8. Índice
Prefácio: Perfeitas & Vazias 9
A Eva Mecânica 12
A Substituta 16
Ela, a Ginoide 27
A Mulher Imperfeita 45
Veronica Lake Fake 61
A Casa da Dor 68
Sabine 77
A Última Mulher da Terra 82
9. Perfeitas & Vazias
Em 1972 o norte-americano Ira Levin, autor de O Bebê de
Rosemary (1967) e Os Meninos do Brasil , lançava o romance de
icção cientíica The Stepford Wives, lançado no Brasil como As Pos-
suídas. Nessa trama, pouco depois de se mudar com o marido para
Stepford, a protagonista descobre que todas as mulheres casadas da
cidadezinha pacata são donas-de-casa perfeitas, esposas submissas e
dínamos sexuais insaciáveis, além de não possuírem absolutamente
nenhuma preocupação extradoméstica. O único interesse das tais es-
posas de Stepford era agradar seus maridos em tempo integral, da
melhor forma possível. Pela arte de Levin, esse enredo aparentemente
banal se transforma de uma hora para outra num thriller eicaz de sus-
pense, horror e icção cientíica, quando a protagonista descobre o
que os homens casados de Stepford fazem para tornar suas mulheres
tão perfeitas: eles simplesmente as substituíam por réplicas robóti-
cas, idênticas às esposas orgânicas, só que inteiramente desprovidas
de vontade própria. O romance de Levin rendeu duas versões cinema-
tográicas: As Esposas de Stepford , mais iel à narrativa original,
e Mulheres Perfeitas , mais puxada para a comédia e mais meti-
da a politicamente correta do que o texto do autor.
No âmbito da icção cientíica lusófona, Daniel ). Dutra avança
um bocado além de )ra Levin ao estabelecer um universo iccional
aparentemente niilista e misógino para criticar os relacionamentos en-
tre homens e mulheres numa época em que a tecnologia possibilita a
substituição dos amantes orgânicos por sucedâneos artiiciais em tu-
do melhores do que os originais. Ou em quase tudo.
Entrei em contato com o universo iccional das ginoides desse
autor ao analisar as submissões para a Erótica Fantástica 1 (Draco,
2012). Daniel I. Dutra submeteu nada menos do que quatro narrati-
vas à antologia: “A Última Mulher da Terra”; “A Substituta”; “Veronica
Lake Fake”; e “A Mulher Imperfeita”. Selecionei essa última por re-
presentar a melhor discussão das implicações sociais da adoção de
amantes artiiciais por parte da população masculina.
A Mulher )mperfeita mostra a discriminação que Rodrigo
sofre e os tabus sexuais que ele precisa enfrentar, inclusive no seio da
própria família, por ter assumido uma ginoide por amante. Rodrigo
não é o único. Muitos homens heterossexuais estão adotando aman-
tes sintéticas, programadas para satisfazer os mínimos desejos de
seus proprietários. Em consequência, as mulheres heterossexuais es-
tão começando a icar na mão, pois, ao contrário dos homens, elas
não apreciam tanto o sexo e o convívio com sucedâneos artiiciais.
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11. merciais, estão sujeitas às leis de mercado, correm o risco de se torna-
rem obsoletas e podem ser eventualmente trocadas quando a Corpo-
ração Saiteki lança novos modelos soisticados na praça.
O ápice apocalíptico da coletânea em verdade um ix-up, vis-
to que as narrativas se desenrolam num mesmo universo iccional se
dá com a novela A Última Mulher da Terra , uma expansão do conto
homônimo submetido à Erótica Fantástica 1. A ação se passa numa
civilização humana futura em que o gênero feminino se extinguiu há
cerca de três séculos — num relexo dramático do que ocorre noutra
novela, a premiada (ouston, (ouston, Do You Read? , de
James Tiptree, Jr., onde foi a metade masculina da humanidade que
se extinguiu — aqui são os homens orgânicos e suas ginoides que dis-
cutem as vantagens e desvantagens de uma cultura sem mulheres
orgânicas. Com o tempo, essa humanidade monossexual estabelece
seus próprios mitos e lendas históricas para justiicar e ideologizar a
inexistência das mulheres. Num cenário perfeito, mas impermeável
ao progresso, um aventureiro provoca celeuma e transtorno social ao
descobrir, oculto nos conins da Amazônia, um casulo de hibernação
abrigando a mulher do título. Num Sistema Solar que não vê uma mu-
lher orgânica há séculos, a última mulher da Terra é encarada não co-
mo uma deusa do amor e do sexo, mas sim como criatura alienígena.
Além de instigantes e divertidas, como toda boa literatura de
entretenimento que se preza, tomadas em seu conjunto, as narrativas
coligidas em A Eva Mecânica e outras Histórias de Ginoides abordam
questões relevantes para a discussão das relações sexoafetivas. Por es-
tes dois motivos, o livro que você ora tem em mãos fará jus à sua lei-
tura atenta.
Gerson Lodi-Ribeiro
Outubro 2012.
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12. A Eva MecÂnica
A paixão começa doce, e termina amarga.
Ditado popular
Quando um homem está apaixonado a única realidade que
existe é aquela que ele cria em sua mente. Tornamo-nos escravos de
nossos sentimentos, e não mais somos capazes de pensar claramente.
A paixão entorpece, e no inal arruína a vida de sua vítima. Crimes
passionais, suicídios, depressão – o sentimento da paixão gera tragé-
dias que poderiam ser evitadas, caso o ser humano se esforçasse em
usar a razão para controlar suas emoções. Por este motivo não tenta-
rei, neste breve relato que escrevo em minha cela, apontar culpados,
pois reconheço que sou o único responsável pela minha sina. Meu in-
tuito é apenas expor ao leitor as circunstâncias que levaram ao meu
encarceramento. Que este documento sirva de alerta a todos os ho-
mens que sofrem com o feitiço da paixão.
Lembro-me da primeira vez que soube das ginoides. Lera nu-
ma revista do meu avô, datada do início do século , acerca dos pri-
meiros modelos. Naquela época elas ainda não eram chamadas de gi-
noides, mas simplesmente de robôs. Aliás, nem dava para comparar
as ginoides daquela época com os modelos de hoje. É o mesmo que
querer comparar velhos televisores LCD com os atuais aparelhos ho-
lográicos. Olhando para as fotos entendi porque as primeiras ginoi-
des eram apenas uma curiosidade de feiras cientíicas. Robôs com for-
mas femininas, que imitavam uma mulher, e cobertos com silicone,
que emulava a pele humana. Percebia-se claramente que aquilo não
era uma mulher. Isso explica porque as primeiras tentativas de comer-
cialização das ginoides resultaram em um fracasso retumbante.
Mas com o passar das décadas, a tecnologia evoluiu e as gera-
ções seguintes de ginoides foram icando cada vez mais soisticadas.
A grande virada aconteceu com a invenção da carne sintética, inicial-
mente desenvolvida para tratar de vítimas de queimaduras, e que logo
passou a ser utilizada também na fabricação de ginoides. O resultado
foi que se tornou impossível diferenciar uma ginoide de uma mulher
de carne e osso. E não era só a aparência, ao tocá-las, sentia-se tam-
bém a textura da pele humana, incluindo o calor do corpo. Embora
esse novo modelo fosse num primeiro momento vendido a um valor
altíssimo, que poucos homens podiam pagar, não tardou para que o
preço baixasse, e, em pouco tempo, as ginoides tornaram-se aces-
síveis ao homem comum.
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13. Feministas celebraram e prostitutas reclamaram. As primei-
ras, alegando que as ginoides haviam libertado as mulheres de uma
das mais antigas formas de opressão masculina. As segundas, porque
as ginoides simplesmente arruinaram o ramo da prostituição. Donos
de prostíbulos começaram a dispensar suas funcionárias e substituí-
-las por ginoides. As razões são óbvias, ginoides não dormem, não pre-
cisam comer, estão dispostas a fazer sexo horas por dia e realizar
qualquer fantasia sexual do cliente, por mais bizarra que fosse, sem se
sentir constrangida ou humilhada, não envelhecem, não menstruam,
não correm o risco de engravidar, e como se não bastasse, são mais
belas que as mulheres de carne e osso. Fora que ginoides não exigem
pagamento do cliente e o prostíbulo pode icar com todo o lucro para
si. Embora prostitutas tenham se organizado e feito protestos contra
as ginoides, isso surtiu nenhum efeito. Era o im da proissão prostitui-
ção, pelo menos para as mulheres humanas.
Mas houve uma reviravolta quando a Corporação Saiteki de-
1
senvolveu um software que passou no teste de Turing , e criou a pri-
meira inteligência artiicial do planeta. )sso resolveu o último grande
defeito: a falta de personalidade. Agora ginoides não apenas eram
mulheres belíssimas e excelentes amantes na cama, como também se
tornaram versadas em diversos assuntos, sendo capazes de conver-
sar com o usuário sobre qualquer tema de seu interesse, de futebol a
política. As ginoides, sempre carinhosas, sempre belas, sempre boas
donas de casa e sempre dispostas a sexo, tornaram-se a mulher dos
sonhos de todos os homens.
Em pouco tempo, homens começaram a perder o interesse
pelas mulheres de carne e osso e ilas formaram-se em frente às lojas
revendedoras de ginoides. Dessa vez foi a vez das mulheres comuns,
indignadas ao verem homens as preterindo por ginoides, protesta-
rem, e dessa vez o protesto surtiu efeito. O uso das ginoides passou a
ser regulamentado. Homens foram proibidos de se casar ou manter
qualquer vínculo afetivo com ginoides, sob pena de prisão, e o uso de-
las icou restrito apenas para ins de exploração sexual, ou seja, prosti-
tuição.
Isso foi um desastre para os milhares de homens comuns que
não tinham sorte no amor e estavam solitários. Sou um deles, e foi
para homens como eu que surgiu um mercado negro de ginoides.
O esquema funciona da seguinte forma: para o homem que paga a
quantia certa de dinheiro, o contrabandista consegue um bom mo-
delo sem número de série. E o melhor de tudo, providencia também
certidão de nascimento e carteira de identidade falsa, de modo que
ela pode passar por esposa ou namorada.
1
Teste de Turing é um teste elaborado pelo cientista da computação Alan Turing –
cujo objetivo é determinar se máquinas tem inteligência.
13
14. Consegui o número de um contrabandista por meio de um
amigo. Era tarde da noite, bati na porta e um homem a abriu. Era o me-
liante, havíamos nos encontrado dias atrás em um barzinho, para dis-
cutir preço e especiicações do modelo. Ele me disse para entrar, es-
távamos num antigo armazém, caminhamos por um corredor pouco
iluminado, descemos uma escada e entramos em um porão. Lá estava
a ginoide. Cabelos escuros e lisos, pele clara, seios grandes, olhos cas-
tanhos, corpo atlético, tudo conforme havia pedido. Ela era simples-
mente perfeita, não sabia nem o que dizer.
O contrabandista me disse para escolher um nome. Escolhi
Eva, era mais do que apropriado.
Ao me ver entrar, Eva sorriu, levantou-se da cadeira onde es-
tava e veio conversar comigo. Ela era humana em todos os aspectos,
voz, cheiro, gestos, tudo que se possa imaginar. Por mais estranho
que possa parecer me apaixonei naquele momento, mesmo sabendo
que era uma máquina. Porém, não era assim que meu coração se sen-
tia perto dela. Não tinha dúvidas, paguei a quantia combinada e levei
Eva para casa.
Ela foi uma mudança e tanto em minha vida, sentia-me mais
animado para trabalhar, sabendo que ao chegar em casa não estaria
mais sozinho. Agora sempre que voltava do trabalho lá estava Eva me
esperando com um bom prato de comida e sempre compreensiva,
pronta para me consolar e me ouvir quando estivesse de mau humor
depois de um péssimo dia. Empolgado com todo o carinho que rece-
bia dela, presenteava-a constantemente. Nós nos beijávamos, nos
abraçávamos e transávamos com muita paixão. Mas era mais do que
sexo, eu amava Eva. Além de ser muito bonita e me satisfazer sexual-
mente gostava da companhia, gostava de icar abraçado a ela no sofá,
assistindo televisão de noite, gostava de conversar, de rir com ela.
O comportamento de Eva era tão espontâneo e natural que
depois de alguns meses juntos me esqueci completamente de que era
uma ginoide. Às vezes me perguntava por que as mulheres de carne
e osso não podiam ser como Eva. Já tinha sofrido tanto em relaciona-
mentos anteriores que temia me envolver com alguém novamente, e
no começo tinha medo que as coisas dessem errado até mesmo com
Eva, pois, apesar de ser uma máquina, ainda assim era uma mulher.
Mas esse medo se provou infundado conforme ia vivendo meus dias
de felicidade e romance. Sentia-me estimulado para viver. Ela se tor-
nou a razão de minha existência.
Porém, acordei de meu sonho no dia em que a polícia apare-
ceu em meu trabalho e me prendeu. Na sala de interrogatório da de-
legacia, os policiais me contaram que o contrabandista de quem com-
prei Eva havia sido preso, e que, em troca de uma redução de pena, con-
cordou em dar o nome de todos aqueles a quem ele vendeu ginoides.
Os policiais buscaram Eva em minha casa, e iam destruí-la conforme
a lei exigia, quando, ao fazer exames detalhados, descobriram que ela
14
15. não era uma ginoide.
Não fui o único enganado, as falsas ginoides que o contraban-
dista havia vendido para vários homens solitários, na verdade eram
prostitutas desempregadas, que, vendo as ginoides tomarem conta
desse mercado, aceitavam a oferta de contrabandistas de se pas-
sarem por ginoides. Era um bom negócio para essas mulheres, ainal,
elas estavam enfrentando diiculdades, e agradar homens carentes
fora a proissão delas a vida inteira, elas não sabiam fazer outra coisa,
então, ingir-se de ginoide e ser comprada por um homem era vanta-
joso, pois dessa forma, teriam quem as sustentassem. Eventualmente
a farsa seria descoberta, ginoides não envelhecem, mulheres de ver-
dade sim. Mas o que um homem que fora enganado poderia fazer? Se
fosse a polícia seria preso, se expulsasse a mulher de casa também,
era o golpe perfeito.
Não sabia o que sentir, não sabia se icava feliz ou triste ao
saber que ela era humana. Pedi aos policiais que me deixassem fa-
lar com Eva, precisava saber se ela realmente me amava ou esteve
apenas ingindo esse tempo todo. Os policiais relutaram a princípio,
mas terminaram cedendo aos meus apelos, ao ver o estado de alição
em que me encontrava. Não podia ir para a prisão sem antes saber a
verdade.
Eles então trouxeram Eva, e saíram da sala. Ela icou de pé e
evitava me encarar, perguntei se ela me amava. Eva icou em silên-
cio, e alguns segundos depois, respondeu que não. Eva chorou e disse
que sentia muito, mas que foi algo que ela precisava fazer. Foi então
que descobri que durante todo esse tempo com Eva tudo que vivi foi
uma mentira. Talvez no fundo, suspeitasse de algo, soubesse que era
humana demais para ser uma máquina. Mas preferi ignorar para po-
der viver alguns míseros momentos de paixão. Momentos que agora
custaram minha liberdade.
15
16. A Substituta
A ilusão é o primeiro de todos os prazeres.
Oscar Wilde
Todas as vezes que saía da irma de contabilidade parava em
frente à vitrine das lojas para admirar as ginoides. Ao vivo eram mais
belas do que nas propagandas de TV. “Ginoides: mais do que uma mu-
lher, tudo o que você sempre sonhou”, era o slogan da Corporação Sai-
teki. (avia ginoides para todo tipo de função imaginável: empregadas
domésticas, babás, garçonetes, enfermeiras, secretárias, todas devi-
damente trajadas de acordo com suas respectivas funções, e coloca-
das lado a lado em plataformas de uns cinco centímetros de altura.
Pela vitrine podia ver um casal, a mulher grávida de uns seis ou sete
meses, escolhendo uma futura babá para seu ilho. A ginoide que o
casal examinava era um modelo que imitava uma adolescente ruiva
de uns dezesseis anos.
No fundo havia uma peça separada do resto da loja por uma
cortina preta. Em cima da porta de acesso, um letreiro com os dizeres
PRO)B)DA A ENTRADA DE MENORES DE DEZO)TO ANOS. Naque-
la seção o consumidor encontrava ginoides vestidas com sensuais lin-
geries, cinta-liga, roupas de couro sadomasoquistas, ou mesmo com-
pletamente nuas. (avia um pouco de tudo para todos os gostos. Até
algum tempo atrás eu entrava naquela seção e, junto com outros ho-
mens, silenciosamente realizava o ritual de contemplar aquelas bele-
zas robóticas e deixar minha imaginação se esbaldar em imagens por-
nográicas. De vez em quando acontecia dos homens que circulavam
por aquela isolada parte da loja iniciarem uma conversa casual.
“Muito gostosa essa loira”, disse certa vez um homem ao meu
lado, que admirava a mesma ginoide que eu. Era de comentários ca-
suais como esse que nasciam breves diálogos que me permitiram
aprender muito sobre os frequentadores daquela área.
Para minha surpresa, descobri que não era o único homem
casado que cobiçava secretamente uma ginoide. No entanto, possuir
uma aliança no dedo tornava complicado adquirir aquele produto, re-
legando-a a uma mera fantasia de um homem frustrado com o casa-
mento. Por essa razão deixei de frequentar o local há tempos e agora
me contentava em apenas olhar as ginoides expostas na vitrine. Não
fazia sentido me torturar desejando algo que nunca poderia ter.
Minha esposa, Letícia, havia mudado bastante desde que nos
casamos. Eram muitas as pequenas coisas que ela fazia para me ir-
16
17. ritar no nosso dia a dia. Letícia provocava discussões pelos motivos
mais banais, saía e não dava satisfações para onde ia, depreciava-me
na frente dos outros, gastava todo o nosso dinheiro com inutilidades,
rejeitava-me quando a procurava para sexo. Não raro, essas pequenas
incomodações resultavam em brigas monumentais. Para minha espo-
sa, eu era culpado tanto pelo que fazia quanto pelo que não fazia, e a
punição dela variava entre a frieza e provocações gratuitas. A língua
ferina de Letícia era sua arma mais letal, uma arma que me feria como
uma navalha, deixando feridas que nunca cicatrizavam.
Meu vizinho, Renato, que morava no apartamento ao lado,
me aconselhou o divórcio. No entanto eu não queria, pois tinha espe-
rança que fosse apenas uma fase ruim do casamento.
Sabe qual é o seu problema? , costumava dizer o meu ami-
go. Você se esforça demais para ser um bom marido. Quanto mais
você tenta agradá-la mais Letícia te vê como um sujeito fraco, carente
e sem atitude. Nós, maridos, tentamos fazer tudo da forma mais cor-
reta possível, e somos desprezados. Tentamos ser o que as mulheres
queriam que fôssemos. Tornamo-nos coniáveis, maduros, domestica-
dos. E então o que acontece? Elas icam entediadas, é isso o que acon-
tece!”.
Renato me contou que fora casado antes e que Letícia lem-
brava muito sua ex-esposa em tudo que ela tinha de pior. E tendo sua
experiência como base, airmava categoricamente que era ingenui-
dade minha crer que era apenas uma fase ruim do casamento. Mas
não adiantava, mesmo se eu quisesse me divorciar iria perder grande
parte do meu patrimônio por causa do acordo pré-nupcial. Se me di-
vorciasse perderia Letícia e não teria dinheiro para adquirir a minha
tão sonhada ginoide.
Renato era um homem que eu invejava. Sua esposa atual,
Joana, tinha cinquenta e quatro anos, mas aparentava ter uns quinze
anos a menos. Além de ser uma mulher de beleza invejável para sua
idade, também era a mulher mais dedicada e carinhosa que já havia
conhecido. Joana era muito agradável de se conversar. Inteligente,
divertida e perspicaz, ela entretinha-me particularmente quando con-
tava as anedotas do seu casamento.
Por outro lado, meu inferno pessoal com Letícia piorou. De
uns tempos para cá ela começou a icar mais distante que o normal.
Não raro, ligava avisando que ia chegar mais tarde, porque tinha um
serviço importante para terminar no trabalho ou dava outra desculpa
parecida. Apesar de todos os problemas, ainda a amava e estava dis-
posto a salvar o nosso casamento. Por essa razão decidi que teríamos
uma conversa séria.
Ouvi a porta se abrir, era tarde da noite, e da minha poltrona
na sala vi Letícia entrar e se dirigir ao quarto. Ao contrário do que iz
em outras ocasiões, desta vez não a ignorei. )nterceptei-a no corredor
entre a sala e o quarto. Ela não queria conversar, disse que estava
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18. cansada. Segurei-a pelos braços e disse que não aguentava mais, que
tínhamos que resolver nossa situação agora. Letícia empurrou-me e
foi para o quarto. Sentada na cama, com as mãos no rosto, chorava, e
então ergueu o rosto e começou a falar.
Ela me confessou que estava tendo um caso com Felipe, uma
antiga paixão dos tempos de faculdade. Tentei primeiro compreender,
disse que não entendia o que tinha feito para merecer isso. Sempre fui
iel, carinhoso, respeitador e sempre fazia todas as vontades dela. Es-
forcei-me ao máximo para ser tudo aquilo que uma esposa espera de
um marido.
— Não sei explicar — disse Letícia com um olhar triste. — Eu
sei que você sempre foi bom para mim. Eu apenas não te amo mais.
Após alguns momentos de silêncio, retomou a palavra.
— Eu quero o divórcio, estou apaixonada por Felipe e temos
planos de icar juntos.
Uma discussão teve início. Berros, gritos, acusações mútuas,
pequenos empurrões. Antigos ressentimentos foram trazidos à tona.
A sua língua ferina, sempre aiada e pronta para derrubar meu espírito
com palavras cruéis, entrou em ação. Perdi o controle. Letícia tentou
se defender, mas eu a derrubei e me coloquei por cima dela. Tapei sua
boca com a mão esquerda e com a direita segurei-a pelos cabelos.
Comecei a golpear sua cabeça contra o chão repetidas vezes. Ela des-
maiou. Letícia estava deitada ao lado do abajur quebrado e do bidê
caído. Sangue escorria pela parte de trás de sua cabeça. Eu estava fora
de meu juízo normal. O ódio havia sobrepujado minha racionalidade.
Fui ao banheiro lavar o rosto. Ao olhar para o espelho vi em
meu rosto resquícios dos impulsos destrutivos que haviam tomado
conta de mim por um breve momento. Fiquei sentado na privada, en-
carando os azulejos brancos do banheiro, às vezes, pensando no que
tinha feito, e momentos depois me perdendo em um vazio de pensa-
mentos, como uma televisão fora do ar. Devo ter icado horas naquela
posição, e teria icado nesse estado por mais tempo se a campainha
não tivesse tocado.
Saí do meu transe. Entrei em pânico. Fingi que não havia nin-
guém em casa. Então, ouvi uma voz do outro lado da porta. Era Re-
nato, chamando meu nome. Aliviado, abri a porta e o convidei para
entrar. Eu sempre o vi como uma igura paterna, e talvez por essa ra-
zão tenha aberto a porta e contado o que aconteceu na esperança de
que pudesse me ajudar, tal qual um pai a um ilho, quando este está
encrencado. )a ligar para a polícia quando Renato mandou eu me afas-
tar do videofone e disse para me sentar.
— Lembra que você sempre quis ter uma ginoide? — pergun-
tou Renato. — Pois bem, meu jovem amigo, você já ouviu falar de
substituição?
Quando ele falou a palavra substituição eu não sabia o que
pensar. Substituição era uma espécie de lenda urbana. (avia rumores
18
19. de laboratórios clandestinos no porão de casas antigas, fábricas aban-
donadas ou qualquer outro lugar afastado e escondido, onde supos-
tamente fabricava-se ginoides que eram réplicas perfeitas de esposas
assassinadas. Era o crime perfeito. Mas por ser o crime perfeito, nin-
guém acreditava que fosse verdade, pois nunca um caso fora desco-
berto.
— Eu conheço algumas pessoas que podem fazer isso. Podem
fazer o corpo de Letícia desaparecer, de forma que nunca seja encon-
trado, e substituí-la por uma ginoide — airmou Renato.
A proposta era a minha salvação, porém duvidava que fosse
verdade.
— Você gosta da minha esposa Joana, não? — perguntou-me
com um tom de voz um tanto sacana. — Não ique envergonhado.
Acha que não percebi o jeito que você olha e conversa com ela? Joana
é a esposa perfeita, não? Pena que ela nem sempre foi assim. (á mui-
to tempo atrás Joana era uma megera como Letícia. Até que um dia
eu cansei e contratei umas pessoas para matá-la. Mas essas pessoas
não se limitaram a isso. Eles a mataram e a substituíram por uma gi-
noide.
Fiquei perplexo. Joana era uma ginoide? Mas ela era tão....hu-
mana.
— Agora preste atenção — disse Renato, com irmeza. — Eu
posso entrar em contato com as pessoas que fazem esse tipo de ser-
viço. Vai custar caro, mas garanto que você não vai se arrepender.
Acenei airmativamente com a cabeça. Ele acionou o video-
fone e fez uma ligação. Enrolamos Letícia no tapete do quarto e saí-
mos pelos fundos. O corpo foi colocado no porta-malas do meu carro.
Entretanto, no meio do caminho comecei a ter dúvidas. Havia
matado Letícia num surto de ira e o sentimento de remorso me cor-
roía por dentro. O pior de tudo era que eu não podia aceitar a ideia
de substituir a mulher que sempre amei por uma ginoide. Não que-
ria ser preso, mas também não me sentia confortável com a ideia de
passar o resto da minha vida em um casamento de mentira. Renato
ouvia meus tormentos sem dizer uma palavra. Seus olhos estavam fo-
cados na estrada, e então, em um tom casual de conversa de bar ele
começou um questionamento que me trouxe uma revelação.
— Me diga uma coisa, porque você matou Letícia?
— Porque ela me traiu, quer dizer, eu não sei...
Comecei a balbuciar palavras sem nexo, numa patética tenta-
tiva de elaborar uma explicação lógica para o meu ato, e assim que
consegui formular uma linha de raciocínio, vagamente coerente, res-
pondi:
— Quando Letícia me contou que estava tendo um caso eu
não pensei em mais nada. Apenas senti uma raiva, uma impotência,
uma frustração muito grande que foi crescendo dentro de mim e en-
tão perdi o controle.
19
20. Renato me encarou de uma forma que fez eu me sentir um
retardado, e então disse:
— Deixe-me reformular a pergunta: por que você sentiu tanta
ira, a ponto de perder o controle e matar Letícia?
— Não entendi a pergunta.
— Veja bem, a traição te deixou magoado, é compreensível.
Mas essa não foi a razão pela qual você surtou — as palavras dele soa-
vam como um enigma.
— Então qual foi a razão? — perguntei.
Renato parou de falar por um instante. Parecia esperar que eu
descobrisse a resposta sozinho, mas quando se deu conta de que eu
não tinha ideia nenhuma, retomou a palavra.
— Você diz que acha que não vai conseguir ter uma substituta
como esposa porque não aguentaria viver uma ilusão, mas o que você
falha em perceber é que seu casamento era uma ilusão. Digo mais,
Letícia era uma ilusão.
— O que você quer dizer com isso? – perguntei espantado.
— Me diga, você conhecia bem Letícia? — a pergunta me soou
ofensiva, e um tanto irritado, respondi que a conhecia bem.
Durante uns dois minutos discursei sobre como a convivência
a dois faz com que duas pessoas conheçam os detalhes mais íntimos
dos sentimentos de cada um e os pensamentos mais profundos um
do outro. Pelo menos era o que eu acreditava até ouvir a seguinte per-
gunta:
— Se você conhecia Letícia tão bem como você diz, então,
como você não previu a traição dela?
A indagação de Renato me paralisou como um soco na boca
do estômago. Realmente, a traição de Letícia era algo que eu jamais
esperava. Nunca imaginei que ela fosse capaz de fazer isso comigo. Foi
nesse momento que comecei a entender onde Renato queria chegar.
— Você matou Letícia não porque ela te traiu, mas porque
Letícia, ao trair você, destruiu todas as ilusões que você havia cons-
truído em torno dela. A mulher que você amava apaixonadamente
não era a Letícia real, mas sim uma criação da sua própria mente, uma
outra Letícia, uma Letícia idealizada que se sobrepunha a verdadeira.
Colocando os atos e palavras de Letícia em retrospectiva percebi o
quanto eu havia me iludido durante todos esses anos. Esforçava-me
em ignorar seus defeitos e atribuía a ela qualidades que não possuía,
criando assim uma idealização romântica, que existia apenas em
minha imaginação, e que eu projetava na Letícia verdadeira.
— Então, se a Letícia que você amava nada mais é do que o
produto de sua imaginação, que diferença faz ter uma ginoide no lu-
gar da mulher de carne e osso? Já que a mulher de carne e osso, pouco,
ou talvez em nada, correspondia a sua idealização? )lusão por ilusão
é melhor uma ginoide — disse Renato, cujas palavras complementa-
vam minha epifania.
20
21. O carro parou em frente a um navio abandonado no porto.
Retiramos Letícia do porta-malas e a levamos para dentro. Ao chegar
no interior do navio, deparei-me com um rústico, porém bem equi-
pado laboratório. No centro da sala três homens nos esperavam. No
lado direito vi todo tipo de maquinário e ferramentas que se podia
imaginar e no lado esquerdo, vários endoesqueletos prateados de for-
mas femininas em ileiras. Foi quando descobri que, ao contrário do
que muitos pensam, ginoides não são feitas de metal, mas de uma
ibra de carbono diferenciada.
— Mais resistente que ossos humanos e tão resistente quanto
metal — disse um homem de óculos, que se aproximou de mim en-
quanto eu observava as ginoides.
Comecei a ter receios. Uma ginoide não envelhece. Por quan-
to tempo poderia manter essa farsa? O homem de óculos, que a julgar
pela forma bem articulada de falar e o vocabulário técnico era o cére-
bro cientíico por trás da operação, apaziguou minhas dúvidas. Ele ex-
plicou que ginoides eram basicamente um microprocessador dentro
de um endoesqueleto, e este por sua vez, era coberto por pele, sangue
e carne humana. Apenas um exame médico muito detalhado poderia
revelar a verdade. Envelhecimento também não seria um problema.
As ginoides padrão da Corporação Saiteki tinham uma pele que imi-
tava o tecido humano e que nunca envelhecia. Porém, nas substitu-
tas seria injetado uma substância que provocaria um envelhecimento
gradual na pele com o passar dos anos, no entanto sem comprometer
a beleza.
— As mulheres hoje fazem diversas cirurgias plásticas e trata-
mentos cosméticos. Atualmente é impossível encontrar uma mulher
que aparente ter mais de quarenta anos. Vai icar tudo bem. Não se
preocupe — disse Renato, coniante.
Nesse meio tempo o segundo homem, que antes estava ocu-
pado examinando o corpo de Letícia, entrou na conversa.
— Você estraçalhou o crânio dela — foram essas suas secas
palavras.
— E se a substituta revelasse para alguém que ela era uma
ginoide? — foi o pensamento que me ocorreu.
— )sso não irá acontecer por uma razão simples. A substituta
não sabe que é uma ginoide. Ela pensa que é uma mulher de verdade.
Não é perfeito? — respondeu Renato, entusiasmado.
— Você está me dizendo que Joana não sabe que é uma má-
quina? Que ela pensa que é... humana? — indaguei, espantado.
— Mas é óbvio — interviu o homem de óculos. — Todas as
substituições que izemos até hoje deram certo por um único motivo:
a vítima do crime não sabe que foi uma vítima. O único lado negativo
de se inserir memórias falsas em ginoides é que isso impossibilita a in-
serção de programas de proteção ao usuário. Você sabe do que estou
falando, não? São aqueles softwares que obrigam uma inteligência
21
22. artiicial a sempre obedecer seu usuário, nunca ferir um humano e etc,
etc, etc. Se uma inteligência artiicial torna-se ciente desses protoco-
los, logo torna-se ciente de que não é humana. Obedecer o programa
que diz não ira humanos signiica tomar consciência de que se é
uma máquina. E isso arruinaria o truque.
O terceiro homem, o único que não havia falado ainda, mani-
festou-se.
— Eis o que você irá fazer: vá para a casa, ligue para o serviço
de sua esposa e diga que ela não pode ir trabalhar esta semana, por-
que está doente. Não se preocupe que providenciaremos o atestado
médico e lhe enviaremos pelo correio. Enquanto isso aguarde, que
dentro de seis dias a substituta estará pronta e a enviaremos para sua
casa. Apenas aja naturalmente quando a ver.
— Agradeça seu amigo Renato. Essa é a primeira vez que en-
cobrimos um crime alheio. Os maridos costumam nos contratar para
matar suas esposas e substituí-las por ginoides, mas a parte de matar
você já fez. Veja o lado bom, vamos até cobrar menos por causa disso
— interviu o segundo homem, sarcástico, enquanto colocava o corpo
de Letícia em uma mesa.
— E antes que eu me esqueça, não quer aproveitar e melhorar
a aparência dela também? Se você quiser que ela tenha seios maiores
ou uma bunda mais irme é só falar. Podemos fazer o que você quiser.
É por conta da casa — perguntou o terceiro homem.
— Mude a cor do cabelo dela — eu disse. — Ruivo. Quero ruivo.
Foram-me dadas mais algumas instruções. O pagamento foi
acertado.
No caminho de volta eu e Renato permanecemos em silêncio,
até que perguntei:
— Renato, as substitutas não sabem que são substitutas, cer-
to? Como você acha que elas reagiriam se descobrissem que são má-
quinas?
Renato respondeu:
— O que você faria se descobrisse que você não é humano e
que foi assassinado?
Os seis dias que antecederam a chegada da substituta foram
deinitivamente os piores dias da minha vida. Minha consciência cul-
pada se manifestava de diversas formas. Às vezes sentia um aperto
no coração, falta de ar e tonturas, era como se meu próprio corpo se
revoltasse contra o meu pecado. Em outras ocasiões minha mente era
invadida pela imagem de Letícia deitada no chão: um ino riacho de
sangue escorrendo por atrás de sua nuca, a cabeça inclinada para a es-
querda e os olhos paralisados itando o rodapé do quarto. Meus pen-
samentos, contra a minha vontade, retornavam incessantemente a-
quele meu momento de fúria, tal qual um policial numa sala de inter-
22
23. rogação, que obriga um criminoso a encarar as fotos dos cadáveres de
suas vítimas na cena do crime. Veja, você fez isso! Olhe para Letícia!
Não vire o rosto! Olhe! , era o que o policial que habitava minha cons-
ciência gritava sem piedade. A culpa me castigava com uma potência
muito maior do que qualquer mágoa produzida pela língua ferina de
Letícia.
Como era horrível estar sozinho em casa. Desejava ouvir mais
uma vez aquele tom de reprovação da voz de Letícia, desejava sentir
aquele olhar de ojeriza direcionado a mim, desejava sentir sua cólera
voltada a minha pessoa por qualquer motivo banal. Qualquer castigo
que Letícia me aplicava, por mais que considerasse injusto, era prefe-
rível a sua ausência. Quase cheguei a ligar para a polícia, queria dizer
“eu a matei” o mais alto que pudesse e para todas as pessoas que en-
contrasse pela frente, e quando me imaginava confessando o crime,
também me imaginava sendo tomado por uma sensação de alívio ao
proferir essas palavras. A única coisa que me impedia de me entregar
a polícia era meu instinto de preservação. Um instinto que traçava
uma luta sanguinária contra a minha consciência, uma luta onde meu
espírito era o campo de batalha devastado pelo conlito entre estes
dois oponentes.
A substituta apareceu seis dias depois, conforme o prometido.
Uma Letícia ruiva entrou em casa por volta das oito da noite. Ao me
ver no sofá, abraçou-me e me deu um beijo. Esforcei-me em disfarçar
a surpresa e perguntei onde ela esteve. Ela respondeu:
— (ué? Eu fui para o trabalho. Como é bom sair de casa de-
pois de uma semana gripada.
Perguntei sobre Felipe e ela me respondeu que havia termi-
nado com ele e era para colocarmos uma pedra nesse assunto. Como
não bastasse, Letícia ainda pediu o meu perdão.
Nos meus seis dias de purgatório, questionava-me se iria con-
seguir de fato aceitar a substituta. Imaginava que, no momento em
que aparecesse em minha porta, não conseguiria me deixar enganar,
não conseguiria aceitar a mentira, e, levando a substituta pela mão,
iria à delegacia mais próxima confessar meu crime.
Entretanto, a substituta não era uma cópia de Letícia, ela sim-
plesmente era Letícia. O jeito de falar, andar, o cheiro, o olhar, os ges-
tos, tudo era tão idêntico a minha Letícia que por um momento che-
guei a pensar que ela havia retornado dos mortos. Quando toquei na
substituta tive um choque visceral: a textura de sua pele era igual
aquela que minha memória tátil tinha como recordação. Não podia
acreditar que a mulher a minha frente era uma ginoide. “Seria o fan-
tasma de Letícia? , peguei-me em um pensamento tolo. Teria sido
tudo um pesadelo? , eu havia ingerido uma considerável quantidade
de álcool nos últimos seis dias, numa tentativa de afastar o policial
que vivia em minha consciência.
O que denunciava a farsa, no entanto, e que atestava que não
23
24. havia enlouquecido, era o fato de que a substituta me tratava de uma
forma que a Letícia real nunca havia me tratado, nem mesmo nos
tempos em que estávamos no auge da paixão. Não que Letícia, a ver-
dadeira, não fosse uma excelente companheira naquela época devo
ser justo com ela , mas o fato é que a substituta superava a Letícia dos
tempos de namoro. O que dirá então a que eu havia assassinado! A
diferença mais marcante entre Letícia e seu doppelganger cibernético
era que a língua ferina havia dado lugar a uma língua suave e macia.
Se antes eu era um escravo açoitado pela língua ferina de Letícia ago-
ra era acariciado como se fosse um ilhote canino. Sentia-me como
um frágil cãozinho e Letícia era a mãe que lambia a cria com todo o
carinho do mundo.
Porém, o que realmente me surpreendeu foi a facilidade com
que esqueci o ato terrível que havia cometido. Aceitei o fato de que
aquela mulher que estava perante meus olhos era Letícia com uma
rapidez que eu não me julgava capaz. Eis o que aprendi sobre a culpa:
a culpa, para poder atormentar o espírito humano, depende do que
os sentidos dizem ao culpado. Se antes eu projetava uma Letícia idea-
lizada, fruto do meu temperamento romântico, em cima da verdadei-
ra, agora a substituta enganava os meus cinco sentidos de uma forma
que me levavam a acreditar que a ginoide era a minha Letícia. Letícia
está viva , era o que minha visão, olfato, audição, tato e paladar quan-
do eu beijava a substituta e sentia sua saliva banhar minha língua di-
ziam ao meu cérebro, que, por sua vez, reagia enterrando a memória
de seu assassinato no fundo de minha consciência. O sentimento de
culpa aos poucos se tornou uma lembrança distante, um sonho ruim
cuja memória deinhava lentamente. Culpa é quando encaramos nos-
sos atos, mas quando o ato é desfeito, ou cria-se uma ilusão desse
gênero, a culpa desaparece. O policial em minha consciência estava
morto.
Quanto ao meu relacionamento com a substituta, não havia
queixas. Tudo estava simplesmente perfeito. Éramos como Adão e Eva
no paraíso, mas infelizmente todo paraíso tem que ter sua serpente.
No nosso paraíso a serpente se chamava Felipe. Ele não aceitou bem
a rejeição. Razão que o levou a assedia-la no trabalho, a ligar constan-
temente para nossa casa e vigiar nossa residência. Tivemos que tro-
car o número do videofone. Também demos queixa na polícia e nosso
advogado entrou com uma liminar que o obrigava a manter distância.
Não tivemos mais notícias de Felipe desde então. Supus que
havia superado a rejeição de Letícia.
Certa noite a levei para jantar fora. Enquanto ela se servia,
não podia deixar de pensar no que Renato havia me dito sobre subs-
titutas serem simulações perfeitas de mulheres humanas. Embora
não precisassem nem de sono ou comida, elas eram programadas
para sentir essas necessidades, e também eram equipadas com um
24
25. biodigestor que processava os alimentos, transformando-os em fon-
te de energia. Letícia ria, bebericava champanhe e me encarava com
os olhos cheios de ternura. Perguntava-me se ela era capaz de sentir
emoções. Seriam seus risos e sorrisos apenas reações programadas
de um software ou haveria algo de genuíno neles? Evitava pensar nes-
sas questões, porque a única coisa que me impressionava mais do que
saber que Letícia era uma ginoide, era saber que ela não tinha cons-
ciência disso.
Observava as outras mesas a nossa volta. Havia casais ele-
gantemente vestidos que exibiam aquele sorriso que só os apaixona-
dos conseguem produzir. Porém, o que me chamou a atenção é que
as mulheres eram particularmente belas e alegres. Foi então que veio
o pensamento que me assombrou: e se as mulheres nas outras mesas
também fossem ginoides? Quantos homens como eu haveriam? As
mulheres que trabalhavam comigo na irma de contabilidade seriam
ginoides? As esposas de meus amigos e parentes também seriam gi-
noides? Quantas ginoides haveriam entre as centenas de mulheres
com quem eu cruzava na rua todos os dias quando saía para traba-
lhar? Essa ideia me causou uma súbita falta de ar, pedi licença a Letí-
cia e fui ao banheiro refrescar o rosto.
Saímos do restaurante e esperamos pelo táxi. Estava com o
braço em volta de Letícia quando vi uma luz forte a minha esquerda.
Um carro veio em alta velocidade na nossa direção. Movido por uma
reação instintiva me atirei no meio da rua. Letícia não conseguiu se
desviar a tempo (talvez porque faltasse a substituta certos instintos
básicos). O carro a atingiu em cheio e esmagou-a contra um poste. A
confusão chamou a atenção dos clientes do restaurante e estes, jun-
tos com transeuntes, presenciaram um espetáculo de horror.
O impacto fez um io de luz do poste se soltar. O io balança-
va no ar como uma serpente. Cada chicoteada que dava em Letícia
arrancava sua pele, deixando a mostra partes de seu endoesqueleto
prateado. Cada choque signiicava uma descarga de milhares de volts
e cada golpe queimava um pedaço de sua carne. Quando o io parou
de balançar tudo o que sobrou era uma criatura semicarbonizada,
meio-humana, meio-mecânica e totalmente desigurada. Aproximei-
-me do carro. Felipe estava no banco do motorista. Ele tinha um corte
feio no rosto e sangrava muito. Um pedaço de metal havia atraves-
sado seu estômago. Perguntei por que ele fez isso. Não obtive respos-
ta. Porém, enxerguei no rosto de Felipe os mesmos impulsos destruti-
vos que vi no espelho, na noite em que assassinei Letícia. O público
que se formou em volta do acidente icou aterrorizado, mas não tanto
quanto a própria Letícia que, com as pernas presas entre o carro e o
poste, olhava angustiada para o relexo de sua imagem desigurada no
para-brisa do automóvel. Uma faísca saiu do io de luz e caiu na poça
de combustível que havia se formado em torno do carro. Em poucos
instantes, labaredas surgiram em volta do veículo. Afastei-me antes
25
26. que fosse consumido pelo fogo, deixando para trás Letícia e Felipe. A
fumaça subiu até o alto dos prédios e ao longe se ouvia as sirenes se
aproximando. Não podia mais permanecer no local e, aproveitando o
tumulto, desapareci em meio a multidão.
O incidente virou notícia internacional. Bombeiros resgataram
o cadáver de Felipe e o endoesqueleto de Letícia da carcaça do auto-
móvel incendiado. (ouve uma investigação que resultou na prisão da
quadrilha do porto, de Renato e centenas de outros homens que havi-
am assassinado suas esposas e as substituído por ginoides. O governo
criou uma comissão especial para investigar as atividades da Corpo-
ração Saiteki no Brasil e discutir a proibição de ginoides em território
nacional. Minha foto estava em todos os noticiários, e sempre com
uma legenda escrito PROCURADO . Mas nada disso me preocupava,
o que realmente me horrorizou foi a notícia de que o endoesqueleto
de Letícia havia desaparecido do laboratório da polícia.
Era madrugada. A porta do quarto de hotel onde eu estava
escondido se abriu. Entre as sombras do corredor enxerguei uma si-
lhueta feminina. Ela usava um sobretudo. Cachecol e óculos escuros
cobriam seu rosto. Seu cabelo era ruivo. Ela estava coberta de banda-
gens da cabeça aos pés. Eu tinha um revólver. Atirei. Mais resistente
que ossos humanos e tão resistente quanto metal , vieram-me a cabe-
ça as palavras. A criatura tirou o sobretudo, removeu as bandagens, a
peruca ruiva, o cachecol e os óculos escuros. Um imponente endoes-
queleto prateado reletia a luz da lâmpada no teto. Naquele momento
outras palavras me vieram à mente, “o que você faria se descobrisse
que você não é humano e que foi assassinado? .
26
27. Ela, a Ginoide
ª Lei da Robótica: um robô não pode ferir um ser humano ou, por
omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei da Robótica: um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam
dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem
em conlito com a Primeira Lei.
Isaac Asimov
Suzana ouvia Camila chorando. Podia também ouvir a voz do
pai da menina. O homem dizia a Camila para não ter medo. Dizia que
ele icaria muito chateado se sua ilha não lhe obedecesse. A mãe de
Camila dormia. Suzana, portanto, era a única ciente dos eventos que
transcorriam naquela madrugada de quinta-feira.
Suzana bateu à porta do quarto da menina.
— Está tudo bem, Camila? — perguntou.
— Está tudo bem, Suzana. Vá embora! — respondeu uma voz
masculina.
Suzana entrou no quarto. O pai de Camila, completamente nu
e deitado na cama ao lado da menina, que também estava sem rou-
pas, levantou-se. Enrolado nos lençóis ordenou, num tom de fúria
contida, que Suzana se retirasse.
— Senhor, devo pedir que retorne ao seu quarto — disse Su-
zana, friamente.
— Você não manda em mim! Eu mando em você! Agora volte
para a sala e não conte o que viu para ninguém! — respondeu o pai.
— Suzana, não vai embora! — suplicou a criança.
— Calma, minha fofa. Calma, você não quer aborrecer a Su-
zana. É tarde da noite e ela precisa dormir — disse o pai, sentando-se
ao lado de sua ilha e a abraçando.
— Suzana não precisa dormir! Ela nunca dorme! — respondeu
a menina, tentando se soltar.
Suzana ergueu o pai de Camila da cama. Torceu seu braço e o
jogou contra a parede. Imobilizado, o homem gritava para que o liber-
tasse.
— Sinto muito, senhor. Não posso permitir que continue ma-
chucando essa criança.
O pai, após tentar em vão se libertar, lembrou que Suzana o
superava em força física.
27
27
28. As ginoides MPO - foram construídas para cuidar de crian-
ças, e parte de suas especiicações incluía não apenas um endoesque-
leto de ibra de carbono movimentado por um sistema hidráulico in-
terno, que dava a Suzana uma força descomunal, como também a gi-
noide fora programada com soisticadas técnicas de defesa pessoal e
artes marciais, um software opcional, o qual o pai de Camila pagou
um extra para garantir maior segurança a sua ilha, e que agora se ar-
rependera.
Foi necessário menos de um minuto espremido contra a pare-
de para que o pai de Camila percebesse o quanto era inútil resistir. Ele
sabia que a segunda lei da robótica estava a favor da ginoide, que não
mais lhe obedecia.
O que aconteceria a seguir? A ginoide o manteria preso contra
a parede a noite toda? Ela o mataria? Não, robôs não podem matar
humanos, a primeira lei da robótica não permite , pensou o homem,
tentando manter a calma.
A mãe, sonolenta, e acordada pela comoção, apareceu no
quarto. Ao ver seu marido nu contra a parede, junto a Suzana, demo-
rou a entender o que estava acontecendo.
Ela conhecia o homem com quem casara. Sabia que, quando o
casal decidiu comprar uma babá artiicial para a ilha, a insistência de
seu marido que a ginoide tivesse a aparência de uma adolescente pos-
suía motivações escusas. Vai ser melhor para a nossa ilha. A ginoide
vai ser como uma irmã mais velha , argumentou. A mãe de Camila
acreditou, embora ciente que sempre que houvesse a oportunidade o
marido transaria com aquela bela jovem ruiva de seios pequenos com
o rosto cheio de sardas.
Todavia, ela escolheu ignorar esses fatos. Ser mãe e mulher de
carreira ocupava muito tempo, mais do que dispunha. Por isso a pre-
sença de Suzana se fazia necessário. Além disso, ela era apenas uma
máquina. A ginoide não oferecia risco. Melhor ter seu marido transan-
do com uma mulher mais jovem mecânica do que com uma de carne
e osso.
Quando viu sua ilha nua na cama, abraçada a um urso panda
de pelúcia e aos prantos, entendeu inalmente que não se tratava de
uma pulada de cerca de seu marido, se é que transar com uma ginoide
poderia ser considerado traição, conforme havia reletido sobre o te-
ma inúmeras vezes.
Desta vez era algo pior, algo que conhecia tão bem quanto as
traições de seu marido. Camila havia contado tudo a sua mãe. Porém,
não encontrou em sua progenitora a salvação que esperava, tendo
que conviver muitas noites com as moléstias noturnas inligidas pelo
seu pai. Ao invés de proteger sua ilha, optou por ignorar a realidade
cruel de seu lar. Agora, ao presenciar a cena daquela madrugada de
quinta-feira, ela entendeu o preço de sua omissão.
— Solta meu marido — gritou a mãe a ginoide, que a ignorou
28
29. sumariamente.
A mulher tentou tirar as mãos que prendiam seu marido.
Agrediu a ginoide, puxou seus cabelos, arranhou seu rosto, mas ela
permanecia imóvel. Um rosto sem expressão, segurando o homem
contra a parede. A mãe se sentia impotente. Uma raiva tomou conta
dela ao perceber que nada podia contra aquela máquina que lagelava
seu marido.
Então a mãe viu, na cabeceira ao lado da cama, um abajur á
meia-luz. A mulher o ergueu, tirou o chapéu que protegia a lâmpada
e a quebrou, golpeando-a contra a parede. Faíscas jorravam da ponta
do abajur. A mãe cravou o objeto no olho direito da ginoide, pene-
trando fundo em sua órbita ocular.
Uma corrente elétrica percorreu todo o corpo de Suzana. Ela
soltou o homem e começou a ter espasmos pelo meio do quarto. A gi-
noide caminhava para frente e para trás enquanto um forte cheiro de
queimado emanava dela e todas as luzes da casa começaram a piscar
até que, enim, a escuridão tomou conta da residência.
Suzana caiu no chão.
O pai apoiou as costas na parede. A mãe pegou o lençol no
chão e cobriu seu marido. Da cama a criança observava a cena. A me-
nina sentia-se negligenciada pela mãe, que optou por socorrer o ho-
mem que a machucara. Naquele momento Camila sentiu que a única
pessoa que se importava com ela era Suzana, e correu em direção a
ginoide.
— Filha, se afasta dela — gritou a mãe.
A cavidade negra e chamuscada que antes fora o olho direito,
e que encontrava-se perfurada pelo abajur, exalava um cheiro de quei-
mado que ardia nas narinas da menina, mas ela lutava contra o mal-
-estar e sacudia o corpo inerte de Suzana.
— Acorda, por favor — implorou Camila, ajoelhada.
As lágrimas da menina banhavam o rosto da ginoide. Então,
como se as lágrimas a tivessem despertado, ela se levantou. A única
luz no quarto vinha dos postes na rua, que, junto ao brilho natural do
luar, formavam uma combinação de tons de amarelo e prata. Na escu-
ridão a sombra da ginoide, projetada na parede, adquiriu contornos
fantasmagóricos. Ela caminhou em silêncio em direção ao casal, que
se encontrava sentado no chão, entre a cabeceira e a porta que dava
para o corredor.
Toda a vizinhança acordou com os gritos de socorro dos pais
de Camila.
Dez anos depois.
Thaís passava manteiga na torrada de Maristela. A menina
observava seus pais dialogarem enquanto aguardava sua mãe lhe en-
tregar os pães.
— Querida, não me sinto bem em deixar Maristela com uma
29
30. estranha — confessou Gilberto.
— Eu entrevistei cinco candidatas antes de me decidir por ela.
Quando conhecê-la você vai ver que toda essa preocupação é boba-
gem sua — respondeu Thaís, antes de dar um beijo em seu marido.
— Tudo bem, se você gostou da menina eu conio em você. A
propósito, qual é o nome dela? — perguntou Gilberto, enquanto sua
esposa o servia uma xícara de café.
— O nome dela é Lisandra — olhou para o relógio. — Já são
quase nove horas. Ela deve chegar daqui a pouco.
— Sabe, Thaís, andei conversando por videofone esses dias
com o Jairo. Lembra dele? Ele trabalhava comigo na Saiteki no depar-
tamento de robótica. Ele me falou que a Saiteki tem planos de lançar
uma nova linha de ginoides, voltadas para o público infantil — Gilberto
bebeu outro gole em sua xícara.
— Deus me livre. Eu nunca colocaria minha Maristela nas
mãos de uma ginoide! — a resposta de Thaís surpreendeu Gilberto,
que se engasgou com o café.
Atônito, e num tom de indisfarçável perplexidade, ele disse:
— Você é a última pessoa de quem eu esperava ouvir isso,
Thaís.
— Mãe, o que o pai quer dizer com isso? — perguntou Maris-
tela, curiosa.
Thaís não respondeu verbalmente. O olhar fulminante que
lançou ao marido era mais poderoso que qualquer palavra. Gilberto
percebeu que havia cometido um erro. Certos assuntos não deviam
ser discutidos e sua esposa estava coberta de razão em repreendê-lo
visualmente. Gilberto acionou seu jornal holográico e começou a ler,
como fazia todas as manhãs, e rezava para que o assunto não pros-
seguisse. Por sorte do casal, Maristela não insistiu na pergunta, pois
sua atenção havia se voltado para o som da campainha.
Thaís atendeu a porta. Maristela e Gilberto ouviram passos
vindos do corredor até a cozinha.
— Gilberto, essa é a Lisandra. Lisandra, esse é meu marido
Gilberto — ele tirou os olhos do jornal holográico e cumprimentou
a jovem loira, de cabelos encaracolados, que aparentava ter cerca de
uns dezoito anos.
— Essa é minha ilhota Maristela. Filha, cumprimente a Lisan-
dra. Ela é quem vai cuidar de você enquanto a mamãe estiver traba-
lhando — a menina sorriu para a jovem.
Gilberto trocou algumas poucas palavras com a babá, pois ti-
nha que ir trabalhar. Sua esposa não precisava perguntar o que Gil-
berto achou da jovem que ela havia selecionado para cuidar da ilha.
Lisandra era uma moça bem vestida, muito educada e meiga. Era a
personiicação da babá ideal que existia apenas em ilmes. A forma
como ela e sua ilha estabeleceram uma simpatia mutua, logo nos
primeiros momentos naquela manhã de segunda-feira, era uma pro-
30