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O primeiro dia
I
13 de setembro
João Paulo Correia Araújo era um jovem de quase treze anos
de idade. Frequentava uma Escola Básica que pertencia a um
Mega Agrupamento do norte do país.
A sua era uma turma de vinte e oito alunos à qual tinha sido
dada a designação de 7H.
Vinha de um Colégio privado de orientação católica que
tinha frequentado desde o primeiro até ao sexto ano.
Transferiu-se para aquela nova escola por opção
descuidada dos pais. O Doutor Rogério Araújo e a Doutora
Clementina Correia tinham deixado passar a data limite para a
renovação de matrícula no colégio e o filho teve de alterar o seu
ambiente escolar.
O João Paulo ficou bastante triste com o esquecimento dos
pais, mas não teve oportunidade de manifestar o seu
descontentamento. Não lhe davam nunca a possibilidade de
exprimir os seus desejos, pois era ainda muito novo para isso.
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Tentou convencer-se que talvez até fosse melhor mudar de
ambiente e de colegas. Queria também saber o que era estudar
numa escola pública e confirmar aquilo que lhe diziam sobre esses
espaços.
Já sabia o que era entrar no colégio às sete horas da manhã
e só sair quando o iam buscar no final do dia; sempre que as aulas
terminavam dispunha de uma sala de estudo que esperava pelos
que a quisessem usar, ou de uma sala de jogos para os menos
estudiosos.
Sabia o que era estar numa sala com mais dezanove
meninos e meninas, com armários individuais para guardar os
materiais escolares necessários às aprendizagens semanais.
Sabia o que era ser acompanhado proximamente por
professores auxiliares sempre que alguma dúvida surgia.
Sabia o que era almoçar todos os dias sempre à mesma hora
e ter aulas sempre na mesma sala.
Estava, agora, numa escola com turmas de trinta alunos, ou
mais, a saltar de sala em sala ao longo do dia.
Havia almoços consumidos à hora que se podia ou que se
trocavam por uma saída rápida ao café próximo para uma
sandes, um sumo e umas quantas gomas.
O acompanhamento dos professores auxiliares era
substituído pela permanência dos próprios professores das
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disciplinas que se ofereciam, fora de horas, para estarem com os
meninos com maiores dificuldades.
Não tinha um local na escola onde guardar os seus livros,
pelo que tinha, todos os dias, de transportar às costas, na sua
mochila Adidas, os manuais e restante material para as aulas
registadas no horário diário.
Sempre fora um menino muito aplicado nas aulas. Nunca
tinha sofrido o desgosto de ver, nos seus resultados, notas inferiores
a quatro; tinha mesmo sido, por três vezes, proposto para o Quadro
de Excelência do Colégio.
Os professores sempre o trataram com o respeito que ele
justificava e que devolvia da mesma forma. Era muito discreto,
calado, recatado e chamava a atenção pelos seus olhos azul-céu
sempre brilhantes.
Para além dos resultados escolares e da cor dos seus olhos,
nada mais o distinguia dos restantes alunos; passava ao lado de
qualquer problema, que surgia pontualmente, e que era
rapidamente resolvido pelo Senhor Reitor com uma visita ao seu
Gabinete. Não sabia mesmo nem a cor das paredes desse terrível
espaço diretivo.
Chegou à sua nova escola no dia da apresentação aos pais,
encarregados de educação e alunos.
Foi o único aluno da turma que surgiu sozinho nesse
momento importante da sua vida escolar.
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Todos os meninos e meninas do 7H foram acompanhados
pelo pai, pela mãe e alguns até por ambos.
Juntou-se, de imediato, ao Carlos Manuel que morava na
sua rua, a umas casas de distância. Conhecia-o por o ter visto, da
sua janela, a brincar no parque em frente a sua casa, com os
amigos.
- Tu moras à minha beira! - afirmou o João Paulo com um
brilho de esperança nos olhos.
- Não sei. Onde moras? - questionou o Carlos.
- Eu moro na Rua das Trigueiras.
- Então é verdade, porque eu também lá moro. - confirmou
o Carlos, oferecendo-lhe uma mão estendida em
cumprimento.
- Como te chamas? - indagou o João.
- Eu sou o Carlos. E tu?
- Eu sou o João Paulo Araújo.
- Então podes ser o Joca! - observou o Carlos, com a certeza
que a designação os aproximaria um pouco mais.
- Não! Sou o João Paulo. - corrigiu, indignado.
- Eu sou o Manias. - mostrava o seu orgulho no epíteto que
lhe tinha sido oferecido no quinto ano.
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- Manias? Porquê? - o João não entendia a necessidade de
algumas pessoas alterarem o seu próprio nome.
Considerava, essa alteração, uma falta de respeito
para com os pais.
- É uma longa história. Depois conto-ta. - concluiu o Carlos,
sabendo que nunca contaria a sua história a um
estranho.
No final deste primeiro intervalo, depois de os pais dos outros
colegas se terem ido embora, estava na hora de conhecer a
Diretora de Turma.
A professora Carla Penha era uma senhora já com alguma
idade, alta, mas que chamava a atenção dos alunos pelas roupas
escuras que sempre trazia.
- Eu sou a professora Carla Penha. Sou a vossa Diretora de
Turma e professora de Física e Química. - confiante.
- Onde mora, professora? - interrompeu o Rafa, marcando a
sua posição na hierarquia da turma.
- Eu sou desta cidade. Nasci aqui e sempre cá fiquei. Se
calhar até já ouviram falar de mim ou me viram passar na
rua. - declarou a professora passando os seus olhos pela
totalidade dos alunos, esperando uma qualquer
reação.
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- A Física e a Química são muito difíceis, professora? -
questionou a Margarida no fundo da sala.
- Se estudarem não é nada difícil e até podem ter bons
resultados.
- Prefere caderno ou capa? - preocupou-se o Blogues, certo
que iria fazer-se acompanhar, diariamente, do seu
monte de folhas avulsas.
- Para as aulas precisam de um caderno de linhas, do
manual de Física e Química, do caderno de atividades e de
material para escrever. - mostrando conhecimento e
necessidade de organização, a professora respondia o
mesmo, todos os anos, àquela pergunta comum.
- E para os outros professores, o que é preciso? - pergunta
feita por um aluno que queria, à imagem do Rafa,
marcar a sua posição e dar sinal de vida, o José Maria.
- Isso, cada um vai dizer na primeira aula que tiverem. Vão
ter de esperar. - informou a Diretora de Turma, sorridente.
Cada um dos alunos apresentou-se à Diretora de Turma e
aos colegas.
- Eu sou o Rafael e tenho catorze anos. - levantando-se para
que vissem a sua alta estatura e para que fixassem o
seu aspeto.
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- Eu sou o Marco Miranda e tenho treze anos. - encolhido no
seu lugar.
- Eu sou a Luísa e vou fazer treze anos. - empurrando os seus
cabelos compridos para trás e dando uma
passagem com os olhos pelo Rafa.
Ouviu-se um burburinho, dirigido pelo Rafa, onde surgiam as
palavras "linda" e "jeitosa".
- Calem-se lá e vamos conhecer os restantes colegas. -
interrompeu a professora com ar de respeito.
- Eu sou o Zé Maria e tenho treze anos, quase catorze. -
mostrando-se orgulhoso da experiência de vida.
- Zé ou José? - sorrindo.
- José Maria. - embaraçado e sentindo que lhe tinham
retirado um pouco da sua importância ao ser o único
corrigido. Os colegas sorriram.
- Eu sou o João Paulo Correia Araújo e vou fazer treze anos
de idade. - afirmou, mantendo a sua postura insegura e
colado à cadeira.
- Eu sou a Carolina Menezes e tenho treze anos. - informou
com a sua voz doce.
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- Eu sou a Valéria Peixoto e estou quase nos catorze anos. -
imitando a colega, empurrava os seus cabelos negros
e olhava para o Rafa.
- Eu sou o Pedro Pereira e tenho treze anos. - esboçando um
gesto que mimetizava a escrita num teclado.
E assim continuaram com as vinte e oito apresentações.
No final, a Diretora de Turma deu-lhes os critérios de
avaliação que tinham de apontar numa folha ou no caderno, se já
tivessem.
O João Paulo tirou o caderno da mochila e começou a
tomar nota. O Marco e a Carolina seguiram-lhe o exemplo
pegando numa folha solta que tinham consigo. O Rafael afirmou
que já tinha aquilo do ano anterior. Os restantes alunos disseram
que depois copiavam pela Carolina.
Ouviu-se o toque da campainha e saíram todos a correr
porta fora, sem sequer esperar pela autorização da professora.
O João Paulo foi o último.
- Bom dia, senhora professora. Até à próxima. - despediu-se o
aluno, educadamente.
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A professora nem respondeu. Não estava habituada àquela
simpatia por parte dos alunos e não contava recebê-la da boca
de algum menino.
Mal descia as escadas, esperava-o o Rafa.
- Bom dia senhora professora! Já estás a engraxar? Tem
cuidado com isso que os professores não gostam de
graxistas. - intimidou o Rafa, encostando o seu dedo
indicador à cara do admirado colega.
O João Paulo nem respondeu, limitando-se a baixar a
cabeça e a tentar encontrar o Carlos que entretanto já tinha
corrido para perto da entrada do bar dos alunos.
O João correu ao seu encontro.
Chegou-se perto dele e colocou-se ao seu lado.
- Um pão com fiambre e um leite com chocolate. - solicitou
o Carlos, já a antecipar o sabor daqueles produtos na
sua boca.
- Passa o cartão. - ordenou a funcionária.
- Já passei. - indignado.
- Cá vai. - estendendo as mãos ocupadas com os produtos
solicitados.
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O Carlos virou-se para o João e perguntou-lhe se ia comer
alguma coisa.
- Sim. Um pão com queijo e um leite com chocolate, se faz
favor. - educadamente.
- Muito bem, menino. Cá está. Já passou o cartão? - solicitou
a funcionária, admirada com a educação do menino.
- Onde se passa? - olhando todo o comprimento do balcão.
- Aqui, nesta luz. - orientou a funcionária, apontando.
- Já está. Obrigado. - confirmou o João Paulo.
- De nada. Volta sempre. - sorridente.
A este educado espetáculo assistiam o Rafa, a Luisinha, a
Valéria e o Pedro.
O Rafa piscou o olho ao Pedro e este deu-lhe um pequeno
toque; fingiu desequilibrar-se, batendo com a mão no pacote de
leite com chocolate que o João aproximava da boca e que se
entornou na sua roupa.
- Desculpa, foi sem querer Joãozinho. - com um sorriso
fingidamente arrependido.
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- Pois é, coitadinho do Joãozinho que sujou a roupa. -
lamentou o Pedro, sorridente.
A funcionária do bar, vendo aquele espetáculo, pegou num
pano quente húmido e deu-o ao João Paulo para que limpasse a
roupa.
- Foi sem querer menino. Ele não queria fazer isto. - interviu a
funcionária.
Os colegas saíram dali em alta risota e lá ficou o pobre
menino a tentar retirar a mancha castanha que se estendia pela
sua camisola e parava unicamente nas calças de ganga.
O João Paulo reteve uma lágrima que se aproximava,
levantando aquele pano húmido ao encontro do azul-celeste do
seu olho. Pensava na reação da mãe ao vê-lo com a roupa suja
logo no primeiro dia.
Almoçaram lado a lado, ao final da manhã na Cantina da
escola, o maculado João Paulo e o indeciso Carlos. Ao fundo,
numa mesa distante, almoçavam a Carolina e a Valéria que
pontualmente olhavam para o colega e se riam do castanho que
apresentava debotado já da limpeza feita.
Dos restantes colegas nem sinal; tinham saído da escola para
comer qualquer coisa no café Curica que estava perto.
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De tarde, o João Paulo preocupou-se principalmente em
tapar a camisa e encobrir as calças; para além dessa inquietação,
fugia de perto dos desastrados colegas, com medo que se
distraíssem novamente.
Com o último toque de saída das dezassete e trinta, todos os
colegas de turma foram para casa.
O José tinha de esperar, sozinho, até às dezanove e trinta. A
essa hora a sua mãe passava por ali para o encaminhar para casa.
Teve a possibilidade, nesse primeiro dia, de conhecer a
biblioteca da escola. Ficou feliz ao ver tantos livros sobre temas
variados e soube que aquele seria um local muito visitado por si ao
longo do ano.
A mãe chegou à hora combinada.
- Já sujou a camisa e as calças! - acusou a Senhora Doutora.
- Foi … - tentando justificar o aspeto que apresentava.
- Foi a sua distração. Ainda bem que não chegou às
sapatilhas. Sabe o preço dessas sapatilhas, não sabe? -
interrompeu a Senhora Doutora, certa do que se tinha
passado e preocupada com o valor das sapatilhas.
- Sim, mãe. Desculpe. - baixando a cabeça em sinal
de vergonha.
- Vamos ver se a Rosário consegue tirar isso. - desconfiava a
Senhora Doutora de forma acusadora.
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- Desculpe, mãe. - arrependido e sentindo-se injustiçado.
Chegaram a casa passados trinta longos minutos de
vergonha e silêncio.
O João Paulo foi falar com a Rosarinho pedindo-lhe para ver
se conseguia tirar aquelas nódoas que tinha feito na roupa.
- Claro que sim, menino. Vá tirar a roupa, limpe-se e depois
traga para lavar. Não há problema. - afirmou, acalmando o
João com a sua certeza sorridente.
- Obrigado Rosarinho. - aliviado e sentindo apoiado.
- Como aconteceu isso? - perguntou admirada com aquela
situação original para o menino João.
- Foi um acidente no bar da escola! - desculpou o João sem
querer acusar ninguém.
Foi tirar a roupa. Lavou-se e voltou a descer, com a camisa e
as calças na mão, para se sentar à mesa deserta e jantar. Passou,
antes, na cozinha onde deixou as duas peças de roupa.
A Rosário trouxe o seu prato de comida, o seu copo com
água. O menino jantou na sua companhia. Ela tentava saber o
que se tinha passado naquele primeiro dia de escola.
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- Conte-me o que aconteceu hoje na escola. Gostou? - com
os olhos brilhantes de orgulho pela nova fase do João.
O João Paulo não falou daquele incidente com o leite com
chocolate. Falou de tudo o resto: dos colegas, do Carlos que era
seu vizinho e da Diretor de Turma que ouvia mal, pois não lhe tinha
respondido quando se despediu.
A mãe tinha-se recolhido ao escritório onde revia uns artigos
científicos sobre uma nova molécula que estaria a ser integrada na
cura de doentes como os que tinha lá no Hospital.
O pai chegou eram já vinte e uma e trinta. Fechou-se na
biblioteca de casa para analisar um caso que tinha em mãos.
Tinha sido nomeado advogado de um homem que era acusado
de violência doméstica. Procurava, nas entrelinhas do processo,
onde poderia pegar para ilibar aquele cliente.
O João Paulo, com a ajuda da Rosário, preparou a mochila
para o dia seguinte, com os materiais necessários.
Passou pelo escritório.
- Boa noite, mãe. Vou para o quarto. - informou o jovem.
- Veja lá se amanhã não se suja todo outra vez. - avisou, fria e
tão automaticamente como passava as folhas que lia.
- Sim, mãe! - aceitou, baixando os olhos.
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A mãe nem os olhos tinha tirado dos papéis para ver o João.
Bateu à porta da biblioteca.
- Sim? - respondeu o Senhor Doutor de forma mecânica.
- Sou eu, pai. - informou o João, receoso.
- Entre. - disse o Senhor Doutor autorizando a interrupção.
- Boa noite, pai. Vou para o quarto. O dia correu bem? -
questionou o João, pretendendo dar início a uma
possível conversa entre ambos.
- Sim. Vá lá dormir. - concluiu o Senhor Doutor.
O pai repetiu a atenção da mãe, não levantando os olhos
para ver o João.
Foi, o João Paulo, com as suas novidades, as suas aventuras,
o nome dos seus colegas e dos seus professores presos na
garganta.
Talvez no dia seguinte os pais já não estivessem tão
ocupados e conseguissem ter uns minutos para falar com ele.
- Talvez amanhã seja diferente e consiga contar as minhas
histórias. - conversando consigo próprio, na esperança de
uma mudança futura.
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Deitou a cabeça na almofada, olhou para a lua que o
espreitava através da janela, fechou lentamente os olhos e
adormeceu no seu sono tranquilo.
19. - 17 -
O dia seguinte ao primeiro
II
14 de setembro
- Vamos lá. Despache-se com esse leite! - alertou o Senhor
Doutor, gravemente.
- Estou pronto, pai. - certificou o João, colocando a sua
mochila às costas.
- Vamos que já é tarde.
Saíram pai e filho em direção a mais um dia de escola e de
processos em tribunal.
Ao longo da viagem de vinte e cinco minutos, o João Paulo
foi tentando falar do assunto que lhe tinha ficado encravado na
garganta do dia anterior.
Apesar de muito tentar, não conseguiu concretizar os seus
objetivos; o pai recebia constantemente chamadas a que ia
respondendo, levantando a mão para que o filho se calasse.
Chegaram ao portão da escola dez minutos antes da hora
do primeiro toque do dia.
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- Tenha um bom dia, menino. - afirmou o Senhor Doutor,
mecanicamente.
- Obrigado, pai. Até logo. - agradeceu o João, sorridente.
Abandonou o carro com a sua pesada Adidas às costas e
dirigiu-se para a sala dezoito onde teria a primeira aula do dia. À
porta não estava, ainda, ninguém.
Começaram a chegar os restantes colegas quando faltava
um minuto para o toque de entrada.
- Bom dia, Joãozinho.
- Bom dia, Valéria.
- Hoje estás mais limpinho.
O João Paulo esboçou um sorriso, mas não respondeu.
Chegou o professor de Português que os fez entrar na sala
em silêncio e por ordem.
Essa ordem foi interrompida pelo momento em que o Rafa
deveria entrar. Estava, mais uma vez, atrasado por culpa dos
transportes públicos, segundo justificava constantemente.
- Sentem-se em silêncio. - ordenou o professor.
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- Bom dia, professor. - cumprimentou o João Paulo.
- Eu sou o Doutor José Amorim. Vou ser o vosso professor de
Português para este ano. Espero que nos entendamos bem e
isso só vai acontecer se ninguém causar problemas e se
respeitarem todos as minhas ordens. - dando ênfase ao
"Doutor" para que os alunos apreendessem a
mensagem e reparassem na sua superioridade
intelectual.
- Que material vamos precisar para as aulas, professor? -
questionou o José Maria.
- Para Português, vão precisar de um bom caderno, do
manual da disciplina, do caderno de atividades e de uma
esferográfica negra ou azul para escrever. - informou o
professor olhando para a turma.
- Não pode ser lápis? - retorquiu o José Maria.
- Podem trazer lápis, mas tudo deverá estar a tinta azul ou
negra. - gracejou o professor.
- E é só isso? - voltou o José Maria, já com a mão na cabeça
de desespero.
- Não. Por vezes vão precisar de um dicionário de Português,
mas eu avisarei na aula anterior. - acrescentou o professor
com grande autoridade.
- E é preciso comprar, professor? - indagou o Pedro Pereira,
já a pensar no peso acrescido que teria de transportar.
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- Claro. Como quer trazer o dicionário se o não comprar? -
comunicou o professor, esboçando um ligeiro sorriso.
- Podia haver na biblioteca! - ripostou o Pedro.
- Esses são da biblioteca para os alunos que deles precisarem
quando estiverem lá a trabalhar. Não podem sair. - afirmou
perentoriamente o Doutor, apesar de não ter a certeza
se aquilo que dizia era ou não verdade.
Aquela ordem pré-estabelecida parecia familiar ao João
Paulo; lembrou-se do seu colégio e da postura rígida de alguns dos
professores que tivera.
- Posso entrar? - solicitou o Rafa, colocando a cabeça dentro
da sala.
- O senhor já viu as horas? - exaltou-se o professor.
- Foi o autocarro que se atrasou. - justificou o aluno, olhando
para o Blogues.
- Entre e sente-se. Esse autocarro costuma atrasar-se muitas
vezes? - desesperou o professor, virando costas ao
retardatário.
- Acontece, às vezes, ao primeiro tempo. - esclareceu o Rafa,
fechando a porta da sala.
23. - 21 -
Com a chegada do Rafa, estava completa a turma.
A Luísa olhou para ele e sorriu.
O José Maria, o Carlos Manuel, a Valéria Peixoto e o Pedro
Pereira cumprimentaram o retardatário com um gesto disfarçado.
Os restantes alunos continuaram a dispensar a sua total
atenção ao discurso do Doutor Amorim.
O João Paulo baixou a cabeça.
O Rafa passou por detrás da cadeira do colega e deu-lhe
um toque nas costas.
- Então professor, o que vai ser preciso para as aulas? -
demandou o Rafa, tentando mostrar interesse e corrigir
o atraso verificado.
- Já disse aos seus colegas. Se tivesse vindo a horas teria
ouvido. Depois pergunta-lhes. - desconsiderou o professor,
manifestando já algum tipo de impaciência.
- Sim, professor. - acedeu o Rafa, apercebendo-se de que o
professor estava a atingir o limite.
Continuou, o Doutor Amorim, a explicar os seus desejos para
o ano. Falou das matérias que iriam ser ensinadas, dos testes que
iriam fazer e dos castigos que aplicaria se alguém contrariasse as
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suas indicações. De resto era preciso estudar, tomar nota de tudo o
que ele dissesse e trazer sempre o material.
- Daqui a um minuto ouvirão o toque de saída. Podem
começar a arrumar as vossas pastas e preparem-se para sair
em ordem. Deixem tudo bem arrumado. - ordenou o
professor.
Ouviu-se o início do toque de saída para o intervalo; já não
se conseguiu ouvir o final que foi abafado pelo arrastar de cadeiras
daquela sala dezoito e pela gritaria da escola.
O Rafa esperou a Luisinha à porta. Cumprimentou-a com um
beijo apaixonado, sempre com o canto do olho virado para a
Valéria que, disfarçadamente, olhava para aquele encontro.
Dez minutos de intervalo. Foi o suficiente para muitos dos
alunos da turma 7H se dirigirem ao campo de futebol para dar "uns
toques na bola", competindo com outros colegas de outras turmas.
O Marco Miranda, Mocas para os amigos, aproximou-se do
João Paulo e cumprimentou-o, apresentando-se.
- Eu sou o Marco, mas podes tratar-me por Mocas. - informou,
sorrindo para o colega.
- Eu sou o João Paulo, mas podes tratar-me por João. -
respondeu o aluno, estendendo a mão ao amigo.
25. - 23 -
- Gostei do teu caderno de Português!
- Este? Foi a Rosarinho que comprou comigo. - mostrando-se
orgulhoso da escolha feita.
- Muito fixe. Gosto das cores. - confirmou o Marco, passando
a mão pela capa do caderno.
- Sim, eu também. - concordou, ainda mais orgulhoso.
- Queres vir para a sala? - convidou, colocando o seu braço
sobre o ombro do colega.
- Vamos. Qual é a seguir?
- Agora vamos ter Geografia na vinte e sete.
Para lá foram os dois colegas.
O Marco Miranda era um menino muito pálido. Parecia estar
sempre muito doente ou maldisposto. Tinha assistido, no dia
anterior, ao episódio do leite com chocolate, e apesar de não ter
gostado nada do que tinha visto, no momento tinha esboçado um
ligeiro sorriso. Estava naquela escola desde o quinto ano e já
conhecia todos os cantos à casa.
Estranhamente, à porta da sala vinte e sete estava toda a
turma, mesmo o Rafa, antes de se ouvir o toque de entrada. Ouviu-
-se aquele som característico de um tacão de salto alto a picotar
umas escadas de mármore.
Uns meninos ficaram atentos, outros esfregaram as mãos.
26. - 24 -
Subia, levemente, um cabelo loiro, com blusa branca
decotada e uma pequena bolsa que combinava com uns sapatos
vermelhos de tacão alto. A seu lado vinha o professor de Português
muito animado.
Aquela figura arejada abriu a porta da sala, entrou e atrás
dela seguiram o Rafa, o José Maria e depois todos os outros
colegas.
A Luisinha e a Valéria ficaram para o final, mostrando a sua
cara de descontentamento e um abanar de cabeça energético.
- Eu sou a professora Júlia Ramos e vamos trabalhar
Geografia durante este ano. - informou, imponentemente, a
professora enquanto olhava para todos os alunos.
Ouviu-se um burburinho mesmo ali na primeira fila,
impercetível para a professora.
- Eu é que te trabalhava! - sussurrou o Rafa, olhando, de
relance, para o Manias.
O Rafa, sentado na primeira carteira, olhava
pecaminosamente para aquela senhora com os seus olhos
arregalados.
27. - 25 -
A professora Júlia Ramos era uma jovem. Contava vinte e
oito anos de idade e tinha sido colocada naquela escola logo
após a conclusão do curso. Era conhecida pela sua beleza e pela
sua apresentação. Usava, todos os dias, os seus sinalizadores
tacões de salto alto. Acompanhava-os, naquele dia, com uma
vaporosa blusa branca que deixava ver, por baixo, o seu alvo
peito; uma saia que lhe cobria as pernas até ao joelho combinava
com a cor dos seus sapatos. Projetava, constantemente, os seus
cabelos loiros para as costas num movimento de estrela de
cinema.
- O trabalho de Geografia será feito, quase sempre, em
grupo. Podemos até fazer já os grupos para o ano. - sugeriu a
professora.
Começaram a agitar-se as cadeiras.
- Este menino, que está aqui à frente, como se chama? -
apontando para o aluno da primeira cadeira da fila à
sua frente.
- Eu sou o Rafael, professora. - informou o Rafa, esboçando
um sorriso e piscando o olho.
- O Rafael vai trabalhar com quem?
28. - 26 -
- Eu posso ficar com o Zé Maria, com o Pedro e com a
Menezes. - respondeu, apontando para cada um dos
colegas.
- Muito bem. Temos já um grupo. - suspirou a professora,
empurrando, novamente, os cabelos para trás.
A Luisinha olhava raivosamente para o namorado e
levantava o braço.
- Sim, menina! - disse a professora, concentrando a sua
atenção naquela aluna.
- Posso ficar nesse grupo também? - perguntou, olhando
para o Rafa e mostrando a sua insatisfação.
- Não. Já estão quatro e é esse o número de elementos por
grupo de trabalho. Pode é escolher mais três e fazer o seu.
- Então vou ficar com o Carlos, com a Valéria e com o
António. - indicou a Luísa, esperando vingar o gesto do Rafa
ao constituir dois pares.
- Muito bem. Mais um grupo.
E assim se foram criando as equipas de trabalho de quatro
elementos até que sobraram o João Paulo, o Marco Miranda e
mais duas meninas muito caladinhas que estavam sempre juntas
ao fundo da sala, a Carlota e a Maria José.
29. - 27 -
Aquele foi o último grupo a ser constituído. Eram os alunos
que ninguém tinha escolhido para trabalhar.
O Rafa levantou o braço.
A professora deu-lhe a palavra.
- O que precisamos para Geografia, professora? - questionou
o aluno enquanto pegava na sua esferográfica e
retirava do bolso das calças uma folha dobrada.
- Precisam trazer sempre o caderno e o livro. Claro que uma
caneta também poderá vir a dar jeito. - informou a
professora, soletrando o material calmamente para
que fosse possível tomar nota.
Ouviu-se um sorriso sonante do Rafa.
A professora começou a tomar nota, no caderno que tirou
da sua bolsa a condizer com os sapatos, dos grupos e dos nomes
de cada um dos meninos e meninas.
Assim passaram a aula preferida do Rafa e do Cucas.
Ouviu-se o toque que marcava o final da aula e saíram
todos, ficando o Rafa para trás e deixando passar a professora
enquanto lhe segurava a porta.
30. - 28 -
- Faça favor, professora. - permitiu o Rafa, inclinando a
cabeça e colocando a outra mão atrás das costas.
- Obrigada, menino.
- Sou o Rafael. - esclareceu o Rafa, sorrindo para a
professora.
- Obrigada, Rafael.
O José Maria, Cucas como era conhecido, era um menino
que estava ali na escola desde o quinto ano. Tinha integrado a
turma do Rafa quando este, no seu segundo quinto ano de
escolaridade, tinha sido transferido da C para a H.
Tinham ficado, desde logo, muito amigos e eram os
companheiros perfeitos; quando o Rafa dizia que era para fazer
alguma coisa, o Cucas era o primeiro a avançar. Tinha feito parte,
no dia anterior, do comité de receção ao João Paulo no bar da
escola.
O João Paulo ficou na companhia do Mocas e das outras
duas colegas. Falaram de quem iria ser o chefe de grupo,
determinando-se que o Mocas, por ser o mais conhecedor das
coisas da escola, ficaria com essa responsabilidade.
O Rafa teve de se entender com a Luisinha e explicar o que
se tinha passado na aula. Disse-lhe que gostava muito de
Geografia e que queria fazer um bom trabalho para ter positiva no
final do ano. Abraçou-se a ela.
31. - 29 -
- Chega-te para lá. Estavas era a fazer olhinhos à professora.
- ordenou a colega, dando-lhe um forte impulso à mão
que se aproximava do seu ombro.
- Qual olhinhos. Àquela cota? Só tenho olhos para ti. -
contestou o Rafa, mostrando-se surpreendido.
- Isso é o que dizes! - desconfiou a Luísa.
- É verdade, anda cá. Tu sabes que tenho de ter boa nota a
Geografia ou o meu pai mata-me.
Deu-lhe um beijo e tudo se resolveu como o Rafa sempre
conseguia fazer.
O pai do Rafa era um professor de Geografia que
trabalhava também naquela mesma escola. Tinha falado, várias
vezes, da colega de disciplina e até já se tinham rido, pai e filho,
dos comentários que faziam em conjunto sobre aquela estampa
de mulher.
Após mais uma aula da manhã, chegava a hora de almoço.
Como era costume em dia de peixe ou, às vezes, mesmo de
carne, o Rafa e os seus companheiros mais próximos usavam a sua
autorização de saída da escola e juntavam-se no Curisca para a
energética refeição do meio-dia: sandes e sumo.
O João Paulo, na companhia dos colegas de grupo de
Geografia, almoçou na cantina da escola. Começou a sentir que
32. - 30 -
poderia ter ali, naquele grupo, um apoio para as suas dificuldades
de integração.
No final do almoço foram, os quatro, dar uma pequena
caminhada pelo jardim da escola. Falaram das suas vidas e
daquilo que mais gostavam. O João falou de toda a sua
experiência no Colégio e de como tudo estava organizado;
confessou que tinha gostado muito da biblioteca da escola.
Chegou o toque de entrada do primeiro tempo da tarde e o
grupo dos quatro dirigiu-se para a porta da sala dois, onde os
esperava uma aula de Matemática.
Ouvia-se o final do toque de entrada, via-se a professora
Marta Costa a subir as escadas e logo de seguida começavam a
surgir os restantes alunos.
- Eu sou a vossa professora de Matemática. Chamo-me
Marta Costa e já tenho muitos anos desta vida. Já conheço
os truques todos e, por isso, não pensem sequer em copiar. -
asseverou a professora, esticando o seu pescoço.
- Professora!!! - levantando-se um dedo a meio da sala.
- Calma. Ainda não terminei. A Matemática é muito
importante para todos. Eu uso muito o computador e por isso,
estejam preparados para tomar nota de tudo aquilo que eu
apresentar. - levantando a mão aberta.
- Professora!!! - em desespero.
33. - 31 -
- Calma, já vai dizer. Para as aulas de Matemática é sempre
preciso trazer uma capa com folhas quadriculadas e sem
margem, o manual da disciplina, o caderno de atividades,
lápis, borracha, caneta preta ou azul, transferidor e uma
aguçadeira. - voltando a levantar a mão aberta.
- Professora!!! - a aluna quase se levantava do lugar, mas
ficava a meio do caminho.
- Só um minuto e já diz. Depois vou dar-vos a marca de uma
calculadora para comprarem e que vai ser material
obrigatório para todas as aulas e para os testes. -
acrescentou a professora, colocando os seus olhos
novamente naquele dedo levantado no meio da sala.
- Professora!!!
- Diga lá, menina. - autorizou, finalmente, a professora.
- Posso ir lá fora? Deixei ficar a pasta ali à porta e não posso
tomar nota, no caderno, de tudo o que a professora está a
dizer. - solicitou a aluna, em voz mais baixa.
- Vá lá! Isto é o que não pode acontecer nas minhas aulas.
Quando se entra é concentração absoluta e nada de
esquecimentos. Sempre que acontecer alguma coisa que
me pareça suspeita, tomo nota aqui no meu computador e
depois não se queixem das notas no final do ano.
Até o João Paulo, com a sua constante atenção e perfeita
concentração, tinha dificuldades em acompanhar a tanta
34. - 32 -
informação que ia sendo transmitida. Tentava, no entanto, não
deixar escapar nada e registar tudo no seu caderno aos
quadradinhos. Já sabia que, chegando a casa, tinha de passar,
para uma capa de argolas com folhas soltas, tudo o que estava a
escrever ali no caderno.
A maior parte dos colegas ficou atónita e perdida. Olhavam
uns para os outros, tentavam completar a informação com aquilo
que iam vendo no caderno do colega de carteira e inventavam
outras palavras para completar as frases que tinham ficado a meio.
O Rafa tinha tirado mais uma folha branca do bolso e fazia
um retrato daquela sua professora. Colocava-a com uma saia
comprida, tapada até meio por uma blusa às flores e que
terminava com uns sapatos rasos que ficavam semiencobertos
pela saia. Pintava um cabelo curto numa cabeça arredondada,
onde pontuavam uns olhinhos muito escuros que constantemente
se fixavam num computador. Completava a obra-de-arte com
alguns números, símbolos matemáticos e balões para significar a
muita conversa da senhora e para tirar todas as dúvidas a quem
não a identificasse na pintura.
Finalmente ouvia-se o toque para o final da aula.
- Não se esqueçam de trazer todo o material necessário na
próxima aula. Já vamos começar a trabalhar a sério; vamos
fazer uma ficha de diagnóstico para saber as vossas
dificuldades. Quem se esquecer de um simples lápis terá falta
35. - 33 -
de material. Acho que é tudo. Podem sair. - concluiu,
contrariada, a professora.
Saíram todos rapidamente para que não houvesse alguma
recaída por parte da professora e retomasse a longa lista de
informações e exigências.
O João Paulo juntou-se ao Mocas e foram trocando
cadernos para tentar dar conclusão aos apontamentos da aula.
Os restantes colegas, à exceção das duas meninas do grupo de
trabalho do João Paulo a Geografia, dirigiram-se ao campo de
futebol para libertar a tensão acumulada naquele momento
intenso, dando chutos numa bola.
No final daquele dia de trabalho, seguia-se a aula de
Educação Física. Como era ainda a primeira vez, ninguém tinha
trazido o equipamento, pelo que se juntaram nas bancadas do
campo de futebol ao lado do Pavilhão Gimnodesportivo.
O funcionário do Pavilhão tinha chamado todos os alunos da
turma a pedido do professor.
Chegava o professor Rui Cunha. Um homem de respeito.
Antigo atleta profissional, apresentava a sua boa forma física
distribuída por um corpo alto tapado pelo seu equipamento Nike.
- Eu sou o Rui Cunha. Fui atleta profissional e até fui
convocado para a seleção nacional. - informou
orgulhosamente do alto dos seus quase dois metros.
36. - 34 -
Ouviram-se palmas.
- Sou o vosso professor de Educação Física.
- Hoje ninguém trouxe equipamento, professor. - esclareceu a
Carolina, com receio da reação do professor.
- Não há problema. Só começamos na próxima aula. Hoje só
vos quero conhecer. - acalmou o professor.
Todos os alunos e alunas se apresentaram, dizendo o nome,
a idade e o desporto favorito.
- Quero toda a gente muito empenhada nas aulas. Vou fazer
de todos vós atletas. Quem não aguentar tem de se habituar
ou desistir. - afiançou o professor, apontando para todos os
alunos que se situavam à sua frente.
- Professor, eu tenho problemas de respiração. - comunicou o
Rui, envergonhado.
- Isso trata-se depressa. Se não queres fazer aula, tens de me
trazer um atestado do teu médico. - ripostou o professor,
minimizando o possível problema.
Terminou a aula e mandou que todos fossem lanchar.
37. - 35 -
Eram dezanove e trinta e a mãe do João Paulo apresentava-
-se para o levar até casa. Tinha o menino já feito uma prolongada
visita à biblioteca da escola onde lera um livro de histórias infantis.
- Hoje está limpinho! - observou a Senhora Doutora.
- Sim, mãe. Boa tarde. Correu bem o dia? - respondeu o
João, sorrindo.
- Sim. Vamos lá que ainda tenho muito para fazer. - concluiu.
Prolongou-se, a viagem até casa, por trinta minutos
acompanhados pelos constantes suspiros da mãe.
Fechou-se, a Doutora, de imediato no escritório a estudar
processos médicos.
O Senhor Doutor chegou às costumeiras vinte e uma e trinta,
dirigindo-se, de imediato, à biblioteca acompanhado por uma
enorme pasta preta cheia de folhas desarrumadas.
O João Paulo jantou, como de costume, na companhia da
Rosário, trocando breves palavras sobre o dia passado na escola.
Passou pelo escritório e pela biblioteca para se despedir dos
pais, trocando com eles breves palavras.
Organizou os trabalhos do dia, copiou os apontamentos de
Matemática para umas folhas quadriculadas sem margens,
38. - 36 -
recheou a mochila do dia seguinte, tomou o seu banho e foi para
a cama.
Enquanto olhava para a lua que, de novo, se tinha colocado
a espreitar na janela do seu quarto, pensou em que realmente
aquele incidente do dia anterior, com o leite achocolatado,
deveria ter sido isso mesmo: um acaso. Tinha passado um dia
calmo, sem qualquer problema com os colegas. Tinha, até,
arranjado um parceiro que demonstrava algum interesse na sua
companhia.
Adormeceu calmamente, depois de acomodar a cabeça
na sua alva almofada.
39. - 37 -
Os restantes dias
III
- Vamos lá. Despache-se com esse leite!
- Estou pronto, pai.
- Vamos que já é tarde.
Desta forma tinham começado os dois dias anteriores e
prometiam começar todos os dias seguintes do João Paulo.
Fazia a sua viagem até à escola com a presença do pai ali à
frente agarrado ao volante e ao telemóvel.
- Tenha um bom dia, menino. - despediu-se o Senhor Doutor.
- Obrigado, pai. Até logo. - respondeu, agradecido, o João.
Da mesma forma automática atingiam a porta metálica azul
do estabelecimento e que antecedia a longa escadaria em
pedra. Dava uma última espreitadela ao pai que se afastava
rapidamente.
40. - 38 -
O João Paulo dirigia-se, imediatamente, à porta da sala de
aula marcada no seu horário diário. Era quase sempre
acompanhado pelo seu novo amigo, o Mocas.
Aproveitava, este colega, para consultar alguns dos
resultados obtidos pelo João Paulo nos trabalhos de casa.
- É só para confirmar os meus trabalhos. - informou o Mocas,
espreitando para os trabalhos que o colega
apresentava no caderno.
- Sim, eu sei. Vê lá se estão como os meus. - sugeriu o João.
- Sim. Está aqui uma coisinha diferente. Deixa-me corrigir.
- Despacha-te que deve estar a chegar o professor. - afirmou
o José, olhando para as escadas.
- Sim, é rapidinho. Só falta isto e mais aquilo. - consultou
apressadamente o aluno.
Entravam na sala, atentavam às aulas.
O Rafa mantinha-se, na maior parte das vezes, na última
carteira da sala, ao lado da Luisinha. Era o local que lhe ficava
mais perto nas suas constantes chegadas tardias. Ocupavam-se
mais um com o outro do que com as matérias da aula. Trocavam
corações em pedacinhos de papel, mensagens ligeiras e alguns
toques por baixo da carteira.
41. - 39 -
Alteravam-se a posição e o atraso quando a aula era de
Geografia; nessas alturas colocava-se, o Rafa, mesmo à frente da
professora de vinte e oito anos bem tratados. Pasmava para
aquela beleza que tanto desgostava a Luisinha e a Valéria. No final
da aula de Geografia o cenário costumeiro: discussão entre os
namorados, a Valéria a ser espreitada, através do canto do olho,
pelo rapaz enquanto trocava um beijo e um abraço com a
Luisinha.
Para o João Paulo a vida parecia mais calma do que no
primeiro dia. Pelo menos não tinha havido mais conflitos acidentais.
Tinha unicamente recebido alguns comentários relativos aos seus
cadernos, à sua atenção e ao seu empenho nas aulas, mas que
deixava passar rapidamente.
- Que caderninho lindo. Que letra tão direitinha. - brincava o
Rafa.
- Não se distraia, menino Joãozinho para depois saber tudo. -
acrescentava a Luisinha.
- Levante o braço, menino Joãozinho. - propunha o Manias.
- Diga bom-dia à senhora professora. - adia o Cucas.
- Já disse até amanhã, menino? - concluía o Blogues.
Comentários como estes saídos da boca do Rafa, da
Luisinha ou do Cucas eram já considerados normais. Chegou
42. - 40 -
mesmo a ouvir-se a Vivi, o Manias ou o Blogues a alinharem na
brincadeira despropositada.
Os professores não ouviam, ou estavam muito ocupados, ou
não queriam ouvir por considerarem normais aquelas intervenções
inocentes dos alunos.
Aquele menino elegante, com cabelo cortado a pente dois
por cima das orelhas e pala virada para trás sobre a testa,
mostrava-se já mais satisfeito com os amigos que tinha arranjado.
Sempre aprumado, com as suas calças em ganga e a
camisola da moda, cuidava das suas sapatilhas de marca que
tanto tinham custado à sua mãe.
Não tinha chegado a ser considerado muito popular pela
maior parte dos colegas de turma; o facto de ser muito educado,
muito respeitador de professores, colegas e funcionários, assim
como o único menino "bonito" que tinha estado num colégio
particular, marcavam a sua diferente presença naquele ambiente
que era gerido por regras muito particulares.
O Doutor José Amorim preocupava-se em dar as suas aulas
mantendo o necessário silêncio e organização. Protegido pelo seu
fato e gravata, chegava à sala, retirava o manual da sua pasta
em pele, colocava os óculos graduados e começava a debitar
conhecimentos.
Algumas mensagens iam sendo trocadas entre o Rafa e a
Luisinha ou entre o Rafa e o Cucas; o professor não dava por nada,
concentrado como estava em demonstrar a sua ciência.
43. - 41 -
Com os seus cinquenta e nove anos, não tinha nem tempo a
perder, nem paciência na correção de comportamentos dos
meninos.
Fazia as suas pontuais questões muito organizadas, mas
nunca esperava pela resposta, certo que estava de que iria sair
asneira daquelas cabecinhas tontas.
Os alunos chegavam mesmo a levantar o dedo para indicar
o seu desejo de responder, mesmo que não soubessem a resposta.
Sabiam que o professor iria ficar com aquela imagem de interesse
e participação, mas não com a resposta, pois não precisavam dá-
-la; apresentava a sua própria resolução da dúvida, numa
demonstração de conhecimento inseguro.
O João Paulo tomava nota de tudo o que o professor
debitava; chegado a casa, lia a matéria toda e ajudava esse
estudo com algumas consultas em livros da biblioteca e pesquisas
online.
A professora Marta Costa, do alto dos seus quarenta e dois
anos, mantinha o seu longo discurso constante. Fazia as suas
apresentações computorizadas de matérias, sentada na sua
cadeira. Sempre que algum aluno se atrevia a colocar uma
dúvida, ela respondia imediatamente com muitas palavras e
explicações que levavam a que ficasse a ser percebido tudo
como antes da dúvida.
44. - 42 -
- Mas então o menino não percebe? Isto é básico. Todos
sabem que o resultado só pode ser este e que o processo
não poderia ser diferente. Basta estar atento e praticar. Não
há dúvida possível. Atentos e trabalhadores, vamos lá. -
afirmava, admirada, a professora que não conseguia
entender a dúvida apresentada.
Os meninos lá acomodavam as dúvidas e tentavam, aqueles
que manifestavam algum interesse, encontrar soluções e
explicações em casa.
O João Paulo era um dos meninos que se ocupava, em
algum do seu tempo de espera na biblioteca, a resolver as dúvidas
de Matemática, solucionando exercícios e consultando livros ai
existentes. Era, muitas vezes, acompanhado por uma das colegas
do grupo de Geografia, a Maria José, que complementava o seu
esclarecimento com explicações que a mãe lhe tinha dado em
casa.
A professora de Geografia tinha sempre organizadas as suas
salas em conjuntos de quatro mesas e quatro cadeiras. Os alunos
sabiam que tinham de entrar e sentar-se junto dos elementos do
seu grupo.
Entrava na sala, retirava da sua bolsa uns cartões com temas
e começava a distribuir um a cada responsável dos grupos.
O Rafa acompanhava atentamente todos os movimentos
da Júlia Ramos, enquanto eram distribuídos os temas de trabalho
45. - 43 -
para a aula. Oferecia-se, muitas vezes, para acompanhar a
professora na execução da tarefa.
Continuava a pairar com as suas roupas arejadas e os seus
tacões de salto alto que variavam diariamente na cor, mas não no
tamanho. Projetava a matéria na tela e indicava as páginas a
consultar no manual para a realização da tarefa semanal.
Os grupos sabiam que, através dos seus responsáveis, teriam
de apresentar resultados na primeira aula da semana seguinte.
Fazia, este esquema, com que uma semana fosse dedicada ao
trabalho de grupo e a seguinte à apresentação dos resultados do
trabalho.
O professor de Ciências Naturais tinha quarenta e oito anos
de idade e era um homem comprometido mais com o seu
Doutoramento do que com o ensino dos meninos e das meninas.
Chamava-se Carlos Pinto e, depois de realizar o seu
Mestrado, tinha agora dado início ao Doutoramento; este
empenho desviava o seu interesse das aulas para a formação.
Não aceitava qualquer comentário por parte dos alunos,
pois não sabiam mais do que ele que era quase Doutor. Quem
tivesse alguma dúvida deveria tomar nota da mesma e depois
pesquisar dados para a resolver; assim fazia ele para o seu
Doutoramento e queria que todos o copiassem.
Apresentava-se sempre vestido com o seu fato moderno e
desportivo, pois não lhe juntava uma gravata como o de
Português. Trazia sempre muitos papéis e muitos esquemas que
46. - 44 -
copiava para o quadro e esperava que os meninos os passassem
para os cadernos em tempo útil.
Comunicava os seus largos conhecimentos e mesmo antes
de o toque ser ouvido na escola, já ele estava à porta da sala
pronto para sair e tratar do que era importante: o Doutoramento.
Mantinha, constantemente, o seu afastamento em relação
aos estudantes e não admitia qualquer tipo de comentário aos
seus científicos esquemas e irrepreensíveis apontamentos.
A professora de Física e Química tinha cinquenta e cinco
anos e via-se como a mamã dos meninos.
Preocupava-se muito com eles como Diretora de Turma. No
entanto, a sua insegurança científica fazia com que divagasse
mais com assuntos domésticos do que com temas de aula.
Falava, constantemente, dos seus problemas particulares; do
seu divórcio e dos filhos que estudavam em Universidades fora
daquela sua cidade.
- Estes computadores! Ninguém os entende. - referiu a
professora, enquanto olhava para aquela
máquina à procura de algum botão no qual carregar.
- Professora, é só carregar nesse botão vermelho. - informou
o Blogues, não entendendo o que a professora
procurava.
47. - 45 -
- Sim, pois! Quem percebia muito disto era o meu ex-marido.
Esse sim fazia deles o que queria. Que falta me faz! -
confessava saudosa a professora, enquanto largava
um suspiro.
- E os filhos? - questionou a Vivi, tentando prolongar a
conversa.
- Os meus anjos estão longe. Um estuda Direito e vai ser
Doutor. A outra estuda Psicologia e vai também ser
Doutora. Tenho muitas saudades deles e vou visitá-los sempre
que consigo. - manifestou a Diretora de Turma, enquanto
simulava a limpeza de uma lágrima inexistente.
- O pai está muitas vezes com eles?
- Vai tentando estar, coitado. Trabalha muito e não lhe sobra
tempo para a família. Sacrifica-se tanto por nós. Trabalha
todo o dia. - concluiu a triste Carla.
- Pois é. É a vida. - concordou a Luisinha, tentando adoçar a
conversa.
Ouvia-se um telemóvel, pontualmente, a tocar. A professora
atendia e era o filho, ou a filha ou o ex-marido.
- Desculpem, mas tenho de atender. É muito importante. -
informou, afastando-se até um canto ao fundo da
sala.
48. - 46 -
Passava os minutos seguintes com o aparelho colado ao
ouvido, mantendo aquela saudosa conversa com os seus anjos ou
com o sacrificado ex-marido.
Mantinham a atividade na aula com estes episódios,
esperando que se ouvisse o toque e saíssem.
Quanto à Física e à Química ficava para alguns esquemas e
apontamentos que ia entregando em cópia aos alunos para que
estudassem em casa.
Como Diretora de Turma dizia estar sempre à disposição dos
meninos, das meninas e dos pais. Quando surgia uma necessidade
momentânea, era complicado encontrar espaço na agenda
daquela senhora sempre muito atarefada.
O quarentão Rui Cunha mantinha a sua intenção de fazer
dos meninos e das meninas bons atletas.
Queria que desenvolvessem a sua resistência à dor,
esforçando-os até um pouco além das suas capacidades. Quem
não demonstrasse garra ou não exigisse de si mais do que podia,
era castigado com o afastamento do jogo de equipa
desenvolvido no dia.
Sempre que se verificasse algum tipo de contacto físico entre
os alunos, minimizava o facto.
- Isso faz parte do jogo! - amesquinhou o ex-atleta.
49. - 47 -
- Mas, professor, ele atirou a bola com força e de propósito. -
queixou-se o aluno, agarrado à perna e mostrando um
esgar de dor.
- Cale-se lá com as queixinhas. É preciso ser duro e resistir. -
acompanhando a sua afirmação com um serrar de
punho.
- Mas a perna dói-me muito. - choramingava o aluno.
- Isso passa como duas voltinhas a correr ali à pista. Vamos
lá. - apontando para a pista e batendo palmas
compassadas.
E tinha de ir dar as voltas necessárias à pista para que o
professor visse que era forte e resistente.
Desta forma se apresentavam os dias do João Paulo. Entre o
esforço físico, a incompreensão das matérias, os trabalhos de
grupo e a solução das dificuldades logo que chegava a casa, se o
não tivesse conseguido fazer na biblioteca enquanto esperava
transporte de regresso a casa, preenchia o seu tempo.
Recorria, algumas vezes, aos conhecimentos do pai e da
mãe. Recebia, sempre, a mesma resposta.
- O menino vê-me a pedir ajuda a alguém? Para que servem
tantos livros na biblioteca e o computador que compramos para o
seu quarto? - recriminou o Senhor Doutor.
50. - 48 -
- Mas…
- Vá lá menino. Um homem a sério trabalha para resolver os
seus problemas e satisfazer as suas necessidades. - ensinou
o Senhor Doutor a sua lição sobre o que era ser
homem, não retirando, no entanto, os olhos dos seus
próprios documentos.
Apesar dos seus parcos conhecimentos, era a Rosário que,
muitas vezes, se sentava junto do menino e tentava ajudá-lo com o
pouco que tinha aprendido até ao seu sexto ano de escolaridade.
Não era muito, mas a companhia e a dedicação que
demonstrava eram, na maior parte das vezes, o suficiente para o
João Paulo resolver as dúvidas que tinha. Podia, ainda, telefonar
ao seu amigo Mocas que, apesar de estar também cheio de
dúvidas, apoiava no que podia; muitas das vezes era o Mocas que
aproveitava para tirar uma ou outra resposta às questões de
trabalho de casa que havia para fazer.
Havia, ainda, os almoços tomados no refeitório da escola
sempre ao lado do seu amigo, os lanches cuidadosos no bar dos
alunos e as poucas brincadeiras que o João Paulo conseguia
manter com os seus colegas.
Chegava a casa com a mãe sempre à mesma hora, jantava
na companhia da sua Rosarinho, falava ligeiramente das
atividades diárias.
Despedia-se, de passagem pelo escritório e pela biblioteca,
dos pais e encaminhava-se para o seu quarto.
51. - 49 -
Resolvia os trabalhos diários e organizava a mochila com os
materiais escolares para o dia seguinte. Tomava o seu banho,
conversava com a sua lua através da janela do quarto e
adormecia acomodado na sua almofada.
No dia seguinte repetia-se a rotina diária.
Assim viveu o seu primeiro período de atividades letivas.
Não se verificou a presença dos pais na reunião final para
entrega de notas, mas recebeu a carta em casa. Registava nível
quatro a todas as disciplinas e nível cinco a Língua Estrangeira I,
História, Geografia, Educação Visual e Tecnologias da Informação
e Comunicação. Um Satisfaz Bastante a Formação Cívica era sinal
do seu comportamento, empenho e envolvimento com as
atividades de turma.
52. - 50 -
A meia
IV
7 de janeiro
A primeira aula, de um dia de escola do início do segundo
período, era de Educação Física com o professor Rui Cunha.
Entraram, os meninos, para o balneário masculino e as
meninas para o que se situava mesmo ao lado daquele.
Vestiram os seus equipamentos; uns do Benfica, outros do
Porto, outros de uma equipa francesa que poucos conheciam.
Havia até um com o da Juventus, o número sete e Ronaldo escrito
nas costas.
O João Paulo levava o seu equipamento de camisola dos LA
Lakers, calção da mesma equipa e umas sapatilhas Adidas a
condizer com os calções.
Tirou as peças de roupa do seu saco e pousou-as
cuidadosamente no banco de madeira enquanto se despia.
Penduradas as calças de ganga no cabide, dobrada a
camisola e arrumadas as sapatilhas por baixo do mesmo banco,
virou-se e começou a equipar-se de amarelo.
53. - 51 -
Reparou, desde logo, na falta de uma das meias.
Olhou em redor para verificar se a teria deixado cair;
espreitou, incrédulo, para dentro do saco, para o chão e até para
o interior das sapatilhas. Não a encontrou em lado nenhum.
Ouviu o professor chamar e o último aluno saiu do balneário.
Calçou a meia que lhe restava e depois as sapatilhas.
Entrou no pavilhão e tinha à sua espera o Rafa, a Luisinha e a
Vivi; os outros colegas olhavam ao longe. Logo que apareceu em
público foi recebido por uma risota geral.
Então Joãozinho! Não havia mais meias em casa? -
questionou o Rafa, rindo e olhando para os colegas.
Os mais próximos riam também ao ritmo do Rafa. Os que
estavam mais afastados chamaram o professor e apontaram para
o João que, envergonhado, tentava passar entre os colegas.
- O que se passa? - indagou o professor, olhando para onde
se encontrava aquela conversa.
- Professor, o João só tem uma meia. Pode fazer aula assim? -
questionou o Rafa, gritando do fundo do espaço
desportivo.
- O que se passou, menino? - perguntou o professor ao João.
54. - 52 -
- Não sei, professor. Achei que tinha trazido todo o
equipamento, mas parece que me esqueci de uma meia!
Não a encontro em lado nenhum. - confessou o João,
encaminhando-se para a posição onde se encontrava
o professor.
- Não há problema, faz aula mesmo assim. - autorizou o
docente.
Continuou a caminhar o João, embaraçado, em direção ao
centro do campo.
Começaram por fazer um breve aquecimento sob
orientação do ex-atleta. Dez voltas aos campos no interior do
Pavilhão. Depois alguns estiramentos e a seguir iriam fazer salto em
altura.
Organizaram-se em filas, uma pela direita e outra pela
esquerda. Avançava o primeiro de cada fila para o salto de um
metro que se situava à sua frente. Depois rodava e colocava-se no
final da fila contrária.
Todos foram saltando; uns ultrapassaram o obstáculo e
outros, com o pé ou com outra parte do corpo, derrubaram a
fasquia.
O João Paulo, mesmo tendo-lhe saído a sapatilha do pé sem
meia durante o salto, conseguiu superar a altura. No entanto,
quando circulava para tomar o seu lugar nas traseiras da fila,
55. - 53 -
estando o professor de costas, foi rasteirado pelo Blogues. Caiu,
ficando com o pé sem meia e sem sapatilha.
- O que se passa agora? - reagiu o professor, começando a
demonstrar a sua insatisfação.
- Foi o José que tropeçou e caiu. Deve ser da meia que lhe
falta. - julgou o Blogues, mostrando uma cara de admiração.
Riso do Rafa e da Vivi.
- Pois, deve ter sido. Aperte bem esses cordões, menino.
Ainda se magoa. - ordenou o professor.
- Sim, senhor professor. Desculpe. - reagiu o João.
- Pare lá com as desculpas e componha-se.
Apertadas as sapatilhas, terminado o salto em altura, era
necessário arrumar o material utilizado na arrecadação.
- Vamos lá a arrumar tudo como deve ser. - comandou o
professor olhando para a turma.
56. - 54 -
O Rafa correu a pegar num pino plástico que marcava o
início do percurso de corrida; o Manias seguiu-lhe o exemplo e
pegou noutro pino; assim foram recolhendo o material até que
sobrou o colchão que amparava a queda após o salto.
Ficara o João Paulo para último na companhia do colchão.
Pegou numa das pontas e começou a tentar arrastá-lo para o
local certo.
Vendo o esforço do amigo, o Mocas deu meia-volta, pegou
na outra ponta do pesado colchão e arrastaram-no até à
arrumação final.
O João Paulo agradeceu ao amigo e este deu-lhe uma
palmada nas costas e um sorriso.
Entrados no balneário, já quase que a totalidade dos
colegas tinha tomado o seu ligeiro banho. Faltavam os dois
amigos.
O Mocas despiu-se juntamente com o João e lá se dirigiam
para o chuveiro. Nesse momento, o Mocas foi chamado pelo
Cucas, tendo voltado atrás.
O João Paulo entrou na zona de banho e abriu a água. Não
saiu nada. Olhou para o chuveiro no exato momento em que a sua
meia desaparecida, cheia que estava de água, se projetou na
direção da sua cara, atingindo-o no nariz.
Sentiu, depois de desligar a água, um líquido viscoso e
quente que lhe corria para a boca. Passou a mão e reparou que
57. - 55 -
estava a sangrar. Tentou conter aquela hemorragia, recorrendo a
algumas informações que lera em livros da mãe.
Tomou o seu banho, vestiu--se, colocou a roupa do
equipamento dentro do saco, embrulhando a desaparecida meia
totalmente encharcada.
O Mocas reparou que um pouco de sangue ainda corria do
seu nariz. Recolheu um pouco de papel higiénico, molhou-o e
colocou-lho a bloquear a narina.
O funcionário do Pavilhão, que se dirigira ao balneário para
ver se tudo estava em condições, viu aqueles dois meninos a meter
papel um no nariz do outro.
- O que se passa aqui? - perguntou incrédulo.
- Nada. Foi ele que começou a sangrar do nariz e estou a
ajudá-lo. - asseverou o Mocas.
- Não quero nada sujo aqui! Vão lá para fora fazer essas
coisas. - ordenou, estalando as mãos vigorosamente.
- Sim, senhor. Já vamos. - concordou o Mocas.
- Toca a mexer. Não quero dessas porcarias no meu
balneário. - mostrando-se zangado com a manutenção dos
alunos no seu espaço.
58. - 56 -
Saíram ambos do Pavilhão e dirigiram-se ao bar dos alunos
para beber um pouco de água.
Esperava-os a costumeira equipa de receção que muito se
riu do aspeto do colega com papel pendurado no nariz.
- Tu não sabes que isso não é para colocar na cara! - gritava
o Rafa.
- Parece que em casa se confunde uma coisa com outra! -
concordava o Cucas.
Alguns alunos de outras turmas, que ali se encontravam,
acompanharam o riso daquele comité, acrescentando-lhe umas
palmas ruidosas.
O João Paulo, envergonhado, já nem bebeu a água de que
tanto necessitava.
Saiu daquele espaço para o exterior e foi para um corredor
ao ar livre.
Encontrou a Diretora de Turma, que passava apressada em
direção a uma reunião para a qual já se encontrava atrasada por
culpa de um telefonema de última hora.
- O que se passou, João? - perguntou a Diretora de Turma,
parando o aluno com a mão.
59. - 57 -
- Não foi nada, professora. - garantiu o João.
- Mas o que é isso no nariz? - questionou a professora
admirada.
- É um pouco de papel. Sangrei na aula de Educação Física.
- Muito bem. Vá lá. - acedeu a professora, apressada.
- Obrigado, professora.
No final do dia, mais um problema: explicar à mãe o que se
tinha passado. Como justificar uma hemorragia acidental a uma
médica.
- O que é isso no seu nariz? - repetiu a Senhora Doutora,
admirada com o aspeto do filho.
- Foi na aula de Educação Física. … - explicava o João.
- Já entendi. Caiu e magoou-se. - concluiu a Doutora.
- Não, mãe. - discordou, respeitosamente, o rapaz.
- Sim. Só pode ter sido isso. É tão distraído! - confirmou a
Senhora Doutora, certa do seu bom entendimento.
- Não, mãe. Foi a meia. - acrescentou o João.
- Qual meia? - questionou, admirada.
- A de educação Física. - tentando esclarecer o que
realmente acontecera.
60. - 58 -
- E uma meia fez-lhe isso? - interpelou, franzindo o sobrolho.
- Sim. - reagiu o menino amedrontado.
- Não minta. Então uma meia ia fazer-lhe isso no nariz? -
referiu desconfiando da palavra do filho.
- Não, mãe. Desculpe. - concluiu o rapaz, tentando terminar
aquela conversa.
Foi apoiado pela Rosário, logo que chegou a casa.
Tratou do nariz do menino e conversou sobre o que tinha
acontecido.
- Não disse nada ao professor? - admirou-se a Rosário.
- Não. Não valia a pena. - garantiu o José, cabisbaixo.
- Mas devia ter dito! O professor podia ter ajudado. - afirmou
a empregada, certa do que dizia.
- Não ajudava nada. - asseverou o aluno, mantendo o seu
olhar colado ao chão.
- Como assim? - desconfiada daquela certeza.
O João Paulo contou-lhe uma outra história que tinha
acontecido numa outra aula de Educação Física.
61. - 59 -
O professor tinha tomado conhecimento de uma brincadeira
realizada pelo Rafa e pelo Manias e não tinha feito nada. Aliás até
se tinha rido.
- Na semana passada, dois colegas fecharam-me num dos
armários do Pavilhão onde se guardam as bolas. Quando o
professor foi fechar o quarto de arrumos de material, ouviu
um barulho. Abriu a porta e viu que eu estava lá fechado. -
relatou o João.
- O que faz o menino aqui no armário? - perguntara,
admirado, o professor.
- Fecharam-me aqui. - respondera o João, assustado.
- Quem foi que fez isso? - questionara o ex-atleta.
- Não sei, professor. Estava de costas. - desculpara o
aluno, tentando evitar conflitos com os colegas.
- Vá, saia lá daí. - ordenara o docente.
- Mal eu virei costas, o professor deu uma gargalhada e os
colegas, que estavam a espreitar, ouviram e riram-se
também. - continuou a contar o João.
- Que mau exemplo! - admirou-se a Rosário com o
comportamento do adulto.
62. - 60 -
- Parece que só achou graça por me ver naquela situação.
Não foi por mal. - voltou a desculpar o seu professor de
Educação Física.
- De qualquer forma devia ter dito alguma coisa aos outros
meninos. - retorquiu a empregada.
- Deixa lá, Rosário. Foi a brincar.
E assim desculpava, o João, mais uma "brincadeira" dos
colegas, agora com o apoio do professor. Era assim aquele
menino; aproveitavam a bondade que apresentava, sabendo que
dali não viria qualquer reclamação ou resposta violenta.
63. - 61 -
Os castigos
V
28 de janeiro
Pouco tempo depois do episódio da meia encharcada,
também na aula de Educação Física, aconteceu algo de muito
grave.
Tinha chegado à escola, o João Paulo, algum tempo antes
do primeiro toque da manhã. Entraram, normalmente, os alunos
para a sala onde iam ter Matemática com a professora Marta
Costa.
Registaram o sumário, que a professora projetara na tela
branca. Prepararam-se para resolver um exercício de matemática
relativo a funções numéricas.
A professora ligou o seu computador e transferiu os dados
para o projetor da sala. Era uma projeção bastante apelativa, com
movimentos, sons e cores que atraíram a atenção de todos.
- Posso entrar, professora? - perguntou, colocando a cabeça
no interior da sala através da porta entreaberta.
- Faça favor, menino Rafa.
64. - 62 -
- Obrigado, professora.
A professora continuava concentrada na sua apresentação
e nem sequer tinha olhado para a porta de entrada. Sabia que,
com toda a certeza do mundo, seria o Rafa.
Os meninos, colocadas as dúvidas sentidas e recebida a
não-resposta habitual da professora, começaram a tentar resolver
os exercícios.
Passaram-se quinze minutos.
- Acabou o tempo. Menino João Paulo, venha ao quadro,
por favor. - ordenou a professora.
Levantou-se o João da sua cadeira e deu dois passos até
estar em frente ao quadro.
- Vamos lá resolver esse exercício.
O aluno começou a apresentação da sua resolução.
Terminada, olhou para a professora que examinava atentamente o
exercício no quadro.
65. - 63 -
- Muito bem. Está correto. Pode sentar-se.
- Obrigado, professora. - agradeceu o aluno, dirigindo-se ao
seu lugar sem sequer olhar para os colegas.
Sentou-se o João e levantou-se a Menezes.
Logo que se sentou, o João reparou que o seu caderno
apresentava uma série de desenhos e riscos que se estendiam pela
maior parte das páginas guardadas na sua capa.
Olhou em redor enquanto levantava o dedo. Parou os olhos
no Cucas, que estava mesmo na mesa atrás da sua; viu que se
estava a rir enquanto fazia de conta que escrevia no seu caderno
onde nenhuma das quadrículas apresentava um único número.
Baixou o dedo, tendo percebido o que se tinha passado,
mas tarde demais.
- Sim, menino. Alguma dúvida? - indagou a professora.
- Não, professora. Obrigado. Já percebi. - disfarçou o João.
- Muito bem. Continuemos, menina Carolina.
Foram resolvendo os exercícios à vez. Uns acertavam, outros,
como o Cucas que estivera muito ocupado com a pintura, ficou a
olhar para aquele quadro com a cabeça da mesma cor: negra,
sem nada perceber.
66. - 64 -
A professora explicou o exercício, resolvendo-o ela mesma e
ouviu, no final, uma expressão de admiração por parte do
questionado.
- Então é isso! - admirou-se o aluno, coçando a cabeça.
- Sim, era isto.
No final da aula.
- Não se esqueçam de fazer os trabalhos de casa. Quem não
os apresentar devidamente resolvidos na próxima aula,
recebe um menos na avaliação. Não estou a brincar. Isto é
muito importante. - comunicou a professora, autoritária.
- Professora? - levantou-se um dedo a meio da sala.
- Calma, já vai falar. Sem perceberem bem como se
resolvem estes exercícios não podemos avançar. Há mesmo
que trabalhar muito para ficar tudo percebido. - continuou a
professora, certa da importância do comunicado.
- Professora? - de novo o mesmo dedo a meio da sala.
- Calma, só um pouco. Já fala. Não se esqueçam de trazer a
calculadora e o caderno de exercícios que pode ser preciso
para trabalhar na próxima aula. - solicitou a professora,
continuando a sua explanação.
67. - 65 -
- Professora?
Ouviu-se o toque de saída e com ele o ruído da escola que
marcava o alívio do fim de mais um momento matinal de
aprendizagem.
- Sim, menina. Diga! - questionou a professora, tentando
sobrepor a sua voz ao ruído que se instalara.
- Nada, professora. Fica para a próxima. - respondeu a aluna
que tinha levantado o dedo, esboçando um sorriso.
- Muito bem.
Seguia-se, após o intervalo dedicado ao lanche leve da
manhã, a aula de Educação Física.
Tendo aprendido, com o episódio da meia, que não poderia
tirar os olhos dos seus bens, o João Paulo equipou-se sentado sobre
a sua roupa para que nada desaparecesse.
Fizeram a aula no exterior.
Pretendia-se verificar a qualidade do lançamento de peso
de cada aluno.
Transportaram a bola e a fita-métrica; o professor fez-se
acompanhar de um bloco de notas e uma esferográfica.
68. - 66 -
Formaram fila, arremessando, à vez, a pesada bola de metal
o mais distante que podiam.
Não importado com a distância que poderia atingir, o João
Paulo preocupava-se com a aplicação da técnica que o professor
tinha ensinado na aula anterior.
Estava bastante calor no exterior, o que fez com que todos
transpirassem abundantemente.
Recolheram aos balneários, após arrumarem o equipamento
que tinham transportado para o exterior. É claro que a pesada
bola metálica ficou para o tecnicista do lançamento que se
manteve sempre alerta durante a sua permanência no quarto de
arrumos.
Tomaram o banho devido.
Quando voltou ao seu lugar no banco de madeira, o João
Paulo reparou que lhe tinham desaparecido as calças de ganga.
Perguntou se alguém as tinha visto.
- Eu não. As minhas estão aqui e as tuas não me servem. -
afirmou o Rafa, levantando as suas calças no ar.
- Eu também não. - acompanhou o Cucas.
- Eu muito menos. - referiu o Blogues.
69. - 67 -
Preparava-se para chamar o professor, seguindo as
indicações que recebera da Rosário, quando o Rafa lhe disse.
- Olha ali. Estão umas calças penduradas na porta das
meninas. Como terão ido ali parar? - afirmou, com
admiração simulada, apontando para a porta.
O João, pegando num pequeno banco que ali se
encontrava, dirigiu-se à porta do balneário feminino, subir o banco
e elevou-se à altura da porta. Recolheu as suas calças e desceu.
Terminou de se vestir e saiu juntamente com o amigo Mocas.
Dirigiram-se ao refeitório para a merecida refeição.
O Rafa e os colegas do costume não se encontravam lá.
Nada que fosse anormal já que saíam sempre para comer no café.
Terminado o almoço, foram, os dois colegas, dar a sua volta
pelo jardim da escola. Tinham começado a sua caminhada
quando foram chamados pela funcionária do telefone. O Senhor
Subdiretor queria falar com o João Paulo urgentemente.
Calmamente, dirigiu-se ao gabinete. Estava certo que seria
alguma questão menor.
Quando chegou à porta do gabinete deu de frente com os
sorridentes Rafa, Luisinha e Cucas. Não percebeu muito bem o que
se passava, mas aguardou que o chamassem.
70. - 68 -
- Entrem se fizerem o favor. Então quem foi que fez isso? -
questionou o Subdiretor.
O João Paulo olhou para os lados sem entender a que "isso"
se referia o Subdiretor.
- Foi aquele ali, o João. - apontou o Cucas.
- Sim, foi ele. Eu vi tudo. - afiançou a Luisinha,
choramingando.
- Diga lá, menino. Por que razão fez isso? - retomou o
Subdiretor.
- Não sei ao que se refere! - exclamou o João perdido no
meio daquele questionário.
- Ainda por cima é mentiroso. Então não sabe o que fez? -
voltou a perguntar o professor, mostrando estar
zangado.
- Quando? - questionou o João, ainda perdido.
- Hoje mesmo, após a aula de Educação Física. - esclareceu
o docente, dando um ligeiro murro na sua secretária.
- Tomei banho e saí. Depois fui almoçar.
- Está a brincar comigo? - dando um murro mais forte na
mesma secretária.
71. - 69 -
O João Paulo começava a ficar com a garganta seca e
uma lágrima esforçava-se por vencer a força que o menino fazia
para que não saísse.
- Não, desculpe. Não sei realmente do que está a falar. -
afirmou, soluçando, o aluno.
- Disse aqui a sua colega que o viu a espreitar para o
balneário feminino quando se vestia. - afirmou o Subdiretor,
apontando para a Luisinha que mantinha uma lágrima
no canto do olho.
O João olhou, admirado, para a Luisinha.
- Mas isso é mentira. Nunca faria isso. - firmando o seu olhar
na colega.
- Mas parece que fez. Estes dois colegas são testemunhas
do que se passou. - acrescentou o Subdiretor olhando para
os dois alunos.
- Sim, Doutora. Eu e o José Maria vimos tudo. - confirmou o
Rafa, solenemente.
- Não é possível terem visto nada. - desconfiou o João.
- Vimos sim. Estás a dizer que somos mentirosos? - questionou,
elevando a sua voz.
72. - 70 -
- Não. Só estou a dizer que não espreitei para lado nenhum. -
emendou o choroso João.
A lágrima vencera a dura luta e trazia consigo umas quantas
iguais à primeira.
- Doutora. Nós vimos aquilo e temos como provar. -
assegurou o Rafa, dando um passo em frente.
- Como querem provar? - perguntou o Subdiretor, admirado.
- Até tiramos uma fotografia da cena. - informou o Cucas
metendo a mão no bolso de trás das suas calças.
- Mostrem lá a fotografia. - solicitou o Subdiretor, curioso.
Ligaram o telemóvel do Cucas e mostraram a dita fotografia.
Via-se nela o João Paulo em cima de um banco, com as calças na
mão e a porta do balneário feminino mesmo em frente. O
Subdiretor nem sequer se lembrar de pensar em como teria sido
possível, num momento imprevisto, aquele aluno ter o telemóvel
pronto para fotografar o colega.
- Então menino. E agora? - acusou o professor, sorrindo.
- Isso… não foi assim… - gaguejou o João.
73. - 71 -
- Não foi assim? Então não está aqui à porta do balneário
das suas colegas a espreitar com as calças na mão? -
afirmou o professor apontando para a fotografia do
telemóvel que entretanto já tinha na sua mão.
- Sim, estou. Mas não é … - tentava justificar, o João.
- Não me diga que não é o menino! - ordenou o Subdiretor,
colocando em pé e afastando a sua cadeira com o
movimento, empurrando-a com as pernas.
- Sou eu, sim. Mas… - confirmou o aluno que se sentia
aprisionado e apontado por todos como sendo um
criminoso muito procurado.
- Mas nada. Sabe bem que isto é muito grave. Vou ter de
comunicar aos seus pais e aplicar um castigo. Vocês podem
sair e obrigado pelo gesto em defesa da vossa colega. -
afirmou, acompanhando os alunos à porta e
colocando a sua mão nas costas do Rafa.
Saíram os três inocentes queixosos.
- Bem te disse que ia dar certo. - cochichou o Rafa, sorrindo.
- Já está tramado. - previu o colega, orgulhoso do ato.
- Aquilo de por as calças em cima da porta foi o
máximo. - acrescentou a Luisinha, abraçada ao Rafa.
74. - 72 -
- E tu, Luisinha. Parecias uma estrela de cinema. Merecias um
Óscar. - retribuiu o Rafa, limpando a água colocada na cara
da colega para substituir a lágrima necessária à
encenação.
- Somos os maiores. - congratulou o Cucas.
- Então, menino. Como vamos resolver esta questão? -
perguntou o Subdiretor, certo de tudo o que se tinha
passado e confiante nas suas capacidades
investigativas.
- Não sei. Não sei de nada. - confessou o João, confuso.
- Eu também não, mas alguma coisa vai ter de acontecer. -
condescendeu o professor pegando numa caneta e
numa folha de papel.
- Mas posso contar o que se passou. - solicitou o João na
esperança de poder reverter a situação.
- Já vimos o que se passou, mas se pretende dar outra
versão, faça-me esse favor. - condescendeu o professor,
começando a escrever na sua folha.
O João Paulo contou a história exatamente como ela tinha
acontecido. Na realidade não tinha visto nada nem tinha
pretendido ver o que quer que fosse. Só queria recuperar as suas
calças.
75. - 73 -
- O menino acha que alguém vai acreditar nessa história? A
fotografia não mente e os seus colegas disseram a verdade.
O menino, ainda por cima, quer enganar-me. - afirmou com
escárnio.
- Não. Esta foi a verdade. - garantiu o João já convencido da
culpa que lhe era atribuída.
- Tem alguém que confirme a sua versão? - interpelou o
responsável pela escola, ciente da resposta que
receberia.
- Não. Já tinham saído os outros colegas e só lá estavam os
que aqui viu e o Pedro Pereira. - confirmou o João as
expetativas do interlocutor.
- Muito bem. Não pode provar nada. Pode ir. - ordenou,
apontando a porta de saída ao aluno que limpava
constantemente as lágrimas da cara.
- Mas… - esboçando um contraditório.
- Saia, se faz favor. Já percebi tudo o que se passou. -
asseverou o Subdiretor, colocando um ponto final na
conversa e na frase escrita na folha que tinha
colocada à sua frente.
O João saiu dali a chorar. Dirigiu-se à aula de Educação
Visual que já tinha começado.
76. - 74 -
- Então o João fez asneiras! - perguntou o professor,
sorridente e já ao corrente da situação que lhe tinha
sido relatada, expressivamente, pelo Rafa, justificando
o seu atraso e o dos outros dois colegas.
- Pois foi, professor. É um mirones. - antecipou-se a Luisinha.
- Não diz nada, João? - voltou o professor ao ataque.
- Ele sabe o que fez. A espreitar as meninas! Que depravado!
- acusou a Vivi.
O João não conseguia tirar da sua boca seca nem uma
palavra que pudesse dirigir ao seu professor ou que contrariasse o
vitorioso Rafa. Limpava as lágrimas da cara enquanto se dirigia
para o seu lugar.
Ali passou os quarenta e cinco minutos chorosos. No final
tinha uma folha de papel Cavalinho pintalgada de lágrimas sem
cor.
Sentiu a injustiça que lhe tinha sido feita pela escola; já sabia
que não era adorado pelos colegas, mas a escola deveria ter
percebido o que se tinha passado. Devia ter ouvido os seus motivos
e as suas explicações.
Não estava preocupado com os castigos que lhe fossem
impostos. Não estava preocupado com os pais. Estava
preocupado com a injustiça.
Foi comunicado o sucedido à professora Carla Penha.
77. - 75 -
Foi aberto procedimento disciplinar contra o menino.
Foi-lhe atribuída pena de três dias de integração na
comunidade.
Foi enviada comunicação para casa.
Tudo realizado com a mesma eficácia e rapidez com que
tinha sido concluída a sua culpa no caso.
- Boa tarde, mãe. - disse o João de forma entristecida.
- Vamos. Tenho muito que fazer. - mandou a Senhora
Doutora sem reparar no estado do filho.
- Tenho de lhe dizer uma coisa, mãe. - preparando para
confessar o que acontecera e apresentar explicações.
Mantinha os olhos vermelhos direcionados para o
chão.
- Agora não me pode distrair da condução. - regulou a
Senhora Doutora.
- Mas é importante. - retorquiu o rapaz.
- Agora estou a conduzir, menino. Não vê? - contrariou a
Doutora, atenta à condução e ignorante do aspeto do
filho.
Fizeram a restante viagem calada durante os usuais trinta
minutos.
78. - 76 -
O João Paulo chegou a casa, ainda calado.
Subiu ao seu quarto e ali ficou fechado.
Foi chamado pela Rosário para descer e jantar. Não
obtendo resposta, subiu ao quarto e deparou-se com o João que
chorava deitado na sua cama.
- O que se passa, menino? - perguntou a preocupada
Rosário, apercebendo-se do estado do menino.
- Nada, Rosário. É a escola. - despachou o João, cansado da
confusão do dia.
- O que se passou na escola? - insistiu a Rosário.
Contou à Rosarinho o que se tinha passado naquele dia na
aula de Educação Física. Relatou os factos ao minuto.
- Mas isso é uma injustiça! O menino não fez nada! - ajuizou a
empregada, admirada com a injustiça
precipitadamente cometida.
- Pois não, mas agora vou ser castigado. - certificou o
menino, colocando a mão direita na testa.
- Isso é o que vamos ver. Vou buscar o seu jantar. Não se
preocupe que eu resolvo tudo. - indignou-se a mulher,
decidida a fazer justiça.
79. - 77 -
- Não, Rosário. Deixe estar. - respondeu o José derrotado.
- Não, meu querido menino. Não posso deixar estar. -
retorquiu a Rosário.
Saiu e subiu, dez minutos depois, com o jantar do João Paulo
que continuava embrulhado na sua almofada já húmida.
Acompanhou o João durante o jantar.
No final confortou-o, encaminhou-o para o banho e saiu
dando-lhe as boas-noites.
Bateu na porta do escritório.
- Sim? - questionaram.
- Sou eu, minha Senhora. - informou a Rosário, colocada
perante a necessidade de buscar defesa para o
menino.
- Diga, Rosário. - ordenou a Doutora.
- É o menino. Está a chorar no quarto. - informou a
empregada, revoltada.
- A chorar? Magoou-se? - perguntou a Senhora Doutora.
- Não, minha Senhora. Não se magoou.
- Então qual o motivo do choro? - tentando esclarecer a
dúvida.
80. - 78 -
- Foi na escola. - adiu a Rosário.
Contou à mãe a história relatada pelo José.
- Estas crianças de hoje em dia lembra-se de cada coisa!
Agora vai ter de sofrer as consequências! Pode ser que assim
aprenda. - concluiu, definitiva, a Doutora.
- Mas, minha Senhora. O menino não fez nada. - reagiu a
Rosário, ainda mais revoltada com aquela reação da
Senhora Doutora.
- Para ser castigado, alguma coisa fez. Depois falamos.
Agora estou a meio de um artigo de opinião. - confirmando
a culpa que certamente estava bem estabelecida.
- Muito bem, minha Senhora. Com licença. - solicitou,
sentindo a indiferença que recebia daquela mãe.
Já nem se dirigiu à biblioteca por saber a reação que ia ouvir
e não queria ficar ainda mais revoltada com toda aquela injustiça
que faziam com o seu menino. O Senhor Doutor iria falar, com toda
a certeza, de leis, de direitos e deveres do cidadão e não resolveria
nada.
Dois dias depois do acontecimento, era entregue, em casa,
uma carta, registada com aviso de receção, da escola. Trazia uma
comunicação de resultado de Procedimento Disciplinar.
81. - 79 -
Confirmava-se a culpa do aluno e a penalização a que seria
sujeito: nove horas, distribuídas por três dias, de atividades de
integração na escola - organização da biblioteca da escola e
limpeza do espaço.
A Rosário, naquela mesma noite, deu conhecimento ao
Senhor Doutor e à Senhora Doutora da missiva.
A Senhora Doutora abriu a carta.
- O que é isto? - questionou a Doutora, intrigada e
incomodada pela intromissão.
- Não sei, minha Senhora. - respondeu a Rosário.
- É uma carta da escola que fala de um processo disciplinar.
Deve ser para o Senhor Doutor. Ele é que percebe destas
questões de leis. Deixe-a ficar em cima da sua secretária na
biblioteca. - ordenou a Doutora, empurrando o problema
para o campo da Justiça.
- Sim, minha Senhora. - acedeu a ainda revoltada
empregada.
Colocou a referida carta em cima da secretária e saiu.
Subiu ao quarto do João Paulo e disse que tinha chegado
uma comunicação da escola.
82. - 80 -
- O que dizia? - perguntou, curioso, o João.
- Não li. Ficou em cima da secretária do papá. - desvalorizou
a Rosário.
O João desceu a correr e foi fazer a leitura do texto
recebido. Pousou-a no mesmo local junto dos muitos processos que
o pai mantinha acumulados em pilhas.
Não mais se ouviu falar daquela comunicação escolar, nem
o Senhor Doutor a referiu em qualquer momento.
No dia seguinte começou a cumprir a sua injusta
penalização disciplinar.
Talvez tenha sido a primeira vez, mas o Rafa, o Manias, o
Cucas, o Blogues, a Luisinha e a Vivi fizeram questão de se dirigir,
na hora de almoço, à biblioteca para ver o colega a cumprir o
castigo, registando o momento em fotografia.
Pegavam, aleatoriamente, em livros, folheavam algumas
páginas e pousavam no carrinho de transporte. Depois ficavam ali
sentados no sofá a ver o João a colocar o escrito no devido lugar,
seguindo o número de registo.
Repetiam a consulta logo que a anterior se encontrava
devidamente colocada.
No final do dia, enquanto esperava a chegada do seu
transporte para casa, terminava a arrumação dos restantes livros e
procedia à limpeza do espaço.
83. - 81 -
Repetiu aquele processo durante os três dias da
penalização. Almoçava rapidamente durante os quinze minutos
que lhe restavam e, religiosamente, dirigia-se ao seu castigo para
cumprir as nove horas a que estava obrigado.
No final do cumprimento sentia que tinha, injustamente,
satisfeito a sua divida para com a comunidade.
Num desses dias que tinha passado na biblioteca a cumpri o
seu castigo, cruzou-se com uma professora que dava apoio às
atividades daquele espaço.
A professora vira, no dia anterior, aquele menino que lhe
pareceu não encaixar no perfil de aluno que causasse problemas.
- Boa tarde. - afirmou a professora sorridente.
- Boa tarde, professora. - cumprimentou o João
educadamente.
- Já o vi aqui ontem a fazer estas limpezas e não entendi os
motivos que poderiam tê-lo trazido a esta situação. -
tentando recolher mais informação da boca do
menino.
- Foram umas coisas que aconteceram! - concluiu o João.
- Não me quer contar essas coisas? - solicitou a atenciosa
professora, baixando e adoçando o seu tom de voz.
- É melhor não, professora. Tenho de acabar isto. - disse o
ocupado aluno.
84. - 82 -
- Fazemos assim. Eu ajudo-o a arrumar e vai-me contando as
suas aventuras. - propôs a professora.
Partilharam aquela atividade e foram trocando histórias.
A professora Sílvia Araújo mantinha a sua impassividade, não
querendo que o menino parasse o seu relato se verificasse alguma
reação da sua parte.
O João relatou a causa do seu castigo, mas, agradado em
ter ali alguém que o ouvia sem recriminações, juntou muitos dos
outros episódios passados desde o início do ano.
No final do relato, a professora perguntou se poderia dar um
abraço ao João. Este respondeu afirmativamente e a Sílvia
abraçou-o sensibilizada pela sua história.
Naquele dia, o João voltou a casa com o coração mais
leve.
Naquele dia, a professora Sílvia chegou a casa e chorou
sozinha.
85. - 83 -
A mensagem
VI
28 de fevereiro
A meio do segundo período, numa aula de Tecnologias da
Informação e Comunicação, os alunos dirigiram-se para a sala dos
computadores.
Entraram e sentaram-se aos pares em frente ao computador.
O professor explicou o exercício que fariam naquela aula,
colocando umas imagens explicativas na tela de projeção. Seria
necessário criar uma folha de cálculo com tabela de contagem
de valores aleatórios.
Recebeu, cada par de alunos, uma fotocópia com os dados
que cada um deveria introduzir na sua folha. Estabeleceu um
tempo máximo de trinta minutos para a realização da tarefa.
Deu ordem para começar.
Ligados os computadores, introduzidos os dados de arranque
de sessão, surge uma imagem, no ambiente de trabalho de todas
as máquinas, onde surgia a seguinte mensagem acompanhada de
um boneco representativo:
86. - 84 -
"Sou o Joãozinho. Gosto de meter papel higiénico no
nariz e de pintar a minha roupa de castanho."
Começaram a rir os alunos da turma, exceto o João Paulo e
o Marco Miranda que se colocaram em par frente ao seu
computador.
Ouvida aquela confusão, o professor interrompeu.
- O que se passa aí? - pergunto o professor em voz alta e
ríspida.
- Professor, os computadores estão todos com vírus. -
concluiu o Blogues recorrendo aos seus avançados
conhecimentos informáticos, tentando, ao mesmo
tempo, disfarçar a sua culpa.
- Como assim? - retornou o professor admirado.
- Estão todos a dizer o mesmo. Veja! - complementou a
Luisinha, julgando estar a exprimir-se numa linguagem
correta e conhecedora.
O professor dirigiu-se a um dos terminais e leu a mensagem
animada.
87. - 85 -
- Quem colocou isto nos computadores? - inquiriu o professor,
agora inquieto.
Ninguém falou. Ao fundo o Blogues sorria silenciosamente.
O Blogues, nome pelo que era conhecido pelos amigos mas
que tinha sido batizado como Pedro Pereira, era um menino muito
entendido em informática. Conseguia aceder à rede da escola e
colocar em todos os computadores da rede aquilo que bem lhe
apetecesse.
Era um amigo que o Rafa utilizava quando precisava de
trabalhos passados a computador e que era mantido na
proximidade por questões de oportunidade.
O Pedro Pereira tinha treze anos e tinha vindo para aquela
escola no quinto ano.
- Ninguém fala, mas eu vou descobrir o que se passou. -
assegurou o docente.
- Deve ter sido algum engraçadinho. - adiantou o Rafa.
Tentava o Rafa desviar as atenções de si e do amigo de
ocasião.
88. - 86 -
- Se calhar foi alguém que teve aula aqui antes de nós! - adiu
o Rafa.
- Vou já apagar isso dai. Toca a trabalhar que já não vos
resta muito tempo. - informou o informático.
O Blogues fez o trabalho rapidamente e enviou, pela rede,
para o Rafa, para o Cucas e para o Manias. O tempo que lhe
restou dedicou-o a enviar aquela mensagem de ambiente de
trabalho para os restantes computadores das salas de aula.
O João Paulo pediu para sair por um minuto.
- O que se passa, menino? - inquiriu o docente.
- Nada professor. Só tenho necessidade de ir à casa de
banho. - comunicou o aluno entristecido.
- Faça favor. - autorizou o professor.
- Obrigado, professor.
- Deve ir meter mais um pedaço de papel higiénico no nariz!
- concluiu o Rafael Pereira sorridente.
O professor mandou o Rafa calar-se com aqueles
comentários sem propósito.
89. - 87 -
O João Paulo foi à casa de banho e chorou. Começava a
sentir que afinal aquilo nunca mais iria acabar. Estavam sempre a
pegar com ele, a brincar e a envergonhá-lo. Chorou mais um
pouco sozinho naquela casa de banho com cheiro estranho.
Lavou a cara com um pouco de água para tentar esconder
os olhos azul-céu avermelhados e turvos.
Regressou à sala.
Ao passar junto do local onde estava o Rafa com a sua
colega de trabalho foi agraciado com um "chorãozinho".
Acomodou-se, de novo, junto do seu colega de trabalho.
Incomodado com tudo o que se tinha já passado, o Marco
Miranda prometeu que iria falar com a Diretora de Turma para lhe
contar tudo.
O João Paulo suplicou para que não o fizesse.
O amigo não cedeu e repetiu que aquilo não podia
continuar mais assim.
Terminada a aula, o João Paulo dirigiu-se, de novo, à casa
de banho. O Mocas foi procurar a Diretora de Turma. Os restantes
colegas de turma foram para o campo dar uns toques na bola de
futebol e rir da brincadeira.
O Marco pediu à funcionária da entrada da escola que
chamasse a Diretora de Turma, Carla Penha. A funcionária foi
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procurá-la, tendo vindo a encontrar a docente agarrada ao
telemóvel no corredor de acesso à sala de professores.
A professora pediu que mandasse o menino esperar que já o
atendia.
- A professora já vem falar contigo. - disse a funcionária.
- Obrigado.
O Mocas esperou e pouco tempo depois surgiu a agitada
professora.
- Diga lá, menino. O que se passa? - interpelou a curiosa
Diretora de Turma.
- Precisava de falar com a professora sobre o João Paulo. -
informou o sério Marco.
- Como assim? Ele andou a fazer asneiras? - indagou a
professora, prevendo trabalhos que teria.
- Não, professora. Ele não fez nada. - replicou o Mocas.
- Diga então! - descansou a professora.
- Podemos marcar para outra hora, professora. Está quase a
tocar e não vai dar tempo para acabar a conversa. -
requereu o aluno, mostrando sinais de inquietação.
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- É uma coisa assim tão complicada? - retornou a Carla
Penha.
- É sim, professora. - confirmou o aluno, mantendo a
seriedade.
- Muito bem. No final das aulas da manhã, antes do almoço,
encontramo-nos aqui e falamos. - combinou a docente.
- Muito bem, professora. Obrigado. - acedeu o aluno,
partindo com pressa em direção à sala de aula.
O Marco foi para a aula de Inglês com a certeza que no
intervalo seguinte resolveria o problema do amigo.
Na aula de Inglês o professor reparou que havia uma
mensagem no ambiente de trabalho do computador. No entanto
não ligou ao que estava escrito e não usou o computador durante
a aula.
No final, o Marco saiu decidido a conversar com a Diretora
de Turma, mesmo que não tivesse tempo para depois almoçar.
Quando saiu da sala, o João Paulo veio atrás dele e apanhou-o à
saída do bloco.
- Olha o menino do papel higiénico no nariz! - dizia, para que
todos ouvissem a sua graça, um aluno do nono ano.
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- Olha o castanhinho! - acrescentava, ainda num tom mais
elevado, outro aluno de uma outra turma de oitavo
ano.
- Coitadinho do menino que se suja todo! - dilatava uma
outra aluna que passava.
Estes foram alguns dos comentários que ouviram quando
chegaram ao átrio de entrada. O João nem chegou a falar com o
amigo e fugiu para o campo de futebol.
O Marco pensou em ir atrás dele, mas decidiu que seria mais
importante contar à Diretora de Turma.
Quando chegou, voltou a pedir à funcionária para chamar
a professora. Foi chamada e encontraram-se num pequeno
gabinete destinado ao atendimento dos pais e encarregados de
educação.
- Diga então o que de tão grave se passa. - questionou a
professora ainda muito curiosa.
- O que se passa, professora, é que o João Paulo tem sido
maltratado por alguns colegas de turma. Ainda agora
aconteceu com uma mensagem colocada nos
computadores da escola. - relatou o amigo.
- Vamos lá ver essa mensagem. Ligue esse computador que
está aí. - ordenou aquela professora, que tanta alergia
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demonstrava ter por aquelas máquinas, apontando
com o dedo.
O Marco ligou o computador e surgiu, de imediato, a
mensagem.
A professora leu.
- Quem colocou isto no computador? - questionou a
docente, admirada pelo que lia. Como seria possível
colocar aquelas coisas em todos os monitores.
- Deve ter sido ou o Pedro Pereira ou o Rafael Pereira. Ou, se
calhar, os dois. - afirmou o Marco.
- Sabe que essa é uma acusação muito grave? - informou a
Diretora de Turma.
- Sim, professora. Eu sei.
- Tem a certeza do que está a dizer sobre os seus colegas? -
tentando que o aluno pensasse bem no que estava a
dizer, reconhecendo a responsabilidade que estava a
assumir.
- A certeza não tenho, porque não vi, mas é quase certo que
foi um deles. - declarou.
- Mas se não tiver a certeza, não pode acusar ninguém. O
que o leva a concluir que foram os seus colegas? - apontou
a professora, solicitando explicações.
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- Esses dois meninos já fizeram outras coisas ao João Paulo.
Um dia, no bar dos alunos, o Rafa… o Rafael Pereira entornou
um pacote de leite com chocolate por cima da roupa do
João. - adicionou o defensor do João.
- Quando aconteceu isso? - perscrutou a Diretora de Turma,
inquieta relativamente a tudo o que estava a ouvir da
boca daquele menino. Nunca se tinha apercebido,
nem ela nem outro professor, de qualquer questão
daquele género dentro da turma.
- Foi logo no início do ano.
- E ninguém disse nada? - admirou-se com a quantidade de
tempo passado.
- Ele pensou que tinha sido sem querer e calou-se. - justificou
o menino.
- O que mais aconteceu? - tentando tomar conhecimento
da totalidade dos casos surgidos.
- Outro dia, no balneário, tiraram-lhe uma meia e depois
levou com ela no nariz. - somou o Mocas.
- O professor de Educação Física não resolveu essa situação?
- interpelou a Diretora, admirada.
- Não professora, ele nem viu.
- E o funcionário do pavilhão?
- O funcionário só nos disse para sair dali para fora. - replicou
o amigo acrescentando um encolher de ombros.
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- Realmente eu vi o João com um pedaço de papel
higiénico no nariz um dia que passou por mim. Mas disse que
tinha sido um acidente. - recordou a professora.
- Foi nesse dia, sim. - confirmou o menino.
- E dessa situação, já que a do leite foi sem querer, tem a
certeza que foram os colegas que referiu os culpados pelo
acontecimento?
- Ai também não vi, mas pela reação do Rafa só pode ter
sido ele.
- Voltamos ao mesmo. Só pode ter sido, mas não há certeza
de nada. O que quer, o menino, que eu faça sem ter certeza
de nada? - perguntou a professora, não sabendo muito bem
o que seria melhor fazer; podia começar a investigar, o
que daria trabalho e muitos papéis, ou esperar que
alguém fizesse alguma coisa.
- Se calhar podia chamar o Rafa e o Blogues … - sugeriu o
discente.
- Quem? - pretendendo solicitar esclarecimento, mostrando
um franzir de testa.
- Desculpe. Podia chamar o Rafael e o Pedro e perguntar se
tinham sido eles ou não! - aclarou o menino.
- Mas aconteceu mais alguma coisa?
- Sim, professora.
96. - 94 -
O Marco contou à Diretora de Turma outras situações em
que o amigo tinha sido castigado pelos colegas. Relatou situações
que tinham acontecido desde o início do ano. A umas tinha
assistido e outras tinham sido contadas pelo João.
No final daquela conversa bastante longa, a professora
perguntou, de novo, se tinha certeza de quem teria praticado
aqueles atos que estava a relatar.
- Certeza, certeza não tenho, mas só podiam ter sido eles.
Nunca gostaram do João desde o início do ano. - voltou o
Marco a afirmar.
- Não gostar não quer dizer que lhe façam mal. Tente ter
certezas e depois venha falar comigo de novo. - pediu a
Diretora de Turma, decidida a ver se alguém faria
alguma coisa antes dela.
- Eu sei professora, mas … Está bem, eu vou tentar. - concluiu
o amigo do João, sentindo que tudo iria continuar a
acontecer na mesma.
Tocou um telemóvel e a professora abriu a mala.
- Desculpe, mas agora tenho de atender esta chamada
importante. Até logo. Vá almoçar. Estou, sim?
97. - 95 -
O rapaz lá foi para a cantina tentar ainda almoçar, mas a
vontade era realmente pouca. Sentia-se impotente para ajudar o
amigo.
No final do almoço falou com o João Paulo e contou-lhe a
conversa com a Diretora de Turma.
- Eu disse que não valia a pena falar. - confirmou o João a
sua certeza, dececionado.
- Mas eu não podia ficar calado mais tempo. - ripostou o
colega.
No dia seguinte, na aula de Formação Cívica, a Diretora de
Turma começou por chamar o Rafael Pereira e o Pedro Pereira.
- Cheguem cá meninos. Tenho de lhes fazer umas perguntas.
- solicitou a Diretora de Turma, apontando para os dois
alunos.
Ambos se aproximaram da secretária da professora.
- Sim, professora. - respondeu o Rafa.
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A professora relatou o que lhe tinha sido contado, enquanto
os dois meninos iam abrindo a boca de admiração. A Luisinha e a
Vivi, ao fundo da sala, iam esboçando um sorriso tapado com a
mão.
- Meu Deus professora. Nós nunca fizemos nada disso. Só
aquilo do leite, mas foi sem querer. Até a funcionária viu e
pode falar com ela. Quem lhe disse uma coisa dessas? -
exclamou o Rafa, dando um passo atrás, olhando para
os colegas e colocando as mãos na cabeça.
- Quem me disse não interessa. O importante é se é verdade
ou não. - replicou a professora, enquanto o Rafa olhava para
o João Paulo.
- É completamente mentira, professora. - acrescentou o
Pedro Pereira, que se tinha sentado na mesa que
estava mesmo atrás de si, como que se sentindo mal
com aquela acusação injusta.
A professora deu o assunto por encerrado naquele
momento. Referiu, no entanto, que se voltasse a acontecer alguma
coisa teria de agir.
No final da aula, os dois meninos inocentes chamaram o
João Paulo para falar com ele.
99. - 97 -
- Então agora também és um queixinhas! És mesmo um triste.
Vê lá se te calas. Aguenta e cala-te ou ainda levas mais e
acontecem-te coisas piores. - aconselhou o Rafa.
- Mas eu não disse nada a ninguém. Não fui eu. - afirmou o
João.
- Cala-te Joãozinho. Ainda levas um cachaço ou pior. -
prometeu o Rafael.
Levou a sua mão ao pescoço do João Paulo e aplicou-lhe,
com toda a força, uma sapatada com a mão que fez o colega
bater contra um poste ali próximo.
- Vê lá se tens cuidado! Ainda acabas por te magoar sem
querer! - aconselhou o agressor.
100. - 98 -
A visita de estudo
VII
O final do período aproximava-se rapidamente.
O João Paulo faltou às aulas daquele dia. Tinha acordado
com temperatura muito alta.
A Rosário tinha reparado, quando o acordou, que estava
muito calado e com os olhos azul-céu muito vermelhos. Encostou
os seus lábios à testa do menino e sentiu aquele calor.
- Não, menino. Deixe-se estar. Hoje não vai à escola. Está
muito quente. - decidiu a Rosário.
- Mas tenho de ir, Rosarinho. Está quase a terminar o período
e pode haver alguma coisa importante para fazer. - insistiu o
João, tentando levantar a pesada cabeça da
almofada.
- Não, hoje não vai. Vou telefonar para a escola e para a
Senhora Doutora. Deite-se. Trago-lhe já alguma coisa para
comer e para beber. - r