicação de castigo por traição ao seu povo,
mas perdoado por amor à sua amada.
- 6 -
Como é costume e adequado nestas histórias contadas na
companhia do fogo da lareira, havia quem dissesse que o
cavaleiro encontrara a princesa naquelas terras de Castanheiro e
que ambos teriam partido, para o reino prometido, após escrever o
seu nome no castanheiro montados na negra besta.
Viriam a casar nas cortes do Rei, seu pai, que depois da
morte deste, deixara um longo e próspero reinado para o jovem
casal.
Esta visão fazia com que as crianças se sentissem felizes e
mostrassem os seus olhos brilhantes logo que terminava o encontro
ficcional.
Se à frente do contador estivessem acocorados meninos ou
meninas mais calmos e imaginativos, então acrescentava-se um
final feliz.
E o que aconteceu depois?
Depois de casarem, viveram sempre felizes para sempre.
E depois?
Tiveram dois lindos filhos. O rapaz, que era o mais velho,
continuou a reinar e afilha manteve-se sempre junto a ele.
Uau! Que linda história.
Agora vamos lá todos dormir, meus meninos.
- 7 -
As casas em pedra eram cobertas por telhados em colmo e
apresentavam, quase todas, uma pequena horta nas traseiras
onde se cultivavam os produtos mais necessários à sobrevivência
diária.
Nos pequenos espaços, colhiam as couves, o feijão, as
batatas, as cenouras ou mesmo as cebolas que consumiam até
que terminassem; algumas vezes, partilhavam com outros vizinhos
mais necessitados, na certeza que se um dia fosse necessário
sabiam a que porta bater.
O colmo estava já acastanhado pelo fumo das chaminés
que fumegavam simultaneamente; no inverno, o fumegar
dominava os céus durante todo o dia; no verão, sentia-se aquele
cheiro a madeira queimada após a hora de os homens recolherem
a casa para comer o caldo, já os últimos raios de sol tocavam
aquelas terras, enquanto o astro se escondia atrás dos montes.
Na altura da matança do porco, alguns homens dirigiam-se
à vila mais próxima, no dia de feira, com os seus produtos agrícolas
às costas ou em cestos de vime; tentavam lá fazer a troca por
pedaços de carne de porco, de lardo ou chouriça fresca.
O fumeiro era, depois, construído na casa de um dos vizinhos
da aldeia; a salmoura ficava entregue a outro dos residentes.
Cada ano a casa escolhida para o tratamento das carnes era
diferente, assim como o responsável pelo precioso bem.
Naquele calmo amontoado de casas viviam pouco mais de
duas dúzias de velhos homens e mulheres fieis às suas origens e
- 8 -
resistentes à necessidade a que outros tinham cedido de partir em
busca de vida melhor em terras distantes.
Enfrentando as dificuldades da existência naquele local
ermo, estes homens e estas mulheres sentiam que aquela era a sua
terra e que não encontrariam melhor vida em qualquer outro local
do mundo.
Antigamente, aquele lugar tinha sido povoado por largas
dezenas de homens e mulheres que trabalhavam as terras,
retirando delas o sustento para si e para as suas famílias; no
entanto, as dificuldades dos pais, para encontrarem trabalho
remunerado, tinham feito com que a maior parte fosse saindo para
a cidade ou para o estrangeiro.
Depois desse afastamento inicial, os jovens da aldeia
continuaram a seguir os passos dos pioneiros e o pequeno lugarejo
só pôde contar com os mais velhos para continuar a sentir-se útil e
com vida.
Não se via uma única antena em cima das casas.
Só o fumo que saia das chaminés ao longo de todo o ano se
elevava acima dos telhados, criando um ambiente mais
amarelado ainda do que o causado pelo colmo; em tempo de
calor, viam-se as flores em vasos coloridos pendurados nas janelas
abertas pintadas de azul desbotado pelo tempo. Eram
acompanhados por toalhas de todas as cores que secavam,
pingando a água para o terreno verde.
- 9 -
A aparência descorada das janelas estendia-se aos próprios
habitantes que vestiam, na sua maioria, de negro enlutado. Esse
aspeto enegrecido das gentes honrava os que tinham partido para
outras terras mais ou menos distantes ou os que tinham já morrido e
repousavam eternamente nos terrenos da Igreja.
A única comodidade de que beneficiavam os moradores e
que lhes facilitava um pouco mais a vida, era um pequeno café
com telefone público que usavam quando acontecia alguma
emergência ou precisavam chamar o carro para os levar à vila. Ali
bebiam uma cerveja em dia de festa de aniversário do Ramiro ou
às vezes no da Albertina, quando o marido o permitia.
Tinham ainda o ar puro, contaminado pelos odores fortes a
erva verde, a cereais castanhos, a flores perfumadas e a frutos
silvestres que pululavam nos silvedos que circundavam alguns dos
campos cultivados.
Para além do café, onde podiam também arranjar, de vez
em quando, uns ovos, uma galinha, um coelho, ou das trocas na
vila, tudo o resto era retirado da terra à força de braços com o
custo do suor de cada um.
Os animais da terra eram umas quantas cabras que se
reuniam em rebanho sazonal, umas poucas galinhas e uns raros
coelhos que a Albertina criava no seu terreno, nas traseiras do
café, para consumo próprio, troca ou venda aos vizinhos; havia,
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ainda, dois cães que davam sinal de alerta sempre que se
chegava um perigo ao povoado. Ladravam sonoramente quando
cheiravam o lobo, quando alguém caminhava pela aldeia depois
de se esconder o sol, quando havia trovoada ou quando a sede
apertava.
Um desses cães era de um dos habitantes que vivia numa
das pontas da aldeia e que todos conheciam por ser, ou parecer
ser, conhecedor das coisas da vida. Quele animal era o seu único
amigo e companheiro diário.
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Ti Laurentino da Teresa
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- 13 -
II
Numa das casas da aldeia vivia o velho Manuel Laurentino.
Ti Manuel Laurentino, ou Laurentino da Teresa como era
chamado por alguns vizinhos mais velhos, era um homem
respeitado e sempre tinha sido um ser feliz.
Nasceu naquele pequeno povoado de vinte e cinco casas
em pedra, telhado de colmo fumegante e cultivo à porta.
Mais ao longe, da sua janela descorada, via os campos bem
tratados e cheios de cereais dourados, montes verdejantes
cortados por um caminho em terra pedrado.
Árvores de fruto ponteavam a paisagem como um tecido
irregular tingido de manchas irregulares vermelhas, verdes e
castanhas.
Manuel Laurentino criara-se naquela mesma aldeia e nunca
tinha dali saído a não ser para ir à vila em dia de feira semanal ou ir
ao Doutor para ver o que era aquela dor que por vezes sentia na
perna e que se recusava a aceitar que fosse da idade ou do
trabalho contínuo. Sempre que tinha de ir ao pequeno burgo,
voltava logo que os negócios estavam concluídos. Reconhecia
que não gostava de estar muito tempo fora da sua terra, afastado
da sua gente, longe da sua casa e principalmente sem a
companhia da sua Teresa.
- 14 -
Laurinho, como era conhecido na sua infância, fora um
rapaz que cedo decidira ficar para sempre ali na sua terra,
ajudando o pai Joaquim e a mãe Maria de Lurdes a tomar conta
dos campos e das colheitas.
Assistira à partida de muitos dos seus amigos de infância
para o estrangeiro, em busca da aventura e da riqueza
prometidas.
Tinha muito jeito para a madeira. Trabalhava pequenos
pedaços, que encontrava ao longo do caminho que percorria
incessantemente ao longo dos dias e outros que cortava do velho
castanheiro, que recebia os raros estranhos que por vezes se
dirigiam à aldeia ou os filhos da terra que voltavam em tempo de
celebração do padroeiro.
Dando uso à navalha que seu pai lhe oferecera quando
sentira que o filho já tinha juízo e idade suficientes para tomar
conta de si próprio, dos pequenos pedaços de madeira que usava
nasciam utensílios domésticos, estatuetas de figuras imaginárias e
outras criações que muita gente não conseguia perceber muito
bem o que eram, mas que para ele eram obras de arte. A sua mais
preciosa criação tinha sido uma imagem de princesa que talhara
num cavaco de madeira do velho castanheiro e que dizia ser a tal
princesa do cavaleiro em cavalo negro.
Percorria campos e montes em busca de ninhos
secretamente escondidos, montava as armadilhas que ele próprio
construía e apanhava uma ou outra ave que depois adotava e da
qual tratava com todo o carinho.
- 15 -
Houve mesmo uma altura em que apanhou um jovem melro
meio depenado que caíra do ninho onde nascera; alimentou-o à
boca com pedaços de pão que retirava ao que lhe poderia
diminuir a fome. Com muito empenho e paciência, ensinou-o a
falar algumas palavras e durante alguns anos foi a sua companhia
de conversa, de brincadeira e de desabafos. Acabou por perder
aquele amigo à imagem dos que, ao longo do tempo, tinham
voado para fora da terra.
Como a maior parte das pessoas da aldeia, aproveitava os
frutos que a terra lhe oferecia para matar a fome que o
acompanhava todos os dias e que disfarçava com a sua original
arte de criação de amigos imaginários em madeira.
Em casa não havia muita abundância de alimentos; os pais
cultivavam os campos e uma vez por mês, na ida à vila, tentavam
trocar alguns produtos por galinhas, ovos ou, com alguma sorte,
peixe que era alimento raro ou para os mais abastados. De resto
havia batatas, couves, feijão, o pão de centeio que era cozido, de
quinze em quinze dias, para toda a aldeia, no forno comunitário;
consumiam, ainda, algum queijo que resultava da ordenha das
cabras do rebanho comunitário.
O que Laurinho mais gostava era do queijo que
pontualmente chegava à mesa e que lhe sabia a flores e a ar
puro. Não sabia quem fazia aquela delícia e também não se
importava com isso. Importante era poder saborear um bom
pedaço daquele raro e único manjar que partilhava com o seu
amigo de penas quando este ainda estava na bela gaiola de
pequenos pedaços de galhos de árvore entrançados.
- 16 -
Quando o seu companheiro partir, corria com a sua roda de
madeira empurrada por um arame dobrado na ponta que
encontrara, desprotegido, numa vedação de um vizinho, sentava-
-se no meio de um campo de flores, tirava aquele pedaço de
queijo do bolso roto das calças e degustava-o como se fosse o
supremo e derradeiro alimento à face da terra.
Casara-se com Teresa Violante.
Fizera-o não por falta de escolha, mas por um dia ter sido
tocado pela sua alegria, pelo seu olhar brilhante e pelo sorriso que
lhe oferecia reconfortante.
Viviam, depois de se casarem na igreja da aldeia, em casa
dos pais de Laurentino que tinham morrido naturalmente alguns
anos antes e depois de uma sexagenária vida de trabalho na terra.
Dizia-se, na povoação, que tinha sido a festa de casamento
mais bonita de sempre, registada no eterno castanheiro onde
foram colocados os seus nomes ao lado daquele outro da princesa
imaginária. Fizeram uma festa para todos os vizinhos da terra e ter-
se-ia, até, sacrificado uma das ovelhas para alimentar tantas
bocas.
Teresa Violante era uma das poucas jovens que ficara
naquele paraíso perdido entre montanhas depois de ter atingido a
idade de casar.
- 17 -
Enquanto as outras jovens procuravam encontrar
casamento, logo que os pais o permitiam, para poderem ir para
fora e procurar uma vida melhor, Teresa Violante decidira manter-
-se ali, tomando conta das cabras da povoação e cuidando da
mãe Maria do Carmo e do pai António.
O pai António não podia ajudar muito em casa por causa
de um acidente que tivera e que o fizera regressar de Espanha
(para grande alegria de Teresa, que sentia a sua falta e tinha de
realizar as tarefas que cabiam ao progenitor, e desgraça de Maria
do Carmo, que teve de se acomodar à pouca ajuda do marido e
ao seu péssimo humor).
António, um dos homens mais ativos que se conhecera por
aquelas bandas, lá dava umas voltas pelos campos, cortava umas
couves tenras e umas frutas das árvores mais baixas, mas para
trabalhos mais duros ou que exigissem mais das suas costas, já não
podiam contar com ele.
O homem, para tentar esquecer a incapacidade que o
fizera abandonar Espanha, perdia-se pelos campos e evitava
encontrar-se com alguém.
Quando chegava a casa, fechava-se no quarto e já
ninguém podia contar mais com ele para fazer companhia ou ter
uma conversa. Levantava-se, silenciosamente, para comer
qualquer resto do jantar, que a mulher conscientemente lhe
deixava na mesa, quando já todos dormiam.
- 18 -
A pequena Teresa acordava de manhã bem cedo e
alegrava-se por ver aquele prato vazio em cima da mesa; era sinal
que seu pai ainda estava por ali. Partia com o seu rebanho para
mais um dia entre montes e campos, só voltando ao cair do dia.
Alimentava-se do pouco que levava consigo, do que
conseguia recolher na natureza e do leite que retirava dos animais
com as próprias mãos, colocando a boca por baixo deles.
Era também ela quem fabricava o queijo para todos os
vizinhos e que tanto agradava, em segredo, a Laurinho; fazia-o
ainda da mesma forma que sua mãe, sua avó e sua visavó o
tinham feito durante gerações e se tinham ensinado umas às outras
ao longo de anos de aprendizagem e dedicação.
Era uma rapariga pequena e elegante, de faces rosadas e
cabelos sempre presos encaracolados. Descalça e de roupas
coloridas, chamava a atenção pela sua alegria e dedicação aos
outros. Essa alegria continuou a mantê-la mesmo depois de o seu
pai ter morrido por força da vergonha de não poder cuidar da sua
família como queria e exigiam os vizinhos (ou, pensava ele que
exigiam).
Na sua natal aldeia, Laurentino era conhecido pela sua
barba branca comprida, pelo seu andar calmo e molengão, pelo
seu cigarro sem filtro no canto da boca que se movia
constantemente ao ritmo do seu assobio e o obrigava a cuspir os
pedaços de tabaco que se iam colando à língua. Vestia sempre
de preto em memória da sua Teresa que o abandonara há já
- 19 -
quase trinta anos; tinha sido o dia mais triste da sua vida quando,
ao chegar a casa, viu o Doutor a sair.
Alguém tinha ouvido um grito, tinha ido a casa que se
mantinha, como de costume, de porta aberta e vira a Ti Teresa
estendida imóvel no chão. Havia um banco partido ao seu lado e
junto da pequena janela alta que dava para os campos de
cereais onde o marido normalmente parava para cavar, regar ou
verificar da sua maturação.
Tinham corrido a casa do Doutor Pereira que, com a sua
mala debaixo do braço, se tinha apressado a ver o que se
passava, correndo tão rapidamente quando o fato negro o
permitia.
Naquele dia, Laurentino acordara, como sempre, quando o
sol batia na sua janela e projetava a sua luz na imagem da
Senhora de Fátima que se sobrepunha à cabeceira da cama.
Teresa estava já acordada e preparava na cozinha as hortaliças
colhidas na pequena horta para o caldo que comeriam à noite.
Olhara para trás e vira o marido levantar-se, sacudir a roupa,
pentear os seus cabelos negros com os dedos e passar pela
cozinha. Olhara para a sua Teresa, recebera o seu calmo sorriso e
saíra de casa para o seu habitual trabalho nos campos.
Apanhara duas maçãs ao sair de casa, que começara logo
a rilhar e dirigira-se à fonte de água fresca de nascente. Bebera a
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sua pinga de água, lavara a cara da noite de sono e passara a
mão molhada pela cabeça, endireitando o cabelo.
Cavara umas videiras onde nascia já alguma erva daninha,
abrira a água da poça para regar as videiras, pois era a sua
manhã de humedecer as terras que as acolhiam; encaminhara a
água para os regos que fora criando ao lado das fartas ramadas.
Fora dar uma volta até às cearas para verificar se estavam a
maturar em condições e sem pragas. Tocadas meia dúzia de
espigas, concluíra que estaria tudo em condições ajudado pelo
experiente olhar e apurado olfato.
Voltara a fechar a água de rega para que a poça enchesse
de novo antes da próxima poçada e sentira o sol que se colocara
por cima da sua cabeça e lhe aquecia o miolo descoberto.
Com este calor viera o cheiro da comida da sua Teresa e por
ele fora conduzido até casa.
Fora recebido por um olhar calmo e reconfortante. Sentara-
-se à mesa e deliciara-se com o caldo aquecido do dia anterior e
com um punhado de batatas cozidas a acompanhar um pedaço
de carne de porco gorda que tinha trazido na sua última ida à vila.
Falaram sobre a qualidade dos cereais e de como teriam
muito e bom pão durante todo o ano.
Este ano parece que não vai haver fome!
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Queira Deus que não venha nenhum mal que nos estrague
a vida!
Claro que não, homem. Vai correr tudo bem.
Saíra depois do almoço e fora até ao adro da igreja. Tinha
prometido ao Senhor Padre que limparia o mato que começava a
crescer à volta do cemitério e que dificultava o trabalho das
senhoras quando iam colocar as flores nas campas.
A meio da tarde, enquanto recolhia as silvas num monte
para deixar secar e depois queimar, sentira um aperto no peito e
tivera de se sentar no chão de terra para recuperar o fôlego. Assim
se mantivera durante uns minutos. Não percebera o que se tinha
passado, pois fora a primeira vez que tal lhe acontecera. Sempre
tinha sido homem de saúde e nem uma constipação se tinha
atrevido a chegar-se perto de si. Pensou que seria melhor ir ao
Doutor Pereira se aquilo continuasse a acontecer.
Retomara o trabalho, sempre com aquele aperto cravado
no peito, e deixara tudo no mesmo monte que viria a queimar dois
ou três dias depois. Limpara, ainda, algumas ervas que nasciam
nas paredes da igreja e voltara para abrir novamente a poça de
água de rega das suas videiras.
Terminado o dia de trabalho, voltara para casa com o
sentido, ainda, naquele mal-estar que sentira aquando da limpeza
do terreno da igreja.
- 22 -
Tenho muita pena Manuel, mas a Ti Teresa não caiu bem e
eu não pude fazer mais nada por ela.
Foram as palavras que dissera o Doutor Pereira que saia a
porta de casa quando Manuel Laurentino chegava.
Entrou o Laurentino, dirigiu-se ao seu quarto e viu aquela
imagem da beleza da sua Teresa estendida na cama, de pele
branca e fria. Já não olhava para ele da cozinha, nem lhe oferecia
o sorriso quando entrava em casa.
O cansaço do Ti Manel passava logo que entrava aquela
porta e sentia o sorriso brilhante dos olhos da sua Teresa, agarrada
ao fogão a preparar a refeição que ele mais gostava: aquela que
ela ajeitava com amor e com que se alimentava na sua
companhia.
Após um dia de trabalho árduo nos campos, Laurentino
voltava a casa, com a roupa da cor da pele castanha de terra
com pontuadas manchas de suor. Olhava para a sua mulher,
absorvia o seu sorriso, tirava as botas de trabalho e depois de lavar
as mãos e arranjar os seus cabelos negros, sentava-se à mesa da
cozinha. Sempre assim fora desde que formara família.
Naquele dia não.
- 23 -
Não tirou as botas, não lavou as mãos e manteve os cabelos
negros emaranhados. Pior do que tudo aquilo foi não merecer o
calmante sorrir da Teresa.
Sentiu o coração arrefecer, o chão fugir-lhe por baixo dos
pés e o ar rarear. Não conseguiu deitar nem uma lágrima, não
soltou nem uma palavra.
Sentou-se ali mesmo, ao lado daquele corpo caiado imóvel.
Viu o sol entrar pela janela após o luar que se tinha toda a
noite refletido nos seus olhos e que, segundo se dizia na terra, lhe
teriam, naquela mesma noite, pintado os cabelos de branco
dorido.
O Doutor voltou de manhã cedo para tratar dos papéis
necessários, consolar o transformado Laurentino e dizer-lhe o que
se tinha passado naquela tarde.
Desses dias recorda o adeus à sua branca e quieta Teresa, as
lágrimas que não lhe caíram da cara, as palmadas dos vizinhos nas
suas costas, a bênção do Senhor Padre e o regresso a uma casa
vazia.
Olhou para a cozinha e não sentiu o calor daquele sorriso
que sempre o recebera.
Recorda, ainda, a falta que lhe fizeram os filhos, a dor de
não poder dizer-lhes o que tinha acontecido com a sua mãe e
- 24 -
receber o seu conforto e apoio. Os filhos só viriam a saber daquela
desgraça uns meses depois quando voltaram de férias.
Albertino continuava, de vez em quando, a falar com a sua
Teresa.
Mantinham longas conversas sobre o que faria para "o
comer" naquela noite, o que a Maria do Albino lhe tinha dito de
manhã sobre a água que naquele dia era do Pereira, apesar de no
dia anterior, o dela, não ter havido muita para regar os seus
campos e matar a sede às colheitas. Falavam sobre os filhos que
tinham partido e sobre os netos que deveriam ser tão queridos e
tão parecidos com os filhos e com eles próprios. Olhavam para as
fotografias que se empoeiravam em cima do armário do quarto e
comparavam imaginárias feições.
Os filhos, Lurdes e Justino, tinham partido para França já há
alguns anos.
Laurentino e Teresa falavam do dia em que se tinham
conhecido no meio daqueles campos que agora tinham recolhido
o seu corpo, enquanto Laurentino ouvia a radionovela que já não
lhe fazia muito sentido.
Agora não tinha com quem comentar os amores relatados e
como aquilo não tinha jeito nenhum porque só podia acontecer
nas histórias da radio; já não podia olhar envergonhado para a sua
- 25 -
Teresa e ver-lhe a cor marcar-se mais por baixo dos olhos, quando
ouviam o som de um beijo trocado entre o Justino Rafael e a
Cristiana Sofia.
Um dia essas conversas desapareceram da mesma forma
fria que a sua mulher tinha partido: de um momento para o outro,
sem ele estar lá e sem aviso.
Manuel Laurentino passara, então, a andar de um lado para
o outro, sem destino, sem objetivo, sem saber realmente o que
fazer ou porque andava ainda em cima das suas velhas e
cansadas pernas.
Os filhos continuavam em França e só voltavam no mês de
agosto para a festa do padroeiro.
Que bonitos estão!
Estás cada vez mais parecida com a tua mãe, que Deus a
tenha.
Quando puderdes, passai lá em casa para beber uma pinga
e provar de um bolo que acabei de fazer.
Isto diziam as vizinhas à chegada dos filhos de Laurentino.
Durante esse mês de férias, o Manuel parecia outro.
Andava sempre limpinho, de roupa engomada e com um
sorriso que acompanhava o seu cigarro no canto da boca.
- 26 -
Brincava com o neto e falava-lhe da avó Teresa e de como
ela gostaria de o conhecer e de lhe fazer o bolo de nozes que era
a sua especialidade.
Passeava pelas suas terras, bebia a sua água fresca de
nascente na bica da fonte, dava uma cavadela aqui e outra ali
para que o neto visse como se fazia e para que, talvez um dia,
voltasse e cuidasse do que tanto trabalho lhe dera a manter limpo
e cultivável. Mostrava-lhe os sítios secretos, que só ele conhecia,
onde havia ninhos de pássaros, aproveitando para lhe contar as
suas juvenis aventuras de caçador de aves.
Sabia, no seu íntimo, que esse dia em que o neto teria
vontade de voltar à terra nunca chegaria e que nem mesmo os
filhos voltariam de novo, pelo menos enquanto fosse vivo; no
entanto gostava de acreditar que um dia, talvez, pudesse vir a
acontecer e que o visitassem a ele e à Teresa no cemitério da
aldeia.
No final das férias os filhos, o neto, a alegria e a vida feliz
partiam.
A casa enchia-se de ainda mais memórias que se juntavam
às da sua Teresa. Ficavam os retratos das férias, com o Laurentino e
o neto, dos filhos com os vizinhos e de todos juntos na procissão do
padroeiro a pegar o andor da Santa Teresa; ficava o vazio de uma
casa cheia de histórias alegres agora frias.
Ti Manel retornava, então, à sua triste e perdida vida de
antes de agosto.
- 27 -
Acordava de manhã quando a primeira luz do sol batia na
janela do seu quarto frio e vazio.
Levantava-se e sacudia a roupa do dia anterior para poder
vestir sem o pó que acumulara.
Saia de casa depois de olhar para a fotografia da sua Teresa
e dava a sua volta costumeira pelas terras. Apanhava uma ou
duas maças da árvore da porta da casa, bebia uma pinga de
água fresca da bica de nascente, fumava os seus cigarros
dançantes e dava uma ou outra cavadela na terra.
Voltava ao final de mais um dia no campo, depois de ter
comido qualquer coisa que fizera no dia anterior.
Entrava a porta, olhava para a cozinha e não via já aquele
sorriso que tanto o aliviava do cansaço quando a Ti Teresa
cozinhava para o jantar dos dois.
Deitava-se na cama vazia de um quarto agora escuro, sem
sequer ligar o rádio. Já não conseguia manter a mesma vontade
de trabalhar e cuidar da terra que tinha quando era mais novo e
tinha mais energia. Já lhe faltava o desejo de ouvir a história que
passava no rádio.
O seu objetivo, desde que tinha ficado só e os filhos tinham
partido, era chegar ao fim do dia e acordar no dia seguinte "se
Deus quiser".
- 28 -
- 29 -
Os irmãos
- 30 -
- 31 -
III
O Justino, nome que lhe tinha sido dado a partir de uma
personagem de radionovela a que a mãe Teresa e o pai
Laurentino assistiam todas as noites depois da refeição.
Foi ele o primeiro a partir.
Tinha quinze anos e foi levado por um vizinho dos pais que
voltara à aldeia para passar as férias de agosto e lançar uns
foguetes na festa do padroeiro.
O vizinho Carmindo tinha-o visto naquela pobreza de vida;
falara com o Laurentino e dissera-lhe que o rapaz tinha trabalho
com ele em França e que sempre podia ganhar algum dinheiro
para ajudar a melhorar a sua vida e a da família.
Garantira-lhe que tomaria conta dele como se fosse seu
filho.
O Laurentino falara com a Teresa que se agarrou ao peito e
acedeu dando-lhe um oscilar choroso de cabeça. Não queria
perder a companhia do filho e não sabia se iria aguentar vê-lo
partir; no entanto, sabia que naquela pequena aldeia o filho não
teria o futuro que merecia.
Partiu, no penúltimo dia de agosto, despedindo-se
carinhosamente da sua triste mãe; abraçaram-se longamente.
- 32 -
Que Deus vá contigo, meu filho!
Vai, com certeza, minha mãe.
O pai, esse, apesar de querer parecer mais duro, não
conseguiu conter aquela lágrima que o filho limpou, dando-lhe um
encolhido aperto de mão.
Não chore, meu pai.
Que a sorte te acompanhe, meu filho.
Fez aquela longa e cansativa viagem mantendo aquela
imagem triste da mãe que se despedia enquanto o carro se
afastava lentamente pela estrada térrea. O pai, esse, já tinha
virado costas e partira para os seus campos choroso. Não
conseguiu, também ele, travar as lágrimas acumuladas até ao
momento em que começou a sentir a aldeia afastar-se.
Ficou a morar na casa do vizinho, que o desencaminhara,
durante os primeiros tempos e enquanto não se acomodava ao
país e às estranhas pessoas.
Foi-lhe arranjado trabalho numa empresa de construção
civil; começou de imediato a sua nova ocupação.
- 33 -
Apesar de sentir na pele a dureza do que era obrigado a
fazer, nunca desistiu; tinha prometido ao seu pai, em conversa de
despedida, que iria conseguir vingar. Estava determinado a
cumprir a sua promessa e a fazer tudo o que lhe fosse mandado
para que pudesse regressar a casa com a capacidade de orgulhar
os pais.
Sempre demonstrara vontade de, como bom filho, oferecer
aos pais um fim de vida melhor. Queria que não tivessem mais
necessidade de trabalhar e de passar pelas necessidades sentidas
para criar os seus filhos.
Chegara mesmo a ocupar-se, na sua distante aldeia, no
apoio à realização de trabalhos nos campos dos vizinhos, trocando
essa ajuda por bens que lhes eram necessários à existência diária.
Para além desse comprometimento com os habitantes de
Castanheiro, estudara até ao sexto ano, aprendera a ler e a
escrever e sempre se tinha apresentado como um aluno inteligente
e dedicado.
No final daquele primeiro ano emigrado, não conseguiu
juntar condições para voltar em agosto a casa. Tinha determinado
o objetivo de voltar unicamente quando pudesse legar alguma
coisa que facilitasse a vivência dos pais.
- 34 -
Conheceu, já em França e durante aquele mês de agosto,
uma rapariga portuguesa que trabalhava na limpeza de algumas
casas, em Champigny-sur-Marne.
Ficou encantado com aquela moça. Veio a saber que era
de uma terra muito perto da sua aldeia e que, se calhar, até já se
teriam cruzado na vila em dia de feira.
Cansado de trabalhar nas obras e de ser mal compensado,
trocou para um comércio de materiais de construção que
pertencia a um grego que o vira na obra e gostara do seu esmero
profissional.
Este novo patrão tinha uma série de casas que alugava aos
seus empregados mais necessitados. Ofereceu-lhe uma dessas
habitações e Justino aceitou de imediato.
Aquela casa e o novo trabalho dar-lhe-iam uma nova
perspetiva de vida e a possibilidade de constituir família com quem
começara a namorar pouco tempo depois de a ter conhecido, a
Conceição.
Casaram e foram morar para aquela pequena casa,
remodelada com a ajuda do Carmindo, na Rue de la Mézy.
Todos os dias saia de casa bem cedo e ia para o trabalho na
loja de materiais de construção civil, na Rue Benoît Frachon.
Levava a sua motoreta Scooter que comprara, em segunda mão,
com o ordenado dos dois primeiros meses de trabalho. A mesma
Scooter que tinha chamado a atenção da sua mulher quando o
- 35 -
viu passar, pelo Parc du Plateau, num fim de tarde soalheiro de
abril.
Vira-a a varrer o passeio em frente a uma das casas das
várias madames para quem trabalhava, ganhara coragem e
oferecera-se para a levar a casa.
Ela recusara a oferta com medo que o pai não achasse
muita graça uma moça solteira andar por ali com um estranho que
nem sequer se tinha apresentado ou pedido autorização para sair
com a filha.
Justino, à imagem de seu pai, não desistira de conquistar
aquela rapariga e continuara a insistir com o convite que a
Conceição viera a aceitar com a condição que pedisse
autorização ao pai e à mãe.
Ter-se-ia reunido, num jantar, com os pais para lhes pedir
respeitosa autorização de namoro.
Quais são as suas intenções?
Eu quero namorar com a sua filha, mas o que quero mesmo
é casar com ela em breve.
E acha que pode dar uma boa vida à rapariga.
Tenho um emprego e ganho bem. Estou habituado a não
ter medo do trabalho; nunca tive lá em Portugal e agora que
a conheci tenho ainda menos. Tenho uma casa para nós.
- 36 -
Já sabe que esta é a nossa única filha e que estaremos
atentos para ver se cumpre a sua palavra.
Gosto muito da Conceição e vou tratá-la sempre bem.
Pelo que me contou, conheci o seu pai e sempre o tive
como homem de palavra. Espero que saia a ele e cumpra a
sua.
Nunca mais se separaram desde que recebera permissão
para namorar a rapariga.
Naquele primeiro mês de agosto de Justino em França, a
Lurdes foi fazer-lhe companhia, levada pelo mesmo Carmindo.
Carmindo, à semelhança do que tinha acontecido com
Justino, tinha retornado, de novo, à sua pátria na companhia da
sua mulher.
Viu que aqueles pais ainda sentiam muitas dificuldades para
dar à filha a vida que ela merecia e que ele via que poderia ter em
França.
Era uma jovem mulher trabalhadora, apoiava os pais em
tudo aquilo que podia, ia à escola para aprender a ler e a
escrever, mas sabia que não poderia continuar para além do sexto
ano, pois não havia possibilidades económicas para isso.
- 37 -
Tinha a Lurdes catorze anos e o Carmindo, agora dono de
um supermercado, arranjar-lhe-ia trabalho nesse estabelecimento
que ficava na Rue Serpente, muito perto da pequena casa de
família do irmão e onde este morava já com a sua mulher, grávida
do primeiro filho.
A Lurdes recebera o nome da sua avó paterna que tinha
sido batizada em honra da Nossa Senhora de Lourdes. Tinha sido o
Padre que, na missa de uma manhã de domingo pouco antes de
a menina nascer, falara de um milagre daquela santa, fazendo
chorar as mulheres da aldeia e soluçar os homens que se
recusavam a ser vistos chorar.
No final daquele agosto de férias, lá partiram os três
deixando para trás os pais que, novamente, sentiram a saída de
mais um filho. A despedida, agora, era ainda mais penosa porque
se tratava da sua "menina", como dizia o pai Laurentino.
A Lurdes ainda pensou em ficar, desistindo da viagem; não
queria deixar ficar a mãe sozinha sem ajuda e sem a sua
confidente de sempre.
Minha filha, tens de ir, porque mereces mais do que o que
te podemos dar aqui!
Mas, minha mãe, quem vai tomar conta de ti? Quem vai
fazer-te companhia? Quem te vai ajudar?
- 38 -
Não te preocupes. Tenho o teu pai.
Quem vai falar comigo quando eu precisar de conselhos?
Tens o teu irmão.
Mas vou ter muitas saudades, minha mãe!
Também eu, mas daqui a pouco já vamos estar juntas de
novo. Vai e cuida bem de ti.
A mãe, recorrendo às suas últimas forças, resistiu às lágrimas
e acompanhou-a ao transporte que levaria a sua filha para longe
de si.
Fizeram a longa viagem, sempre com o coração preso
àquela imagem da mãe abraçada pelo pai; aquele foi um
momento raro de manifestação pública de carinho entre ambos.
Chegados a França, instalou-se em casa do irmão que
alegremente a recebeu.
Começou a trabalhar no supermercado. Primeiro como
repositora de produtos nas prateleiras, mas rapidamente foi
promovida à caixa de pagamento. Os patrões gostaram muito do
seu trabalho e da sua seriedade confiando-lhe o manejo dos
dinheiros da casa.
Ao sábado frequentava uma escola para aprender a língua
e poder crescer no trabalho.
- 39 -
Também ela, dois anos e poucos meses depois de ter
chegado a França, conheceu um rapaz daquela cidade,
empregado numa oficina de motos. Lá tinha o irmão comprado a
sua Scooter e mantivera contacto para possíveis negócios futuros.
Apresentou-lhe a sua irmã num dia em que tinham ido substituir um
cabo de travão que se tinha rebentado surpreendentemente.
O empregado reconhecera-a de imediato.
Este tinha, um dia, ido ao supermercado de Lurdes e vira-a a
colocar os produtos nas prateleiras, ficando encantado com a sua
determinação e perfeição. Não se atrevera a falar com ela, mas
não a tinha mais conseguido tirar da sua cabeça.
A Lurdes e o namorado nunca chegaram a casar o que não
era do agrado do revoltado irmão; dizia-lhe que se um dia os pais
soubessem que não estava casada, não iriam aceitar a situação e
se iriam sentir envergonhados perante os vizinhos da aldeia.
Nunca contaram nada aos pais para evitar o desgosto e
combinaram mesmo dizer que tinham casado numa pequena
igreja de Champigny-sur-Marne. Não teriam tirado, no entanto,
fotografias porque o dinheiro ainda não era muito e "os retratos
saíam caritos".
Aquele rapaz tinha já a sua casa montada e Lurdes mudou-
-se com ele para lá, deixando o irmão com a sua família.
- 40 -
Nunca se afastaram os irmãos; encontravam-se todos os dias
ou para almoçar após a paragem no trabalho ou para jantar no
final da labuta diária.
Nos domingos reuniam as duas famílias na casa de um ou de
outro e trocavam memórias do passado, tentando diminuir as
saudades que tinham dos pais.
Voltariam todos a casa e à terra natal naquele verão que se
aproximava.
Viajaram naquele início de férias, Justino, a mulher e os dois
filhos, no seu Simca 1100 e num Renault 4L, vinham Lurdes, o
companheiro e a filha, dois anos depois de Lurdes ter saído da sua
pequena aldeia.
Voltavam à pequena aldeia no mês das festas do padroeiro.
Traziam os carros cheios de roupas e de objetos diferentes que,
diziam eles, toda a gente da cidade tinha e precisava.
Disse o seu pai Laurentino, olhando admirado para aqueles
equipamentos, que eram objetos modernos onde se ouviam vozes
como acontecia com o seu rádio ou com o telefone do café do
Ramiro.
Eram máquinas que tiravam os retratos às pessoas e de
imediato se via sair, pela frente da dita máquina, um pedaço
quadrado de papel; depois abanavam aquilo e começava a
aparecer a figura da pessoa retratada.
- 41 -
Isto é um milagre!
Traziam sempre, também, uns chocolates e uns rebuçados
que eram a alegria dos filhos e dos vizinhos que se juntavam perto
da casa do Laurentino sempre que corria a voz que o Justino e a
Lurdes tinham chegado com os meninos.
Naquelas férias de verão não tiveram a companhia da sua
mãe que falecera surpreendentemente.
Choraram a sua falta e tentaram convencer o pai a viajar de
volta com eles.
Laurentino nem sequer considerou aquela possibilidade. Não
conseguiria afastar-se da sua Teresa; todos os dias se dirigia ao
cemitério e ali passavam algum tempo a conversar.
Para além dessa necessidade que sentia, considerava já não
ter nem idade nem saúde para sair da sua Castanheiro natal.
Partiram, juntamente com os filhos e restante família, logo
que terminava a pausa anual no trabalho; deixavam o pai para
trás sabendo que até ao ano seguinte não mais teriam notícias
dele.
Desconheciam, ainda, se aquela seria a última vez que
estariam todos juntos, lembrando a partida da mãe na sua
ausência.
Mal sabiam que assim aconteceria.
- 42 -
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O Senhor Padre
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- 45 -
IV
Joselito era um rapazinho muito distraído que gostava de
jogar ao botão ou ao pião com os colegas.
Para jogarem ao botão, faziam um pequeno buraco no
chão junto a uma qualquer parede e começavam a lançar os
botões retirados da caixa de costura das mães; o botão tinha de
bater primeiro na parede e depois entrar no buraco. Aquele que
conseguisse depositar o seu na cova ganhava os dos restantes que
ficavam fora. Quando mais do que um menino atingia o objetivo,
dividiam o espólio revertendo o sobrante para o mais velho.
No pião, cada um trazia os seus melhores carrapetas para
abrir as hostilidades; depois era vê-los rodar, rodar e rodar até que
um deles parasse e caísse. O jogador cujo pião parasse primeiro
tinha de lançar o batatinha para receber as maçarocadas dos
outros enquanto aguentasse. Muitas das vezes alguém saia a
choramingar com os pedaços do batatinha na mão, mas era assim
mesmo.
Na Escola, o Professor Armandino Sá via-o como um dos
melhores alunos, mas nada que se comparasse com ele próprio
quando era aluno.
- 46 -
Quando o Professor Sá andava na escola, sabia tudo na
ponta da língua, desde os reis, até aos rios e afluentes e mesmo as
tabuadas; tinha uma caligrafia perfeita que treinara no caderno
pautado de cinco linhas durante largos anos.
Agora ninguém quer saber nada. Acham sempre que sabem
tudo e que não é preciso trabalho! Até parece que alguma
coisa cai do céu!
O menino José estava sentado ao lado do seu melhor
amigo, o Nabo; assim lhe chamavam, na brincadeira, por ter
muitas dificuldades nas contas de dividir e multiplicar e não pela
forma esquisita que apresentava o seu nariz (assim lhe diziam para
que não ficasse triste).
A culpa era da tabuada que "não tinha jeito nenhum".
Também não percebia muito bem para que lhe iria servir saber os
reis das dinastias e os rios de Portugal; uns já tinham morrido há
muito tempo e nem os tinha conhecido de lado nenhum, os outros
corriam longe dali e nunca lhe fariam diferença.
Queria, como o seu pai, ser eletricista e nem os reis o iriam
ajudar a juntar os fios, nem a água daqueles rios poderia chegar-se
perto dos condutores elétricos para não dar choque e queimar
tudo. Para além disso não era muito amigo da água que evitava a
todo custo que se aproximasse do seu corpo.
- 47 -
Quanto à tabuada já nem tentava; não conseguia
perceber, por muito que se esforçasse, como é que o cinco vezes
o oito poderia dar quarenta.
O José, pacientemente, juntava cinco pedras em oito linhas
diferentes e depois pedia ao Nabo que as contasse; ele lá
contava, mas dizia que assim era mais fácil porque só tinha de
somar as pedras e não multiplicar como nas tabuadas.
Somar eu consigo. Pego nos dedos e já está.
O Nabo era mesmo assim e o José gostava do seu amigo
assim como ele era.
Quando havia que explicar como se substituía uma lâmpada
fundida na sala, o Nabo brilhava. Enchia ainda mais o seu peito de
ar e dava uma longa explicação técnica sobre o assunto,
passando depois a cometer o heroico ato de dar à luz na sala de
aula.
Recebia o aplauso entusiástico por parte dos colegas, mas
imediatamente interrompido pelo Professor Sá que não admitia
aquele ruído na sua sala de aula, apesar do reconhecimento ao
trabalho desenvolvido pelo rapaz.
- 48 -
O Professor Armandino Sá era um homem muito sério,
exigente com os meninos e por vezes violento. Castigava
duramente qualquer um deles, com umas boas reguadas, ou
bofetadas (quando a régua não estava à mão) sempre que não
respondiam às suas ameaçadoras perguntas, constantemente
acompanhadas por um "Vê lá o que dizes!" e um dedo bem
apontado ao menino que trémulo transpirava.
Exigia que soubessem, sem abrir o caderno, o nome e
localização geográfica exata dos rios de Portugal, onde nasciam,
que terras banhavam e onde desaguavam; já não exigia os
afluentes mas premiava com um raro "Muito bem, menino!" aquele
que os soubesse corretamente. Ele era o Mondego, o Guadiana, o
Minho, o Tejo, o Sado, o Vouga e muitos outros; havia até um que
se chamava "Nabo" como respondeu o Nabo ao querer dizer
"Nabão". Sabia que todos se iriam rir dele pela associação ao seu
nome.
No dia seguinte o pobre rapaz apresentava uma grande
bolha na palma da mão direita, resultado das dez reguadas que
lhe valeram o rio "Nabo".
Mostrava-se, no entanto, orgulhoso por ser o prémio da sua
resistência ao riso dos colegas e por não poder justificadamente,
devido à lesão, escrever o que o Professor mandasse naquele dia.
- 49 -
Não admitia que ninguém desconhecesse os reis de todas as
dinastias portuguesas e os respetivos cognomes.
Os pequenos lá balbuciavam os da primeira, de Borgonha:
D. Afonso I, o Conquistador, o Fundador, o Grande; D.
Sancho I, o Povoador; D. Afonso II, o Gordo, o Crasso, o Gafo,
o Legislador; D. Sancho II, o Capelo, o Piedoso, o Pio; D.
Afonso III, o Bolonhês; D. Dinis I, o Lavrador, o Rei-Trovador, o
Rei-Poeta, o Rei-Agricultor; D. Afonso IV, o Bravo; D. Pedro I, o
Justiceiro, o Cruel, o Cru, o Vingativo, o Tartamudo, o Até-ao-
-Fim-do-Mundo-Apaixonado; D. Fernando I, o Formoso, o Belo,
o Inconstante, o Inconsciente.
Seguiam-se os da segunda, de Avis; aumentava o
arrastamento na língua dos meninos e um ou outro abria
disfarçadamente a boca:
D. João I, o de Boa Memória; D. Duarte I, o Eloquente, o Rei-
-Filósofo; D. Afonso V, o Africano; D. João II, o Príncipe Perfeito,
o Tirano; D. Manuel I" e parava toda a gente com o catarrear
do professor que fazia com que despertassem em alerta, "D.
Afonso V no segundo reinado; D. João II no segundo reinado;
D. Manuel I, o Venturoso, o Bem-Aventurado, o Pomposo; D.
João III, o Piedoso, o Pio; D. Sebastião I, o Príncipe Desejado; D.
Henrique I, o Casto, o Cardeal-Rei, o Eborense.
- 50 -
Depois era fácil e cantarolavam automaticamente um
pouco mais alto os da terceira, a Filipina; até o Nabo elevava a sua
voz acima da dos colegas de classe:
Filipe I, o Prudente; Filipe II, o Pio, o Piedoso; Filipe III, o Grande
…
e nesta altura o professor Armandino fazia notar a sua voz dando
expressão à sua maior admiração pelo "o Grande".
A voz baixava e ouvia-se
Na terceira, a de Bragança, eram D. João IV, o Restaurador,
o Afortunado; D. Afonso VI, o Vitorioso, o Prisioneiro; D. Pedro II,
o Pacífico; D. João V, o Magnânimo, o Magnífico, o Rei-Sol
Português, o Freirático; D. José I, o Reformador; D. Maria I, a
Piedosa, a Louca; D. Pedro III, o Capacidónio, o Sacristão, o
Edificador; D. João VI, o Clemente; D. Pedro IV, o Rei-Soldado,
o Rei-Imperador, o Libertador; D. Maria II, a Educadora, a Boa-
-Mãe; D. Miguel I, o Rei Absoluto, o Absolutista, o
Tradicionalista, o Usurpador; D. Maria II no segundo reinado;
e aqui ninguém se enganava porque o professor se tinha colocado
no estrado e lhes tinha mostrado o indicador,
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D. Fernando, o Rei-Artista; D. Pedro V, o Esperançoso, o Bem-
-Amado; D. Luís I, o Popular, o Bom, o Rei-Marinheiro; D. Carlos
I, o Diplomata, o Martirizado, o Mártir, o Oceanógrafo, o Rei-
-Pintor; D. Manuel II, o Patriota, o Desventurado, o Estudioso, o
Bibliófilo, o Rei-Saudade.
Nesta última tirada, o Nabo só mexia os lábios ao som dos
colegas para não dizer nenhuma asneira.
No final, o professor Sá, numa das vezes das dinastias:
Estão todos de castigo!
Olhavam todos para o Nabo.
Ele tapava a boca e abanava negativamente com a
cabeça querendo dizer que nem tinha falado.
Ficavam de boca aberta, mas silenciosos, questionando-se
sobre o que teria falhado ou o que teria o Nabo dito.
O castigo é escrever cinco vezes os reis e a dinastia a que
pertenceu cada um. Vamos lá meus meninos ou tenho de vos
aguçar as mãos? levantando a régua costumeira.
- 52 -
Ninguém se atrevia a responder ou mesmo questionar.
Ninguém exceto o Rufino que lá ao fundo levantara o braço e,
tendo a devida autorização, perguntara o que tinham falhado.
Senhor professor, qual foi a nossa asneira?
O Muito Amado. D. Fernando, o Muito Amado. Esqueceram-
-se deste dado muito importante.
O Nabo recostava-se, de novo, na sua cadeira e respirava
profundamente mostrando um sorriso aos colegas.
Depois chegam ao exame, reprovam todos por não saber o
Muito Amado e a culpa vai ser do Professor que não ensinou
os meninos. Toca a trabalhar, seus caloteiros!
E todos baixavam a cabeça, espetavam o lápis juntamente
com o nariz no caderno liso e esticavam as dinastias e os reis sem
deixar que nada falhasse para não terem de repetir novamente
mais cinco vezes, ou levar tantas reguadas quantos reis a nação
teve.
A tabuada tinha de ser sabida na ponta da língua, da frente
para trás e de trás para a frente.
- 53 -
Na noite anterior aos dias de tabuada ninguém repousava
muito bem; muitos adormeciam mesmo com a lengalenga na
ponta da língua em vez do Padre-Nosso ou da Salvé Rainha.
A caminho da escola, nesses dias de questionário
matemático, em vez das brincadeiras do costume, ouvia-se, daqui
e dali, as vozes que se cruzavam entre o oito vezes quatro e o seis
vezes sete, ou mesmo o nove vezes nove. O Nabo ficava-se pela
do um, porque era só repetir os números. Depois, na sala, era rezar
para não lhes calhar o dedo do Professor ou para lhes sair uma
tabuada decorada. Mantinham, no entanto, a cabeça sempre
baixa para se tornarem invisíveis.
O Professor Sá vestia as suas roupas escuras com sapatos
pretos sempre bem lustrados, que contrastavam com a sua cor
pálida. Mostrava uma cabeça tão lustrosa quanto os sapatos onde
pontuava um peleiro branco que penteava para o lado na
tentativa de cobrir a desértico crânio.
Não conseguia encontrar espaço suficiente na cadeira de
braços para se sentar, devido à largura corporal que apresentava,
o que o obrigava a circular pesadamente entre as carteiras dos
meninos, aproveitando para distribuir um ou outro açoite quando
reparava numa caligrafia menos legível ou num número menos
bem-desenhado.
Aquele homem frequentara o Seminário até ao momento
em que decidira sair para cumprir o serviço militar, trocando
unicamente de farda.
- 54 -
Logo que voltara da satisfação da obrigação pátria, porque
era aí que se fazia "um homem a sério", começara a ensinar
meninos na escola primária da sua freguesia, por indicação de um
Major que conhecera. Mantinha a sua postura militarista que
aprendera no Seminário e aperfeiçoara nas fileiras militares.
Tinha mantido o celibato que trouxera do Seminário e
morava sozinho numa velha casa que pertencera à família.
Ao domingo, o José ajudava o Senhor Padre na missa, por
vontade da mãe e a descontento do pai que preferia vê-lo a
trabalhar a seu lado "como um homem"; no final da missa podia
comer o que tinha sobrado das hóstias não benzidas pelo Padre.
Um dia, depois da missa, foi à sacristia buscar a paga pelo
seu apoio concentrado na celebração; guardou umas quantas
hóstias no bolso que depois deu aos colegas de brincadeira
fazendo de conta que era ele o Padre.
A mãe viu aquela brincadeira e achou que o rapaz até tinha
algum jeitinho, pois fazia tudo exatamente como acontecia na
missa.
Ainda me vai dar um belo Padre, este meu rapaz.
Aquele sinal na ponta do nariz e o cabelo cortado à tesoura
pela mãe davam-lhe um ar de adulto; esse aspeto só era
contrariado pelas brincadeiras típicas dos seus seis anos, pelos
- 55 -
beijos diários à mãe ao deitar-se e pelo "A sua bênção" ao pai
sempre que se levantava.
Certa manhã, correu de casa com pressa para ir ganhar uns
botões ao Nabo e aos outros amigos que aparecessem para a
brincadeira. Levantou-se de um pulo, molhou a ponta dos dedos
na torneira gotejante da cozinha, passou-os pelos olhos, penteou o
cabelo tesourado e correu porta fora.
Quando voltou, umas horas depois por chamado da fome,
com o bolso cheio de botões, colocou o pé direito dentro da porta
de casa, mas já não conseguiu completar a intensão de entrar,
colocando o outro pé; só se recorda de ver uma grande mão de
dedos grossos vindo ao encontro da sua cara e de bater com a
cabeça na parede que separava o interior do exterior da sua
casa.
Abanou a cabeça para colocar as imagens na ordem
normal, olhou para cima e viu o seu pai olhando fixamente para
ele.
Onde foste?
Só fui …
Não te esqueceste de nada hoje de manhã?
Eu …
É a brincadeira!
- 56 -
Recuperou, na sua cabecinha dorida, os momentos da
manhã e lembrou-se do "A sua bênção" que não dissera.
Percebeu, de imediato, o pecado cometido; corrigiu-o
acrescentando um pedido de desculpa e nada mais disse,
retirando-se para lavar as mãos e sentar-se à mesa. Nunca mais
deu motivos ao pai para que tivesse de repetir aquela lição.
Na sua vizinhança viviam duas meninas da mesma idade
com quem ia para a escola todos os dias.
A Madalena e a Mariana completavam o trio que saltitava
pelo passeio risonho até à porta da primária da cidade. Quando lá
davam entrada, o José seguia o seu caminho para a dos rapazes e
as duas amigas sentavam-se, lado a lado, numa das salas da ala
feminina.
A Senhora Professora Francisca Ferreira era uma senhora
brincalhona que tratava as suas meninas por "lindas" e lhes passava
carinhosamente a mão pelo cabelo todos os dias ao entrarem na
sala. Este comportamento poderia ser resultado do facto de ter
unicamente um filho rapaz, apesar de sempre ter desejado ter mais
e principalmente uma rapariga.
Era muito exigente com as crianças, mas ajudava as que
apresentassem mais dificuldades em qualquer assunto, recebendo-
-as, fora de horas, em sua casa.
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Ensinava os reis e as princesas contando histórias
maravilhosas que encantavam as alunas e as mantinham vítreas
com os olhitos brilhantes pregados nela.
Aprenderam a história de Pedro e Inês, suspirando por
aquele amor inenarrável que levara à morte da mulher que fora
Rainha depois de sepultada; soltaram um "Pobre Pedro" quando
souberam do seu regresso a casa e da descoberta da orfandade
dos seus filhos. Disseram mesmo que um dia gostariam de visitar os
dois onde estivessem para rezar por eles.
No Mosteiro de Alcobaça, meninas. Um ao lado do outro.
Cantava umas músicas animadas com as quais as alunas
aprendiam todas as tabuadas. Quando era dia de prova de
matemática ouviam-se aquelas boquitas cantarolar umas músicas
e escrever logo de seguida as tabuadas na folha.
Cinco vezes zero,
Quente de febre,
É igual a zero,
Delirou a lebre.
Cinco vezes um,
Afiada como lixa,
São cinco,
- 58 -
Disse então a lagartixa.
Cinco vezes dois,
Gritou da toca,
São dez,
A comprida minhoca.
E assim continuavam durante toda a tabuada até ao momento de
terminarem com o …
Cinco vezes dez,
Pensou o dia inteiro,
Só pode ser cinquenta,
O triste pavão faceiro.
Quem não gostava daquelas cantilenas era o Professor
Armandino Sá que, na sala ao lado separada por um muro fino
desenhado, abanava a cabeça e estalava os dedos.
Como vai aquela canalha aprender alguma coisa de jeito se
passam o dia a cantar!!! Vai ser lindo quando chegarem ao
exame e fizerem asneira. Vamos ver depois quem canta!
- 59 -
A Senhora Professora usava as suas roupas coloridas que só
acabavam nas golas dos seus sapatos a condizer. Sinalizava o
peso da sua longa experiência com o cabelo branco que lhe batia
nos ombros e enquadrava perfeitamente a face rosada fina.
Era uma mulher baixinha, um pouco mais alta do que as
meninas que ensinava, redonda.
Na sua infância e juventude tinha estado ao cuidado de
uma família de professores devido às muitas dificuldades
económicas dos pais; não conseguiam fazer entrar em casa
comida que chegasse para alimentar as bocas dos seus seis filhos,
nem mandá-los para a escola. Preferiram, então, distribuir alguns
por famílias que deles cuidassem bem e lhes dessem comida,
roupa e educação.
Nunca fora, no entanto, esquecida pelos progenitores que
frequentemente a visitavam com consentimento do casal
adotante. Esses eram momentos felizes; mostrava os seus
brinquedos aos pais, contava-lhes o que se passara na escola e às
escondidas, pensava ela, ainda dava qualquer coisa para
entregar aos irmãos que se mantinham em casa.
Acompanhara a mãe adotiva enquanto ensinava as suas
classes e começara a ajudá-la logo que tivera idade para parecer
adulta; demonstrara muito jeito para crianças o que a levou a tirar
o curso no Magistério Primário uns anos mais tarde.
Conhecera um rapaz quando tirava o curso, com o qual
viera a casar. Tiveram o Rafael Monteiro, filho que foi o único por
problemas de saúde que o marido viera a revelar.
- 60 -
Nos dias de muito calor de verão, os seus calções listados na
horizontal, a sua camisinha bem engomada e as sandálias de
cordão eram sinal distante de que vinha ali o José.
No inverno resguardava-se melhor; mantinha as riscas
horizontais nas suas calças, continuava com a camisinha
engomada agora de manga comprida, à qual se sobrepunha um
casaco grosso de fazenda. Nos pés usava o seu calçado preferido,
umas botas de cabedal que o pai lhe tinha comprado na feira por
serem iguais às suas e que lhe davam um ar de gente grande.
Durante a sua infância, para além daquela surpresa
castigadora do pai por culpa dos botões, nada de muito relevante
e diferente dos outros meninos lhe aconteceu.
Recebeu um relógio de ponteiros e corda quando passou o
seu exame da quarta classe. Aqueles ponteiros dourados brilhantes
que se moviam religiosamente no fundo negro foram o seu orgulho
e o sinal de que, a partir daquele dia, tinha de se comportar como
um homem. Desde logo ganhou a responsabilidade de cuidar do
seu presente, de o alimentar diariamente rodando a coroa e
mantendo-o vivo.
Aquelas férias de verão, que o levaram da infância à
juventude adulta, foram marcantes. Passou todo o tempo que
arranjou, entre o "A sua bênção" e o beijo de boa-noite, com a sua
amiga Madalena.
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A Madalena era uma rapariga muito serena e senhora do
seu nariz. Destacava-se na escola por ser muito organizada, atenta,
participativa e por apoiar as colegas que tinham mais dúvidas a
perceber as contas, o nome dos rios ou dos reis de Portugal; tinha
aprendido aquele comportamento com a sua professora. Nos
intervalos gostava de brincar às mães e às professoras. Era sempre
ela a mãe ou a professora.
Vivia com o pai Custódio Silva e com a mãe Laurentina de
Fátima; o irmão mais velho, o Gustinho, saíra de casa para
trabalhar em França quando a Madalena tinha completado o seu
segundo aniversário.
Brincava, quando não ajudava a mãe nas tarefas
domésticas, com as suas bonecas. Alimentava e tratava das suas
filhas com todo o carinho que estava acostumada a receber da
mãe.
Tinha cabelo comprido e claro que se estendia em cachos
até meio das costas; prendia uma parte da sua vasta cabeleira
com um laçarote no cimo da nuca. Aquele cabelo estendia a sua
beleza pela pele clara rosada que orgulhava os pais e espantava
os vizinhos.
O seu aspeto físico era enriquecido pelas suas roupas bem
tratadas; a sua saia de godé pelo joelho, as meias que cresciam
até à altura da bainha da saia, a blusa de folhos colocados à volta
do fino pescoço e os seus sapatos em pele clara eram o regalo dos
olhos dos moços que a viam passar para a escola na companhia
do José e da Mariana. O José, esse, saltitava atentamente a seu
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lado, não tirando o olho dos mirones e mostrando o seu
descontentamento, mostrando os punhos em riste, sempre que
algum se atrevia a assobiar à sua colega de viagem.
Nos dias mais frios, a sua graça não diminuía. Substituía a
saia em godé por uma com pregas que lhe cobria as pernas até
ao tornozelo, colocava a sua camisola de gola alta coberta por
um lindo casaco de fazenda igual à do casaco do José e que o
deixava muito orgulhoso; completava a imagem com uns sapatos
rasos de couro tratado e claro.
Fez o exame de quarta classe no mesmo dia do José e foi
premiada com uma bolsa de tecido colorido e malha, no fundo,
que correu a mostrar ao amigo; este retribuiu a animada simpatia
com a visão, "mas não toques", do seu relógio de ponteiros
dourados e corda.
Para além daqueles momentos de viagem para a escola, o
José, sempre que podia, escapava-se para um dos cantos do
recreio masculino e dava uma espreitadela por cima do muro que
o separava do feminino.
Observava, em silêncio, a Madalena sentada num banco a
perguntar às colegas a tabuada do nove e voltava para os seus
botões.
Um dia foi apanhado pelo professor Sá a cometer a
arriscada e proibida façanha; valeu-lhe um longo puxão da orelha
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esquerda estendido desde o recreio até à sala de aula. Aí passou o
intervalo a escrever as tabuadas do um até à do dez sem parar
até que os colegas voltassem. Mas valeu a pena o castigo, pensou
ele com um sorriso maroto.
As férias de verão passou-as em brincadeiras com o José;
disfarçava a sua vontade com o convite à Mariana e ao Nabo
para se juntarem a eles; queria ter a certeza que o pai Custódio
não se chateava por estar sempre na companhia do rapaz.
Olha que não fica bem a uma menina como tu estar sempre
com aquele moço!
Mas ele é o meu amigo, pai!
Vai brincar com as tuas amigas a coisas de menina,
Madalena!
Está bem.
A Madalena queria era estar com o José e sempre que
podia contrariava o pai.
Entraram ambos para o quinto ano, mas em escolas
diferentes.
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A Madalena rumou à escola feminina que estava a uns bons
quinze minutos de caminhada de sua casa, podendo fazer esse
caminho diariamente com as amigas.
O José, para desespero seu e grande tristeza da Madalena,
foi para uma escola que se situava junto a um pequeno monte a
sul da sua casa.
O pai, proprietário de uma pequena loja de comércio de
utilidades domésticas, achou que o rapaz iria crescer mais se
estivesse naquele ambiente presbítero onde podia ser controlado e
orientado para um futuro de sucesso. A mãe anuiu lacrimejante à
opinião do pai, até porque não poderia ser de outra forma após o
marido ter falado.
Revelou-se, o José, um bom aluno no colégio de padres.
Não podendo sair, regularmente, durante a semana para ir a
casa, ocupava-se na escrita de histórias imaginárias e na leitura
dos muitos volumes que forravam a enorme biblioteca escolar.
Todos os dias ajudava à missa da manhã e à do final do dia.
No silêncio da noite, aproveitava, sempre que lhe era
possível, para dar um salto por cima do muro que aprisionava os
alunos do colégio.
Levantava-se silenciosamente, sem acordar os colegas de
dormitório, pegava na roupa e pé ante pé lá se dirigia à casa de
banho onde se vestia.
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Descia a longa escadaria e saia por uma janela do refeitório
que se mantinha sempre aberta devido aos vapores que se
acumulavam.
Esgueirava-se por entre os pinheiros e corria pela estrada
empedrada até à frente da casa da Madalena, onde chegava, a
correr, uma boa hora depois da arrojada fuga.
Atirava uma pequena pedra à janela. Ganhava vida nova
ao receber aquele olhar entorpecido da amiga, tapado pelo
reflexo da lua no vidro do quarto.
Trocavam uns quantos gestos que só eles entendiam,
durante alguns minutos e depois voltava, da mesma forma, ao
colégio onde se deitava para dormir as poucas horas que faltavam
até à missa da manhã.
A Madalena, depois de ver o seu amigo João e trocar uma
quantidade de sinais com ele, via a sua silhueta diminuir
lentamente no escuro da noite e dormia angelicalmente até de
madrugada.
No dia seguinte, e apesar do sono da noite mal dormida, lá
estava o José, com o seu cabelinho cortado à tesourada pelo
interno do colégio, a sua farda de calças escuras e camisa branca,
pronto para vestir os paramentos e apoiar o Senhor Padre. Algumas
vezes fechava por momentos os olhos cansados, deixava cair a
cabeça, mas acordava rapidamente com o ruído das pessoas que
se levantavam ao "Oremos" do Senhor Padre.
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Assim passava os seus dias calmamente sagrados.
No final do primeiro ano de colégio, terminados os estudos,
voltara a casa para dois meses de férias.
A primeira visita feita fora a casa da Madalena. Aquele rosto
divinamente alegre estava marcado por reluzentes lágrimas de
dor. A sua mãe tinha ficado doente e não saia da cama; nada
tinha dito a José nas suas noturnas visitas para não o preocupar.
Aquela criança recatada, que se dedicava à criação
artística nos seus desenhos de flores e campos verdejantes, tinha
agora de ser mulher; precisava cuidar da casa e do pai.
Iria abandonar a escola ainda com o seu belo cabelo
comprido encaracolado, preso no cimo da nuca com um laçarote
colorido.
No meio da sua lida caseira ia encontrando tempo para se
encontrar, às escondidas do pai e com a concordância enferma
da mãe, com o José que vivia os seus dias de férias à espera
daquele momento; recebia o sinal combinado e saia do meio das
árvores que limitavam a casa da Madalena e onde se escondia da
reprovação do pai da amiga.
Viviam, ali, os momentos mais felizes e cúmplices do dia de
ambos. Falavam muito, riam-se, brincavam e em muitos momentos
limitavam-se a ficar a olhar um para o outro.
Chegaram mesmo, num dia de sol, a dar as mãos; o José
consagrou um beijo envergonhado na face rosada de Madalena
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que encolheu os ombros, corou e soltou um acanhado sorriso
silencioso.
Mantiveram os seus enamoradamente inocentes hábitos
durante o tempo de colégio interno de José e de necessário
enclausurado apoio caseiro de Madalena.
Terminados os estudos colegiais, José voltaria a casa homem
feito e com a possibilidade de decidir a sua própria vida. Tinha
decidido, no silencioso recato da capela do colégio, falar com o
pai de Madalena e pedir para namorar com ela.
Madalena esperava-o.
Madalena esperou José no dia marcado para a sua
chegada por informação alegre do Nabo que o soubera no café
do Pisco.
Madalena esperou todo esse dia e dois mais a seguir
naquela janela que os separara nos seus encontros noturnos, sem
que os seus olhos brilhassem com a imagem reconfortante do José.
Soube, no final dessa semana, que o filho do Manuel Paulino
tinha seguido para o seminário. Correra a voz lá na obra onde o
pai da moça trabalhava, que o rapaz, na companhia da mãe,
tinha saído do colégio e sem desfazer as malas, seguira para o
Seminário de onde sairia ordenado Padre.
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Esta teria sido a informação que o Nabo deveria ter
comunicado à Madalena se não tivesse saído a correr de alegria,
a meio da conversa, para ir contar a novidade.
A tristeza de Madalena não se conseguia medir porque
decidira escondê-la da sua mãe que tinha piorado e precisava de
tudo menos de ver a sua filha desgostosa.
No entanto, o seu coração esmorecera e definhara com
aquela ausência inesperada, recordando os sentimentos que
deveriam ter invadido Pedro ao descobrir o corpo frio da sua Inês.
Percebeu que não mais poderia ver o seu João nem pensar
em construir com ele a família que sempre desejara
simuladamente nas suas brincadeiras com bonecas.
O definhar do seu coração foi acompanhado por sua mãe
que veio a falecer alguns meses após o fenecimento do coração
de Madalena.
A triste moça ficou por ali perdida em casa, atormentada
entre a falta do José e a má-vida pela qual seu pai começara a
encarreirar, por saudade da sua Laurentina e por se ver com uma
filha para criar sozinho.
O pai, vendo-se sozinho com uma casa para governar e
uma filha para criar, percebeu que não iria ser capaz de cumprir o
seu dever. Saia de manhã para o trabalho e voltava sempre já o
sol se escondia atrás do monte que acompanhava a escola que o
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José frequentara. Entrava em casa, já ébrio, e recolhia-se no seu
quarto vazio sem sequer notar a presença da criança.
Da solidão acumulada resultou a entrada de uma estranha
em casa como companheira do pai. O mau relacionamento que
mantinha com aquela mulher, os maus-tratos resultantes da
ignorância a que era sujeita diariamente, obrigaram a menina a
decidir dar um novo rumo à sua vida desesperada.
Partiu, um dia, para trabalhar nas limpezas; encontrou uma
casa onde vivia uma família de cinco pessoas que a acolheu
como empregada doméstica e ama dos dois filhos mais novos.
Mantinha semanal contacto escrito com o José. Não desistia
da sua intenção, apesar de nunca receber resposta.
José sempre estranhara a falta de resposta às cartas que
pedia ao Reitor para enviar para casa, mas que na realidade eram
para a sua Madalena. Desconhecia também o motivo para não
receber notícias da Leninha. Pensava que se calhar se poderia ter
esquecido dele; até nem era de admirar devido a tudo o que tinha
acontecido e ao tempo que tinha passado.
No seu segundo ano, chegou ao Seminário uma carta.
Avisado pelo Padre Justino da chegada da missiva, correu de
alegria ao gabinete do Reitor, na esperança de ser da Madalena.
Entrou naquele espaço lúgubre e viu a postura esfíngica do
velho homem. Escondeu o sorriso que trazia nos lábios e recebeu a
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carta aberta com uma palmada nas costas e um "Força, meu
rapaz!".
Era de sua casa e tinha escrito, com a letra da sua mãe, que
o seu pai morrera num acidente na loja.
Seu pai, à falta de ajuda e por peso da idade cansada de
muito trabalho, começara a arrumar umas estantes onde
guardava produtos que vendia. Uma das estantes tombara e ele
teria ficado preso por baixo dela, vindo a falecer ali no momento.
Fora descoberto no final do dia, quando a loja de comércio ficara
aberta após a costumeira hora de fecho.
Partiu, no dia seguinte, com a bênção do Senhor Reitor para
voltar dali a dois dias.
Entre a tristeza que lhe invadia o coração pela perda do seu
pai, encontrou um pequeno espaço onde reluzia uma leve luz de
esperança. Seria a sua oportunidade de rever a Madalena, falar
com ela e saber de tudo o que se passara.
Aquela pequena luz desapareceu quando procurou, com o
olhar, a Madalena entre as pessoas que assistiam aos serviços
fúnebres e não a encontrou em lado nenhum.
Depois do funeral do pai, soube que a Madalena tinha
partido dali, há já algum tempo. Não conseguiu, no entanto, saber
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para onde tinha ido nem o que fora fazer, pois o Nabo não
obtivera nenhuma informação relevante.
Regressou ao seu cárcere sem ter satisfeito o desejo
escondido de rever a sua amiga. Regressou com uma terrível
certeza de que não mais veria a sua Madalena, aquela que tinha
conseguido manter o seu coração vivo apesar do negrume do
ambiente em que passava os seus dias.
O Senhor Padre José de Deus Oliveira terminou a sua
formação clerical e depois de ordenado, foi enviado para uma
pequena aldeia situada entre montes e vales e servida por um
estreito caminho serpenteante de terra poeirento.
Era um jovem forte, bem-arranjado, eloquente e que
despertou, desde a primeira missa celebrada na pequena igreja, a
admiração respeitosa das mulheres e o apreço dos homens
daquela sua nova paróquia.
Alojou-se na casa da Igreja e assim se manteve durante
vários anos.
Como fazia algumas vezes durante o ano, um dia foi à
cidade comprar um novo cálice para as suas celebrações na
igreja e um fato preto para si.
Conduzia, já na metrópole, o seu automóvel por uma rua de
comércio e muito espaço verde, quando viu uma figura feminina
que lhe trouxe à memória velhos tempos.
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Estacionou o seu velho Volkswagen carocha que herdara do
seu antecessor e este do anterior, numa praça junto à casa de
paramentaria. Satisfez a necessidade do cálice ali mesmo,
escolhendo um com a imagem do coração de Cristo e uma cruz
na tampa; a sua cor dourada luzia da mesma forma que os
ponteiros do relógio que trazia no pulso e que se moviam
religiosamente desde a conclusão da sua quarta classe.
Percorreu, a pé, uma outra rua que o levava à alfaiataria e,
num parque próximo onde brincavam crianças, sentiu um calor
estranho no peito. Parou.
Bebeu um pouco de água numa bica ali instalada para
satisfazer a sede dos mais pequenos, sentou-se num banco de
madeira à sombra.
Levantou os olhos e viu aquela imagem de mulher que o
levara ao passado por momentos quando passava com o seu
Volkswagen.
Ficou ali sentado a observá-la e a tentar perceber de onde a
conheceria. Poderia até parecer mal um homem de Deus estar
assim estacado a olhar para uma mulher ali no meio de um
parque, o que o fez disfarçar olhando para as crianças que
brincavam.
Seria alguém que vira na sua nova paróquia?
Seria confusão sua com alguém muito parecido que
conhecera?
Naquela incerteza, uma ideia assaltou-lhe o pensamento.
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É a Madalena! Só pode ser a Madalena!
Não se rendeu ao desejo incontrolável de se aproximar dela
com receio de errar nas suas suposições. Continuou ali sentado
naquele mesmo banco, sem conseguir tirar os olhos daquela
mulher.
Lena! Lena!
Chamava uma das crianças que oscilava num dos baloiços
guinchantes do parque. O pedido de ajuda levou aquela mulher a
dirigir-se apressadamente para a auxiliar.
Vestia uma saia com pregas e uma camisa com folhos que
eram tocados pelo cabelo comprido encaracolado e claro. Mas
foi o laçarote colorido no cimo da nuca que fez o Senhor Padre
dar um salto do banco e dirigir-se a ela.
Chegado junto da criança suspensa no baloiço, olhou para
aquela mulher que se baixara para parar o trémulo baloiço; ela
olhou para ele sem nada dizer e ali ficaram até serem acordados
daquela letargia pelo puxão na saia da menina que salvara.
Recolheu a pequena no colo e voltou a fixar o olhar naquele
homem vestido de preto, raro cabelo na cabeça achatada, e que
deixava correr uma lágrima pela cara que circundava um nariz
com sinal na ponta.
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Tu és a Madalena!
Sou. E tu… és o José!
Pousou a criança que se impacientava para viajar no
escorrega.
Uniram-se num abraço saudoso preso desde o dia em que se
tinham visto pela última vez naquela fugida de casa.
Demoraram o abraço discretamente durante longos minutos.
Sentaram-se ambos num outro banco de madeira e falaram
demoradamente sobre as suas vidas ao longo daqueles eternos
anos de separação forçada.
Tens uma filha muito bonita!
Não é minha filha. Só tomo conta dela e daquele outro
menino que é seu irmão.
O José suspirou profundamente.
A Madalena sorriu.
Não esgotaram naquelas horas os anos que os tinham
separado; marcaram o mesmo local para se encontrarem no dia
seguinte e terminarem aquele reencontro, já sem a necessidade
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de atender constantemente aos pequenos que continuavam a
brincar.
Madalena recolheu as duas crianças e partiu, não sem antes
voltar a olhar para aquele milagre inesperado.
José continuou sentado naquele parque vendo-a partir;
olhava para o céu e agradecia aquele dia.
Voltou ao seu herdado transporte e percorreu os
intermináveis quilómetros que o separavam do seu novo lar.
Ainda o sol não tinha refletido os seus raios nas espigas de
cereais dos longos campos que rodeavam a sua morada
paroquial, já o Senhor Padre estava a pé e preparado para se
reunir com o passado. Vestira o seu velho fato negro que sacudiu
do pó.
Percorreu aquela distância que o separava da cidade sem
reparar nem na paisagem, nem naquele acidente que tinha
ocorrido ao passar pela velha ponte sobre o seco ribeiro, nem
mesmo no viajante que circulava arrastadamente e pedia,
estendendo o polegar, que o levassem.
Chegou à cidade, ao parque de crianças e ao banco de
madeira; sentou-se e olhou em volta sem ver vivalma.
Bebeu, novamente, um pouco de água da bica das
crianças e olhou novamente para o céu azul-quente daquele dia
cor de milagre.
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O sol brilhava e o calor obrigava a que enrugasse a testa
húmida ao olhar para cima de olhos semicerrados.
O que iria fazer da sua vida. Era um homem de Deus e aquilo
que estava a acontecer era um pecado. Mas Deus não o poderia
castigar por voltar a sentir amor, algo que sabia estar na base de
todos os ensinamentos que absorvera ao longo da sua formação
sacerdotal.
Mastigava estes pensamentos na sua cabeça quando foi
interrompido por uma voz doce que o fez esquecer todas aquelas
dúvidas que lhe tinham preenchido os breves momentos de solidão
perdida.
Falaram longamente das suas vidas.
Trocaram silêncios cúmplices sempre que a escola primária
era tema de recordação ou quando lembravam as noites fugidas
ao colégio em que cruzavam mensagens surdas por breves
momentos.
Repetiram cantilenas da infância e partilharam gargalhadas
quando se referiam às histórias do Nabo ou às do Professor Sá a
discutir com a Professora Francisca sobre as suas aulas ruidosas que
não o deixavam ensinar condignamente os meninos.
Madalena contou o que se passou quando teve de sair de
casa para trabalhar naquela família que a acolhera; falou do seu
sofrimento às mãos daquela mulher que o pai decidira colocar em
casa para não se sentir só e o acompanhar na bebida. Recordou o
sofrimento sentido no dia em que percebera que não mais iria ver
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o José. Mostrou todas as cartas guardadas não-respondidas ao
longo dos anos de afastamento.
O José recordou o seu sofrimento profundo ao saber que
saíra do Colégio diretamente para o Seminário sem ter a
possibilidade de a rever. Enumerou os momentos passados em
frente ao papel branco de carta que dirigia para casa na
esperança de receber resposta. Contou o momento em que,
naquele dia de despedida paterna, a procurara entre a multidão
sem a ver.
Falaram, riram, suspiraram; viveram anos num dia.
No final daquela jejuada jornada consentida, tinham
decidido que nunca mais se separariam independentemente das
promessas realizadas no passado.
O José falaria com o Arcebispo para o deixar sair do
sacerdócio. Comunicaria a sua decisão aos seus fiéis e
abandonaria a paróquia para viver com a Madalena.
A Madalena sairia de casa dos patrões para viver ao lado
do seu José. Agradeceria o apoio e dedicação dos que a tinham
recebido e, apesar de não querer imaginar a dor da separação
das crianças, partiria com aquele homem.
Assim decidiram e juraram cumprir trocando um beijo
inquieto na face.
Alguns dias após este reencontro, o Senhor Padre dirigiu-se,
no seu usado carocha, à cidade com o objetivo de voltar
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acompanhado para a sua pequena aldeia. Ficariam na sua
residência até que arranjassem morada própria para os dois.
Estacionou junto à casa onde Madalena trabalhava e
acolheu-a chorosa da despedida da família que a recolhera.
Abandonou as lacrimosas crianças que tinha ajudado a criar,
abraçando-as e beijando-as na testa.
Colocaram os poucos haveres que acumulara na pequena
mala frontal do carro e seguiram caminho.
Percorreram estradas pavimentadas, serpentearam por
aquele caminho poeirento desviando-se, quando possível, das
pedras que iam pontuando o chão, passaram um velho e alto
castanheiro e estacionaram no terreiro da sua residência
paroquial.
Foram, naquele momento, vistos pela Ti Josefina; a
descoberta levou o Padre José a inventar uma narrativa. Confiá-la-
-ia aos seus paroquianos de forma a evitar os "diz-que-disse" e os
comentários abafados que sabia serem comuns por aquelas
bandas.
Foi Madalena apresentada a todos os fiéis como
empregada que vinha tomar conta das lides caseiras do Senhor
Padre. Seria ela a tratar da lavagem da sua roupa, da limpeza da
casa e da preparação das suas refeições.
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Uns habitantes torceram um pouco o nariz à explicação,
arrastados pela beleza da rapariga e pela gaguez momentânea
original do Senhor Prior.
Chegaram mesmo a comentar pecaminosamente entre si
que aquilo ainda ia dar chamusco.
Isto não me cheira nada bem!
Pois é, vamos ver no que isto vai dar.
Um homem novo e jeitoso com uma moça bonita, sozinhos
em casa!? Vai ser lindo.
Ali retomaram as suas vidas tentando manter as aparências
perante os vizinhos da aldeia, não conseguindo evitar que alguns
deles continuassem a achar tudo aquilo um pouco estranho.
O Senhor Padre continuava, no início, a parecer o mesmo
homem e todos os habitantes da aldeia agradeciam por ter um
enviado de Deus que desse a missa todos os domingos, que os
ouvisse em confissão, que batizasse as poucas crianças que iam
nascendo e perdoasse os defuntos; não queriam muito saber
daquilo que o Senhor Padre fazia dentro de portas.
Madalena mantinha-se fechada em casa à espera do seu
José para o almoço, para o jantar e para o carinhoso repouso
noturno.
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O Senhor Padre dava a missa de domingo, dava os restos de
hóstia não sacramentada ao seu ajudante e partia a correr para
casa sem sequer se despedir dos paroquianos.
Quando era chamado para algum serviço, fosse batizado ou
funeral, fazia-o com a competência que lhe era conhecida, mas
sem perder muito tempo para voltar para junto da Madalena.
Esta alteração no comportamento do Senhor Prior fazia com
que o grupo daqueles que tinham torcido o nariz fosse crescendo
em número e em certezas.
Daquela relação carnal resultou, alguns tempos passados, a
gravidez de Madalena.
Não querendo que o José acabasse com a sua vida
paroquial, ela sempre lhe pedia para a levar à cidade onde
poderia visitá-la quando lhe aprouvesse.
O José respondia-lhe constantemente que não se separaria
mais dela e que iria cumprir o seu pensamento original de pedir ao
Arcebispo para o libertar do seu juramento, contando-lhe tudo o
que tinha acontecido.
Madalena continuava a insistir que convivia bem com
aquela situação. Não queria que ele abandonasse a sua fé e
sugeriu que montasse casa para ela e para o filho numa outra vila
distante daquela sua aldeia onde ninguém os conhecesse.
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Com o jeito que lhe era característico, convenceu o José a
aceitar a sua sugestão e assim ficou marcado acontecer a partir
do momento em que se começasse a notar que a pequena
barriga se destacava.
Viveram tempos felizes de homem e mulher durante os
poucos meses em que conseguiram esconder o segredo dos fiéis
da aldeia.
Um dia, o José chegou a casa e comunicou que tinha
cumprido o desejo de Madalena.
A gravidez começara a ser visível e ele montara casa numa
pequena vila a alguns quilómetros dali; a distância não era
demasiada para evitar que a visitasse amiúde e podiam criar o
filho sem que ninguém desconfiasse. Para além disso, teria melhor
acompanhamento médico durante aquele período na vila.
Partiram para a nova morada ímpia e instalou-se a
Madalena no conforto que lhe tinha sido preparado por José.
Todos os dias lá voltava à socapa, depois de retirados,
durante a viagem, os símbolos roupais da sua devoção, para que
ninguém desconfiasse ou criasse reais imagens daquele amor
proibido.
Madalena ia justificando as ausências e constantes partidas
de seu "marido" com uma ocupação de comerciante que o
obrigava a longas e diárias viagens.
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Mantiveram esta relação familiar até ao momento em que a
grande hora chegou. O filho tinha marcado o seu momento de
surpreender os pais.
Madalena foi assistida por uma parteira reservada da vila,
previamente avisada, que era costume trazer ao mundo as
crianças das vizinhas; nascera o "fruto do pecado", como diziam na
época sempre que um filho nascia de uma relação entre um
homem e uma mulher não casados.
Quando José chegou, uma vez mais, a casa, assistiu àquele
quadro natalício de seu filho no colo de Madalena deitados na
cama; Madalena sorriu e entregou-lhe o fruto do seu longo e
demorado amor.
José olhou para aquele seu filho longamente e abençoou-o
como fizera sempre com as crianças dos outros na altura do
batismo.
Deu-lhe um beijo na testa rosada e ainda húmida. Sentiu-lhe
o cheiro característico.
Acariciou a cara de Madalena e beijou-a na face.
Recebeu o último suspiro sorridente daquela que tinha
reencontrado após uma separação prolongada.
O parto tinha decorrido conforme previsto pela parteira.
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Já a criança tinha recebido a primeira luz do dia e
Madalena sentira uma forte dor abdominal. A parteira teria ido
cuidar da criança, mas ao ouvir os queixumes da mãe, teria
pousado o recém-nascido e verificara que a mãe sofrera uma
hemorragia interna muito grave. Aconselhara que fosse levada
para o Hospital, sugestão que Madalena recusara de imediato por
não poder contar a verdade sobre aquela criança fruto do
pecado.
A parteira tentara resolver a situação com o que tinha à sua
disposição, mas a condição afigurara-se irreversível. Madalena
pedira unicamente que a mantivesse acordada o tempo suficiente
para, pela primeira vez na sua vida, cumprir o desejo de estar em
família com o seu filho e o seu grande amor.
José amaldiçoou, com lágrimas que corriam do seu rosto
para o do pequeno e se confundiam com a humidade daquele
novo ser, aquele Deus que lhe tinha retirado a mãe do seu filho
após a ter encontrado ao fim de tantos anos.
Acatou aquela que lhe parecera uma decisão vingativa do
Deus a quem tinha devotado grande parte da sua vida, aceitando
aquela criança como uma espécie de compensação pela perda
sofrida.
Partiu daquela casa deixando para trás tempos de feliz
convivência velada e de inúmeras lembranças de um curto tempo
conjugal.
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Numa noite de sábado chegou à sua pequena aldeia com
o filho ao colo.
Comunicou aos discípulos daquele Deus que tão mal lhe
fizera, que aquela criança teria sido abandonada à porta da
sacristia da Igreja. Não sabia quem eram os pais, mas como bom-
-pastor acolhia aquele elemento novo do seu rebanho; trataria
dele com todo o amor fraterno que qualquer cristão deve
demostrar pelos seus irmãos em Cristo.
As mulheres ouviram aquelas palavras santas e deixaram
correr uma lágrima emocionada pelas faces, apertando a mão à
vizinha que se sentava a seu lado.
Os homens, quase todos os homens, sentiram aquele apego
cristão do Senhor Padre como um gesto digno de um santo. Outros
voltaram a torcer o nariz e a abanar afirmativamente com a
cabeça, pensando no seu íntimo "eu bem sabia" ou "disse logo que
isto cheirava a chamusco desde o princípio". Nada disseram
naquele momento, mas a dúvida ficou instalada.
Cuidou daquele seu filho como de um filho se deve tratar,
mantendo sempre o segredo partilhado com a entidade por si
amaldiçoada; sentia que ao dar o seu amor, o seu carinho e o seu
cuidado àquela criança mostrava a sua vingança contra a
maldade divina sofrida; ao mesmo tempo agradecia a Madalena
os momentos felizes passados e aquele fruto do seu amor.
- 85 -
A criança cresceu ali no ceio daquela comunidade e
quando atingiu a juventude foi enviado para a cidade.
Estudaria lá, cursaria medicina e só voltaria quando
merecesse ser chamado Doutor.
O Senhor Padre veio a falecer com a sua longa idade
naquela terra que lhe tinha sido atribuída e à qual tinha dedicado
a sua fé.
- 86 -
- 87 -
O emigrante
- 88 -
- 89 -
V
O Zé Amado era um homem solteiro que, como dizia,
conhecia mundo.
Não tinha encontrado ninguém com vontade de aturar o
seu constante mau-humor, pelo que se mantivera sozinho ao longo
da vida.
Tinha, uns anos antes, partido para a Suíça, mas voltara
rapidamente por não se adaptar nem ao tempo, nem às palavras
que as pessoas deixavam sair da boca. No entanto, esta breve
saída para o estrangeiro tinha-lhe dado um estatuto, entre os
vizinhos, de conhecedor das coisas da vida e das realidades das
pessoas lá de fora.
Era a ele que os mais velhos recorriam quando havia um
campo para lavrar. Metia lá o trator que comprara logo depois da
chegada da Suíça com o dinheiro que tinha trazido, e num piscar
de olhos punha tudo pronto para a sementeira.
Era ele o moço da terra que ajudava os mais velhos nas
tarefas mais pesadas, recebendo o almoço ou o jantar e uma
pinga, dependendo da hora a que terminasse as suas tarefas.
Era assim que gostava de viver e de se manter, até porque
não sabia cozinhar e tanto o pai como a mãe estavam já junto à
igreja, debaixo daquela mesma terra, fazendo companhia à
Teresa e aos restantes habitantes que tinham já partido, e não
tinha ninguém que lhe fizesse um prato de comida de jeito.
- 90 -
Dizia-se, na aldeia, que ele tinha voltado da Suíça cheio de
fome e que o não saber cozinhar fora a sua perdição lá fora.
Sabiam que tinha morado, durante aquele tempo em que estivera
emigrado, juntamente com mais seis homens, num quarto
minúsculo com camas amontoadas. Tinham de lavar a roupa
numa pequena bacia, fazer as compras e cozinhar.
Sabiam, ainda, que quando chegava a vez de ele cozinhar,
os colegas se queixavam daquilo que ele dizia ser um prato típico
da sua aldeia e que mastigava alegremente sem mostrar os dentes
em nenhum momento. Os colegas chegaram mesmo a dispensá-lo
da cozinha e a encaminhá-lo para a lavagem da roupa e da
louça, algo que ele não fazia com muito agrado por serem "coisas
de mulher".
Quando não havia trabalho a realizar para os vizinhos, lá
tinha de pegar em duas ou três batatas, umas couves e um pouco
de água, pô-las ao lume e tentar matar a fome com o tal "prato
típico" da sua aldeia, que na verdade era só tipicamente seu: um
caldo malfeito
Dia 15 de novembro de um ano já distante, nascia, naquela
pequena aldeia perdida entre montes e vales, um menino pálido
que não chorou no momento em que era esperado pelo Doutor
que se tinha ali deslocado da vila para atender aquela modesta
mulher.
- 91 -
Maria de Fátima Pereira era uma senhora com uma
experiência de vida justificada pelos seus quase cinquenta anos de
existência.
Pequena e de tez clara, tratava bem do seu cabelo negro
que combinava com as suas pestanas longas e sobrancelhas bem
desenhadas.
As mãos pequenas e calejadas apresentavam sempre umas
unhas bem tratadas. A pele macia contrastava com a solitária vida
dura que lhe tinha sido destinada.
Nascera naquela aldeia de Castanheiro da Princesa, onde
vivera toda a sua vida; só de lá se tinha temporariamente afastado
nas raras e pontuais idas à vila em dias de feira, à imagem da
quase totalidade dos vizinhos.
Aí, para além dos bens necessários à sobrevivência,
procurava algum produto para manter a sua beleza natural que
conseguisse contrariar a passagem do tempo.
Conhecera um homem que se tinha deslocado a
Castanheiro para, dissera ele na sua qualidade de comerciante,
comprar umas ovelhas que esperava serem criadas por ali.
Batera à porta de Maria de Fátima aquela estampa de
homem com os seus trinta e muitos anos, que fora recebido com
muito entusiasmo.
Aquele jovem ter-se-ia apercebido da fragilidade da mulher
e conseguira convencê-la a deixar que ficasse em sua casa. Como
- 92 -
morava numa das pontas da aldeia, ninguém se apercebeu que
um estranho se tinha instalado com a vizinha.
Uma mulher que vivia sozinha no meio de nada, foi o alvo
perfeito para aquele indivíduo que queria unicamente aproveitar-
-se de situações não acompanhadas por vizinhos cautelosos, como
aquela.
Dando cumprimento ao desejo de ser mãe, Maria de Fátima
engravidou algumas semanas depois, tendo descoberto o
desaparecimento do homem dois dias após euforicamente lhe ter
comunicado que supunha estar naquele estado que os levaria a
ser pais em breve.
Nesse dia, acordara de manhã bem cedo e sentira a falta
do jovem companheiro a seu lado.
Levantara-se e procurara-o por toda a casa. Espreitou no
exterior e também nada descobriu.
Concluiu, tristemente, que teria fugido; reparou que uma
pequena cruz em ouro, que herdara da sua mãe, e uma pulseira
dourada, que lhe tinha sido colocada no pulso pela sua madrinha
no dia de batismo, tinham desaparecido da gaveta aberta da
cómoda do quarto onde guardava aquele seu único tesouro.
Chorou durante alguns dias sem conseguir sair de casa, mais
pela perda dos seus bens do que pela do companheiro; esta
ausência temporária da Maria de Fátima causou estranheza na
vizinhança.
- 93 -
A Ti Teresa Violante, com o objetivo de descobrir os motivos
do misterioso desaparecimento da vizinha, deslocou-se a sua casa
numa tarde sombria e ouviu a mulher em confissão.
Confessado o pecado da carne vivido e os motivos para tal
ilusão, Teresa ofereceu-se, desde logo, para a ajudar em tudo o
que fosse necessário, inclusive a levar a bom-termo aquele
nascimento tão desejado.
Todos os habitantes da aldeia acabaram por saber daquela
sua história; nunca a julgaram, no entanto, compreendendo que
aquele malfeitor tinha enganado a pobre mulher, aproveitando-se
da sua fragilidade.
Quem me dera apanhar o malandro!
Diziam alguns homens.
Se o visse cortava-lho, para não fazer mal a mais ninguém!
Diziam outros que eram aprovados nas suas intensões pelas
respetivas mulheres.
Maria de Fátima Pereira dera ao mundo aquele rapazito que
não se revoltou gritando à terra naquele momento natal. A seu
- 94 -
lado, para além do Doutor, tinha Teresa que lhe segurava a mão
tentando acalmá-la com a sua experiência.
José Manuel Pereira Amado era um menino muito calado e
mal-humorado na maior parte das horas do dia. Tinha recebido o
Pereira da mãe, o Amado do pai que não conhecera (apesar de a
mãe sempre lhe dizer que aquele nome vinha do facto de sempre
o ter amado muito, mesmo antes de ter nascido); José Manuel era
homenagem ao avô.
Aquele menino sempre triste brincava pouco com as outras
crianças da povoação. Iam ter com ele a casa, convidavam-no
tentadoramente para brincar, mas este preferia quase sempre ficar
em casa a tratar das suas construções imaginárias.
Quando, raramente, aceitava o convite, aguentava pouco
tempo na companhia dos amigos; depressa começavam a jogar
aos pais e às mães o que lhe era estranho por nunca ter vivido em
ambiente parecido.
Quando o dia era dedicado aos ninhos, depressa desistia
por não gostar de aprisionar aqueles passarinhos que eram
retirados às progenitoras.
Cresceu no seu pequeno mundo limitado à sua pequena
aldeia. Para admiração da mãe, nunca sentiu necessidade de
perguntar ou saber quem era o seu pai. Aceitava a sua situação e
satisfazia-se com a sua família de dois.
- 95 -
Ficou só quando a sua mãe faleceu prematuramente com
sessenta e cinco longos anos de experiências de vida; tinha ele
quase atingido a idade adulta de dezassete anos e via-se naquela
casa vazia, isolado.
Vendo-se sem trabalho que o mantivesse alimentado,
apesar das ajudas que recebia dos vizinhos e especialmente da Ti
Teresa, que mantivera a sua promessa durante todos aqueles anos,
decidiu partir.
Aproveitou a oferta de um tio que teria mantido contactos
na Suíça; estivera emigrado nesse país distante durante muitos
anos e decidiu ajudar aquele sobrinho a dar rumo à vida.
Foi apresentado a um grupo de viajantes que, como ele,
estavam determinados a partir para não terem de continuar a
sobreviver com o pouco que a terra lhes dava. Era gente de
aldeias dedicadas à terra, umas mais próximas e algumas que se
situavam a maior distância. Estavam unidos por esse desejo de
sorte e determinados a tudo fazer para que ela aparecesse.
Ensacou uma pouca de roupa, à qual juntou os pedaços de
pão que lhe restavam da cozedura comunitária e o queijo que
recebera das ovelhas do rebanho dos habitantes locais.
Juntou-se aos outros seis homens, numa manhã de junho,
numa aldeia onde nunca tinha estado, mas à qual seu tio o
acompanhou para a despedida.
- 96 -
Partiram.
À falta de transporte que os levasse naquela viagem,
avançaram a pé até ao momento em que fossem recolhidos por
uma velha camionete que os deixaria no destino.
Partiram em direção a Espanha, à cidade de Salamanca,
onde esperavam ter transporte motorizado para a restante
viagem, como estava combinado.
Esta primeira etapa da viagem demorou-lhes uns penosos
doze dias por territórios desconhecidos para a maior parte deles. Só
um dos homens fizera já o caminho e confiavam todos nos seus
conhecimentos geográficos e na sua capacidade de orientação.
Caminhavam doze horas diárias, tinham de arranjar o que
comer e beber em pequenas atividades temporárias que iam
arranjando ao longo do caminho.
Descansavam quando havia tempo, mas sempre com o
pretendido destino em mente.
Passou por muitas terras, por montes e rios que nunca tinha
percorrido. Nunca viu, no entanto, nenhuma que fosse tão bela
quanto a sua, mesmo não tendo nenhum curso de água; tinha, no
entanto, uma bica de água de nascente fresca que dava saúde a
todos os que dela bebessem.
Por onde passavam, eram ajudados pelos locais que
estavam já acostumados àqueles grupos de pessoas que
- 97 -
infelizmente tinham de partir de suas casas para encontrar uma
vida melhor para eles e para as suas famílias.
Ofereciam-lhes dormida nos palheiros que acolhiam os
produtos recolhidos da terra; alimentavam-nos com uma sopa e
algo mais que houvesse para terem força para a longa viagem.
Que seja por Deus!
Muito obrigado.
Abordada a cidade de Salamanca, um local que lhe
pareceu outro mundo pela diferença de movimento e gente que
por ali vivia, apanhou transporte para a restante viagem.
Chegou a Santander dois dias depois da conclusão da
longa caminhada. Demoraram mais três dias a chegar às portas do
seu destino suíço. Após atravessarem a difícil fronteira, atingiram
Bordeaux, depois Lyon antes que mais uma fronteira a ultrapassar
se aproximasse.
Em tempo de emigrantes, a vigilância era muita nos postos
de controlo e a limitação à passagem maior ainda do que a vigia.
Era comum alguns emigrantes serem impedidos de passar os
postos fronteiriços, ou por não terem os documentos necessários,
ou por terem aspeto de quem iria sem objetivo de vida previsto
para o estrangeiro.
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Castanheiro da princesa

  • 1. Histórias de vida no interior do país Castanheiro da Princesa
  • 3. - 1 - Castanheiro da Princesa
  • 5. - 3 - I Percorria-se um longo caminho estreito, onde mal se cruzava um carro de bois com uma pessoa a pé, que se estendia por entre vários montes repletos de pinheiros e vales verdejantes. Depois de percorrida a poeirenta passagem ziguezagueante desenhada pelo tempo e pela força resistente do homem, contornadas as diversas pedras que por lá se encontravam semeadas, chegava-se a uma pequena aldeia no meio de campos castanhos viçosos onde eram guardadas, por árvores de fruto e trémulas cearas, umas quantas pequenas casas rústicas e humildes. Poucas pessoas escolhiam aquele irregular caminho para passar de carro e mesmo a pé não era fácil percorrê-lo e superá-lo. Só quem soubesse da existência da pequena povoação se arriscava a levar a viagem atribulada até ao fim. Não se via vivalma até poucos metros antes de se entrar no aglomerado de casas plantadas irregularmente naquele sítio de ninguém. O que se via primeiro, logo depois da térrea passagem e antes de chegar ao largo da igreja que encimava a aldeia, era um velho castanheiro pejado de folhas que escondiam ouriços verdes e castanhos. Um castanheiro que todos recordavam ser já muito alto na altura em que nasceram e do qual ouviram falar nas histórias contadas, à noite em frente ao fogo do lar, pelos pais e pelos avós antes daqueles em literários encontros familiares.
  • 6. - 4 - Havia um amontoado enorme de ouriços que se estendiam copiosamente pelo chão de terra e pelos terrenos próximos que rodeavam o tronco impossível de abraçar por dois homens. Eram em tanta quantidade que cobriam, na sua totalidade, a terra circundante, não deixando as ervas, que tentavam crescer por baixo, espreitar o sol para dele se alimentarem e crescerem. Numa dessas histórias antigas, contadas com a intenção de despertar sentimentos de tristeza e paixão nos ouvintes, falava-se de um cavaleiro em armadura reluzente que teria chegado àquelas bandas montado no seu cavalo preto como a noite que viria a dominar o seu coração empedernido pela vida. Dizia-se que viera em busca de uma bela princesa que fugira do castelo do Rei, seu pai, e com quem teria sonhado durante uma batalha. Partira o cavaleiro a meio da contenda, em que estava a comandar as tropas, deixando os seus companheiros sozinhos e entregues à morte certa em glorioso e sanguinário combate. Esse elegante cavaleiro teria escrito o nome da sua princesa de sonho naquele castanheiro e ali ficara registado ao longo dos tempos como sinal do seu sofrimento e da sua desgraça amorosa. O cavaleiro procurara a sua amada por entre montes e vales, mas acabara por não a encontrar até parar para repousar à sombra dos ramos daquele castanheiro onde gravara, com a sua espada ensanguentada, o seu nome sonhado.
  • 7. - 5 - A princesa teria sido já levada por uns nobres, enviados pelo Rei, que cavalgavam furiosamente para apoiar na batalha de onde o cavaleiro se teria retirado numa manhã de nevoeiro denso e terra vermelha. Falavam os mais velhos que aquele cavaleiro, logo que voltara ao campo de batalha, vira a sua princesa estendida no chão, no meio dos corpos destruídos dos seus companheiros de luta e dos nobres, sem vida e com uma mensagem escrita em sangue, ao lado de um punhal cravejado de pedras preciosas e que lhe era dirigida. "Procurei Vossa Mercê por todas as partes do reino, sabendo que o encontraria em um qualquer canto. Neste campo de batalha, perguntei onde estaria o meu Senhor e um bravo soldado disse-me que tinha sido morto e que se encontrava inumado neste campo de extinção. Não vos encontrei. A minha vida não faz sentido sem o Vosso amor e por isso aqui fico." O cavaleiro, destroçado com a perda da sua amada de sonho desconhecida, partira no seu cavalo negro para lugar incerto, nunca mais tendo sido visto por ninguém naquelas paragens ou em outras do reino de sua majestade. Foi procurado pelo soberano para aplicação de castigo por traição ao seu povo, mas perdoado por amor à sua amada.
  • 8. - 6 - Como é costume e adequado nestas histórias contadas na companhia do fogo da lareira, havia quem dissesse que o cavaleiro encontrara a princesa naquelas terras de Castanheiro e que ambos teriam partido, para o reino prometido, após escrever o seu nome no castanheiro montados na negra besta. Viriam a casar nas cortes do Rei, seu pai, que depois da morte deste, deixara um longo e próspero reinado para o jovem casal. Esta visão fazia com que as crianças se sentissem felizes e mostrassem os seus olhos brilhantes logo que terminava o encontro ficcional. Se à frente do contador estivessem acocorados meninos ou meninas mais calmos e imaginativos, então acrescentava-se um final feliz. E o que aconteceu depois? Depois de casarem, viveram sempre felizes para sempre. E depois? Tiveram dois lindos filhos. O rapaz, que era o mais velho, continuou a reinar e afilha manteve-se sempre junto a ele. Uau! Que linda história. Agora vamos lá todos dormir, meus meninos.
  • 9. - 7 - As casas em pedra eram cobertas por telhados em colmo e apresentavam, quase todas, uma pequena horta nas traseiras onde se cultivavam os produtos mais necessários à sobrevivência diária. Nos pequenos espaços, colhiam as couves, o feijão, as batatas, as cenouras ou mesmo as cebolas que consumiam até que terminassem; algumas vezes, partilhavam com outros vizinhos mais necessitados, na certeza que se um dia fosse necessário sabiam a que porta bater. O colmo estava já acastanhado pelo fumo das chaminés que fumegavam simultaneamente; no inverno, o fumegar dominava os céus durante todo o dia; no verão, sentia-se aquele cheiro a madeira queimada após a hora de os homens recolherem a casa para comer o caldo, já os últimos raios de sol tocavam aquelas terras, enquanto o astro se escondia atrás dos montes. Na altura da matança do porco, alguns homens dirigiam-se à vila mais próxima, no dia de feira, com os seus produtos agrícolas às costas ou em cestos de vime; tentavam lá fazer a troca por pedaços de carne de porco, de lardo ou chouriça fresca. O fumeiro era, depois, construído na casa de um dos vizinhos da aldeia; a salmoura ficava entregue a outro dos residentes. Cada ano a casa escolhida para o tratamento das carnes era diferente, assim como o responsável pelo precioso bem. Naquele calmo amontoado de casas viviam pouco mais de duas dúzias de velhos homens e mulheres fieis às suas origens e
  • 10. - 8 - resistentes à necessidade a que outros tinham cedido de partir em busca de vida melhor em terras distantes. Enfrentando as dificuldades da existência naquele local ermo, estes homens e estas mulheres sentiam que aquela era a sua terra e que não encontrariam melhor vida em qualquer outro local do mundo. Antigamente, aquele lugar tinha sido povoado por largas dezenas de homens e mulheres que trabalhavam as terras, retirando delas o sustento para si e para as suas famílias; no entanto, as dificuldades dos pais, para encontrarem trabalho remunerado, tinham feito com que a maior parte fosse saindo para a cidade ou para o estrangeiro. Depois desse afastamento inicial, os jovens da aldeia continuaram a seguir os passos dos pioneiros e o pequeno lugarejo só pôde contar com os mais velhos para continuar a sentir-se útil e com vida. Não se via uma única antena em cima das casas. Só o fumo que saia das chaminés ao longo de todo o ano se elevava acima dos telhados, criando um ambiente mais amarelado ainda do que o causado pelo colmo; em tempo de calor, viam-se as flores em vasos coloridos pendurados nas janelas abertas pintadas de azul desbotado pelo tempo. Eram acompanhados por toalhas de todas as cores que secavam, pingando a água para o terreno verde.
  • 11. - 9 - A aparência descorada das janelas estendia-se aos próprios habitantes que vestiam, na sua maioria, de negro enlutado. Esse aspeto enegrecido das gentes honrava os que tinham partido para outras terras mais ou menos distantes ou os que tinham já morrido e repousavam eternamente nos terrenos da Igreja. A única comodidade de que beneficiavam os moradores e que lhes facilitava um pouco mais a vida, era um pequeno café com telefone público que usavam quando acontecia alguma emergência ou precisavam chamar o carro para os levar à vila. Ali bebiam uma cerveja em dia de festa de aniversário do Ramiro ou às vezes no da Albertina, quando o marido o permitia. Tinham ainda o ar puro, contaminado pelos odores fortes a erva verde, a cereais castanhos, a flores perfumadas e a frutos silvestres que pululavam nos silvedos que circundavam alguns dos campos cultivados. Para além do café, onde podiam também arranjar, de vez em quando, uns ovos, uma galinha, um coelho, ou das trocas na vila, tudo o resto era retirado da terra à força de braços com o custo do suor de cada um. Os animais da terra eram umas quantas cabras que se reuniam em rebanho sazonal, umas poucas galinhas e uns raros coelhos que a Albertina criava no seu terreno, nas traseiras do café, para consumo próprio, troca ou venda aos vizinhos; havia,
  • 12. - 10 - ainda, dois cães que davam sinal de alerta sempre que se chegava um perigo ao povoado. Ladravam sonoramente quando cheiravam o lobo, quando alguém caminhava pela aldeia depois de se esconder o sol, quando havia trovoada ou quando a sede apertava. Um desses cães era de um dos habitantes que vivia numa das pontas da aldeia e que todos conheciam por ser, ou parecer ser, conhecedor das coisas da vida. Quele animal era o seu único amigo e companheiro diário.
  • 13. - 11 - Ti Laurentino da Teresa
  • 15. - 13 - II Numa das casas da aldeia vivia o velho Manuel Laurentino. Ti Manuel Laurentino, ou Laurentino da Teresa como era chamado por alguns vizinhos mais velhos, era um homem respeitado e sempre tinha sido um ser feliz. Nasceu naquele pequeno povoado de vinte e cinco casas em pedra, telhado de colmo fumegante e cultivo à porta. Mais ao longe, da sua janela descorada, via os campos bem tratados e cheios de cereais dourados, montes verdejantes cortados por um caminho em terra pedrado. Árvores de fruto ponteavam a paisagem como um tecido irregular tingido de manchas irregulares vermelhas, verdes e castanhas. Manuel Laurentino criara-se naquela mesma aldeia e nunca tinha dali saído a não ser para ir à vila em dia de feira semanal ou ir ao Doutor para ver o que era aquela dor que por vezes sentia na perna e que se recusava a aceitar que fosse da idade ou do trabalho contínuo. Sempre que tinha de ir ao pequeno burgo, voltava logo que os negócios estavam concluídos. Reconhecia que não gostava de estar muito tempo fora da sua terra, afastado da sua gente, longe da sua casa e principalmente sem a companhia da sua Teresa.
  • 16. - 14 - Laurinho, como era conhecido na sua infância, fora um rapaz que cedo decidira ficar para sempre ali na sua terra, ajudando o pai Joaquim e a mãe Maria de Lurdes a tomar conta dos campos e das colheitas. Assistira à partida de muitos dos seus amigos de infância para o estrangeiro, em busca da aventura e da riqueza prometidas. Tinha muito jeito para a madeira. Trabalhava pequenos pedaços, que encontrava ao longo do caminho que percorria incessantemente ao longo dos dias e outros que cortava do velho castanheiro, que recebia os raros estranhos que por vezes se dirigiam à aldeia ou os filhos da terra que voltavam em tempo de celebração do padroeiro. Dando uso à navalha que seu pai lhe oferecera quando sentira que o filho já tinha juízo e idade suficientes para tomar conta de si próprio, dos pequenos pedaços de madeira que usava nasciam utensílios domésticos, estatuetas de figuras imaginárias e outras criações que muita gente não conseguia perceber muito bem o que eram, mas que para ele eram obras de arte. A sua mais preciosa criação tinha sido uma imagem de princesa que talhara num cavaco de madeira do velho castanheiro e que dizia ser a tal princesa do cavaleiro em cavalo negro. Percorria campos e montes em busca de ninhos secretamente escondidos, montava as armadilhas que ele próprio construía e apanhava uma ou outra ave que depois adotava e da qual tratava com todo o carinho.
  • 17. - 15 - Houve mesmo uma altura em que apanhou um jovem melro meio depenado que caíra do ninho onde nascera; alimentou-o à boca com pedaços de pão que retirava ao que lhe poderia diminuir a fome. Com muito empenho e paciência, ensinou-o a falar algumas palavras e durante alguns anos foi a sua companhia de conversa, de brincadeira e de desabafos. Acabou por perder aquele amigo à imagem dos que, ao longo do tempo, tinham voado para fora da terra. Como a maior parte das pessoas da aldeia, aproveitava os frutos que a terra lhe oferecia para matar a fome que o acompanhava todos os dias e que disfarçava com a sua original arte de criação de amigos imaginários em madeira. Em casa não havia muita abundância de alimentos; os pais cultivavam os campos e uma vez por mês, na ida à vila, tentavam trocar alguns produtos por galinhas, ovos ou, com alguma sorte, peixe que era alimento raro ou para os mais abastados. De resto havia batatas, couves, feijão, o pão de centeio que era cozido, de quinze em quinze dias, para toda a aldeia, no forno comunitário; consumiam, ainda, algum queijo que resultava da ordenha das cabras do rebanho comunitário. O que Laurinho mais gostava era do queijo que pontualmente chegava à mesa e que lhe sabia a flores e a ar puro. Não sabia quem fazia aquela delícia e também não se importava com isso. Importante era poder saborear um bom pedaço daquele raro e único manjar que partilhava com o seu amigo de penas quando este ainda estava na bela gaiola de pequenos pedaços de galhos de árvore entrançados.
  • 18. - 16 - Quando o seu companheiro partir, corria com a sua roda de madeira empurrada por um arame dobrado na ponta que encontrara, desprotegido, numa vedação de um vizinho, sentava- -se no meio de um campo de flores, tirava aquele pedaço de queijo do bolso roto das calças e degustava-o como se fosse o supremo e derradeiro alimento à face da terra. Casara-se com Teresa Violante. Fizera-o não por falta de escolha, mas por um dia ter sido tocado pela sua alegria, pelo seu olhar brilhante e pelo sorriso que lhe oferecia reconfortante. Viviam, depois de se casarem na igreja da aldeia, em casa dos pais de Laurentino que tinham morrido naturalmente alguns anos antes e depois de uma sexagenária vida de trabalho na terra. Dizia-se, na povoação, que tinha sido a festa de casamento mais bonita de sempre, registada no eterno castanheiro onde foram colocados os seus nomes ao lado daquele outro da princesa imaginária. Fizeram uma festa para todos os vizinhos da terra e ter- se-ia, até, sacrificado uma das ovelhas para alimentar tantas bocas. Teresa Violante era uma das poucas jovens que ficara naquele paraíso perdido entre montanhas depois de ter atingido a idade de casar.
  • 19. - 17 - Enquanto as outras jovens procuravam encontrar casamento, logo que os pais o permitiam, para poderem ir para fora e procurar uma vida melhor, Teresa Violante decidira manter- -se ali, tomando conta das cabras da povoação e cuidando da mãe Maria do Carmo e do pai António. O pai António não podia ajudar muito em casa por causa de um acidente que tivera e que o fizera regressar de Espanha (para grande alegria de Teresa, que sentia a sua falta e tinha de realizar as tarefas que cabiam ao progenitor, e desgraça de Maria do Carmo, que teve de se acomodar à pouca ajuda do marido e ao seu péssimo humor). António, um dos homens mais ativos que se conhecera por aquelas bandas, lá dava umas voltas pelos campos, cortava umas couves tenras e umas frutas das árvores mais baixas, mas para trabalhos mais duros ou que exigissem mais das suas costas, já não podiam contar com ele. O homem, para tentar esquecer a incapacidade que o fizera abandonar Espanha, perdia-se pelos campos e evitava encontrar-se com alguém. Quando chegava a casa, fechava-se no quarto e já ninguém podia contar mais com ele para fazer companhia ou ter uma conversa. Levantava-se, silenciosamente, para comer qualquer resto do jantar, que a mulher conscientemente lhe deixava na mesa, quando já todos dormiam.
  • 20. - 18 - A pequena Teresa acordava de manhã bem cedo e alegrava-se por ver aquele prato vazio em cima da mesa; era sinal que seu pai ainda estava por ali. Partia com o seu rebanho para mais um dia entre montes e campos, só voltando ao cair do dia. Alimentava-se do pouco que levava consigo, do que conseguia recolher na natureza e do leite que retirava dos animais com as próprias mãos, colocando a boca por baixo deles. Era também ela quem fabricava o queijo para todos os vizinhos e que tanto agradava, em segredo, a Laurinho; fazia-o ainda da mesma forma que sua mãe, sua avó e sua visavó o tinham feito durante gerações e se tinham ensinado umas às outras ao longo de anos de aprendizagem e dedicação. Era uma rapariga pequena e elegante, de faces rosadas e cabelos sempre presos encaracolados. Descalça e de roupas coloridas, chamava a atenção pela sua alegria e dedicação aos outros. Essa alegria continuou a mantê-la mesmo depois de o seu pai ter morrido por força da vergonha de não poder cuidar da sua família como queria e exigiam os vizinhos (ou, pensava ele que exigiam). Na sua natal aldeia, Laurentino era conhecido pela sua barba branca comprida, pelo seu andar calmo e molengão, pelo seu cigarro sem filtro no canto da boca que se movia constantemente ao ritmo do seu assobio e o obrigava a cuspir os pedaços de tabaco que se iam colando à língua. Vestia sempre de preto em memória da sua Teresa que o abandonara há já
  • 21. - 19 - quase trinta anos; tinha sido o dia mais triste da sua vida quando, ao chegar a casa, viu o Doutor a sair. Alguém tinha ouvido um grito, tinha ido a casa que se mantinha, como de costume, de porta aberta e vira a Ti Teresa estendida imóvel no chão. Havia um banco partido ao seu lado e junto da pequena janela alta que dava para os campos de cereais onde o marido normalmente parava para cavar, regar ou verificar da sua maturação. Tinham corrido a casa do Doutor Pereira que, com a sua mala debaixo do braço, se tinha apressado a ver o que se passava, correndo tão rapidamente quando o fato negro o permitia. Naquele dia, Laurentino acordara, como sempre, quando o sol batia na sua janela e projetava a sua luz na imagem da Senhora de Fátima que se sobrepunha à cabeceira da cama. Teresa estava já acordada e preparava na cozinha as hortaliças colhidas na pequena horta para o caldo que comeriam à noite. Olhara para trás e vira o marido levantar-se, sacudir a roupa, pentear os seus cabelos negros com os dedos e passar pela cozinha. Olhara para a sua Teresa, recebera o seu calmo sorriso e saíra de casa para o seu habitual trabalho nos campos. Apanhara duas maçãs ao sair de casa, que começara logo a rilhar e dirigira-se à fonte de água fresca de nascente. Bebera a
  • 22. - 20 - sua pinga de água, lavara a cara da noite de sono e passara a mão molhada pela cabeça, endireitando o cabelo. Cavara umas videiras onde nascia já alguma erva daninha, abrira a água da poça para regar as videiras, pois era a sua manhã de humedecer as terras que as acolhiam; encaminhara a água para os regos que fora criando ao lado das fartas ramadas. Fora dar uma volta até às cearas para verificar se estavam a maturar em condições e sem pragas. Tocadas meia dúzia de espigas, concluíra que estaria tudo em condições ajudado pelo experiente olhar e apurado olfato. Voltara a fechar a água de rega para que a poça enchesse de novo antes da próxima poçada e sentira o sol que se colocara por cima da sua cabeça e lhe aquecia o miolo descoberto. Com este calor viera o cheiro da comida da sua Teresa e por ele fora conduzido até casa. Fora recebido por um olhar calmo e reconfortante. Sentara- -se à mesa e deliciara-se com o caldo aquecido do dia anterior e com um punhado de batatas cozidas a acompanhar um pedaço de carne de porco gorda que tinha trazido na sua última ida à vila. Falaram sobre a qualidade dos cereais e de como teriam muito e bom pão durante todo o ano. Este ano parece que não vai haver fome!
  • 23. - 21 - Queira Deus que não venha nenhum mal que nos estrague a vida! Claro que não, homem. Vai correr tudo bem. Saíra depois do almoço e fora até ao adro da igreja. Tinha prometido ao Senhor Padre que limparia o mato que começava a crescer à volta do cemitério e que dificultava o trabalho das senhoras quando iam colocar as flores nas campas. A meio da tarde, enquanto recolhia as silvas num monte para deixar secar e depois queimar, sentira um aperto no peito e tivera de se sentar no chão de terra para recuperar o fôlego. Assim se mantivera durante uns minutos. Não percebera o que se tinha passado, pois fora a primeira vez que tal lhe acontecera. Sempre tinha sido homem de saúde e nem uma constipação se tinha atrevido a chegar-se perto de si. Pensou que seria melhor ir ao Doutor Pereira se aquilo continuasse a acontecer. Retomara o trabalho, sempre com aquele aperto cravado no peito, e deixara tudo no mesmo monte que viria a queimar dois ou três dias depois. Limpara, ainda, algumas ervas que nasciam nas paredes da igreja e voltara para abrir novamente a poça de água de rega das suas videiras. Terminado o dia de trabalho, voltara para casa com o sentido, ainda, naquele mal-estar que sentira aquando da limpeza do terreno da igreja.
  • 24. - 22 - Tenho muita pena Manuel, mas a Ti Teresa não caiu bem e eu não pude fazer mais nada por ela. Foram as palavras que dissera o Doutor Pereira que saia a porta de casa quando Manuel Laurentino chegava. Entrou o Laurentino, dirigiu-se ao seu quarto e viu aquela imagem da beleza da sua Teresa estendida na cama, de pele branca e fria. Já não olhava para ele da cozinha, nem lhe oferecia o sorriso quando entrava em casa. O cansaço do Ti Manel passava logo que entrava aquela porta e sentia o sorriso brilhante dos olhos da sua Teresa, agarrada ao fogão a preparar a refeição que ele mais gostava: aquela que ela ajeitava com amor e com que se alimentava na sua companhia. Após um dia de trabalho árduo nos campos, Laurentino voltava a casa, com a roupa da cor da pele castanha de terra com pontuadas manchas de suor. Olhava para a sua mulher, absorvia o seu sorriso, tirava as botas de trabalho e depois de lavar as mãos e arranjar os seus cabelos negros, sentava-se à mesa da cozinha. Sempre assim fora desde que formara família. Naquele dia não.
  • 25. - 23 - Não tirou as botas, não lavou as mãos e manteve os cabelos negros emaranhados. Pior do que tudo aquilo foi não merecer o calmante sorrir da Teresa. Sentiu o coração arrefecer, o chão fugir-lhe por baixo dos pés e o ar rarear. Não conseguiu deitar nem uma lágrima, não soltou nem uma palavra. Sentou-se ali mesmo, ao lado daquele corpo caiado imóvel. Viu o sol entrar pela janela após o luar que se tinha toda a noite refletido nos seus olhos e que, segundo se dizia na terra, lhe teriam, naquela mesma noite, pintado os cabelos de branco dorido. O Doutor voltou de manhã cedo para tratar dos papéis necessários, consolar o transformado Laurentino e dizer-lhe o que se tinha passado naquela tarde. Desses dias recorda o adeus à sua branca e quieta Teresa, as lágrimas que não lhe caíram da cara, as palmadas dos vizinhos nas suas costas, a bênção do Senhor Padre e o regresso a uma casa vazia. Olhou para a cozinha e não sentiu o calor daquele sorriso que sempre o recebera. Recorda, ainda, a falta que lhe fizeram os filhos, a dor de não poder dizer-lhes o que tinha acontecido com a sua mãe e
  • 26. - 24 - receber o seu conforto e apoio. Os filhos só viriam a saber daquela desgraça uns meses depois quando voltaram de férias. Albertino continuava, de vez em quando, a falar com a sua Teresa. Mantinham longas conversas sobre o que faria para "o comer" naquela noite, o que a Maria do Albino lhe tinha dito de manhã sobre a água que naquele dia era do Pereira, apesar de no dia anterior, o dela, não ter havido muita para regar os seus campos e matar a sede às colheitas. Falavam sobre os filhos que tinham partido e sobre os netos que deveriam ser tão queridos e tão parecidos com os filhos e com eles próprios. Olhavam para as fotografias que se empoeiravam em cima do armário do quarto e comparavam imaginárias feições. Os filhos, Lurdes e Justino, tinham partido para França já há alguns anos. Laurentino e Teresa falavam do dia em que se tinham conhecido no meio daqueles campos que agora tinham recolhido o seu corpo, enquanto Laurentino ouvia a radionovela que já não lhe fazia muito sentido. Agora não tinha com quem comentar os amores relatados e como aquilo não tinha jeito nenhum porque só podia acontecer nas histórias da radio; já não podia olhar envergonhado para a sua
  • 27. - 25 - Teresa e ver-lhe a cor marcar-se mais por baixo dos olhos, quando ouviam o som de um beijo trocado entre o Justino Rafael e a Cristiana Sofia. Um dia essas conversas desapareceram da mesma forma fria que a sua mulher tinha partido: de um momento para o outro, sem ele estar lá e sem aviso. Manuel Laurentino passara, então, a andar de um lado para o outro, sem destino, sem objetivo, sem saber realmente o que fazer ou porque andava ainda em cima das suas velhas e cansadas pernas. Os filhos continuavam em França e só voltavam no mês de agosto para a festa do padroeiro. Que bonitos estão! Estás cada vez mais parecida com a tua mãe, que Deus a tenha. Quando puderdes, passai lá em casa para beber uma pinga e provar de um bolo que acabei de fazer. Isto diziam as vizinhas à chegada dos filhos de Laurentino. Durante esse mês de férias, o Manuel parecia outro. Andava sempre limpinho, de roupa engomada e com um sorriso que acompanhava o seu cigarro no canto da boca.
  • 28. - 26 - Brincava com o neto e falava-lhe da avó Teresa e de como ela gostaria de o conhecer e de lhe fazer o bolo de nozes que era a sua especialidade. Passeava pelas suas terras, bebia a sua água fresca de nascente na bica da fonte, dava uma cavadela aqui e outra ali para que o neto visse como se fazia e para que, talvez um dia, voltasse e cuidasse do que tanto trabalho lhe dera a manter limpo e cultivável. Mostrava-lhe os sítios secretos, que só ele conhecia, onde havia ninhos de pássaros, aproveitando para lhe contar as suas juvenis aventuras de caçador de aves. Sabia, no seu íntimo, que esse dia em que o neto teria vontade de voltar à terra nunca chegaria e que nem mesmo os filhos voltariam de novo, pelo menos enquanto fosse vivo; no entanto gostava de acreditar que um dia, talvez, pudesse vir a acontecer e que o visitassem a ele e à Teresa no cemitério da aldeia. No final das férias os filhos, o neto, a alegria e a vida feliz partiam. A casa enchia-se de ainda mais memórias que se juntavam às da sua Teresa. Ficavam os retratos das férias, com o Laurentino e o neto, dos filhos com os vizinhos e de todos juntos na procissão do padroeiro a pegar o andor da Santa Teresa; ficava o vazio de uma casa cheia de histórias alegres agora frias. Ti Manel retornava, então, à sua triste e perdida vida de antes de agosto.
  • 29. - 27 - Acordava de manhã quando a primeira luz do sol batia na janela do seu quarto frio e vazio. Levantava-se e sacudia a roupa do dia anterior para poder vestir sem o pó que acumulara. Saia de casa depois de olhar para a fotografia da sua Teresa e dava a sua volta costumeira pelas terras. Apanhava uma ou duas maças da árvore da porta da casa, bebia uma pinga de água fresca da bica de nascente, fumava os seus cigarros dançantes e dava uma ou outra cavadela na terra. Voltava ao final de mais um dia no campo, depois de ter comido qualquer coisa que fizera no dia anterior. Entrava a porta, olhava para a cozinha e não via já aquele sorriso que tanto o aliviava do cansaço quando a Ti Teresa cozinhava para o jantar dos dois. Deitava-se na cama vazia de um quarto agora escuro, sem sequer ligar o rádio. Já não conseguia manter a mesma vontade de trabalhar e cuidar da terra que tinha quando era mais novo e tinha mais energia. Já lhe faltava o desejo de ouvir a história que passava no rádio. O seu objetivo, desde que tinha ficado só e os filhos tinham partido, era chegar ao fim do dia e acordar no dia seguinte "se Deus quiser".
  • 31. - 29 - Os irmãos
  • 33. - 31 - III O Justino, nome que lhe tinha sido dado a partir de uma personagem de radionovela a que a mãe Teresa e o pai Laurentino assistiam todas as noites depois da refeição. Foi ele o primeiro a partir. Tinha quinze anos e foi levado por um vizinho dos pais que voltara à aldeia para passar as férias de agosto e lançar uns foguetes na festa do padroeiro. O vizinho Carmindo tinha-o visto naquela pobreza de vida; falara com o Laurentino e dissera-lhe que o rapaz tinha trabalho com ele em França e que sempre podia ganhar algum dinheiro para ajudar a melhorar a sua vida e a da família. Garantira-lhe que tomaria conta dele como se fosse seu filho. O Laurentino falara com a Teresa que se agarrou ao peito e acedeu dando-lhe um oscilar choroso de cabeça. Não queria perder a companhia do filho e não sabia se iria aguentar vê-lo partir; no entanto, sabia que naquela pequena aldeia o filho não teria o futuro que merecia. Partiu, no penúltimo dia de agosto, despedindo-se carinhosamente da sua triste mãe; abraçaram-se longamente.
  • 34. - 32 - Que Deus vá contigo, meu filho! Vai, com certeza, minha mãe. O pai, esse, apesar de querer parecer mais duro, não conseguiu conter aquela lágrima que o filho limpou, dando-lhe um encolhido aperto de mão. Não chore, meu pai. Que a sorte te acompanhe, meu filho. Fez aquela longa e cansativa viagem mantendo aquela imagem triste da mãe que se despedia enquanto o carro se afastava lentamente pela estrada térrea. O pai, esse, já tinha virado costas e partira para os seus campos choroso. Não conseguiu, também ele, travar as lágrimas acumuladas até ao momento em que começou a sentir a aldeia afastar-se. Ficou a morar na casa do vizinho, que o desencaminhara, durante os primeiros tempos e enquanto não se acomodava ao país e às estranhas pessoas. Foi-lhe arranjado trabalho numa empresa de construção civil; começou de imediato a sua nova ocupação.
  • 35. - 33 - Apesar de sentir na pele a dureza do que era obrigado a fazer, nunca desistiu; tinha prometido ao seu pai, em conversa de despedida, que iria conseguir vingar. Estava determinado a cumprir a sua promessa e a fazer tudo o que lhe fosse mandado para que pudesse regressar a casa com a capacidade de orgulhar os pais. Sempre demonstrara vontade de, como bom filho, oferecer aos pais um fim de vida melhor. Queria que não tivessem mais necessidade de trabalhar e de passar pelas necessidades sentidas para criar os seus filhos. Chegara mesmo a ocupar-se, na sua distante aldeia, no apoio à realização de trabalhos nos campos dos vizinhos, trocando essa ajuda por bens que lhes eram necessários à existência diária. Para além desse comprometimento com os habitantes de Castanheiro, estudara até ao sexto ano, aprendera a ler e a escrever e sempre se tinha apresentado como um aluno inteligente e dedicado. No final daquele primeiro ano emigrado, não conseguiu juntar condições para voltar em agosto a casa. Tinha determinado o objetivo de voltar unicamente quando pudesse legar alguma coisa que facilitasse a vivência dos pais.
  • 36. - 34 - Conheceu, já em França e durante aquele mês de agosto, uma rapariga portuguesa que trabalhava na limpeza de algumas casas, em Champigny-sur-Marne. Ficou encantado com aquela moça. Veio a saber que era de uma terra muito perto da sua aldeia e que, se calhar, até já se teriam cruzado na vila em dia de feira. Cansado de trabalhar nas obras e de ser mal compensado, trocou para um comércio de materiais de construção que pertencia a um grego que o vira na obra e gostara do seu esmero profissional. Este novo patrão tinha uma série de casas que alugava aos seus empregados mais necessitados. Ofereceu-lhe uma dessas habitações e Justino aceitou de imediato. Aquela casa e o novo trabalho dar-lhe-iam uma nova perspetiva de vida e a possibilidade de constituir família com quem começara a namorar pouco tempo depois de a ter conhecido, a Conceição. Casaram e foram morar para aquela pequena casa, remodelada com a ajuda do Carmindo, na Rue de la Mézy. Todos os dias saia de casa bem cedo e ia para o trabalho na loja de materiais de construção civil, na Rue Benoît Frachon. Levava a sua motoreta Scooter que comprara, em segunda mão, com o ordenado dos dois primeiros meses de trabalho. A mesma Scooter que tinha chamado a atenção da sua mulher quando o
  • 37. - 35 - viu passar, pelo Parc du Plateau, num fim de tarde soalheiro de abril. Vira-a a varrer o passeio em frente a uma das casas das várias madames para quem trabalhava, ganhara coragem e oferecera-se para a levar a casa. Ela recusara a oferta com medo que o pai não achasse muita graça uma moça solteira andar por ali com um estranho que nem sequer se tinha apresentado ou pedido autorização para sair com a filha. Justino, à imagem de seu pai, não desistira de conquistar aquela rapariga e continuara a insistir com o convite que a Conceição viera a aceitar com a condição que pedisse autorização ao pai e à mãe. Ter-se-ia reunido, num jantar, com os pais para lhes pedir respeitosa autorização de namoro. Quais são as suas intenções? Eu quero namorar com a sua filha, mas o que quero mesmo é casar com ela em breve. E acha que pode dar uma boa vida à rapariga. Tenho um emprego e ganho bem. Estou habituado a não ter medo do trabalho; nunca tive lá em Portugal e agora que a conheci tenho ainda menos. Tenho uma casa para nós.
  • 38. - 36 - Já sabe que esta é a nossa única filha e que estaremos atentos para ver se cumpre a sua palavra. Gosto muito da Conceição e vou tratá-la sempre bem. Pelo que me contou, conheci o seu pai e sempre o tive como homem de palavra. Espero que saia a ele e cumpra a sua. Nunca mais se separaram desde que recebera permissão para namorar a rapariga. Naquele primeiro mês de agosto de Justino em França, a Lurdes foi fazer-lhe companhia, levada pelo mesmo Carmindo. Carmindo, à semelhança do que tinha acontecido com Justino, tinha retornado, de novo, à sua pátria na companhia da sua mulher. Viu que aqueles pais ainda sentiam muitas dificuldades para dar à filha a vida que ela merecia e que ele via que poderia ter em França. Era uma jovem mulher trabalhadora, apoiava os pais em tudo aquilo que podia, ia à escola para aprender a ler e a escrever, mas sabia que não poderia continuar para além do sexto ano, pois não havia possibilidades económicas para isso.
  • 39. - 37 - Tinha a Lurdes catorze anos e o Carmindo, agora dono de um supermercado, arranjar-lhe-ia trabalho nesse estabelecimento que ficava na Rue Serpente, muito perto da pequena casa de família do irmão e onde este morava já com a sua mulher, grávida do primeiro filho. A Lurdes recebera o nome da sua avó paterna que tinha sido batizada em honra da Nossa Senhora de Lourdes. Tinha sido o Padre que, na missa de uma manhã de domingo pouco antes de a menina nascer, falara de um milagre daquela santa, fazendo chorar as mulheres da aldeia e soluçar os homens que se recusavam a ser vistos chorar. No final daquele agosto de férias, lá partiram os três deixando para trás os pais que, novamente, sentiram a saída de mais um filho. A despedida, agora, era ainda mais penosa porque se tratava da sua "menina", como dizia o pai Laurentino. A Lurdes ainda pensou em ficar, desistindo da viagem; não queria deixar ficar a mãe sozinha sem ajuda e sem a sua confidente de sempre. Minha filha, tens de ir, porque mereces mais do que o que te podemos dar aqui! Mas, minha mãe, quem vai tomar conta de ti? Quem vai fazer-te companhia? Quem te vai ajudar?
  • 40. - 38 - Não te preocupes. Tenho o teu pai. Quem vai falar comigo quando eu precisar de conselhos? Tens o teu irmão. Mas vou ter muitas saudades, minha mãe! Também eu, mas daqui a pouco já vamos estar juntas de novo. Vai e cuida bem de ti. A mãe, recorrendo às suas últimas forças, resistiu às lágrimas e acompanhou-a ao transporte que levaria a sua filha para longe de si. Fizeram a longa viagem, sempre com o coração preso àquela imagem da mãe abraçada pelo pai; aquele foi um momento raro de manifestação pública de carinho entre ambos. Chegados a França, instalou-se em casa do irmão que alegremente a recebeu. Começou a trabalhar no supermercado. Primeiro como repositora de produtos nas prateleiras, mas rapidamente foi promovida à caixa de pagamento. Os patrões gostaram muito do seu trabalho e da sua seriedade confiando-lhe o manejo dos dinheiros da casa. Ao sábado frequentava uma escola para aprender a língua e poder crescer no trabalho.
  • 41. - 39 - Também ela, dois anos e poucos meses depois de ter chegado a França, conheceu um rapaz daquela cidade, empregado numa oficina de motos. Lá tinha o irmão comprado a sua Scooter e mantivera contacto para possíveis negócios futuros. Apresentou-lhe a sua irmã num dia em que tinham ido substituir um cabo de travão que se tinha rebentado surpreendentemente. O empregado reconhecera-a de imediato. Este tinha, um dia, ido ao supermercado de Lurdes e vira-a a colocar os produtos nas prateleiras, ficando encantado com a sua determinação e perfeição. Não se atrevera a falar com ela, mas não a tinha mais conseguido tirar da sua cabeça. A Lurdes e o namorado nunca chegaram a casar o que não era do agrado do revoltado irmão; dizia-lhe que se um dia os pais soubessem que não estava casada, não iriam aceitar a situação e se iriam sentir envergonhados perante os vizinhos da aldeia. Nunca contaram nada aos pais para evitar o desgosto e combinaram mesmo dizer que tinham casado numa pequena igreja de Champigny-sur-Marne. Não teriam tirado, no entanto, fotografias porque o dinheiro ainda não era muito e "os retratos saíam caritos". Aquele rapaz tinha já a sua casa montada e Lurdes mudou- -se com ele para lá, deixando o irmão com a sua família.
  • 42. - 40 - Nunca se afastaram os irmãos; encontravam-se todos os dias ou para almoçar após a paragem no trabalho ou para jantar no final da labuta diária. Nos domingos reuniam as duas famílias na casa de um ou de outro e trocavam memórias do passado, tentando diminuir as saudades que tinham dos pais. Voltariam todos a casa e à terra natal naquele verão que se aproximava. Viajaram naquele início de férias, Justino, a mulher e os dois filhos, no seu Simca 1100 e num Renault 4L, vinham Lurdes, o companheiro e a filha, dois anos depois de Lurdes ter saído da sua pequena aldeia. Voltavam à pequena aldeia no mês das festas do padroeiro. Traziam os carros cheios de roupas e de objetos diferentes que, diziam eles, toda a gente da cidade tinha e precisava. Disse o seu pai Laurentino, olhando admirado para aqueles equipamentos, que eram objetos modernos onde se ouviam vozes como acontecia com o seu rádio ou com o telefone do café do Ramiro. Eram máquinas que tiravam os retratos às pessoas e de imediato se via sair, pela frente da dita máquina, um pedaço quadrado de papel; depois abanavam aquilo e começava a aparecer a figura da pessoa retratada.
  • 43. - 41 - Isto é um milagre! Traziam sempre, também, uns chocolates e uns rebuçados que eram a alegria dos filhos e dos vizinhos que se juntavam perto da casa do Laurentino sempre que corria a voz que o Justino e a Lurdes tinham chegado com os meninos. Naquelas férias de verão não tiveram a companhia da sua mãe que falecera surpreendentemente. Choraram a sua falta e tentaram convencer o pai a viajar de volta com eles. Laurentino nem sequer considerou aquela possibilidade. Não conseguiria afastar-se da sua Teresa; todos os dias se dirigia ao cemitério e ali passavam algum tempo a conversar. Para além dessa necessidade que sentia, considerava já não ter nem idade nem saúde para sair da sua Castanheiro natal. Partiram, juntamente com os filhos e restante família, logo que terminava a pausa anual no trabalho; deixavam o pai para trás sabendo que até ao ano seguinte não mais teriam notícias dele. Desconheciam, ainda, se aquela seria a última vez que estariam todos juntos, lembrando a partida da mãe na sua ausência. Mal sabiam que assim aconteceria.
  • 45. - 43 - O Senhor Padre
  • 47. - 45 - IV Joselito era um rapazinho muito distraído que gostava de jogar ao botão ou ao pião com os colegas. Para jogarem ao botão, faziam um pequeno buraco no chão junto a uma qualquer parede e começavam a lançar os botões retirados da caixa de costura das mães; o botão tinha de bater primeiro na parede e depois entrar no buraco. Aquele que conseguisse depositar o seu na cova ganhava os dos restantes que ficavam fora. Quando mais do que um menino atingia o objetivo, dividiam o espólio revertendo o sobrante para o mais velho. No pião, cada um trazia os seus melhores carrapetas para abrir as hostilidades; depois era vê-los rodar, rodar e rodar até que um deles parasse e caísse. O jogador cujo pião parasse primeiro tinha de lançar o batatinha para receber as maçarocadas dos outros enquanto aguentasse. Muitas das vezes alguém saia a choramingar com os pedaços do batatinha na mão, mas era assim mesmo. Na Escola, o Professor Armandino Sá via-o como um dos melhores alunos, mas nada que se comparasse com ele próprio quando era aluno.
  • 48. - 46 - Quando o Professor Sá andava na escola, sabia tudo na ponta da língua, desde os reis, até aos rios e afluentes e mesmo as tabuadas; tinha uma caligrafia perfeita que treinara no caderno pautado de cinco linhas durante largos anos. Agora ninguém quer saber nada. Acham sempre que sabem tudo e que não é preciso trabalho! Até parece que alguma coisa cai do céu! O menino José estava sentado ao lado do seu melhor amigo, o Nabo; assim lhe chamavam, na brincadeira, por ter muitas dificuldades nas contas de dividir e multiplicar e não pela forma esquisita que apresentava o seu nariz (assim lhe diziam para que não ficasse triste). A culpa era da tabuada que "não tinha jeito nenhum". Também não percebia muito bem para que lhe iria servir saber os reis das dinastias e os rios de Portugal; uns já tinham morrido há muito tempo e nem os tinha conhecido de lado nenhum, os outros corriam longe dali e nunca lhe fariam diferença. Queria, como o seu pai, ser eletricista e nem os reis o iriam ajudar a juntar os fios, nem a água daqueles rios poderia chegar-se perto dos condutores elétricos para não dar choque e queimar tudo. Para além disso não era muito amigo da água que evitava a todo custo que se aproximasse do seu corpo.
  • 49. - 47 - Quanto à tabuada já nem tentava; não conseguia perceber, por muito que se esforçasse, como é que o cinco vezes o oito poderia dar quarenta. O José, pacientemente, juntava cinco pedras em oito linhas diferentes e depois pedia ao Nabo que as contasse; ele lá contava, mas dizia que assim era mais fácil porque só tinha de somar as pedras e não multiplicar como nas tabuadas. Somar eu consigo. Pego nos dedos e já está. O Nabo era mesmo assim e o José gostava do seu amigo assim como ele era. Quando havia que explicar como se substituía uma lâmpada fundida na sala, o Nabo brilhava. Enchia ainda mais o seu peito de ar e dava uma longa explicação técnica sobre o assunto, passando depois a cometer o heroico ato de dar à luz na sala de aula. Recebia o aplauso entusiástico por parte dos colegas, mas imediatamente interrompido pelo Professor Sá que não admitia aquele ruído na sua sala de aula, apesar do reconhecimento ao trabalho desenvolvido pelo rapaz.
  • 50. - 48 - O Professor Armandino Sá era um homem muito sério, exigente com os meninos e por vezes violento. Castigava duramente qualquer um deles, com umas boas reguadas, ou bofetadas (quando a régua não estava à mão) sempre que não respondiam às suas ameaçadoras perguntas, constantemente acompanhadas por um "Vê lá o que dizes!" e um dedo bem apontado ao menino que trémulo transpirava. Exigia que soubessem, sem abrir o caderno, o nome e localização geográfica exata dos rios de Portugal, onde nasciam, que terras banhavam e onde desaguavam; já não exigia os afluentes mas premiava com um raro "Muito bem, menino!" aquele que os soubesse corretamente. Ele era o Mondego, o Guadiana, o Minho, o Tejo, o Sado, o Vouga e muitos outros; havia até um que se chamava "Nabo" como respondeu o Nabo ao querer dizer "Nabão". Sabia que todos se iriam rir dele pela associação ao seu nome. No dia seguinte o pobre rapaz apresentava uma grande bolha na palma da mão direita, resultado das dez reguadas que lhe valeram o rio "Nabo". Mostrava-se, no entanto, orgulhoso por ser o prémio da sua resistência ao riso dos colegas e por não poder justificadamente, devido à lesão, escrever o que o Professor mandasse naquele dia.
  • 51. - 49 - Não admitia que ninguém desconhecesse os reis de todas as dinastias portuguesas e os respetivos cognomes. Os pequenos lá balbuciavam os da primeira, de Borgonha: D. Afonso I, o Conquistador, o Fundador, o Grande; D. Sancho I, o Povoador; D. Afonso II, o Gordo, o Crasso, o Gafo, o Legislador; D. Sancho II, o Capelo, o Piedoso, o Pio; D. Afonso III, o Bolonhês; D. Dinis I, o Lavrador, o Rei-Trovador, o Rei-Poeta, o Rei-Agricultor; D. Afonso IV, o Bravo; D. Pedro I, o Justiceiro, o Cruel, o Cru, o Vingativo, o Tartamudo, o Até-ao- -Fim-do-Mundo-Apaixonado; D. Fernando I, o Formoso, o Belo, o Inconstante, o Inconsciente. Seguiam-se os da segunda, de Avis; aumentava o arrastamento na língua dos meninos e um ou outro abria disfarçadamente a boca: D. João I, o de Boa Memória; D. Duarte I, o Eloquente, o Rei- -Filósofo; D. Afonso V, o Africano; D. João II, o Príncipe Perfeito, o Tirano; D. Manuel I" e parava toda a gente com o catarrear do professor que fazia com que despertassem em alerta, "D. Afonso V no segundo reinado; D. João II no segundo reinado; D. Manuel I, o Venturoso, o Bem-Aventurado, o Pomposo; D. João III, o Piedoso, o Pio; D. Sebastião I, o Príncipe Desejado; D. Henrique I, o Casto, o Cardeal-Rei, o Eborense.
  • 52. - 50 - Depois era fácil e cantarolavam automaticamente um pouco mais alto os da terceira, a Filipina; até o Nabo elevava a sua voz acima da dos colegas de classe: Filipe I, o Prudente; Filipe II, o Pio, o Piedoso; Filipe III, o Grande … e nesta altura o professor Armandino fazia notar a sua voz dando expressão à sua maior admiração pelo "o Grande". A voz baixava e ouvia-se Na terceira, a de Bragança, eram D. João IV, o Restaurador, o Afortunado; D. Afonso VI, o Vitorioso, o Prisioneiro; D. Pedro II, o Pacífico; D. João V, o Magnânimo, o Magnífico, o Rei-Sol Português, o Freirático; D. José I, o Reformador; D. Maria I, a Piedosa, a Louca; D. Pedro III, o Capacidónio, o Sacristão, o Edificador; D. João VI, o Clemente; D. Pedro IV, o Rei-Soldado, o Rei-Imperador, o Libertador; D. Maria II, a Educadora, a Boa- -Mãe; D. Miguel I, o Rei Absoluto, o Absolutista, o Tradicionalista, o Usurpador; D. Maria II no segundo reinado; e aqui ninguém se enganava porque o professor se tinha colocado no estrado e lhes tinha mostrado o indicador,
  • 53. - 51 - D. Fernando, o Rei-Artista; D. Pedro V, o Esperançoso, o Bem- -Amado; D. Luís I, o Popular, o Bom, o Rei-Marinheiro; D. Carlos I, o Diplomata, o Martirizado, o Mártir, o Oceanógrafo, o Rei- -Pintor; D. Manuel II, o Patriota, o Desventurado, o Estudioso, o Bibliófilo, o Rei-Saudade. Nesta última tirada, o Nabo só mexia os lábios ao som dos colegas para não dizer nenhuma asneira. No final, o professor Sá, numa das vezes das dinastias: Estão todos de castigo! Olhavam todos para o Nabo. Ele tapava a boca e abanava negativamente com a cabeça querendo dizer que nem tinha falado. Ficavam de boca aberta, mas silenciosos, questionando-se sobre o que teria falhado ou o que teria o Nabo dito. O castigo é escrever cinco vezes os reis e a dinastia a que pertenceu cada um. Vamos lá meus meninos ou tenho de vos aguçar as mãos? levantando a régua costumeira.
  • 54. - 52 - Ninguém se atrevia a responder ou mesmo questionar. Ninguém exceto o Rufino que lá ao fundo levantara o braço e, tendo a devida autorização, perguntara o que tinham falhado. Senhor professor, qual foi a nossa asneira? O Muito Amado. D. Fernando, o Muito Amado. Esqueceram- -se deste dado muito importante. O Nabo recostava-se, de novo, na sua cadeira e respirava profundamente mostrando um sorriso aos colegas. Depois chegam ao exame, reprovam todos por não saber o Muito Amado e a culpa vai ser do Professor que não ensinou os meninos. Toca a trabalhar, seus caloteiros! E todos baixavam a cabeça, espetavam o lápis juntamente com o nariz no caderno liso e esticavam as dinastias e os reis sem deixar que nada falhasse para não terem de repetir novamente mais cinco vezes, ou levar tantas reguadas quantos reis a nação teve. A tabuada tinha de ser sabida na ponta da língua, da frente para trás e de trás para a frente.
  • 55. - 53 - Na noite anterior aos dias de tabuada ninguém repousava muito bem; muitos adormeciam mesmo com a lengalenga na ponta da língua em vez do Padre-Nosso ou da Salvé Rainha. A caminho da escola, nesses dias de questionário matemático, em vez das brincadeiras do costume, ouvia-se, daqui e dali, as vozes que se cruzavam entre o oito vezes quatro e o seis vezes sete, ou mesmo o nove vezes nove. O Nabo ficava-se pela do um, porque era só repetir os números. Depois, na sala, era rezar para não lhes calhar o dedo do Professor ou para lhes sair uma tabuada decorada. Mantinham, no entanto, a cabeça sempre baixa para se tornarem invisíveis. O Professor Sá vestia as suas roupas escuras com sapatos pretos sempre bem lustrados, que contrastavam com a sua cor pálida. Mostrava uma cabeça tão lustrosa quanto os sapatos onde pontuava um peleiro branco que penteava para o lado na tentativa de cobrir a desértico crânio. Não conseguia encontrar espaço suficiente na cadeira de braços para se sentar, devido à largura corporal que apresentava, o que o obrigava a circular pesadamente entre as carteiras dos meninos, aproveitando para distribuir um ou outro açoite quando reparava numa caligrafia menos legível ou num número menos bem-desenhado. Aquele homem frequentara o Seminário até ao momento em que decidira sair para cumprir o serviço militar, trocando unicamente de farda.
  • 56. - 54 - Logo que voltara da satisfação da obrigação pátria, porque era aí que se fazia "um homem a sério", começara a ensinar meninos na escola primária da sua freguesia, por indicação de um Major que conhecera. Mantinha a sua postura militarista que aprendera no Seminário e aperfeiçoara nas fileiras militares. Tinha mantido o celibato que trouxera do Seminário e morava sozinho numa velha casa que pertencera à família. Ao domingo, o José ajudava o Senhor Padre na missa, por vontade da mãe e a descontento do pai que preferia vê-lo a trabalhar a seu lado "como um homem"; no final da missa podia comer o que tinha sobrado das hóstias não benzidas pelo Padre. Um dia, depois da missa, foi à sacristia buscar a paga pelo seu apoio concentrado na celebração; guardou umas quantas hóstias no bolso que depois deu aos colegas de brincadeira fazendo de conta que era ele o Padre. A mãe viu aquela brincadeira e achou que o rapaz até tinha algum jeitinho, pois fazia tudo exatamente como acontecia na missa. Ainda me vai dar um belo Padre, este meu rapaz. Aquele sinal na ponta do nariz e o cabelo cortado à tesoura pela mãe davam-lhe um ar de adulto; esse aspeto só era contrariado pelas brincadeiras típicas dos seus seis anos, pelos
  • 57. - 55 - beijos diários à mãe ao deitar-se e pelo "A sua bênção" ao pai sempre que se levantava. Certa manhã, correu de casa com pressa para ir ganhar uns botões ao Nabo e aos outros amigos que aparecessem para a brincadeira. Levantou-se de um pulo, molhou a ponta dos dedos na torneira gotejante da cozinha, passou-os pelos olhos, penteou o cabelo tesourado e correu porta fora. Quando voltou, umas horas depois por chamado da fome, com o bolso cheio de botões, colocou o pé direito dentro da porta de casa, mas já não conseguiu completar a intensão de entrar, colocando o outro pé; só se recorda de ver uma grande mão de dedos grossos vindo ao encontro da sua cara e de bater com a cabeça na parede que separava o interior do exterior da sua casa. Abanou a cabeça para colocar as imagens na ordem normal, olhou para cima e viu o seu pai olhando fixamente para ele. Onde foste? Só fui … Não te esqueceste de nada hoje de manhã? Eu … É a brincadeira!
  • 58. - 56 - Recuperou, na sua cabecinha dorida, os momentos da manhã e lembrou-se do "A sua bênção" que não dissera. Percebeu, de imediato, o pecado cometido; corrigiu-o acrescentando um pedido de desculpa e nada mais disse, retirando-se para lavar as mãos e sentar-se à mesa. Nunca mais deu motivos ao pai para que tivesse de repetir aquela lição. Na sua vizinhança viviam duas meninas da mesma idade com quem ia para a escola todos os dias. A Madalena e a Mariana completavam o trio que saltitava pelo passeio risonho até à porta da primária da cidade. Quando lá davam entrada, o José seguia o seu caminho para a dos rapazes e as duas amigas sentavam-se, lado a lado, numa das salas da ala feminina. A Senhora Professora Francisca Ferreira era uma senhora brincalhona que tratava as suas meninas por "lindas" e lhes passava carinhosamente a mão pelo cabelo todos os dias ao entrarem na sala. Este comportamento poderia ser resultado do facto de ter unicamente um filho rapaz, apesar de sempre ter desejado ter mais e principalmente uma rapariga. Era muito exigente com as crianças, mas ajudava as que apresentassem mais dificuldades em qualquer assunto, recebendo- -as, fora de horas, em sua casa.
  • 59. - 57 - Ensinava os reis e as princesas contando histórias maravilhosas que encantavam as alunas e as mantinham vítreas com os olhitos brilhantes pregados nela. Aprenderam a história de Pedro e Inês, suspirando por aquele amor inenarrável que levara à morte da mulher que fora Rainha depois de sepultada; soltaram um "Pobre Pedro" quando souberam do seu regresso a casa e da descoberta da orfandade dos seus filhos. Disseram mesmo que um dia gostariam de visitar os dois onde estivessem para rezar por eles. No Mosteiro de Alcobaça, meninas. Um ao lado do outro. Cantava umas músicas animadas com as quais as alunas aprendiam todas as tabuadas. Quando era dia de prova de matemática ouviam-se aquelas boquitas cantarolar umas músicas e escrever logo de seguida as tabuadas na folha. Cinco vezes zero, Quente de febre, É igual a zero, Delirou a lebre. Cinco vezes um, Afiada como lixa, São cinco,
  • 60. - 58 - Disse então a lagartixa. Cinco vezes dois, Gritou da toca, São dez, A comprida minhoca. E assim continuavam durante toda a tabuada até ao momento de terminarem com o … Cinco vezes dez, Pensou o dia inteiro, Só pode ser cinquenta, O triste pavão faceiro. Quem não gostava daquelas cantilenas era o Professor Armandino Sá que, na sala ao lado separada por um muro fino desenhado, abanava a cabeça e estalava os dedos. Como vai aquela canalha aprender alguma coisa de jeito se passam o dia a cantar!!! Vai ser lindo quando chegarem ao exame e fizerem asneira. Vamos ver depois quem canta!
  • 61. - 59 - A Senhora Professora usava as suas roupas coloridas que só acabavam nas golas dos seus sapatos a condizer. Sinalizava o peso da sua longa experiência com o cabelo branco que lhe batia nos ombros e enquadrava perfeitamente a face rosada fina. Era uma mulher baixinha, um pouco mais alta do que as meninas que ensinava, redonda. Na sua infância e juventude tinha estado ao cuidado de uma família de professores devido às muitas dificuldades económicas dos pais; não conseguiam fazer entrar em casa comida que chegasse para alimentar as bocas dos seus seis filhos, nem mandá-los para a escola. Preferiram, então, distribuir alguns por famílias que deles cuidassem bem e lhes dessem comida, roupa e educação. Nunca fora, no entanto, esquecida pelos progenitores que frequentemente a visitavam com consentimento do casal adotante. Esses eram momentos felizes; mostrava os seus brinquedos aos pais, contava-lhes o que se passara na escola e às escondidas, pensava ela, ainda dava qualquer coisa para entregar aos irmãos que se mantinham em casa. Acompanhara a mãe adotiva enquanto ensinava as suas classes e começara a ajudá-la logo que tivera idade para parecer adulta; demonstrara muito jeito para crianças o que a levou a tirar o curso no Magistério Primário uns anos mais tarde. Conhecera um rapaz quando tirava o curso, com o qual viera a casar. Tiveram o Rafael Monteiro, filho que foi o único por problemas de saúde que o marido viera a revelar.
  • 62. - 60 - Nos dias de muito calor de verão, os seus calções listados na horizontal, a sua camisinha bem engomada e as sandálias de cordão eram sinal distante de que vinha ali o José. No inverno resguardava-se melhor; mantinha as riscas horizontais nas suas calças, continuava com a camisinha engomada agora de manga comprida, à qual se sobrepunha um casaco grosso de fazenda. Nos pés usava o seu calçado preferido, umas botas de cabedal que o pai lhe tinha comprado na feira por serem iguais às suas e que lhe davam um ar de gente grande. Durante a sua infância, para além daquela surpresa castigadora do pai por culpa dos botões, nada de muito relevante e diferente dos outros meninos lhe aconteceu. Recebeu um relógio de ponteiros e corda quando passou o seu exame da quarta classe. Aqueles ponteiros dourados brilhantes que se moviam religiosamente no fundo negro foram o seu orgulho e o sinal de que, a partir daquele dia, tinha de se comportar como um homem. Desde logo ganhou a responsabilidade de cuidar do seu presente, de o alimentar diariamente rodando a coroa e mantendo-o vivo. Aquelas férias de verão, que o levaram da infância à juventude adulta, foram marcantes. Passou todo o tempo que arranjou, entre o "A sua bênção" e o beijo de boa-noite, com a sua amiga Madalena.
  • 63. - 61 - A Madalena era uma rapariga muito serena e senhora do seu nariz. Destacava-se na escola por ser muito organizada, atenta, participativa e por apoiar as colegas que tinham mais dúvidas a perceber as contas, o nome dos rios ou dos reis de Portugal; tinha aprendido aquele comportamento com a sua professora. Nos intervalos gostava de brincar às mães e às professoras. Era sempre ela a mãe ou a professora. Vivia com o pai Custódio Silva e com a mãe Laurentina de Fátima; o irmão mais velho, o Gustinho, saíra de casa para trabalhar em França quando a Madalena tinha completado o seu segundo aniversário. Brincava, quando não ajudava a mãe nas tarefas domésticas, com as suas bonecas. Alimentava e tratava das suas filhas com todo o carinho que estava acostumada a receber da mãe. Tinha cabelo comprido e claro que se estendia em cachos até meio das costas; prendia uma parte da sua vasta cabeleira com um laçarote no cimo da nuca. Aquele cabelo estendia a sua beleza pela pele clara rosada que orgulhava os pais e espantava os vizinhos. O seu aspeto físico era enriquecido pelas suas roupas bem tratadas; a sua saia de godé pelo joelho, as meias que cresciam até à altura da bainha da saia, a blusa de folhos colocados à volta do fino pescoço e os seus sapatos em pele clara eram o regalo dos olhos dos moços que a viam passar para a escola na companhia do José e da Mariana. O José, esse, saltitava atentamente a seu
  • 64. - 62 - lado, não tirando o olho dos mirones e mostrando o seu descontentamento, mostrando os punhos em riste, sempre que algum se atrevia a assobiar à sua colega de viagem. Nos dias mais frios, a sua graça não diminuía. Substituía a saia em godé por uma com pregas que lhe cobria as pernas até ao tornozelo, colocava a sua camisola de gola alta coberta por um lindo casaco de fazenda igual à do casaco do José e que o deixava muito orgulhoso; completava a imagem com uns sapatos rasos de couro tratado e claro. Fez o exame de quarta classe no mesmo dia do José e foi premiada com uma bolsa de tecido colorido e malha, no fundo, que correu a mostrar ao amigo; este retribuiu a animada simpatia com a visão, "mas não toques", do seu relógio de ponteiros dourados e corda. Para além daqueles momentos de viagem para a escola, o José, sempre que podia, escapava-se para um dos cantos do recreio masculino e dava uma espreitadela por cima do muro que o separava do feminino. Observava, em silêncio, a Madalena sentada num banco a perguntar às colegas a tabuada do nove e voltava para os seus botões. Um dia foi apanhado pelo professor Sá a cometer a arriscada e proibida façanha; valeu-lhe um longo puxão da orelha
  • 65. - 63 - esquerda estendido desde o recreio até à sala de aula. Aí passou o intervalo a escrever as tabuadas do um até à do dez sem parar até que os colegas voltassem. Mas valeu a pena o castigo, pensou ele com um sorriso maroto. As férias de verão passou-as em brincadeiras com o José; disfarçava a sua vontade com o convite à Mariana e ao Nabo para se juntarem a eles; queria ter a certeza que o pai Custódio não se chateava por estar sempre na companhia do rapaz. Olha que não fica bem a uma menina como tu estar sempre com aquele moço! Mas ele é o meu amigo, pai! Vai brincar com as tuas amigas a coisas de menina, Madalena! Está bem. A Madalena queria era estar com o José e sempre que podia contrariava o pai. Entraram ambos para o quinto ano, mas em escolas diferentes.
  • 66. - 64 - A Madalena rumou à escola feminina que estava a uns bons quinze minutos de caminhada de sua casa, podendo fazer esse caminho diariamente com as amigas. O José, para desespero seu e grande tristeza da Madalena, foi para uma escola que se situava junto a um pequeno monte a sul da sua casa. O pai, proprietário de uma pequena loja de comércio de utilidades domésticas, achou que o rapaz iria crescer mais se estivesse naquele ambiente presbítero onde podia ser controlado e orientado para um futuro de sucesso. A mãe anuiu lacrimejante à opinião do pai, até porque não poderia ser de outra forma após o marido ter falado. Revelou-se, o José, um bom aluno no colégio de padres. Não podendo sair, regularmente, durante a semana para ir a casa, ocupava-se na escrita de histórias imaginárias e na leitura dos muitos volumes que forravam a enorme biblioteca escolar. Todos os dias ajudava à missa da manhã e à do final do dia. No silêncio da noite, aproveitava, sempre que lhe era possível, para dar um salto por cima do muro que aprisionava os alunos do colégio. Levantava-se silenciosamente, sem acordar os colegas de dormitório, pegava na roupa e pé ante pé lá se dirigia à casa de banho onde se vestia.
  • 67. - 65 - Descia a longa escadaria e saia por uma janela do refeitório que se mantinha sempre aberta devido aos vapores que se acumulavam. Esgueirava-se por entre os pinheiros e corria pela estrada empedrada até à frente da casa da Madalena, onde chegava, a correr, uma boa hora depois da arrojada fuga. Atirava uma pequena pedra à janela. Ganhava vida nova ao receber aquele olhar entorpecido da amiga, tapado pelo reflexo da lua no vidro do quarto. Trocavam uns quantos gestos que só eles entendiam, durante alguns minutos e depois voltava, da mesma forma, ao colégio onde se deitava para dormir as poucas horas que faltavam até à missa da manhã. A Madalena, depois de ver o seu amigo João e trocar uma quantidade de sinais com ele, via a sua silhueta diminuir lentamente no escuro da noite e dormia angelicalmente até de madrugada. No dia seguinte, e apesar do sono da noite mal dormida, lá estava o José, com o seu cabelinho cortado à tesourada pelo interno do colégio, a sua farda de calças escuras e camisa branca, pronto para vestir os paramentos e apoiar o Senhor Padre. Algumas vezes fechava por momentos os olhos cansados, deixava cair a cabeça, mas acordava rapidamente com o ruído das pessoas que se levantavam ao "Oremos" do Senhor Padre.
  • 68. - 66 - Assim passava os seus dias calmamente sagrados. No final do primeiro ano de colégio, terminados os estudos, voltara a casa para dois meses de férias. A primeira visita feita fora a casa da Madalena. Aquele rosto divinamente alegre estava marcado por reluzentes lágrimas de dor. A sua mãe tinha ficado doente e não saia da cama; nada tinha dito a José nas suas noturnas visitas para não o preocupar. Aquela criança recatada, que se dedicava à criação artística nos seus desenhos de flores e campos verdejantes, tinha agora de ser mulher; precisava cuidar da casa e do pai. Iria abandonar a escola ainda com o seu belo cabelo comprido encaracolado, preso no cimo da nuca com um laçarote colorido. No meio da sua lida caseira ia encontrando tempo para se encontrar, às escondidas do pai e com a concordância enferma da mãe, com o José que vivia os seus dias de férias à espera daquele momento; recebia o sinal combinado e saia do meio das árvores que limitavam a casa da Madalena e onde se escondia da reprovação do pai da amiga. Viviam, ali, os momentos mais felizes e cúmplices do dia de ambos. Falavam muito, riam-se, brincavam e em muitos momentos limitavam-se a ficar a olhar um para o outro. Chegaram mesmo, num dia de sol, a dar as mãos; o José consagrou um beijo envergonhado na face rosada de Madalena
  • 69. - 67 - que encolheu os ombros, corou e soltou um acanhado sorriso silencioso. Mantiveram os seus enamoradamente inocentes hábitos durante o tempo de colégio interno de José e de necessário enclausurado apoio caseiro de Madalena. Terminados os estudos colegiais, José voltaria a casa homem feito e com a possibilidade de decidir a sua própria vida. Tinha decidido, no silencioso recato da capela do colégio, falar com o pai de Madalena e pedir para namorar com ela. Madalena esperava-o. Madalena esperou José no dia marcado para a sua chegada por informação alegre do Nabo que o soubera no café do Pisco. Madalena esperou todo esse dia e dois mais a seguir naquela janela que os separara nos seus encontros noturnos, sem que os seus olhos brilhassem com a imagem reconfortante do José. Soube, no final dessa semana, que o filho do Manuel Paulino tinha seguido para o seminário. Correra a voz lá na obra onde o pai da moça trabalhava, que o rapaz, na companhia da mãe, tinha saído do colégio e sem desfazer as malas, seguira para o Seminário de onde sairia ordenado Padre.
  • 70. - 68 - Esta teria sido a informação que o Nabo deveria ter comunicado à Madalena se não tivesse saído a correr de alegria, a meio da conversa, para ir contar a novidade. A tristeza de Madalena não se conseguia medir porque decidira escondê-la da sua mãe que tinha piorado e precisava de tudo menos de ver a sua filha desgostosa. No entanto, o seu coração esmorecera e definhara com aquela ausência inesperada, recordando os sentimentos que deveriam ter invadido Pedro ao descobrir o corpo frio da sua Inês. Percebeu que não mais poderia ver o seu João nem pensar em construir com ele a família que sempre desejara simuladamente nas suas brincadeiras com bonecas. O definhar do seu coração foi acompanhado por sua mãe que veio a falecer alguns meses após o fenecimento do coração de Madalena. A triste moça ficou por ali perdida em casa, atormentada entre a falta do José e a má-vida pela qual seu pai começara a encarreirar, por saudade da sua Laurentina e por se ver com uma filha para criar sozinho. O pai, vendo-se sozinho com uma casa para governar e uma filha para criar, percebeu que não iria ser capaz de cumprir o seu dever. Saia de manhã para o trabalho e voltava sempre já o sol se escondia atrás do monte que acompanhava a escola que o
  • 71. - 69 - José frequentara. Entrava em casa, já ébrio, e recolhia-se no seu quarto vazio sem sequer notar a presença da criança. Da solidão acumulada resultou a entrada de uma estranha em casa como companheira do pai. O mau relacionamento que mantinha com aquela mulher, os maus-tratos resultantes da ignorância a que era sujeita diariamente, obrigaram a menina a decidir dar um novo rumo à sua vida desesperada. Partiu, um dia, para trabalhar nas limpezas; encontrou uma casa onde vivia uma família de cinco pessoas que a acolheu como empregada doméstica e ama dos dois filhos mais novos. Mantinha semanal contacto escrito com o José. Não desistia da sua intenção, apesar de nunca receber resposta. José sempre estranhara a falta de resposta às cartas que pedia ao Reitor para enviar para casa, mas que na realidade eram para a sua Madalena. Desconhecia também o motivo para não receber notícias da Leninha. Pensava que se calhar se poderia ter esquecido dele; até nem era de admirar devido a tudo o que tinha acontecido e ao tempo que tinha passado. No seu segundo ano, chegou ao Seminário uma carta. Avisado pelo Padre Justino da chegada da missiva, correu de alegria ao gabinete do Reitor, na esperança de ser da Madalena. Entrou naquele espaço lúgubre e viu a postura esfíngica do velho homem. Escondeu o sorriso que trazia nos lábios e recebeu a
  • 72. - 70 - carta aberta com uma palmada nas costas e um "Força, meu rapaz!". Era de sua casa e tinha escrito, com a letra da sua mãe, que o seu pai morrera num acidente na loja. Seu pai, à falta de ajuda e por peso da idade cansada de muito trabalho, começara a arrumar umas estantes onde guardava produtos que vendia. Uma das estantes tombara e ele teria ficado preso por baixo dela, vindo a falecer ali no momento. Fora descoberto no final do dia, quando a loja de comércio ficara aberta após a costumeira hora de fecho. Partiu, no dia seguinte, com a bênção do Senhor Reitor para voltar dali a dois dias. Entre a tristeza que lhe invadia o coração pela perda do seu pai, encontrou um pequeno espaço onde reluzia uma leve luz de esperança. Seria a sua oportunidade de rever a Madalena, falar com ela e saber de tudo o que se passara. Aquela pequena luz desapareceu quando procurou, com o olhar, a Madalena entre as pessoas que assistiam aos serviços fúnebres e não a encontrou em lado nenhum. Depois do funeral do pai, soube que a Madalena tinha partido dali, há já algum tempo. Não conseguiu, no entanto, saber
  • 73. - 71 - para onde tinha ido nem o que fora fazer, pois o Nabo não obtivera nenhuma informação relevante. Regressou ao seu cárcere sem ter satisfeito o desejo escondido de rever a sua amiga. Regressou com uma terrível certeza de que não mais veria a sua Madalena, aquela que tinha conseguido manter o seu coração vivo apesar do negrume do ambiente em que passava os seus dias. O Senhor Padre José de Deus Oliveira terminou a sua formação clerical e depois de ordenado, foi enviado para uma pequena aldeia situada entre montes e vales e servida por um estreito caminho serpenteante de terra poeirento. Era um jovem forte, bem-arranjado, eloquente e que despertou, desde a primeira missa celebrada na pequena igreja, a admiração respeitosa das mulheres e o apreço dos homens daquela sua nova paróquia. Alojou-se na casa da Igreja e assim se manteve durante vários anos. Como fazia algumas vezes durante o ano, um dia foi à cidade comprar um novo cálice para as suas celebrações na igreja e um fato preto para si. Conduzia, já na metrópole, o seu automóvel por uma rua de comércio e muito espaço verde, quando viu uma figura feminina que lhe trouxe à memória velhos tempos.
  • 74. - 72 - Estacionou o seu velho Volkswagen carocha que herdara do seu antecessor e este do anterior, numa praça junto à casa de paramentaria. Satisfez a necessidade do cálice ali mesmo, escolhendo um com a imagem do coração de Cristo e uma cruz na tampa; a sua cor dourada luzia da mesma forma que os ponteiros do relógio que trazia no pulso e que se moviam religiosamente desde a conclusão da sua quarta classe. Percorreu, a pé, uma outra rua que o levava à alfaiataria e, num parque próximo onde brincavam crianças, sentiu um calor estranho no peito. Parou. Bebeu um pouco de água numa bica ali instalada para satisfazer a sede dos mais pequenos, sentou-se num banco de madeira à sombra. Levantou os olhos e viu aquela imagem de mulher que o levara ao passado por momentos quando passava com o seu Volkswagen. Ficou ali sentado a observá-la e a tentar perceber de onde a conheceria. Poderia até parecer mal um homem de Deus estar assim estacado a olhar para uma mulher ali no meio de um parque, o que o fez disfarçar olhando para as crianças que brincavam. Seria alguém que vira na sua nova paróquia? Seria confusão sua com alguém muito parecido que conhecera? Naquela incerteza, uma ideia assaltou-lhe o pensamento.
  • 75. - 73 - É a Madalena! Só pode ser a Madalena! Não se rendeu ao desejo incontrolável de se aproximar dela com receio de errar nas suas suposições. Continuou ali sentado naquele mesmo banco, sem conseguir tirar os olhos daquela mulher. Lena! Lena! Chamava uma das crianças que oscilava num dos baloiços guinchantes do parque. O pedido de ajuda levou aquela mulher a dirigir-se apressadamente para a auxiliar. Vestia uma saia com pregas e uma camisa com folhos que eram tocados pelo cabelo comprido encaracolado e claro. Mas foi o laçarote colorido no cimo da nuca que fez o Senhor Padre dar um salto do banco e dirigir-se a ela. Chegado junto da criança suspensa no baloiço, olhou para aquela mulher que se baixara para parar o trémulo baloiço; ela olhou para ele sem nada dizer e ali ficaram até serem acordados daquela letargia pelo puxão na saia da menina que salvara. Recolheu a pequena no colo e voltou a fixar o olhar naquele homem vestido de preto, raro cabelo na cabeça achatada, e que deixava correr uma lágrima pela cara que circundava um nariz com sinal na ponta.
  • 76. - 74 - Tu és a Madalena! Sou. E tu… és o José! Pousou a criança que se impacientava para viajar no escorrega. Uniram-se num abraço saudoso preso desde o dia em que se tinham visto pela última vez naquela fugida de casa. Demoraram o abraço discretamente durante longos minutos. Sentaram-se ambos num outro banco de madeira e falaram demoradamente sobre as suas vidas ao longo daqueles eternos anos de separação forçada. Tens uma filha muito bonita! Não é minha filha. Só tomo conta dela e daquele outro menino que é seu irmão. O José suspirou profundamente. A Madalena sorriu. Não esgotaram naquelas horas os anos que os tinham separado; marcaram o mesmo local para se encontrarem no dia seguinte e terminarem aquele reencontro, já sem a necessidade
  • 77. - 75 - de atender constantemente aos pequenos que continuavam a brincar. Madalena recolheu as duas crianças e partiu, não sem antes voltar a olhar para aquele milagre inesperado. José continuou sentado naquele parque vendo-a partir; olhava para o céu e agradecia aquele dia. Voltou ao seu herdado transporte e percorreu os intermináveis quilómetros que o separavam do seu novo lar. Ainda o sol não tinha refletido os seus raios nas espigas de cereais dos longos campos que rodeavam a sua morada paroquial, já o Senhor Padre estava a pé e preparado para se reunir com o passado. Vestira o seu velho fato negro que sacudiu do pó. Percorreu aquela distância que o separava da cidade sem reparar nem na paisagem, nem naquele acidente que tinha ocorrido ao passar pela velha ponte sobre o seco ribeiro, nem mesmo no viajante que circulava arrastadamente e pedia, estendendo o polegar, que o levassem. Chegou à cidade, ao parque de crianças e ao banco de madeira; sentou-se e olhou em volta sem ver vivalma. Bebeu, novamente, um pouco de água da bica das crianças e olhou novamente para o céu azul-quente daquele dia cor de milagre.
  • 78. - 76 - O sol brilhava e o calor obrigava a que enrugasse a testa húmida ao olhar para cima de olhos semicerrados. O que iria fazer da sua vida. Era um homem de Deus e aquilo que estava a acontecer era um pecado. Mas Deus não o poderia castigar por voltar a sentir amor, algo que sabia estar na base de todos os ensinamentos que absorvera ao longo da sua formação sacerdotal. Mastigava estes pensamentos na sua cabeça quando foi interrompido por uma voz doce que o fez esquecer todas aquelas dúvidas que lhe tinham preenchido os breves momentos de solidão perdida. Falaram longamente das suas vidas. Trocaram silêncios cúmplices sempre que a escola primária era tema de recordação ou quando lembravam as noites fugidas ao colégio em que cruzavam mensagens surdas por breves momentos. Repetiram cantilenas da infância e partilharam gargalhadas quando se referiam às histórias do Nabo ou às do Professor Sá a discutir com a Professora Francisca sobre as suas aulas ruidosas que não o deixavam ensinar condignamente os meninos. Madalena contou o que se passou quando teve de sair de casa para trabalhar naquela família que a acolhera; falou do seu sofrimento às mãos daquela mulher que o pai decidira colocar em casa para não se sentir só e o acompanhar na bebida. Recordou o sofrimento sentido no dia em que percebera que não mais iria ver
  • 79. - 77 - o José. Mostrou todas as cartas guardadas não-respondidas ao longo dos anos de afastamento. O José recordou o seu sofrimento profundo ao saber que saíra do Colégio diretamente para o Seminário sem ter a possibilidade de a rever. Enumerou os momentos passados em frente ao papel branco de carta que dirigia para casa na esperança de receber resposta. Contou o momento em que, naquele dia de despedida paterna, a procurara entre a multidão sem a ver. Falaram, riram, suspiraram; viveram anos num dia. No final daquela jejuada jornada consentida, tinham decidido que nunca mais se separariam independentemente das promessas realizadas no passado. O José falaria com o Arcebispo para o deixar sair do sacerdócio. Comunicaria a sua decisão aos seus fiéis e abandonaria a paróquia para viver com a Madalena. A Madalena sairia de casa dos patrões para viver ao lado do seu José. Agradeceria o apoio e dedicação dos que a tinham recebido e, apesar de não querer imaginar a dor da separação das crianças, partiria com aquele homem. Assim decidiram e juraram cumprir trocando um beijo inquieto na face. Alguns dias após este reencontro, o Senhor Padre dirigiu-se, no seu usado carocha, à cidade com o objetivo de voltar
  • 80. - 78 - acompanhado para a sua pequena aldeia. Ficariam na sua residência até que arranjassem morada própria para os dois. Estacionou junto à casa onde Madalena trabalhava e acolheu-a chorosa da despedida da família que a recolhera. Abandonou as lacrimosas crianças que tinha ajudado a criar, abraçando-as e beijando-as na testa. Colocaram os poucos haveres que acumulara na pequena mala frontal do carro e seguiram caminho. Percorreram estradas pavimentadas, serpentearam por aquele caminho poeirento desviando-se, quando possível, das pedras que iam pontuando o chão, passaram um velho e alto castanheiro e estacionaram no terreiro da sua residência paroquial. Foram, naquele momento, vistos pela Ti Josefina; a descoberta levou o Padre José a inventar uma narrativa. Confiá-la- -ia aos seus paroquianos de forma a evitar os "diz-que-disse" e os comentários abafados que sabia serem comuns por aquelas bandas. Foi Madalena apresentada a todos os fiéis como empregada que vinha tomar conta das lides caseiras do Senhor Padre. Seria ela a tratar da lavagem da sua roupa, da limpeza da casa e da preparação das suas refeições.
  • 81. - 79 - Uns habitantes torceram um pouco o nariz à explicação, arrastados pela beleza da rapariga e pela gaguez momentânea original do Senhor Prior. Chegaram mesmo a comentar pecaminosamente entre si que aquilo ainda ia dar chamusco. Isto não me cheira nada bem! Pois é, vamos ver no que isto vai dar. Um homem novo e jeitoso com uma moça bonita, sozinhos em casa!? Vai ser lindo. Ali retomaram as suas vidas tentando manter as aparências perante os vizinhos da aldeia, não conseguindo evitar que alguns deles continuassem a achar tudo aquilo um pouco estranho. O Senhor Padre continuava, no início, a parecer o mesmo homem e todos os habitantes da aldeia agradeciam por ter um enviado de Deus que desse a missa todos os domingos, que os ouvisse em confissão, que batizasse as poucas crianças que iam nascendo e perdoasse os defuntos; não queriam muito saber daquilo que o Senhor Padre fazia dentro de portas. Madalena mantinha-se fechada em casa à espera do seu José para o almoço, para o jantar e para o carinhoso repouso noturno.
  • 82. - 80 - O Senhor Padre dava a missa de domingo, dava os restos de hóstia não sacramentada ao seu ajudante e partia a correr para casa sem sequer se despedir dos paroquianos. Quando era chamado para algum serviço, fosse batizado ou funeral, fazia-o com a competência que lhe era conhecida, mas sem perder muito tempo para voltar para junto da Madalena. Esta alteração no comportamento do Senhor Prior fazia com que o grupo daqueles que tinham torcido o nariz fosse crescendo em número e em certezas. Daquela relação carnal resultou, alguns tempos passados, a gravidez de Madalena. Não querendo que o José acabasse com a sua vida paroquial, ela sempre lhe pedia para a levar à cidade onde poderia visitá-la quando lhe aprouvesse. O José respondia-lhe constantemente que não se separaria mais dela e que iria cumprir o seu pensamento original de pedir ao Arcebispo para o libertar do seu juramento, contando-lhe tudo o que tinha acontecido. Madalena continuava a insistir que convivia bem com aquela situação. Não queria que ele abandonasse a sua fé e sugeriu que montasse casa para ela e para o filho numa outra vila distante daquela sua aldeia onde ninguém os conhecesse.
  • 83. - 81 - Com o jeito que lhe era característico, convenceu o José a aceitar a sua sugestão e assim ficou marcado acontecer a partir do momento em que se começasse a notar que a pequena barriga se destacava. Viveram tempos felizes de homem e mulher durante os poucos meses em que conseguiram esconder o segredo dos fiéis da aldeia. Um dia, o José chegou a casa e comunicou que tinha cumprido o desejo de Madalena. A gravidez começara a ser visível e ele montara casa numa pequena vila a alguns quilómetros dali; a distância não era demasiada para evitar que a visitasse amiúde e podiam criar o filho sem que ninguém desconfiasse. Para além disso, teria melhor acompanhamento médico durante aquele período na vila. Partiram para a nova morada ímpia e instalou-se a Madalena no conforto que lhe tinha sido preparado por José. Todos os dias lá voltava à socapa, depois de retirados, durante a viagem, os símbolos roupais da sua devoção, para que ninguém desconfiasse ou criasse reais imagens daquele amor proibido. Madalena ia justificando as ausências e constantes partidas de seu "marido" com uma ocupação de comerciante que o obrigava a longas e diárias viagens.
  • 84. - 82 - Mantiveram esta relação familiar até ao momento em que a grande hora chegou. O filho tinha marcado o seu momento de surpreender os pais. Madalena foi assistida por uma parteira reservada da vila, previamente avisada, que era costume trazer ao mundo as crianças das vizinhas; nascera o "fruto do pecado", como diziam na época sempre que um filho nascia de uma relação entre um homem e uma mulher não casados. Quando José chegou, uma vez mais, a casa, assistiu àquele quadro natalício de seu filho no colo de Madalena deitados na cama; Madalena sorriu e entregou-lhe o fruto do seu longo e demorado amor. José olhou para aquele seu filho longamente e abençoou-o como fizera sempre com as crianças dos outros na altura do batismo. Deu-lhe um beijo na testa rosada e ainda húmida. Sentiu-lhe o cheiro característico. Acariciou a cara de Madalena e beijou-a na face. Recebeu o último suspiro sorridente daquela que tinha reencontrado após uma separação prolongada. O parto tinha decorrido conforme previsto pela parteira.
  • 85. - 83 - Já a criança tinha recebido a primeira luz do dia e Madalena sentira uma forte dor abdominal. A parteira teria ido cuidar da criança, mas ao ouvir os queixumes da mãe, teria pousado o recém-nascido e verificara que a mãe sofrera uma hemorragia interna muito grave. Aconselhara que fosse levada para o Hospital, sugestão que Madalena recusara de imediato por não poder contar a verdade sobre aquela criança fruto do pecado. A parteira tentara resolver a situação com o que tinha à sua disposição, mas a condição afigurara-se irreversível. Madalena pedira unicamente que a mantivesse acordada o tempo suficiente para, pela primeira vez na sua vida, cumprir o desejo de estar em família com o seu filho e o seu grande amor. José amaldiçoou, com lágrimas que corriam do seu rosto para o do pequeno e se confundiam com a humidade daquele novo ser, aquele Deus que lhe tinha retirado a mãe do seu filho após a ter encontrado ao fim de tantos anos. Acatou aquela que lhe parecera uma decisão vingativa do Deus a quem tinha devotado grande parte da sua vida, aceitando aquela criança como uma espécie de compensação pela perda sofrida. Partiu daquela casa deixando para trás tempos de feliz convivência velada e de inúmeras lembranças de um curto tempo conjugal.
  • 86. - 84 - Numa noite de sábado chegou à sua pequena aldeia com o filho ao colo. Comunicou aos discípulos daquele Deus que tão mal lhe fizera, que aquela criança teria sido abandonada à porta da sacristia da Igreja. Não sabia quem eram os pais, mas como bom- -pastor acolhia aquele elemento novo do seu rebanho; trataria dele com todo o amor fraterno que qualquer cristão deve demostrar pelos seus irmãos em Cristo. As mulheres ouviram aquelas palavras santas e deixaram correr uma lágrima emocionada pelas faces, apertando a mão à vizinha que se sentava a seu lado. Os homens, quase todos os homens, sentiram aquele apego cristão do Senhor Padre como um gesto digno de um santo. Outros voltaram a torcer o nariz e a abanar afirmativamente com a cabeça, pensando no seu íntimo "eu bem sabia" ou "disse logo que isto cheirava a chamusco desde o princípio". Nada disseram naquele momento, mas a dúvida ficou instalada. Cuidou daquele seu filho como de um filho se deve tratar, mantendo sempre o segredo partilhado com a entidade por si amaldiçoada; sentia que ao dar o seu amor, o seu carinho e o seu cuidado àquela criança mostrava a sua vingança contra a maldade divina sofrida; ao mesmo tempo agradecia a Madalena os momentos felizes passados e aquele fruto do seu amor.
  • 87. - 85 - A criança cresceu ali no ceio daquela comunidade e quando atingiu a juventude foi enviado para a cidade. Estudaria lá, cursaria medicina e só voltaria quando merecesse ser chamado Doutor. O Senhor Padre veio a falecer com a sua longa idade naquela terra que lhe tinha sido atribuída e à qual tinha dedicado a sua fé.
  • 89. - 87 - O emigrante
  • 91. - 89 - V O Zé Amado era um homem solteiro que, como dizia, conhecia mundo. Não tinha encontrado ninguém com vontade de aturar o seu constante mau-humor, pelo que se mantivera sozinho ao longo da vida. Tinha, uns anos antes, partido para a Suíça, mas voltara rapidamente por não se adaptar nem ao tempo, nem às palavras que as pessoas deixavam sair da boca. No entanto, esta breve saída para o estrangeiro tinha-lhe dado um estatuto, entre os vizinhos, de conhecedor das coisas da vida e das realidades das pessoas lá de fora. Era a ele que os mais velhos recorriam quando havia um campo para lavrar. Metia lá o trator que comprara logo depois da chegada da Suíça com o dinheiro que tinha trazido, e num piscar de olhos punha tudo pronto para a sementeira. Era ele o moço da terra que ajudava os mais velhos nas tarefas mais pesadas, recebendo o almoço ou o jantar e uma pinga, dependendo da hora a que terminasse as suas tarefas. Era assim que gostava de viver e de se manter, até porque não sabia cozinhar e tanto o pai como a mãe estavam já junto à igreja, debaixo daquela mesma terra, fazendo companhia à Teresa e aos restantes habitantes que tinham já partido, e não tinha ninguém que lhe fizesse um prato de comida de jeito.
  • 92. - 90 - Dizia-se, na aldeia, que ele tinha voltado da Suíça cheio de fome e que o não saber cozinhar fora a sua perdição lá fora. Sabiam que tinha morado, durante aquele tempo em que estivera emigrado, juntamente com mais seis homens, num quarto minúsculo com camas amontoadas. Tinham de lavar a roupa numa pequena bacia, fazer as compras e cozinhar. Sabiam, ainda, que quando chegava a vez de ele cozinhar, os colegas se queixavam daquilo que ele dizia ser um prato típico da sua aldeia e que mastigava alegremente sem mostrar os dentes em nenhum momento. Os colegas chegaram mesmo a dispensá-lo da cozinha e a encaminhá-lo para a lavagem da roupa e da louça, algo que ele não fazia com muito agrado por serem "coisas de mulher". Quando não havia trabalho a realizar para os vizinhos, lá tinha de pegar em duas ou três batatas, umas couves e um pouco de água, pô-las ao lume e tentar matar a fome com o tal "prato típico" da sua aldeia, que na verdade era só tipicamente seu: um caldo malfeito Dia 15 de novembro de um ano já distante, nascia, naquela pequena aldeia perdida entre montes e vales, um menino pálido que não chorou no momento em que era esperado pelo Doutor que se tinha ali deslocado da vila para atender aquela modesta mulher.
  • 93. - 91 - Maria de Fátima Pereira era uma senhora com uma experiência de vida justificada pelos seus quase cinquenta anos de existência. Pequena e de tez clara, tratava bem do seu cabelo negro que combinava com as suas pestanas longas e sobrancelhas bem desenhadas. As mãos pequenas e calejadas apresentavam sempre umas unhas bem tratadas. A pele macia contrastava com a solitária vida dura que lhe tinha sido destinada. Nascera naquela aldeia de Castanheiro da Princesa, onde vivera toda a sua vida; só de lá se tinha temporariamente afastado nas raras e pontuais idas à vila em dias de feira, à imagem da quase totalidade dos vizinhos. Aí, para além dos bens necessários à sobrevivência, procurava algum produto para manter a sua beleza natural que conseguisse contrariar a passagem do tempo. Conhecera um homem que se tinha deslocado a Castanheiro para, dissera ele na sua qualidade de comerciante, comprar umas ovelhas que esperava serem criadas por ali. Batera à porta de Maria de Fátima aquela estampa de homem com os seus trinta e muitos anos, que fora recebido com muito entusiasmo. Aquele jovem ter-se-ia apercebido da fragilidade da mulher e conseguira convencê-la a deixar que ficasse em sua casa. Como
  • 94. - 92 - morava numa das pontas da aldeia, ninguém se apercebeu que um estranho se tinha instalado com a vizinha. Uma mulher que vivia sozinha no meio de nada, foi o alvo perfeito para aquele indivíduo que queria unicamente aproveitar- -se de situações não acompanhadas por vizinhos cautelosos, como aquela. Dando cumprimento ao desejo de ser mãe, Maria de Fátima engravidou algumas semanas depois, tendo descoberto o desaparecimento do homem dois dias após euforicamente lhe ter comunicado que supunha estar naquele estado que os levaria a ser pais em breve. Nesse dia, acordara de manhã bem cedo e sentira a falta do jovem companheiro a seu lado. Levantara-se e procurara-o por toda a casa. Espreitou no exterior e também nada descobriu. Concluiu, tristemente, que teria fugido; reparou que uma pequena cruz em ouro, que herdara da sua mãe, e uma pulseira dourada, que lhe tinha sido colocada no pulso pela sua madrinha no dia de batismo, tinham desaparecido da gaveta aberta da cómoda do quarto onde guardava aquele seu único tesouro. Chorou durante alguns dias sem conseguir sair de casa, mais pela perda dos seus bens do que pela do companheiro; esta ausência temporária da Maria de Fátima causou estranheza na vizinhança.
  • 95. - 93 - A Ti Teresa Violante, com o objetivo de descobrir os motivos do misterioso desaparecimento da vizinha, deslocou-se a sua casa numa tarde sombria e ouviu a mulher em confissão. Confessado o pecado da carne vivido e os motivos para tal ilusão, Teresa ofereceu-se, desde logo, para a ajudar em tudo o que fosse necessário, inclusive a levar a bom-termo aquele nascimento tão desejado. Todos os habitantes da aldeia acabaram por saber daquela sua história; nunca a julgaram, no entanto, compreendendo que aquele malfeitor tinha enganado a pobre mulher, aproveitando-se da sua fragilidade. Quem me dera apanhar o malandro! Diziam alguns homens. Se o visse cortava-lho, para não fazer mal a mais ninguém! Diziam outros que eram aprovados nas suas intensões pelas respetivas mulheres. Maria de Fátima Pereira dera ao mundo aquele rapazito que não se revoltou gritando à terra naquele momento natal. A seu
  • 96. - 94 - lado, para além do Doutor, tinha Teresa que lhe segurava a mão tentando acalmá-la com a sua experiência. José Manuel Pereira Amado era um menino muito calado e mal-humorado na maior parte das horas do dia. Tinha recebido o Pereira da mãe, o Amado do pai que não conhecera (apesar de a mãe sempre lhe dizer que aquele nome vinha do facto de sempre o ter amado muito, mesmo antes de ter nascido); José Manuel era homenagem ao avô. Aquele menino sempre triste brincava pouco com as outras crianças da povoação. Iam ter com ele a casa, convidavam-no tentadoramente para brincar, mas este preferia quase sempre ficar em casa a tratar das suas construções imaginárias. Quando, raramente, aceitava o convite, aguentava pouco tempo na companhia dos amigos; depressa começavam a jogar aos pais e às mães o que lhe era estranho por nunca ter vivido em ambiente parecido. Quando o dia era dedicado aos ninhos, depressa desistia por não gostar de aprisionar aqueles passarinhos que eram retirados às progenitoras. Cresceu no seu pequeno mundo limitado à sua pequena aldeia. Para admiração da mãe, nunca sentiu necessidade de perguntar ou saber quem era o seu pai. Aceitava a sua situação e satisfazia-se com a sua família de dois.
  • 97. - 95 - Ficou só quando a sua mãe faleceu prematuramente com sessenta e cinco longos anos de experiências de vida; tinha ele quase atingido a idade adulta de dezassete anos e via-se naquela casa vazia, isolado. Vendo-se sem trabalho que o mantivesse alimentado, apesar das ajudas que recebia dos vizinhos e especialmente da Ti Teresa, que mantivera a sua promessa durante todos aqueles anos, decidiu partir. Aproveitou a oferta de um tio que teria mantido contactos na Suíça; estivera emigrado nesse país distante durante muitos anos e decidiu ajudar aquele sobrinho a dar rumo à vida. Foi apresentado a um grupo de viajantes que, como ele, estavam determinados a partir para não terem de continuar a sobreviver com o pouco que a terra lhes dava. Era gente de aldeias dedicadas à terra, umas mais próximas e algumas que se situavam a maior distância. Estavam unidos por esse desejo de sorte e determinados a tudo fazer para que ela aparecesse. Ensacou uma pouca de roupa, à qual juntou os pedaços de pão que lhe restavam da cozedura comunitária e o queijo que recebera das ovelhas do rebanho dos habitantes locais. Juntou-se aos outros seis homens, numa manhã de junho, numa aldeia onde nunca tinha estado, mas à qual seu tio o acompanhou para a despedida.
  • 98. - 96 - Partiram. À falta de transporte que os levasse naquela viagem, avançaram a pé até ao momento em que fossem recolhidos por uma velha camionete que os deixaria no destino. Partiram em direção a Espanha, à cidade de Salamanca, onde esperavam ter transporte motorizado para a restante viagem, como estava combinado. Esta primeira etapa da viagem demorou-lhes uns penosos doze dias por territórios desconhecidos para a maior parte deles. Só um dos homens fizera já o caminho e confiavam todos nos seus conhecimentos geográficos e na sua capacidade de orientação. Caminhavam doze horas diárias, tinham de arranjar o que comer e beber em pequenas atividades temporárias que iam arranjando ao longo do caminho. Descansavam quando havia tempo, mas sempre com o pretendido destino em mente. Passou por muitas terras, por montes e rios que nunca tinha percorrido. Nunca viu, no entanto, nenhuma que fosse tão bela quanto a sua, mesmo não tendo nenhum curso de água; tinha, no entanto, uma bica de água de nascente fresca que dava saúde a todos os que dela bebessem. Por onde passavam, eram ajudados pelos locais que estavam já acostumados àqueles grupos de pessoas que
  • 99. - 97 - infelizmente tinham de partir de suas casas para encontrar uma vida melhor para eles e para as suas famílias. Ofereciam-lhes dormida nos palheiros que acolhiam os produtos recolhidos da terra; alimentavam-nos com uma sopa e algo mais que houvesse para terem força para a longa viagem. Que seja por Deus! Muito obrigado. Abordada a cidade de Salamanca, um local que lhe pareceu outro mundo pela diferença de movimento e gente que por ali vivia, apanhou transporte para a restante viagem. Chegou a Santander dois dias depois da conclusão da longa caminhada. Demoraram mais três dias a chegar às portas do seu destino suíço. Após atravessarem a difícil fronteira, atingiram Bordeaux, depois Lyon antes que mais uma fronteira a ultrapassar se aproximasse. Em tempo de emigrantes, a vigilância era muita nos postos de controlo e a limitação à passagem maior ainda do que a vigia. Era comum alguns emigrantes serem impedidos de passar os postos fronteiriços, ou por não terem os documentos necessários, ou por terem aspeto de quem iria sem objetivo de vida previsto para o estrangeiro.