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ÍNDICE


                                                                   Página

Duas histórias reescritas sob a forma de dedicatória                        V
Agradecimentos                                                              VI

PREÂMBULO                                                                   1

                               PRIMEIRA PARTE

Introdução                                                              11
I- Um percurso de leituras                                              12
A – A floresta das Imagens como local para um possível diálogo          12
       1- Meandros da representação                                     14
       2- Alguns elementos fundadores de um discurso sobre as imagens   20
       3- As imagens que acompanhamos                                   25
 B- O mundo das palavras como espaço sempre aberto                      28
       1- A palavra esquecida                                           30
       2- A palavra não se esgota no pensamento                         42
       3- A palavra emergente                                           52
C- A educação como lugar operacional entre imagens e palavras           54
       1- Entre utopia e distopia - Rumo a um Novo Mundo                55
       2- Documentos oficiais                                           62
       3- Orientações teóricas                                          67
Conclusão                                                               72

II- Uma teoria como ponto de partida                                    75
Introdução                                                              75
A- A construção do conhecimento como objecto de estudo                  76
B- Problema de investigação                                             79
C- Princípios e Trevo Teórico                                           82
       1-Definições                                                     82
              a- Dialogismo                                             82
              b- Literacia Cidadã                                       85
              c- Indicadores                                            88
       2- O Trevo teórico                                               88
              a- Justificação                                           89
              b- Descrição                                              90
              c- Relações e significados                                91
Conclusão                                                               92

III- À procura do método                                                93
Introdução                                                              93
A- Indagações preliminares                                              95
B- Metodologia                                                          97
C- Aplicação do método ao objecto e ao problema em estudo   100
       1- População                                         100
       2- Instrumentos                                      101
       3- Técnicas                                          102
Conclusão                                                   104

                              SEGUNDA PARTE

Introdução                                                  105
I- Rashomon como Objecto Estético                           107
II- Rashomon como Objecto de Construção de Conhecimento     118
Conclusão                                                   125

                              TERCEIRA PARTE

Introdução                                                  126
I- Descrição das acções                                     126
II- Análise das actividades                                 129
Conclusão                                                   138

EPÍLOGO                                                     140

BIBLIOGRAFIA                                                146

ANEXOS em CD
«Le serpent s’est enfui
                                           Le regard qu’il m’a jeté
                                           est resté dans l’herbe»
                                           Kyoshi, in Haikus d’été (1990, p.111)

                                           «Somos agora a paisagem para esta paisagem.
                                           A obra do nosso primeiro impulso olha para
                                           nós. Somos o imaginário do imaginário. Tens
                                           medo? – pergunta-nos a palavra MEDO. Tens
                                           medo? – pergunta-nos o MUNDO, sensível,
                                           visível forma dessa palavra.» Herberto Hélder
                                           (1995, p.57-58)


                                           «Só e incerto é que o poema é aberto e a
                                           Palavra flui inesgotável!» Mário Cesariny
                                           (1991, p. 47)




                                  PREÂMBULO


       Procurámos as palavras certas. Procurámos harmonizar, não só as nossas
propostas, teorias, princípios e prática, mas também a composição deste trabalho que
deseja reflectir o nosso pensamento. Assim, procuramos tocar no leitor por uma
linguagem simples e orquestrada em que as ideias apresentadas e as acções realizadas se
envolvem intimamente com a expressão escrita.
       O ser Humano fazedor de mundos começa com a palavra, portanto, se «ao
princípio era o Verbo» e que, com este Verbo, foi criado o Homem à imagem de um
Deus, seguindo uma visão poética e laica, no sentido alargado e abrangente em que falar
já é poema (Paz, 1993, p. 21), começamos com as palavras do Poeta – Artista, criador de
mundos feitos de palavras, aquele que foi, sistematicamente, expulso de todas as
repúblicas, onde as próprias palavras questionam o mundo sensível do ser humano.
Persistimos e queremos insistir numa abordagem em que a Ciência e a Arte, excluindo
as racionalizações, que nos limitam o pensar, mas incluindo a racionalidade (Morin,
2002, p.27), se encontram, se complementam e se fundem (Read, 2007, p. 24). Não
pretendemos ser exaustivos, pois os materiais trabalhados não se esgotam e tendo por
base a construção do conhecimento explorando as imagens cinematográficas e as
palavras, as abordagens cruzam-se com múltiplas teorias, multiplicando de forma
complexa, mas enriquecedora, as pistas de reflexão e de definição de instrumentos para
favorecer a construção do conhecimento.
       Num contexto geral, em que os desenvolvimentos tecnológicos incluem
necessariamente duas áreas genéricas: as imagens e as palavras, consideramos que se
trata de um campo de trabalho principalmente rico, mas fundamental e urgente estudar
no seio da comunidade científica no domínio da educação pela arte.
       Para melhor explicitar o problema centrado na construção do conhecimento e
explorando o cinema e as palavras, enquanto ferramentas adjuntas, depois das palavras
do Poeta, continuamos com o romancista, Marie-Henri Beyle, mais conhecido pelo
nome de Stendhal (1783-1842), autor francês realista, que no capítulo XIII do romance
intitulado Le Rouge et le Noir transcreve uma frase memorável atribuída a Saint-Réal.
Trata-se de uma palavra autoritária:
     «As funções que podem ser atribuídas à epígrafe são particularmente
     importantes quando se trata de epígrafe alógrafa. É sobretudo neste caso
     que ela assume aquela feição de palavra autoritária de que fala Bachtin
     quando diz que ‘a palavra autoritária pode organizar em torno a si massas
     de outras palavras (que a interpretam, a exaltam, dela fazem determinadas
     aplicações, etc.), mas não se confunde com elas (...), pois permanece
     distinta, compacta e inerte» (Bachtin, citado por Reis, 1996, p. 125)

Assim, esta epígrafe tem vindo a ser reiterada ao longo do percurso formativo dos
estudantes em Línguas e Literaturas: «Un roman: c’est un miroir que l’on promène le
long d’un chemin» (Stendhal, 1972, p.85). Verificamos portanto a complexidade da
ligação entre a literatura e as múltiplas sabedorias. Neste sentido, a literatura é
considerada enquanto reflexo fragmentado, abrangendo o conhecimento do mundo
descrito pelo autor, envolvendo as palavras e os recursos estilísticos dos vocábulos
ordenados, lado a lado, no eixo sintagmático das sucessividades, evocado pela escolha
criteriosa das palavras. Quanto às múltiplas sabedorias, estas ecoam dos textos pelo
leque de vozes narrativas e aquando das várias e distintas leituras tornando o texto não
só uma «babel feliz» (Barthes, 1973, p.10), mas, também, realçando que «não é
isótropo» (Barthes, 1973, p.51).
       Voltando à citação, se pensarmos mais profundamente nesta breve definição de
romance, reencontramos a ideia subjacente a muitas obras de arte: a representação da
vida, não, propriamente, enquanto retrato fiel, mas enquanto esboço de uma percepção,
de uma sensibilidade, de uma visão, mais ou menos, partilhada. Pois, já Gilles Deleuze e
Félix Guattari, convocando Franz Kafka, nos diziam que:
     « La machine littéraire prend ainsi le relais d’une machine révolutionnaire
     à venir, non pas du tout pour des raisons idéologiques, mais parce qu’elle
     seule est déterminée à remplir des conditions d’une énonciation collective
     qui manquent partout ailleurs dans ce milieu : la littérature est l’affaire du
     peuple. » (Deleuze&Guattari, 1975, p.32)

Reforçando a ideia de que a literatura não é a pequena história do homem, mas a grande
História da Humanidade, portanto dos Povos, abrangendo todos os aspectos da vida e as
múltiplas facetas que nela se revelam. Extrapolando a citação de Saint Réal, podemos
dizer que a literatura, enquanto vida vista à luz do espelho, leva-nos à imagem, isto é, à
representação. Mas, se as sombras projectadas na caverna, o espelho, o buril, o pincel, a
objectiva, assim como o ecrã de televisão e o monitor reflectem apenas uma pequena
porção da realidade; podem, simultaneamente, problematizar o que se encontra visível,
ou, no campo da arte, aquilo que tem vindo a ser definido como sendo o visual (Lavaud,
1999, p.41), e tornar mais complexa a realidade, ao criar narrativas intricadas
complementando o vasto e riquíssimo leque constituído pela Vida Humana, mas também
distorcer, fragmentar e ocultar uma parte da realidade, remetendo-nos necessariamente
para as múltiplas noções de verdade, consideradas apenas enquanto percepção das
pequenas realidades de cada indivíduo. Em termos de criação artística geral, se a sábia
manipulação do Tempo (sendo neste caso o Chronos grego, ou tempo cronológico, por
oposição ao Tempus latino, ou tempo interior) permitiu o extraordinário agenciamento
das narrativas escritas e orais, a grande e significativa mudança ocorreu com a
incorporação do movimento nas imagens fotográficas. Assim, a partir de 1895, o cinema
incorpora o movimento no espaço, tornando-se um elemento chave para provocar a
impressão de realidade e, simultaneamente, os factores envolvendo as noções de tempo,
assim como a percepção, a narração e a expressão.
        Os saberes seguem caminhos tortuosos, acompanham os percursos de vida,
repartindo-se em vários momentos e tendo por suportes diversos meios. No que
concerne estes suportes para divulgação de saberes e para a construção de
aprendizagens, mal tínhamos alcançado a «democratização do livro 1 », que o
conhecimento se foi espalhando no espaço virtual. Assim, a humanidade e, no seu seio,
todos os processos de aprendizagem encontram-se confrontados a uma panóplia de
ofertas que modificam as formas de pensar: «Technology is altering (rewiring) our
brains. The tools we use define and shape our thinking» (Siemens, 2004). Portanto,
somos levandos a re-pensar o nosso lugar no mundo, de nos pensar no mundo, de pensar
o Outro no mundo e de pensar o próprio mundo. Este pensar, quando se quer transmitir,
ou partilhar implica, necessariamente, o uso de uma linguagem comum e quanto mais
rica for, mais claro se torna o pensamento e mais poderoso se torna o cidadão.
Consideramos, pois, a educação formal como um dos instrumentos de conscientização
do cidadão, questionando contudo a questão relativa à transformação da realidade e,
paralelamente, à afirmação do filósofo alemão (Heidegger, 1992) julgamos que, na
contemporaneidade, não é, propriamente, que «ainda não começámos a pensar», mas
que estamos, continuamente, obrigados e estimulados a re-pensar, o que nos leva
necessária e paradoxalmente, a podermos dizer que «ainda não começámos a pensar»,
porque temos sempre que re-pensar.
        Não podemos negar que o nosso quotidiano está povoado por imagens de todo
tipo, participando na modificação do nosso olhar sobre o mundo, mas também dos
processos de aprendizagem, comunicação, e memória. Se no século XVII, o jovem Jean
Racine memorizava um romance inteiro:




1
 Palavras proferidas pelo Professor Carlos Reis no Seminário Multidisciplinar do Curso de Especialização
em Ciências Documentais da Universidade Autónoma de Lisboa. 1998-2000.
«En 1658, Jean Racine qui, à dix-huit ans, étudiait à l’abbaye de Port-
     Royal sous l’œil vigilant des moines cisterciens, découvrit par hasard un
     vieux roman grec, Théagène et Chariclée, une histoire d‘amour tragique
     dont il s’est peut-être souvenu, bien des années après, en écrivant
     Andromaque et Bérénice. Il emporta le livre dans la forêt voisine de
     l’abbaye et il avait commencé à le lire avec voracité quand il fut surpris
     par le sacristain qui lui arracha le livre des mains et le jeta au feu. Peu
     après, Racine réussit à trouver un autre exemplaire, qui fut également
     découvert et condamné aux flammes, ce qui l’encouragea à acheter un
     troisième exemplaire et à apprendre le roman par cœur. Après quoi il
     apporta le livre au féroce sacristain en lui disant : Vous pouvez brûler
     encore celui-ci comme les autres.» (Manguel, 1998, p.77-78)

Hoje, memorizamos caminhos virtuais e em vez de escrever, por exemplo: «Estou feliz e
radiante como o sol na areia loura», enviamos um emoticon: uma carinha redonda,
amarela e sorridente, ou então, a sua respectiva representação gráfica: «:-)»
(Bergström&Reis, 2011, p.156). Contudo, esta representação gráfica poderá conter uma
multidão de variantes dificilmente identificáveis para o receptor, podendo tornar a
mensagem de uma ambígua e polissémica riqueza, que, segundo os casos, exigirá
urgentemente a presença de todas as palavras ou outras linguagens, sendo que, mesmo
com todos os instrumentos de comunicação, ainda existe uma substancial margem de
erro e/ou de mal-entendimento.
       Na época em que vivemos, enfrentamos as dificuldades e benefícios inerentes à
rapidez dos avanços tecnológicos, e à proliferação de uma abundância caótica e incerta
de dados, colocando-nos no mundo de forma insegura. Num artigo recente de Ignacio
Ramonet (2011) podemos ler : «L'homme contemporain court le risque de devenir un
ignorant bourré d'information ». Uma predição em que se encontram envolvidos, de
uma forma assustadora, a questão da formação do pensamento crítico da nossa sociedade
e por extensão a sua formação para uma cultura política carente de um questionamento
genuíno. É neste sentido que se colocam as questões genéricas: como fazer para
conviver com esta insegurança caótica e transformá-la ou organizá-la de forma
construtiva? Quais as ferramentas actuais disponíveis para a necessária lucidez, para o
desenvolvimento do pensamento crítico, para o desempenho do fazer inteligente e a
inerente e fundamental capacidade para decidir agir? Estas questões serão sempiternas,
e, no contexto educativo, julgamos que são questões sempre a re-pensar.
Tendemos a crer que uma parte do trabalho para a construção do conhecimento,
envolvendo a reflexão crítica, o fazer inteligente, a tomada de decisão e a respectiva
acção, é fornecido pelo percurso educativo em contexto formal. Este trabalho é de facto
realizado em certos casos, apesar das dificuldades inerentes à necessidade de seguir um
percurso programático, frequentemente rígido. Se as leis e os programas educativos
tentam ir ao encontro das mudanças e das necessidades, acontece que, ora não
conseguem acompanhá-las, ora orientam-nas exclusivamente numa perspectiva
economicista, esquecendo as capacidades, habilidades e desejos individuais, ora
parecem proceder a um verdadeiro «sacrifício» em nome da contenção orçamental, tal
como verificámos no início do ano lectivo 2010-2011. Estas decisões, curiosamente,
prejudicam essencialmente as Artes, revestindo a máscara da segregação social e
económica, posto que neste caso concreto a eliminação do acesso ao ensino articulado
da música e da dança prejudica a aprendizagem da grande maioria dos futuros cidadãos.
Por outro lado, um diploma publicado no Diário da República em Fevereiro de 2011
procurou, novamente, exercer as directivas de contenção de despesas na educação,
propondo a extinção do par pedagógico em Educação Visual e Tecnológica, além da
extinção da área de projecto, assim como a limitação do estudo acompanhado apenas
para alunos com grandes dificuldades.
       Consideramos a educação formal como um dos pilares fundamentais para o
exercício de uma plena, consciente e activa cidadania, incluindo o desempenho humano,
cultural, social e profissional. Assim, se, por um lado, defendemos a educação pública e
laica, acreditamos que os vários estudos, em torno de uma educação pela arte,
salientaram pontos essenciais para uma aprendizagem mais completa e revelam-se,
extremamente, adequados para ir ao encontro da complexidade enfrentada pela
sociedade contemporânea. Este desafio educativo poderá ser superado pela arte posto
que a arte, enquanto ponto de encontro e expressão de múltiplos conhecimentos,
constitui o instrumento cuja natureza «desviante» permite o necessário questionamento e
favorece a respectiva acção.
       No intuito de ir ao encontro das rápidas mudanças e da realidade do mundo em
que vivemos, partimos do trabalho desenvolvido por Edgar Morin (2002, 2004) em
torno de uma «educação do futuro» enquadrada na complexidade actual, envolvendo
todos os campos do conhecimento que se encontram à distância de um clique, ou de um
movimento de um rato num monitor, ou na ponta dos dedos num ecrã. Acreditamos que
a arte tem a vantagem de poder favorecer o desenvolvimento de capacidades,
habilidades e competências humanas que nenhuma outra disciplina toca tão
profundamente, por abranger várias áreas do conhecimento humano, além de implicar o
cruzamento de um fluir dos saberes e de culturas que favorecem e estimulam a
compreensão. Em 1943, Herbert Read já tinha salientado os aspectos mais importantes a
favor de uma educação estética. Em 2003, Alberto B. Sousa oferece-nos um estudo
notavelmente documentado para a educação pela arte. No campo da música, está
claramente definido que a aprendizagem de uma linguagem abstracta favorece o
desenvolvimento de competências imprescindíveis para aprender outras linguagens
abstractas; no campo do ensino de uma língua estrangeira, estudos revelaram que a
aprendizagem deve ser feita antes dos dez anos de idade, momento em que o cérebro
perde as suas capacidades para a aprendizagem das estruturas sintácticas
(Moreau&Richelle, 1997, p.43), contudo as respectivas políticas educativas, como é
natural considerando o aparelho burocrático envolvido, demoraram a implementar de
forma sistemática e construtiva estas urgências no campo da educação.

       Nestes momentos de grandes incertezas em torno do conhecimento, da
divulgação e legitimidade de saberes, da velocidade das descobertas tecnológicas e
científicas, na rapidez das informações, na profusão caótica das imagens, das falhas
éticas e das distorções de sentidos pensamos, tal como Morin (2002, 2004), que a
educação é um dos caminhos mais propícios para formar uma «cidadania terrena» ou
«cosmopolita» ou ainda «planetária». Sendo uma língua algo com a qual comunicamos
e vivendo num mundo cheio de imagens antigas e novas, posto que as artes não são
estanques, respiram umas nas outras, a aliança harmoniosa entre as palavras, enquanto
instrumento de conhecimento e comunicação, e as imagens cinematográficas, enquanto
outro instrumento de conhecimento e comunicação, poderá constituir um caminho para a
construção do conhecimento.

       O problema central deste trabalho levou-nos a colocar uma hipótese principal
que se constituiu como título deste trabalho: o cinema como um instrumento de
construção do conhecimento, orientando a nossa procura dos princípios que pudessem
suportar esta hipótese e estabelecer bases teóricas que a sustentassem.
       A nossa proposta de estratégia teórica fundamenta-se na importância da arte na
educação não só como ensino especializado, mas como ensino imprescindível para um
melhor conhecimento do mundo e procura salientar as respectivas ferramentas
enquadradas numa possível, urgente e operacional autonomia pedagógica. Iremos
procurar evidenciar a justeza deste pensamento por meio de instrumentos teóricos com
os respectivos princípios que permitiram constituir um corpo de recursos didácticos
aplicados à construção do conhecimento pelo cinema.

        Procurámos estabelecer uma metodologia que pudesse ir ao encontro do nosso
objectivo. Por isso, optámos por escolher o método qualitativo numa abordagem
sistémica envolvendo uma dupla aliança quanto ao propósito e ao método. O trabalho
realizado tanto do ponto de vista teórico, como prático envolve-se numa teoria co-
construtivista seguindo um método hermenêutico e uma postura heurística, com base em
três pensamentos genéricos: o Pensamento Complexo de Edgar Morin (2005) aliado a
textos orientados para a educação, tais como Os sete saberes para a educação do futuro
(2002) e Educar para a Era planetária (2004) enquadrando-os nas teorias
contemporâneas de aprendizagem definidas por Knud Illeris; a corrente semiótica,
centrada numa análise estruturalista do cinema, encabeçada por Christian Metz, contudo
iremos recorrer ao pensamento do filósofo francês Gilles Deleuze para nos poder
distanciar um pouco da abordagem demasiadamente ancorada na linguística de Christian
Metz e retomaremos algumas reflexões de Walter Benjamin e Heidegger em torno da
linguagem e do pensamento.

        Com base nestes pensadores e nas urgências previamente enunciadas em torno
da construção do conhecimento, formulámos dois princípios como alicerce da nossa
análise para demonstrar a pertinência deste trabalho. Por um lado, o dialogismo,
princípio que adoptámos e adaptámos dos trabalhos desenvolvidos por Paulo Freire; do
conceito de dialogismo de Mikhail Bachtin; e do princípio dialógico ancorado em Edgar
Morin, na elaboração do paradigma da complexidade, para salientar a necessidade de
explorar e efectivar o diálogo possível e absolutamente necessário entre as imagens e as
palavras, em vários planos, e, por outro lado, o princípio de literacia cidadã, aplicado ao
contexto do nosso objecto de estudo, mas vinculado ao conceito de cidadania terrestre
definida por Edgar Morin e à proposta de literacia formulada pela OCDE.

        No sentido em que julgamos importante que pela arte das palavras brotem
imagens e que as imagens possam produzir palavras, optámos por uma estrutura em que
o número três se repete. Esta organização permite a leitura progressiva de cada parte de
forma a procurar promover aquilo que Roland Barthes chamou o «prazer do texto» e
aquilo que gostaríamos de transmitir: a sua envolvência com a tecedura dos pensamentos
aqui expostos.

        De uma forma geral e resumida, o esqueleto organizativo deste trabalho
apresenta-se numa estrutura tripartida envolvendo três grandes momentos precedidos de
um preâmbulo e de introduções específicas, anunciando o fio condutor de cada parte
destes três conjuntos, e por conclusões específicas a cada parte, o todo conduzindo a um
epílogo.

        A partitura remete para os seguintes momentos genéricos implicando: questões
de teoria geral que nos orientaram tanto na abordagem ao objecto de estudo, como nos
procedimentos metodológicos; questões de teoria específica envolvendo a análise em
torno das acções desenvolvidas e, finalmente, questões vinculadas aos respectivos
resultados das acções.

        De uma forma mais pormenorizada, a primeira parte divide-se em três
momentos remetendo-nos, essencialmente, para os nossos percursos de leituras,
relacionados com o nosso objecto de estudo, e a hipótese principal explicitando as
orientações teóricas, os princípios fundamentais e a metodologia aplicada. A primeira
parte deste conjunto dedicar-se-á, sucessivamente, às imagens, às palavras e à educação.
No decorrer da segunda parte, debruçar-nos-emos sobre a nossa proposta de estratégia
teórica e os princípios adoptados. Esta desenvolver-se-á em três partes que,
respectivamente, explicitarão o nosso objecto de estudo, o problema de investigação e
questões de definições e princípios que regeram a orientação teórica deste trabalho. A
terceira parte, levar-nos-á a questões metodológicas, constituindo-se numa procura do
método, este sendo visto como um aspecto fundamental, posto que procurámos
congregar saberes e instrumentos científicos de forma a adequá-los ao trabalho realizado
sobre o nosso objecto de estudo.

        Na segunda parte deste trabalho, debruçar-nos-emos sobre o nosso objecto de
estudo em particular, procurando salientar, identificar e definir os instrumentos
disponíveis para a construção do conhecimento em torno de um filme clássico de ficção.
Neste ponto, apresentaremos as abordagens feitas ao nosso objecto e as possíveis
ferramentas aplicáveis à luz das teorias e abordagens anunciadas previamente. Esta parte
apresentar-se-á em dois momentos em que se reflectirá sobre o filme enquanto objecto
estético, envolvendo três aspectos decorrentes da linguagem cinematográfica. Num
segundo momento, salientar-se-á como o filme pode ser considerado enquanto objecto
de construção do conhecimento com base nos cinco níveis de codificação e nas sete
propostas de Edgar Morin.

        Finalmente, na terceira parte, apresentaremos o trabalho realizado. Este
consistirá na descrição das acções realizadas, em contexto escolar do ensino secundário,
envolvendo os respectivos materiais didácticos. Seguidamente, apresentar-se-á reflexões
relativas à recepção do filme e respectivas actividades desenvolvidas na sala de aulas.

        O trabalho será concluído por um epílogo que anotará considerações gerais,
assim como as inerentes limitações deste estudo. Contudo, no sentido de «fechar a porta
e abrir a janela», assinalar-se-á desenvolvimentos paralelos a este trabalho, assim como
os seus prolongamentos teóricos e práticos efectuados noutros contextos. Na procura de
instrumentos para a construção do conhecimento, apontar-se-á para os caminhos
iniciados neste sentido e os possíveis futuros caminhos científicos a perseguir para uma
educação, em que a Arte é parte integrante do percurso pedagógico, ainda à procura de
uma didáctica que se possa enquadrar nos programas.

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Indice e preambulo ana da palma

  • 1. ÍNDICE Página Duas histórias reescritas sob a forma de dedicatória V Agradecimentos VI PREÂMBULO 1 PRIMEIRA PARTE Introdução 11 I- Um percurso de leituras 12 A – A floresta das Imagens como local para um possível diálogo 12 1- Meandros da representação 14 2- Alguns elementos fundadores de um discurso sobre as imagens 20 3- As imagens que acompanhamos 25 B- O mundo das palavras como espaço sempre aberto 28 1- A palavra esquecida 30 2- A palavra não se esgota no pensamento 42 3- A palavra emergente 52 C- A educação como lugar operacional entre imagens e palavras 54 1- Entre utopia e distopia - Rumo a um Novo Mundo 55 2- Documentos oficiais 62 3- Orientações teóricas 67 Conclusão 72 II- Uma teoria como ponto de partida 75 Introdução 75 A- A construção do conhecimento como objecto de estudo 76 B- Problema de investigação 79 C- Princípios e Trevo Teórico 82 1-Definições 82 a- Dialogismo 82 b- Literacia Cidadã 85 c- Indicadores 88 2- O Trevo teórico 88 a- Justificação 89 b- Descrição 90 c- Relações e significados 91 Conclusão 92 III- À procura do método 93 Introdução 93 A- Indagações preliminares 95 B- Metodologia 97
  • 2. C- Aplicação do método ao objecto e ao problema em estudo 100 1- População 100 2- Instrumentos 101 3- Técnicas 102 Conclusão 104 SEGUNDA PARTE Introdução 105 I- Rashomon como Objecto Estético 107 II- Rashomon como Objecto de Construção de Conhecimento 118 Conclusão 125 TERCEIRA PARTE Introdução 126 I- Descrição das acções 126 II- Análise das actividades 129 Conclusão 138 EPÍLOGO 140 BIBLIOGRAFIA 146 ANEXOS em CD
  • 3. «Le serpent s’est enfui Le regard qu’il m’a jeté est resté dans l’herbe» Kyoshi, in Haikus d’été (1990, p.111) «Somos agora a paisagem para esta paisagem. A obra do nosso primeiro impulso olha para nós. Somos o imaginário do imaginário. Tens medo? – pergunta-nos a palavra MEDO. Tens medo? – pergunta-nos o MUNDO, sensível, visível forma dessa palavra.» Herberto Hélder (1995, p.57-58) «Só e incerto é que o poema é aberto e a Palavra flui inesgotável!» Mário Cesariny (1991, p. 47) PREÂMBULO Procurámos as palavras certas. Procurámos harmonizar, não só as nossas propostas, teorias, princípios e prática, mas também a composição deste trabalho que deseja reflectir o nosso pensamento. Assim, procuramos tocar no leitor por uma linguagem simples e orquestrada em que as ideias apresentadas e as acções realizadas se envolvem intimamente com a expressão escrita. O ser Humano fazedor de mundos começa com a palavra, portanto, se «ao princípio era o Verbo» e que, com este Verbo, foi criado o Homem à imagem de um
  • 4. Deus, seguindo uma visão poética e laica, no sentido alargado e abrangente em que falar já é poema (Paz, 1993, p. 21), começamos com as palavras do Poeta – Artista, criador de mundos feitos de palavras, aquele que foi, sistematicamente, expulso de todas as repúblicas, onde as próprias palavras questionam o mundo sensível do ser humano. Persistimos e queremos insistir numa abordagem em que a Ciência e a Arte, excluindo as racionalizações, que nos limitam o pensar, mas incluindo a racionalidade (Morin, 2002, p.27), se encontram, se complementam e se fundem (Read, 2007, p. 24). Não pretendemos ser exaustivos, pois os materiais trabalhados não se esgotam e tendo por base a construção do conhecimento explorando as imagens cinematográficas e as palavras, as abordagens cruzam-se com múltiplas teorias, multiplicando de forma complexa, mas enriquecedora, as pistas de reflexão e de definição de instrumentos para favorecer a construção do conhecimento. Num contexto geral, em que os desenvolvimentos tecnológicos incluem necessariamente duas áreas genéricas: as imagens e as palavras, consideramos que se trata de um campo de trabalho principalmente rico, mas fundamental e urgente estudar no seio da comunidade científica no domínio da educação pela arte. Para melhor explicitar o problema centrado na construção do conhecimento e explorando o cinema e as palavras, enquanto ferramentas adjuntas, depois das palavras do Poeta, continuamos com o romancista, Marie-Henri Beyle, mais conhecido pelo nome de Stendhal (1783-1842), autor francês realista, que no capítulo XIII do romance intitulado Le Rouge et le Noir transcreve uma frase memorável atribuída a Saint-Réal. Trata-se de uma palavra autoritária: «As funções que podem ser atribuídas à epígrafe são particularmente importantes quando se trata de epígrafe alógrafa. É sobretudo neste caso que ela assume aquela feição de palavra autoritária de que fala Bachtin quando diz que ‘a palavra autoritária pode organizar em torno a si massas de outras palavras (que a interpretam, a exaltam, dela fazem determinadas aplicações, etc.), mas não se confunde com elas (...), pois permanece distinta, compacta e inerte» (Bachtin, citado por Reis, 1996, p. 125) Assim, esta epígrafe tem vindo a ser reiterada ao longo do percurso formativo dos estudantes em Línguas e Literaturas: «Un roman: c’est un miroir que l’on promène le long d’un chemin» (Stendhal, 1972, p.85). Verificamos portanto a complexidade da ligação entre a literatura e as múltiplas sabedorias. Neste sentido, a literatura é
  • 5. considerada enquanto reflexo fragmentado, abrangendo o conhecimento do mundo descrito pelo autor, envolvendo as palavras e os recursos estilísticos dos vocábulos ordenados, lado a lado, no eixo sintagmático das sucessividades, evocado pela escolha criteriosa das palavras. Quanto às múltiplas sabedorias, estas ecoam dos textos pelo leque de vozes narrativas e aquando das várias e distintas leituras tornando o texto não só uma «babel feliz» (Barthes, 1973, p.10), mas, também, realçando que «não é isótropo» (Barthes, 1973, p.51). Voltando à citação, se pensarmos mais profundamente nesta breve definição de romance, reencontramos a ideia subjacente a muitas obras de arte: a representação da vida, não, propriamente, enquanto retrato fiel, mas enquanto esboço de uma percepção, de uma sensibilidade, de uma visão, mais ou menos, partilhada. Pois, já Gilles Deleuze e Félix Guattari, convocando Franz Kafka, nos diziam que: « La machine littéraire prend ainsi le relais d’une machine révolutionnaire à venir, non pas du tout pour des raisons idéologiques, mais parce qu’elle seule est déterminée à remplir des conditions d’une énonciation collective qui manquent partout ailleurs dans ce milieu : la littérature est l’affaire du peuple. » (Deleuze&Guattari, 1975, p.32) Reforçando a ideia de que a literatura não é a pequena história do homem, mas a grande História da Humanidade, portanto dos Povos, abrangendo todos os aspectos da vida e as múltiplas facetas que nela se revelam. Extrapolando a citação de Saint Réal, podemos dizer que a literatura, enquanto vida vista à luz do espelho, leva-nos à imagem, isto é, à representação. Mas, se as sombras projectadas na caverna, o espelho, o buril, o pincel, a objectiva, assim como o ecrã de televisão e o monitor reflectem apenas uma pequena porção da realidade; podem, simultaneamente, problematizar o que se encontra visível, ou, no campo da arte, aquilo que tem vindo a ser definido como sendo o visual (Lavaud, 1999, p.41), e tornar mais complexa a realidade, ao criar narrativas intricadas complementando o vasto e riquíssimo leque constituído pela Vida Humana, mas também distorcer, fragmentar e ocultar uma parte da realidade, remetendo-nos necessariamente para as múltiplas noções de verdade, consideradas apenas enquanto percepção das pequenas realidades de cada indivíduo. Em termos de criação artística geral, se a sábia manipulação do Tempo (sendo neste caso o Chronos grego, ou tempo cronológico, por oposição ao Tempus latino, ou tempo interior) permitiu o extraordinário agenciamento
  • 6. das narrativas escritas e orais, a grande e significativa mudança ocorreu com a incorporação do movimento nas imagens fotográficas. Assim, a partir de 1895, o cinema incorpora o movimento no espaço, tornando-se um elemento chave para provocar a impressão de realidade e, simultaneamente, os factores envolvendo as noções de tempo, assim como a percepção, a narração e a expressão. Os saberes seguem caminhos tortuosos, acompanham os percursos de vida, repartindo-se em vários momentos e tendo por suportes diversos meios. No que concerne estes suportes para divulgação de saberes e para a construção de aprendizagens, mal tínhamos alcançado a «democratização do livro 1 », que o conhecimento se foi espalhando no espaço virtual. Assim, a humanidade e, no seu seio, todos os processos de aprendizagem encontram-se confrontados a uma panóplia de ofertas que modificam as formas de pensar: «Technology is altering (rewiring) our brains. The tools we use define and shape our thinking» (Siemens, 2004). Portanto, somos levandos a re-pensar o nosso lugar no mundo, de nos pensar no mundo, de pensar o Outro no mundo e de pensar o próprio mundo. Este pensar, quando se quer transmitir, ou partilhar implica, necessariamente, o uso de uma linguagem comum e quanto mais rica for, mais claro se torna o pensamento e mais poderoso se torna o cidadão. Consideramos, pois, a educação formal como um dos instrumentos de conscientização do cidadão, questionando contudo a questão relativa à transformação da realidade e, paralelamente, à afirmação do filósofo alemão (Heidegger, 1992) julgamos que, na contemporaneidade, não é, propriamente, que «ainda não começámos a pensar», mas que estamos, continuamente, obrigados e estimulados a re-pensar, o que nos leva necessária e paradoxalmente, a podermos dizer que «ainda não começámos a pensar», porque temos sempre que re-pensar. Não podemos negar que o nosso quotidiano está povoado por imagens de todo tipo, participando na modificação do nosso olhar sobre o mundo, mas também dos processos de aprendizagem, comunicação, e memória. Se no século XVII, o jovem Jean Racine memorizava um romance inteiro: 1 Palavras proferidas pelo Professor Carlos Reis no Seminário Multidisciplinar do Curso de Especialização em Ciências Documentais da Universidade Autónoma de Lisboa. 1998-2000.
  • 7. «En 1658, Jean Racine qui, à dix-huit ans, étudiait à l’abbaye de Port- Royal sous l’œil vigilant des moines cisterciens, découvrit par hasard un vieux roman grec, Théagène et Chariclée, une histoire d‘amour tragique dont il s’est peut-être souvenu, bien des années après, en écrivant Andromaque et Bérénice. Il emporta le livre dans la forêt voisine de l’abbaye et il avait commencé à le lire avec voracité quand il fut surpris par le sacristain qui lui arracha le livre des mains et le jeta au feu. Peu après, Racine réussit à trouver un autre exemplaire, qui fut également découvert et condamné aux flammes, ce qui l’encouragea à acheter un troisième exemplaire et à apprendre le roman par cœur. Après quoi il apporta le livre au féroce sacristain en lui disant : Vous pouvez brûler encore celui-ci comme les autres.» (Manguel, 1998, p.77-78) Hoje, memorizamos caminhos virtuais e em vez de escrever, por exemplo: «Estou feliz e radiante como o sol na areia loura», enviamos um emoticon: uma carinha redonda, amarela e sorridente, ou então, a sua respectiva representação gráfica: «:-)» (Bergström&Reis, 2011, p.156). Contudo, esta representação gráfica poderá conter uma multidão de variantes dificilmente identificáveis para o receptor, podendo tornar a mensagem de uma ambígua e polissémica riqueza, que, segundo os casos, exigirá urgentemente a presença de todas as palavras ou outras linguagens, sendo que, mesmo com todos os instrumentos de comunicação, ainda existe uma substancial margem de erro e/ou de mal-entendimento. Na época em que vivemos, enfrentamos as dificuldades e benefícios inerentes à rapidez dos avanços tecnológicos, e à proliferação de uma abundância caótica e incerta de dados, colocando-nos no mundo de forma insegura. Num artigo recente de Ignacio Ramonet (2011) podemos ler : «L'homme contemporain court le risque de devenir un ignorant bourré d'information ». Uma predição em que se encontram envolvidos, de uma forma assustadora, a questão da formação do pensamento crítico da nossa sociedade e por extensão a sua formação para uma cultura política carente de um questionamento genuíno. É neste sentido que se colocam as questões genéricas: como fazer para conviver com esta insegurança caótica e transformá-la ou organizá-la de forma construtiva? Quais as ferramentas actuais disponíveis para a necessária lucidez, para o desenvolvimento do pensamento crítico, para o desempenho do fazer inteligente e a inerente e fundamental capacidade para decidir agir? Estas questões serão sempiternas, e, no contexto educativo, julgamos que são questões sempre a re-pensar.
  • 8. Tendemos a crer que uma parte do trabalho para a construção do conhecimento, envolvendo a reflexão crítica, o fazer inteligente, a tomada de decisão e a respectiva acção, é fornecido pelo percurso educativo em contexto formal. Este trabalho é de facto realizado em certos casos, apesar das dificuldades inerentes à necessidade de seguir um percurso programático, frequentemente rígido. Se as leis e os programas educativos tentam ir ao encontro das mudanças e das necessidades, acontece que, ora não conseguem acompanhá-las, ora orientam-nas exclusivamente numa perspectiva economicista, esquecendo as capacidades, habilidades e desejos individuais, ora parecem proceder a um verdadeiro «sacrifício» em nome da contenção orçamental, tal como verificámos no início do ano lectivo 2010-2011. Estas decisões, curiosamente, prejudicam essencialmente as Artes, revestindo a máscara da segregação social e económica, posto que neste caso concreto a eliminação do acesso ao ensino articulado da música e da dança prejudica a aprendizagem da grande maioria dos futuros cidadãos. Por outro lado, um diploma publicado no Diário da República em Fevereiro de 2011 procurou, novamente, exercer as directivas de contenção de despesas na educação, propondo a extinção do par pedagógico em Educação Visual e Tecnológica, além da extinção da área de projecto, assim como a limitação do estudo acompanhado apenas para alunos com grandes dificuldades. Consideramos a educação formal como um dos pilares fundamentais para o exercício de uma plena, consciente e activa cidadania, incluindo o desempenho humano, cultural, social e profissional. Assim, se, por um lado, defendemos a educação pública e laica, acreditamos que os vários estudos, em torno de uma educação pela arte, salientaram pontos essenciais para uma aprendizagem mais completa e revelam-se, extremamente, adequados para ir ao encontro da complexidade enfrentada pela sociedade contemporânea. Este desafio educativo poderá ser superado pela arte posto que a arte, enquanto ponto de encontro e expressão de múltiplos conhecimentos, constitui o instrumento cuja natureza «desviante» permite o necessário questionamento e favorece a respectiva acção. No intuito de ir ao encontro das rápidas mudanças e da realidade do mundo em que vivemos, partimos do trabalho desenvolvido por Edgar Morin (2002, 2004) em torno de uma «educação do futuro» enquadrada na complexidade actual, envolvendo
  • 9. todos os campos do conhecimento que se encontram à distância de um clique, ou de um movimento de um rato num monitor, ou na ponta dos dedos num ecrã. Acreditamos que a arte tem a vantagem de poder favorecer o desenvolvimento de capacidades, habilidades e competências humanas que nenhuma outra disciplina toca tão profundamente, por abranger várias áreas do conhecimento humano, além de implicar o cruzamento de um fluir dos saberes e de culturas que favorecem e estimulam a compreensão. Em 1943, Herbert Read já tinha salientado os aspectos mais importantes a favor de uma educação estética. Em 2003, Alberto B. Sousa oferece-nos um estudo notavelmente documentado para a educação pela arte. No campo da música, está claramente definido que a aprendizagem de uma linguagem abstracta favorece o desenvolvimento de competências imprescindíveis para aprender outras linguagens abstractas; no campo do ensino de uma língua estrangeira, estudos revelaram que a aprendizagem deve ser feita antes dos dez anos de idade, momento em que o cérebro perde as suas capacidades para a aprendizagem das estruturas sintácticas (Moreau&Richelle, 1997, p.43), contudo as respectivas políticas educativas, como é natural considerando o aparelho burocrático envolvido, demoraram a implementar de forma sistemática e construtiva estas urgências no campo da educação. Nestes momentos de grandes incertezas em torno do conhecimento, da divulgação e legitimidade de saberes, da velocidade das descobertas tecnológicas e científicas, na rapidez das informações, na profusão caótica das imagens, das falhas éticas e das distorções de sentidos pensamos, tal como Morin (2002, 2004), que a educação é um dos caminhos mais propícios para formar uma «cidadania terrena» ou «cosmopolita» ou ainda «planetária». Sendo uma língua algo com a qual comunicamos e vivendo num mundo cheio de imagens antigas e novas, posto que as artes não são estanques, respiram umas nas outras, a aliança harmoniosa entre as palavras, enquanto instrumento de conhecimento e comunicação, e as imagens cinematográficas, enquanto outro instrumento de conhecimento e comunicação, poderá constituir um caminho para a construção do conhecimento. O problema central deste trabalho levou-nos a colocar uma hipótese principal que se constituiu como título deste trabalho: o cinema como um instrumento de
  • 10. construção do conhecimento, orientando a nossa procura dos princípios que pudessem suportar esta hipótese e estabelecer bases teóricas que a sustentassem. A nossa proposta de estratégia teórica fundamenta-se na importância da arte na educação não só como ensino especializado, mas como ensino imprescindível para um melhor conhecimento do mundo e procura salientar as respectivas ferramentas enquadradas numa possível, urgente e operacional autonomia pedagógica. Iremos procurar evidenciar a justeza deste pensamento por meio de instrumentos teóricos com os respectivos princípios que permitiram constituir um corpo de recursos didácticos aplicados à construção do conhecimento pelo cinema. Procurámos estabelecer uma metodologia que pudesse ir ao encontro do nosso objectivo. Por isso, optámos por escolher o método qualitativo numa abordagem sistémica envolvendo uma dupla aliança quanto ao propósito e ao método. O trabalho realizado tanto do ponto de vista teórico, como prático envolve-se numa teoria co- construtivista seguindo um método hermenêutico e uma postura heurística, com base em três pensamentos genéricos: o Pensamento Complexo de Edgar Morin (2005) aliado a textos orientados para a educação, tais como Os sete saberes para a educação do futuro (2002) e Educar para a Era planetária (2004) enquadrando-os nas teorias contemporâneas de aprendizagem definidas por Knud Illeris; a corrente semiótica, centrada numa análise estruturalista do cinema, encabeçada por Christian Metz, contudo iremos recorrer ao pensamento do filósofo francês Gilles Deleuze para nos poder distanciar um pouco da abordagem demasiadamente ancorada na linguística de Christian Metz e retomaremos algumas reflexões de Walter Benjamin e Heidegger em torno da linguagem e do pensamento. Com base nestes pensadores e nas urgências previamente enunciadas em torno da construção do conhecimento, formulámos dois princípios como alicerce da nossa análise para demonstrar a pertinência deste trabalho. Por um lado, o dialogismo, princípio que adoptámos e adaptámos dos trabalhos desenvolvidos por Paulo Freire; do conceito de dialogismo de Mikhail Bachtin; e do princípio dialógico ancorado em Edgar Morin, na elaboração do paradigma da complexidade, para salientar a necessidade de explorar e efectivar o diálogo possível e absolutamente necessário entre as imagens e as palavras, em vários planos, e, por outro lado, o princípio de literacia cidadã, aplicado ao
  • 11. contexto do nosso objecto de estudo, mas vinculado ao conceito de cidadania terrestre definida por Edgar Morin e à proposta de literacia formulada pela OCDE. No sentido em que julgamos importante que pela arte das palavras brotem imagens e que as imagens possam produzir palavras, optámos por uma estrutura em que o número três se repete. Esta organização permite a leitura progressiva de cada parte de forma a procurar promover aquilo que Roland Barthes chamou o «prazer do texto» e aquilo que gostaríamos de transmitir: a sua envolvência com a tecedura dos pensamentos aqui expostos. De uma forma geral e resumida, o esqueleto organizativo deste trabalho apresenta-se numa estrutura tripartida envolvendo três grandes momentos precedidos de um preâmbulo e de introduções específicas, anunciando o fio condutor de cada parte destes três conjuntos, e por conclusões específicas a cada parte, o todo conduzindo a um epílogo. A partitura remete para os seguintes momentos genéricos implicando: questões de teoria geral que nos orientaram tanto na abordagem ao objecto de estudo, como nos procedimentos metodológicos; questões de teoria específica envolvendo a análise em torno das acções desenvolvidas e, finalmente, questões vinculadas aos respectivos resultados das acções. De uma forma mais pormenorizada, a primeira parte divide-se em três momentos remetendo-nos, essencialmente, para os nossos percursos de leituras, relacionados com o nosso objecto de estudo, e a hipótese principal explicitando as orientações teóricas, os princípios fundamentais e a metodologia aplicada. A primeira parte deste conjunto dedicar-se-á, sucessivamente, às imagens, às palavras e à educação. No decorrer da segunda parte, debruçar-nos-emos sobre a nossa proposta de estratégia teórica e os princípios adoptados. Esta desenvolver-se-á em três partes que, respectivamente, explicitarão o nosso objecto de estudo, o problema de investigação e questões de definições e princípios que regeram a orientação teórica deste trabalho. A terceira parte, levar-nos-á a questões metodológicas, constituindo-se numa procura do método, este sendo visto como um aspecto fundamental, posto que procurámos
  • 12. congregar saberes e instrumentos científicos de forma a adequá-los ao trabalho realizado sobre o nosso objecto de estudo. Na segunda parte deste trabalho, debruçar-nos-emos sobre o nosso objecto de estudo em particular, procurando salientar, identificar e definir os instrumentos disponíveis para a construção do conhecimento em torno de um filme clássico de ficção. Neste ponto, apresentaremos as abordagens feitas ao nosso objecto e as possíveis ferramentas aplicáveis à luz das teorias e abordagens anunciadas previamente. Esta parte apresentar-se-á em dois momentos em que se reflectirá sobre o filme enquanto objecto estético, envolvendo três aspectos decorrentes da linguagem cinematográfica. Num segundo momento, salientar-se-á como o filme pode ser considerado enquanto objecto de construção do conhecimento com base nos cinco níveis de codificação e nas sete propostas de Edgar Morin. Finalmente, na terceira parte, apresentaremos o trabalho realizado. Este consistirá na descrição das acções realizadas, em contexto escolar do ensino secundário, envolvendo os respectivos materiais didácticos. Seguidamente, apresentar-se-á reflexões relativas à recepção do filme e respectivas actividades desenvolvidas na sala de aulas. O trabalho será concluído por um epílogo que anotará considerações gerais, assim como as inerentes limitações deste estudo. Contudo, no sentido de «fechar a porta e abrir a janela», assinalar-se-á desenvolvimentos paralelos a este trabalho, assim como os seus prolongamentos teóricos e práticos efectuados noutros contextos. Na procura de instrumentos para a construção do conhecimento, apontar-se-á para os caminhos iniciados neste sentido e os possíveis futuros caminhos científicos a perseguir para uma educação, em que a Arte é parte integrante do percurso pedagógico, ainda à procura de uma didáctica que se possa enquadrar nos programas.