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Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                        Juiz de Fora, julho de 2004.




    Análise Iconográfica e Iconológica das Cédulas: fim do Império e formação da República
                                     através do papel moeda

    Igor Guedes de Carvalho Graduando em História da Universidade Federal de Ouro Preto

      Bolsista do programa de iniciação cientifica da Universidade Federal de Ouro Preto



           Nessas páginas tentaremos mostrar como as cédulas, já nas últimas décadas do Império,
tiveram um importante papel de divulgação da imagem imperial e, posteriormente, republicana.
Para compreender essa realidade social através das imagens, estudaremos o contexto histórico em
que os objetos estão inseridos, aplicando a metodologia proposta por Panofsky1.
           O eixo em torno do qual tentamos organizar a análise das representações imagéticas
contidas nas cédulas foi, basicamente, o Segundo Reinado, período de estrema importância para a
consolidação da unidade nacional, alcançando até o início da Primeira República. A busca por
uma identidade coletiva para o país atravessou o fim do Império e, de certa forma, perseguiu os
idealizadores da Primeira República (1889-1930). Neste momento, quando há a passagem de um
regime para o outro ocorre uma significativa mudança na forma como são representados os
símbolos. Além desta perspectiva vamos procurar analisar como cada regime procurou construir
sua memória e que grupos sociais foram evocados nas cédulas.


O Início
           Pode-se dizer que somente em 1850 o Estado brasileiro havia conseguido sufocar os
movimentos separatistas e assegurar o monopólio fiscal e o monopólio da violência2 em todo o
território. Neste momento, estava consolidado o processo de criação de um Estado nacional,
caracteristicamente centralizador e monárquico. No entanto, o sentimento de nação praticamente
inexistia3. Era preciso criar mecanismos que possibilitassem a criação da identidade nacional. As
cédulas funcionaram como meio divulgador destes mecanismos trazendo em suas estampas

1
  PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Trad. Maria Clara F. Kees e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
2
  A formação de um exército vinculado ao poder central e a criação de tributações para sustentar a máquina estatal
são características essenciais para o funcionamento de um Estado Moderno.
3
  De acordo com José Murilo de Carvalho até este ano existia somente um sentimento nativista em oposição ao
estrangeiro, neste caso, o português. No entanto este sentimento era insuficiente para representar uma identidade
comum ao habitante do Rio de Janeiro, de Recife e de Belém.
Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                        Juiz de Fora, julho de 2004.




símbolos que representassem o regime em vigor, além de quadros da Academia Imperial de Belas
Artes e paisagens nacionais.
         As representações imagéticas contidas nas cédulas podem nos fornecer pistas de como a
Corte relacionou-se com os diversos grupos sociais. Como afirma Roger Chartier “as lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os
valores que são seus, e o seu domínio.”4 É dentro deste contexto que procuramos investigar como
as cédulas ajudaram a divulgar a imagem do Imperador vinculando seu poder simbólico a
determinados grupos sociais.
        Panofsky orienta a investigação da história da arte de forma a “ajustar-se, instruindo-se
ao máximo possível sobre as circunstâncias em que os objetos de seus estudos foram criados.”5
Dessa forma, antes de analisarmos propriamente a construção de símbolos por parte do Império
Brasileiro através das cédulas, precisamos compreender como se consolidou o Estado Nacional e
a Corte brasileira. Devemos nos perguntar quais agentes sociais foram agregados ao sistema de
poder político e quais foram marginalizados. Através dessa análise poderemos compreender
como a Monarquia aproximou-se ou afastou-se de determinados grupos através das cédulas.


O Monarca-Herói




          Figura 1: anverso da cédula de mil réis lançada em 1868. In: Brasil através da moeda. Rio de Janeiro:
                                                 CCBB, 1995.

4
  CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo.
Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. p. 17.
5
  PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Trad. Maria Clara F. Kees e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1979. p. 36.
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        Vamos analisar a relação da Corte brasileira do Segundo Império com três grupos sociais
específicos: exército, grandes proprietários e a elite política, esta, composta basicamente por
bacharéis em direito. Um mecanismo utilizado pelo regime monárquico que consolidou a sua
relação entre bacharéis e fazendeiros, foi a distribuição de títulos nobiliárquicos. Esta estratégia
consistiu na concessão de títulos de barões aos proprietários rurais destinando os títulos de maior
prestígio (viscondes, condes, marqueses e duques) aos magistrados e bacharéis da máquina
estatal. O exército encontrava-se praticamente excluído da concessão de títulos. John Schulz
aponta que “os militares protestaram contra o fato de que quando um militar tinha acesso a uma
ordem honorífica, era sempre a Ordem da Rosa, o prêmio recebido por homens de cor.”6
        É essencial conhecermos estes grupos assim como o seu papel no teatro social. A
construção de um governo caracteristicamente civil sob a égide imperial foi possível graças à
formação de uma elite política homogênea, tanto em sua socialização quanto em sua formação
ideológica. O grupo que constituiu os magistrados e bacharéis da política imperial, mesmo não
tendo origem de um mesmo grupo social, alcançou a homogeneidade devido a dois fatores:
socialização e formação ideológica. No entanto, ao mesmo tempo em que o regime monárquico
construía uma elite unificada garantindo a ela altos níveis de socialização, excluiu outros grupos
como por exemplo os militares.


                     O governo imperial foi profundamente civil e os políticos se orgulhavam em apontar as
                     vantagens do sistema brasileiro sobre os governos militares das republicas vizinhas. A
                     convicção da legitimidade do governo civil era tão forte que se tornou em obstáculo à
                     percepção da seriedade da ameaça representada pela oposição militar ao final do império.
                     Após a Guerra do Paraguai começou a formar-se uma real contra-elite militar, de
                     características distintas das da elite civil, tanto em termos sociais como ideológicos. Mas ele
                     permaneceu marginal até o fim. 7




6
  SCHULZ, John. Exército na política: origens da intervenção militar 1850 – 1894. São Paulo: Editora Universidade
de São Paulo, 1994. p. 43.
7
  CARVALHO, José Murilo de.A Construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 55.
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        Como aponta Oliveira Lima este caráter antimilitar que caracterizava a elite política
brasileira partia também do próprio Imperador. É famoso o fato citado por este historiador que,
“ao assistir a um desfilar de tropas, ele (D. Pedro II) dissera aos que estavam perto, apontando
para os soldados – assassinos legais!”.8 Edmundo Coelho relata um fato interessante que ilustra o
desprestígio militar durante o Segundo Reinado: “em carta ao Barão do Rio Branco queixava-se
Taunay de que quando desejavam humilhá-lo chamavam-no de ´Sr. Major`.” 9
        Frente a estes dados pode causar espanto ao leitor ao se deparar com a primeira série de
cédulas a serem analisadas (Figura 1). Lançadas em 1868 trazem, sem exceção, o Imperador –
símbolo maior da nação – em trajes militares. Como explicar este fato?
        A situação de desprestígio social do exército manteve-se inalterada por quase todo o
Segundo Reinado transformando-se radicalmente durante a Guerra do Paraguai. Como
explicitamos, até então, o exército era visto como uma instituição onerosa, indesejada e de baixo
prestígio social. No entanto, com a invasão do estado de Mato Grosso pelas tropas paraguaias a
necessidade estratégica do exército cresceu modificando sensivelmente o equilíbrio social pré-
estabelecido. Apenas para termos uma idéia das proporções, a Guerra do Paraguai foi “a mais
violenta guerra interestados já ocorrida em qualquer parte do mundo entre 1815 e 1914. Durou
mais de 5 anos (de Outubro/Novembro de 1864 a março de 1870) e consumiu cerca de 300 mil
vidas.”10
        A Guerra do Paraguai gerou num primeiro momento, um espírito ufanista onde a pátria
brasileira havia sido ofendida por outra nação. Levas de voluntários da pátria alistaram-se e o
próprio Imperador, o símbolo maior da nação, acompanhou a expedição ao Rio Grande do Sul.
Os gabinetes de Furtado e Olinda demonstraram grande entusiasmo pela partida do Imperador e
indignação frente à ofensa causada pelo Paraguai à nação brasileira.
        O início de uma guerra de grandes proporções como foi a do Paraguai determinou a
formação de um novo equilíbrio social entre os grupos que compunham a sociedade brasileira.
Para explicar melhor este fato vamos utilizar o conceito de figuração social trabalhado por
Nobert Elias em seu livro Sociedade de Corte. Elias define a figuração como uma formação
8
  LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro: o movimento da Independência. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1962.
p. 425.
9
   COELHO, Edmundo Campos. Em Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1976. p. 44.
10
   BETHELL, Leslie. Guerra do Paraguai: História e Historiografia. São Paulo: Contexto, 2001. p. 12.
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social que se manifesta nas mais variáveis dimensões como, por exemplo, em uma livraria, em
uma escola, ou até mesmo em uma cidade ou país. Nesta formação social os indivíduos estão
ligados mutuamente por um modo determinado de dependências recíprocas. A reprodução deste
modelo supõe um equilíbrio flutuante de tensões.
        Nobert Elias define a liberdade de cada indivíduo como inserida em uma cadeia de
interdependências que o liga a outros indivíduos limitando-lhe o que é possível fazer ou decidir.
        A imagem do jogo social, portanto, é definida por esta rede de interdependências entre os
indivíduos que compõe uma sociedade comum. A ação de cada pessoa depende, em maior ou
menor grau, de uma série de ações dos mais diversos agentes sociais.
        Torna-se inevitável recorrer ao exemplo utilizados pelo próprio Nobert Elias para ilustrar
o processo de relações em cadeia:


                      Como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira relativamente
                      independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro social, jogada
                      que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo – ou, na realidade, de
                      muitos outros indivíduos - , limitando a autonomia do primeiro e demonstrando sua
                      dependência.”11


        O estado de Guerra redefine a ação dos atores sociais em questão. Usar uma farda deixa
de ser depreciativo e passa a ser um ato de patriotismo. O apoio da coroa à instituição militar não
se manteve restrito ao campo simbólico. A concessão de recursos ao exército durante a Guerra do
Paraguai foi de tal forma irrestrita que “o governo decretou a concessão de fundos especiais para
fins militares sem o consentimento ou sequer conhecimento prévio do congresso.”12
        A Guerra do Paraguai ao redefinir a rede de interdependências levou o Imperador a se
aproximar de um grupo até então marginal dentro da sociedade de Corte, o exército, ao mesmo
tempo em que fortaleceu sua imagem como representante da nação brasileira. Segundo José
Murilo de Carvalho:



11
   ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 158.
12
   COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o exército e a política na sociedade brasileira. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1976. p. 62.
Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                        Juiz de Fora, julho de 2004.




                     Apesar da dificuldade em formular uma imagem da nação que incorporasse a realidade da
                     população, o Império viveu uma experiência coletiva que foi o maior fator de criação de
                     identidade nacional desde a Independência até 1930. Trata-se da guerra contra o Paraguai.
                     Nenhum dos acontecimentos políticos anteriores tinha envolvido diretamente parcelas tão
                     grandes da população de maneira tão intensa. Nem a independência, nem as guerras da
                     Regência (todas elas de caráter provincial), nem a maioridade, nem a guerra contra Rosas em
                     1852 (rápida com pequeno envolvimento de tropas).13


        O conflito com o Paraguai forneceu ao país um episódio marcante para a formação da
nacionalidade brasileira. Dessa forma, construiu-se a imagem de um monarca herói trajando uma
farda militar que ornamenta a primeira série de cédulas que permaneceu em circulação de 1865 a
1875.


O Monarca-Cidadão




            Figura 2: anverso da cédula de quinhentos réis lançada em 1875. In: Brasil através da moeda. Rio de
                                              Janeiro: CCBB, 1995.


        Ao fim do conflito, a pessoa de D. Pedro II encontrava-se desgastada devido a sua
insistência em prolongar a guerra14. Dessa forma, o Imperador herói sai de cena e cede lugar ao
monarca cidadão. Com o fim da guerra em 1870 a presença da farda perde a sua necessidade e o
Segundo Império volta a ser caracteristicamente civil. A nova série de cédulas trás agora o
13
   CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: Escritos de História e Política. Belo horizonte: Editora UFMG,
1998. p. 246.
14
   A condição de D. Pedro II para o término da Guerra era a captura de Solano Lopez, presidente do Paraguai. Mais
informações podem ser encontradas em: SHCWARCZ, Lilia M. As Barbas do Imperador. um monarca nos trópicos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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Imperador em trajes civis (Figura 2). Como frisa Gilberto Freyre “ninguém foi mais bacharel nem
mais doutor neste país que Dom Pedro II. Nem menos indígena nem mais europeu. Seu reinado
foi o reinado dos bacharéis.”15 Neste momento pós-guerra, D. Pedro II volta a aproximar sua
iconografia deste grupo caracteristicamente civil. Os bacharéis compunham a aristocracia das
cidades (Sobrados e Mucambos) como membros da elite política e geralmente estavam


                     envolvidos nas suas sobrecasacas ou nas suas becas de sêda preta, que nos bacharéis-ministros
                     ou nos doutores-desembargadores tornavam-se becas ricamente bordadas e importadas do
                     oriente. Veste quase de mandarins. Trajes quase de casta. E esses trajes capazes de
                     aristocratizarem homens de côr, mulatos, “morenos”. 16


        O casaco e a sobrecasaca foram no século XIX símbolos de civilidade e polidez. É a esses
símbolos que o Imperador buscou vincular sua imagem de monarca após a guerra. Como ressalta
Ana Mauad: “o imperador é retratado acompanhado por livros, pelo globo e por canetas-tinteiros,
todos signos condizentes com um Brasil moderno e culto.”17 Esta é uma das imagens mais
freqüentes de Dom Pedro II, monarca intimamente ligado a elite civil da Corte.
         “É certo que a nova indumentária não é “inventada” nesse momento, mas é certo também
que só então transforma-se em seu uniforme oficial. De cartola e casaca, o monarca se confunde
com seus súditos e políticos que o cercam”, como mostra Lilia Shcwarcz18. O Imperador adquiriu
novos hábitos e alterou de forma consistente sua imagem, tornando-a mais próxima da elite
política que o cercava. A imagem de um rei-cidadão, civilizado e amante das artes havia de se
impor à imagem de tirano de guerra. As cédulas tiveram um importante papel de divulgação
dessas imagens.19




15
   FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 1961. p. 575.
16
   FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 1961. p. 582-583.
17
   MAUAD, Ana Maria. Imagens e Auto-Imagens do Segundo Reinado. In: História da Vida Privada no Brasil
Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 197.
18
   SHCWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador: um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 322.
19
   O uso de imagens junto a uma população majoritariamente analfabeta compunha uma das principais estratégias
para divulgação oficial durante o Segundo Reinado. Mais informações sobre o uso da imagem podem ser verificadas
em MAUAD, Ana Maria. Imagens e Auto-Imagens do Segundo Reinado. In: História da Vida Privada no Brasil
Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                        Juiz de Fora, julho de 2004.




       Até aqui fizemos uma análise de como a Guerra do Paraguai afetou as relações de poder
entre grupos sociais e, conseqüentemente, alterou a imagem pública do imperador nas cédulas.
Agora vamos analisar quais foram as alterações provocadas nas representações imagéticas das
cédulas com a Proclamação da República em 1889.


       A República e as cédulas




        Figura 3: anverso da cédula de dois mil réis lançada em 1900. In: Brasil através da moeda. Rio de Janeiro:
                                                 CCBB, 1995.



         A mudança do regime imperial para o republicano trouxe diversas mudanças
simbólicas. Nomes de estradas, prédios e instituições eram trocados. Isso ocorreu principalmente
porque o novo regime não deve somente reinterpretar a identidade nacional de uma nova forma,
mas, também, combater os símbolos que evoquem diretamente a lembrança imperial.


       A Alegoria Feminina
         Um dos principais símbolos do novo regime foi o uso da efígie feminina – figura que
geralmente substituía a imagem do Imperador nas cédulas20- para representar a República. “A
utilização da figura feminina como símbolo político era uma herança da Revolução Francesa, a
qual elegeu Marianne o signo máximo da nova ordem.”21 Carvalho, em seu livro A Formação das
Almas22, faz uma análise sobre o sucesso da utilização da alegoria feminina enquanto


20
    Após os primeiros anos da Proclamação da República as cédulas permaneceram praticamente idênticas às
produzidas no regime imperial. Foram substituídos somente símbolos que evocassem diretamente a imagem do
Segundo Reinado como o Imperador e o brasão imperial.
21
   ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário (1889 – 1930). Porto Alegre: Edipucrs, 1995. p. 70.
22
   Verificar o capítulo “República – Mulher entre Maria e Marianne”.
Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                   Juiz de Fora, julho de 2004.




representação da República francesa e a compara ao insucesso da tentativa brasileira de repetir a
façanha. Carvalho afirma que os “símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno
social e cultural no qual se alimentarem.”23 No caso do Brasil não havia este terreno. A
Proclamação da República foi um movimento liderado por uma pequena parcela do exército e,
entre eles, a participação feminina inexistiu. Na França, as mulheres tinham ações em revoluções,
no governo e mesmo na sociedade foram mais ativas que no Brasil. “Pegar em armas é, aliás,
                                                                               24
uma das funções viris mais reclamadas pelas mulheres; em 1789.”                     A própria Marianne,
imortalizada por Delacroix em seu quadro “A Liberdade guiando o povo”, exaltou a participação
feminina nas barricadas de 1830 na França. Além disso, a figura de Marianne aproximou-se
bastante da realidade social da maioria da população da França na época, como nos mostra Nicos
Hadjnicolaou: “La Liberdad de Delacroix no es sino una mujer del pueblo guiando al pueblo,
esos proletários y esos elementos desclasados que hicieron la revolucion de julio.”25
          No Brasil a imagem das mulheres revolucionárias não foi trabalhada pela Primeira
República, mulheres como Anita Garibald não foram evocadas como símbolo da nação. Durante
este período imperou o pensamento “sobre a divisão de esferas que destinava as mulheres o
domínio da órbita privada e a dos homens a pública.”26 Este pensamento repercutia na
participação política da mulher. O novo regime excluía a participação das mulheres juntamente
com os analfabetos nas eleições. Na série de cédulas lançada em 1900 (Figura 3) pode-se
verificar a contribuição para uma popularidade negativa da representação feminina da República.
Durante o governo de Campos Sales o deputado Fausto Cardoso denunciou na Câmara dos
deputados o ministro da fazenda, Joaquim Murtinho, por ter mandado reproduzir nas cédulas do
tesouro o retrato de meretrizes representando a República.Duas versões surgiram para definir
quem seria a mulher representada na cédula. Uma delas afirmava que a foto seria da Sra Prates,
uma das meretrizes mais famosas do Rio de Janeiro, e uma outra versão que seria Laurinha
Santos Lobo, sobrinha e amante do ministro Joaquim Murtinho. Temos assim a imagem de uma

23
   CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990 P. 89.
24
   DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres: do Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Porto:
Edições Afrontamento, 1991. p. 564
25
   HADJINICOLAOU, Nicos. La Producción Artística frente a sus significados. p. 97. Tradução do autor: A
Liberdade de Delacroix, representa uma mulher do povo guiando o povo, os proletários e outros elementos
desclassificados que fizeram a revolução de julho.
26
   PRIORE, Mary del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 365.
Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG                      Juiz de Fora, julho de 2004.




prostituta como símbolo maior da nação, ilustrando a tese de José Murilo de Carvalho sobre o
insucesso dos símbolos republicanos.


        O Exército
        Após a Proclamação da República, outra característica até então inédita na confecção de
cédulas foi a constante presença de imagens de batalhas no reverso das notas. A primeira delas
está estampada no reverso da cédula de 100.000 réis, do ano de 1890, e trás representado o
quadro de Vitor Meireles a “Batalha dos Guararapes”. A Segunda imagem, também de Vitor
Meireles, está estampada na cédula de 500.000 réis, emitida em 1897, e trás no reverso o quadro
a “Batalha do Riachuelo”. Pode parecer inexplicável a República reproduzir um êxito militar do
Império ou mesmo evocar uma vitória do passado colonial, entretanto, como explica Celso Castro
“O golpe republicano foi militar, em sua organização e execução.”27
        Neste momento, quando o exército provoca a destituição e o exílio do Imperador, a
figuração social da Corte perde seu eixo central. A instituição militar passa a ocupar cargos antes
destinados aos bacharéis de direito. A chamada República da Espada28 elevou a condição social
dos militares através de promoções, aumento dos soldos e concessão de cargos estatais.
Entretanto, “a pequena densidade histórica do 15 de Novembro (uma passeata militar) não
fornecia terreno adequado para a germinação de mitos.”29 Frente a essa inexistência de símbolos
que melhor representassem o novo regime foram utilizados quadros como a Batalha do Riachuelo
que, ao mesmo tempo em que relembravam a vitória do Império brasileiro sobre o Paraguai,
evocavam a glória da instituição que derrubou o regime imperial e proclamou a República.
        Em relação a Batalha dos Guararapes30 podemos dizer que até os dias atuais a instituição
militar vê de forma mítica a expulsão dos holandeses do nordeste açucareiro. É a primeira batalha
vencida por “brasileiros” contra uma nação estrangeira. Esta imagem evoca um passado mítico e
fundador da instituição militar, grupo social responsável pelo golpe que derrubou a monarquia.

27
   CASTRO, Celso. A Proclamação da República .Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000. P. 9.
28
    Compreende-se como República da Espada o período em que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto
permaneceram na presidência.
29
   CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras. 1990. p. 57
30
   Esta não é a única vez que o Regime republicano recorre ao passado colonial para formar seu imaginário. Como
mostra José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas sobre a construção de Tiradentes como herói
republicano.

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Representações do Império e República nas cédulas brasileiras

  • 1. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Análise Iconográfica e Iconológica das Cédulas: fim do Império e formação da República através do papel moeda Igor Guedes de Carvalho Graduando em História da Universidade Federal de Ouro Preto Bolsista do programa de iniciação cientifica da Universidade Federal de Ouro Preto Nessas páginas tentaremos mostrar como as cédulas, já nas últimas décadas do Império, tiveram um importante papel de divulgação da imagem imperial e, posteriormente, republicana. Para compreender essa realidade social através das imagens, estudaremos o contexto histórico em que os objetos estão inseridos, aplicando a metodologia proposta por Panofsky1. O eixo em torno do qual tentamos organizar a análise das representações imagéticas contidas nas cédulas foi, basicamente, o Segundo Reinado, período de estrema importância para a consolidação da unidade nacional, alcançando até o início da Primeira República. A busca por uma identidade coletiva para o país atravessou o fim do Império e, de certa forma, perseguiu os idealizadores da Primeira República (1889-1930). Neste momento, quando há a passagem de um regime para o outro ocorre uma significativa mudança na forma como são representados os símbolos. Além desta perspectiva vamos procurar analisar como cada regime procurou construir sua memória e que grupos sociais foram evocados nas cédulas. O Início Pode-se dizer que somente em 1850 o Estado brasileiro havia conseguido sufocar os movimentos separatistas e assegurar o monopólio fiscal e o monopólio da violência2 em todo o território. Neste momento, estava consolidado o processo de criação de um Estado nacional, caracteristicamente centralizador e monárquico. No entanto, o sentimento de nação praticamente inexistia3. Era preciso criar mecanismos que possibilitassem a criação da identidade nacional. As cédulas funcionaram como meio divulgador destes mecanismos trazendo em suas estampas 1 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Trad. Maria Clara F. Kees e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1979. 2 A formação de um exército vinculado ao poder central e a criação de tributações para sustentar a máquina estatal são características essenciais para o funcionamento de um Estado Moderno. 3 De acordo com José Murilo de Carvalho até este ano existia somente um sentimento nativista em oposição ao estrangeiro, neste caso, o português. No entanto este sentimento era insuficiente para representar uma identidade comum ao habitante do Rio de Janeiro, de Recife e de Belém.
  • 2. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. símbolos que representassem o regime em vigor, além de quadros da Academia Imperial de Belas Artes e paisagens nacionais. As representações imagéticas contidas nas cédulas podem nos fornecer pistas de como a Corte relacionou-se com os diversos grupos sociais. Como afirma Roger Chartier “as lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio.”4 É dentro deste contexto que procuramos investigar como as cédulas ajudaram a divulgar a imagem do Imperador vinculando seu poder simbólico a determinados grupos sociais. Panofsky orienta a investigação da história da arte de forma a “ajustar-se, instruindo-se ao máximo possível sobre as circunstâncias em que os objetos de seus estudos foram criados.”5 Dessa forma, antes de analisarmos propriamente a construção de símbolos por parte do Império Brasileiro através das cédulas, precisamos compreender como se consolidou o Estado Nacional e a Corte brasileira. Devemos nos perguntar quais agentes sociais foram agregados ao sistema de poder político e quais foram marginalizados. Através dessa análise poderemos compreender como a Monarquia aproximou-se ou afastou-se de determinados grupos através das cédulas. O Monarca-Herói Figura 1: anverso da cédula de mil réis lançada em 1868. In: Brasil através da moeda. Rio de Janeiro: CCBB, 1995. 4 CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. p. 17. 5 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Trad. Maria Clara F. Kees e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 36.
  • 3. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Vamos analisar a relação da Corte brasileira do Segundo Império com três grupos sociais específicos: exército, grandes proprietários e a elite política, esta, composta basicamente por bacharéis em direito. Um mecanismo utilizado pelo regime monárquico que consolidou a sua relação entre bacharéis e fazendeiros, foi a distribuição de títulos nobiliárquicos. Esta estratégia consistiu na concessão de títulos de barões aos proprietários rurais destinando os títulos de maior prestígio (viscondes, condes, marqueses e duques) aos magistrados e bacharéis da máquina estatal. O exército encontrava-se praticamente excluído da concessão de títulos. John Schulz aponta que “os militares protestaram contra o fato de que quando um militar tinha acesso a uma ordem honorífica, era sempre a Ordem da Rosa, o prêmio recebido por homens de cor.”6 É essencial conhecermos estes grupos assim como o seu papel no teatro social. A construção de um governo caracteristicamente civil sob a égide imperial foi possível graças à formação de uma elite política homogênea, tanto em sua socialização quanto em sua formação ideológica. O grupo que constituiu os magistrados e bacharéis da política imperial, mesmo não tendo origem de um mesmo grupo social, alcançou a homogeneidade devido a dois fatores: socialização e formação ideológica. No entanto, ao mesmo tempo em que o regime monárquico construía uma elite unificada garantindo a ela altos níveis de socialização, excluiu outros grupos como por exemplo os militares. O governo imperial foi profundamente civil e os políticos se orgulhavam em apontar as vantagens do sistema brasileiro sobre os governos militares das republicas vizinhas. A convicção da legitimidade do governo civil era tão forte que se tornou em obstáculo à percepção da seriedade da ameaça representada pela oposição militar ao final do império. Após a Guerra do Paraguai começou a formar-se uma real contra-elite militar, de características distintas das da elite civil, tanto em termos sociais como ideológicos. Mas ele permaneceu marginal até o fim. 7 6 SCHULZ, John. Exército na política: origens da intervenção militar 1850 – 1894. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1994. p. 43. 7 CARVALHO, José Murilo de.A Construção da Ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 55.
  • 4. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Como aponta Oliveira Lima este caráter antimilitar que caracterizava a elite política brasileira partia também do próprio Imperador. É famoso o fato citado por este historiador que, “ao assistir a um desfilar de tropas, ele (D. Pedro II) dissera aos que estavam perto, apontando para os soldados – assassinos legais!”.8 Edmundo Coelho relata um fato interessante que ilustra o desprestígio militar durante o Segundo Reinado: “em carta ao Barão do Rio Branco queixava-se Taunay de que quando desejavam humilhá-lo chamavam-no de ´Sr. Major`.” 9 Frente a estes dados pode causar espanto ao leitor ao se deparar com a primeira série de cédulas a serem analisadas (Figura 1). Lançadas em 1868 trazem, sem exceção, o Imperador – símbolo maior da nação – em trajes militares. Como explicar este fato? A situação de desprestígio social do exército manteve-se inalterada por quase todo o Segundo Reinado transformando-se radicalmente durante a Guerra do Paraguai. Como explicitamos, até então, o exército era visto como uma instituição onerosa, indesejada e de baixo prestígio social. No entanto, com a invasão do estado de Mato Grosso pelas tropas paraguaias a necessidade estratégica do exército cresceu modificando sensivelmente o equilíbrio social pré- estabelecido. Apenas para termos uma idéia das proporções, a Guerra do Paraguai foi “a mais violenta guerra interestados já ocorrida em qualquer parte do mundo entre 1815 e 1914. Durou mais de 5 anos (de Outubro/Novembro de 1864 a março de 1870) e consumiu cerca de 300 mil vidas.”10 A Guerra do Paraguai gerou num primeiro momento, um espírito ufanista onde a pátria brasileira havia sido ofendida por outra nação. Levas de voluntários da pátria alistaram-se e o próprio Imperador, o símbolo maior da nação, acompanhou a expedição ao Rio Grande do Sul. Os gabinetes de Furtado e Olinda demonstraram grande entusiasmo pela partida do Imperador e indignação frente à ofensa causada pelo Paraguai à nação brasileira. O início de uma guerra de grandes proporções como foi a do Paraguai determinou a formação de um novo equilíbrio social entre os grupos que compunham a sociedade brasileira. Para explicar melhor este fato vamos utilizar o conceito de figuração social trabalhado por Nobert Elias em seu livro Sociedade de Corte. Elias define a figuração como uma formação 8 LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro: o movimento da Independência. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1962. p. 425. 9 COELHO, Edmundo Campos. Em Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976. p. 44. 10 BETHELL, Leslie. Guerra do Paraguai: História e Historiografia. São Paulo: Contexto, 2001. p. 12.
  • 5. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. social que se manifesta nas mais variáveis dimensões como, por exemplo, em uma livraria, em uma escola, ou até mesmo em uma cidade ou país. Nesta formação social os indivíduos estão ligados mutuamente por um modo determinado de dependências recíprocas. A reprodução deste modelo supõe um equilíbrio flutuante de tensões. Nobert Elias define a liberdade de cada indivíduo como inserida em uma cadeia de interdependências que o liga a outros indivíduos limitando-lhe o que é possível fazer ou decidir. A imagem do jogo social, portanto, é definida por esta rede de interdependências entre os indivíduos que compõe uma sociedade comum. A ação de cada pessoa depende, em maior ou menor grau, de uma série de ações dos mais diversos agentes sociais. Torna-se inevitável recorrer ao exemplo utilizados pelo próprio Nobert Elias para ilustrar o processo de relações em cadeia: Como em um jogo de xadrez, cada ação decidida de maneira relativamente independente por um indivíduo representa um movimento no tabuleiro social, jogada que por sua vez acarreta um movimento de outro indivíduo – ou, na realidade, de muitos outros indivíduos - , limitando a autonomia do primeiro e demonstrando sua dependência.”11 O estado de Guerra redefine a ação dos atores sociais em questão. Usar uma farda deixa de ser depreciativo e passa a ser um ato de patriotismo. O apoio da coroa à instituição militar não se manteve restrito ao campo simbólico. A concessão de recursos ao exército durante a Guerra do Paraguai foi de tal forma irrestrita que “o governo decretou a concessão de fundos especiais para fins militares sem o consentimento ou sequer conhecimento prévio do congresso.”12 A Guerra do Paraguai ao redefinir a rede de interdependências levou o Imperador a se aproximar de um grupo até então marginal dentro da sociedade de Corte, o exército, ao mesmo tempo em que fortaleceu sua imagem como representante da nação brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho: 11 ELIAS, Nobert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 158. 12 COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o exército e a política na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976. p. 62.
  • 6. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Apesar da dificuldade em formular uma imagem da nação que incorporasse a realidade da população, o Império viveu uma experiência coletiva que foi o maior fator de criação de identidade nacional desde a Independência até 1930. Trata-se da guerra contra o Paraguai. Nenhum dos acontecimentos políticos anteriores tinha envolvido diretamente parcelas tão grandes da população de maneira tão intensa. Nem a independência, nem as guerras da Regência (todas elas de caráter provincial), nem a maioridade, nem a guerra contra Rosas em 1852 (rápida com pequeno envolvimento de tropas).13 O conflito com o Paraguai forneceu ao país um episódio marcante para a formação da nacionalidade brasileira. Dessa forma, construiu-se a imagem de um monarca herói trajando uma farda militar que ornamenta a primeira série de cédulas que permaneceu em circulação de 1865 a 1875. O Monarca-Cidadão Figura 2: anverso da cédula de quinhentos réis lançada em 1875. In: Brasil através da moeda. Rio de Janeiro: CCBB, 1995. Ao fim do conflito, a pessoa de D. Pedro II encontrava-se desgastada devido a sua insistência em prolongar a guerra14. Dessa forma, o Imperador herói sai de cena e cede lugar ao monarca cidadão. Com o fim da guerra em 1870 a presença da farda perde a sua necessidade e o Segundo Império volta a ser caracteristicamente civil. A nova série de cédulas trás agora o 13 CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: Escritos de História e Política. Belo horizonte: Editora UFMG, 1998. p. 246. 14 A condição de D. Pedro II para o término da Guerra era a captura de Solano Lopez, presidente do Paraguai. Mais informações podem ser encontradas em: SHCWARCZ, Lilia M. As Barbas do Imperador. um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • 7. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Imperador em trajes civis (Figura 2). Como frisa Gilberto Freyre “ninguém foi mais bacharel nem mais doutor neste país que Dom Pedro II. Nem menos indígena nem mais europeu. Seu reinado foi o reinado dos bacharéis.”15 Neste momento pós-guerra, D. Pedro II volta a aproximar sua iconografia deste grupo caracteristicamente civil. Os bacharéis compunham a aristocracia das cidades (Sobrados e Mucambos) como membros da elite política e geralmente estavam envolvidos nas suas sobrecasacas ou nas suas becas de sêda preta, que nos bacharéis-ministros ou nos doutores-desembargadores tornavam-se becas ricamente bordadas e importadas do oriente. Veste quase de mandarins. Trajes quase de casta. E esses trajes capazes de aristocratizarem homens de côr, mulatos, “morenos”. 16 O casaco e a sobrecasaca foram no século XIX símbolos de civilidade e polidez. É a esses símbolos que o Imperador buscou vincular sua imagem de monarca após a guerra. Como ressalta Ana Mauad: “o imperador é retratado acompanhado por livros, pelo globo e por canetas-tinteiros, todos signos condizentes com um Brasil moderno e culto.”17 Esta é uma das imagens mais freqüentes de Dom Pedro II, monarca intimamente ligado a elite civil da Corte. “É certo que a nova indumentária não é “inventada” nesse momento, mas é certo também que só então transforma-se em seu uniforme oficial. De cartola e casaca, o monarca se confunde com seus súditos e políticos que o cercam”, como mostra Lilia Shcwarcz18. O Imperador adquiriu novos hábitos e alterou de forma consistente sua imagem, tornando-a mais próxima da elite política que o cercava. A imagem de um rei-cidadão, civilizado e amante das artes havia de se impor à imagem de tirano de guerra. As cédulas tiveram um importante papel de divulgação dessas imagens.19 15 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 1961. p. 575. 16 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 1961. p. 582-583. 17 MAUAD, Ana Maria. Imagens e Auto-Imagens do Segundo Reinado. In: História da Vida Privada no Brasil Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 197. 18 SHCWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador: um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 322. 19 O uso de imagens junto a uma população majoritariamente analfabeta compunha uma das principais estratégias para divulgação oficial durante o Segundo Reinado. Mais informações sobre o uso da imagem podem ser verificadas em MAUAD, Ana Maria. Imagens e Auto-Imagens do Segundo Reinado. In: História da Vida Privada no Brasil Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • 8. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. Até aqui fizemos uma análise de como a Guerra do Paraguai afetou as relações de poder entre grupos sociais e, conseqüentemente, alterou a imagem pública do imperador nas cédulas. Agora vamos analisar quais foram as alterações provocadas nas representações imagéticas das cédulas com a Proclamação da República em 1889. A República e as cédulas Figura 3: anverso da cédula de dois mil réis lançada em 1900. In: Brasil através da moeda. Rio de Janeiro: CCBB, 1995. A mudança do regime imperial para o republicano trouxe diversas mudanças simbólicas. Nomes de estradas, prédios e instituições eram trocados. Isso ocorreu principalmente porque o novo regime não deve somente reinterpretar a identidade nacional de uma nova forma, mas, também, combater os símbolos que evoquem diretamente a lembrança imperial. A Alegoria Feminina Um dos principais símbolos do novo regime foi o uso da efígie feminina – figura que geralmente substituía a imagem do Imperador nas cédulas20- para representar a República. “A utilização da figura feminina como símbolo político era uma herança da Revolução Francesa, a qual elegeu Marianne o signo máximo da nova ordem.”21 Carvalho, em seu livro A Formação das Almas22, faz uma análise sobre o sucesso da utilização da alegoria feminina enquanto 20 Após os primeiros anos da Proclamação da República as cédulas permaneceram praticamente idênticas às produzidas no regime imperial. Foram substituídos somente símbolos que evocassem diretamente a imagem do Segundo Reinado como o Imperador e o brasão imperial. 21 ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário (1889 – 1930). Porto Alegre: Edipucrs, 1995. p. 70. 22 Verificar o capítulo “República – Mulher entre Maria e Marianne”.
  • 9. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. representação da República francesa e a compara ao insucesso da tentativa brasileira de repetir a façanha. Carvalho afirma que os “símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no qual se alimentarem.”23 No caso do Brasil não havia este terreno. A Proclamação da República foi um movimento liderado por uma pequena parcela do exército e, entre eles, a participação feminina inexistiu. Na França, as mulheres tinham ações em revoluções, no governo e mesmo na sociedade foram mais ativas que no Brasil. “Pegar em armas é, aliás, 24 uma das funções viris mais reclamadas pelas mulheres; em 1789.” A própria Marianne, imortalizada por Delacroix em seu quadro “A Liberdade guiando o povo”, exaltou a participação feminina nas barricadas de 1830 na França. Além disso, a figura de Marianne aproximou-se bastante da realidade social da maioria da população da França na época, como nos mostra Nicos Hadjnicolaou: “La Liberdad de Delacroix no es sino una mujer del pueblo guiando al pueblo, esos proletários y esos elementos desclasados que hicieron la revolucion de julio.”25 No Brasil a imagem das mulheres revolucionárias não foi trabalhada pela Primeira República, mulheres como Anita Garibald não foram evocadas como símbolo da nação. Durante este período imperou o pensamento “sobre a divisão de esferas que destinava as mulheres o domínio da órbita privada e a dos homens a pública.”26 Este pensamento repercutia na participação política da mulher. O novo regime excluía a participação das mulheres juntamente com os analfabetos nas eleições. Na série de cédulas lançada em 1900 (Figura 3) pode-se verificar a contribuição para uma popularidade negativa da representação feminina da República. Durante o governo de Campos Sales o deputado Fausto Cardoso denunciou na Câmara dos deputados o ministro da fazenda, Joaquim Murtinho, por ter mandado reproduzir nas cédulas do tesouro o retrato de meretrizes representando a República.Duas versões surgiram para definir quem seria a mulher representada na cédula. Uma delas afirmava que a foto seria da Sra Prates, uma das meretrizes mais famosas do Rio de Janeiro, e uma outra versão que seria Laurinha Santos Lobo, sobrinha e amante do ministro Joaquim Murtinho. Temos assim a imagem de uma 23 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 P. 89. 24 DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres: do Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Porto: Edições Afrontamento, 1991. p. 564 25 HADJINICOLAOU, Nicos. La Producción Artística frente a sus significados. p. 97. Tradução do autor: A Liberdade de Delacroix, representa uma mulher do povo guiando o povo, os proletários e outros elementos desclassificados que fizeram a revolução de julho. 26 PRIORE, Mary del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 365.
  • 10. Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG Juiz de Fora, julho de 2004. prostituta como símbolo maior da nação, ilustrando a tese de José Murilo de Carvalho sobre o insucesso dos símbolos republicanos. O Exército Após a Proclamação da República, outra característica até então inédita na confecção de cédulas foi a constante presença de imagens de batalhas no reverso das notas. A primeira delas está estampada no reverso da cédula de 100.000 réis, do ano de 1890, e trás representado o quadro de Vitor Meireles a “Batalha dos Guararapes”. A Segunda imagem, também de Vitor Meireles, está estampada na cédula de 500.000 réis, emitida em 1897, e trás no reverso o quadro a “Batalha do Riachuelo”. Pode parecer inexplicável a República reproduzir um êxito militar do Império ou mesmo evocar uma vitória do passado colonial, entretanto, como explica Celso Castro “O golpe republicano foi militar, em sua organização e execução.”27 Neste momento, quando o exército provoca a destituição e o exílio do Imperador, a figuração social da Corte perde seu eixo central. A instituição militar passa a ocupar cargos antes destinados aos bacharéis de direito. A chamada República da Espada28 elevou a condição social dos militares através de promoções, aumento dos soldos e concessão de cargos estatais. Entretanto, “a pequena densidade histórica do 15 de Novembro (uma passeata militar) não fornecia terreno adequado para a germinação de mitos.”29 Frente a essa inexistência de símbolos que melhor representassem o novo regime foram utilizados quadros como a Batalha do Riachuelo que, ao mesmo tempo em que relembravam a vitória do Império brasileiro sobre o Paraguai, evocavam a glória da instituição que derrubou o regime imperial e proclamou a República. Em relação a Batalha dos Guararapes30 podemos dizer que até os dias atuais a instituição militar vê de forma mítica a expulsão dos holandeses do nordeste açucareiro. É a primeira batalha vencida por “brasileiros” contra uma nação estrangeira. Esta imagem evoca um passado mítico e fundador da instituição militar, grupo social responsável pelo golpe que derrubou a monarquia. 27 CASTRO, Celso. A Proclamação da República .Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000. P. 9. 28 Compreende-se como República da Espada o período em que Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto permaneceram na presidência. 29 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. 1990. p. 57 30 Esta não é a única vez que o Regime republicano recorre ao passado colonial para formar seu imaginário. Como mostra José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas sobre a construção de Tiradentes como herói republicano.