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Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural,
                          ou como fazer pesquisa em design sem sabê-lo.
                 Aloísio Magalhães and the Centro Nacional de Referência Cultural,
                         or how to do research on design without noticing it.

                                        ANASTASSAKIS, Zoy
                Mestre e doutoranda em Antropologia Social, PPGAS-Museu Nacional/UFRJ


Palavras-chave: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, patrimônio cultural.

Nesta comunicação, exploro algumas semelhanças e diferenças entre o discurso acadêmico que analisa a presenca de
Aloísio Magalhães no campo das políticas culturais e aquele produzido pelo designer pernambucano. Analisando os
documentos do CNRC, afirmo que o que se tomou por antropologia, na visão de Aloísio, era, apenas, design.

Key-words: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, cultura patrimony.

In this paper. I exploit some similarities and differences between the academic speech wich analyses the presence of
Aloísio Magalhães in the cultural policies and that produced by the designer. Analysing the CNRC’s documents, I afirm
that what has been understood as anthropology, was, in Aloísio’s vision, only design.



Aloísio Magalhães e as políticas culturais

No ano de 1979, o designer Aloísio Magalhães foi nomeado presidente do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, órgão oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil. O Iphan foi fundado em
1937, e tem sua trajetória dividida em duas fases – a ‘heróica’, que iria de 1937 até 1979, e a ‘moderna’, que
inicia-se com a entrada de Aloísio Magalhães em campo. Esta divisão é amplamente aceita, tanto entre os
estudiosos do patrimônio, quanto pelo próprio órgão. Dentro dessa classificação da trajetória oficial de
preservação do patrimônio cultural brasileiro, a ‘fase heróica’ está vinculada a presença de intelectuais
modernistas, ao patrimônio material – ‘de pedra e cal’, e a um paradigma histórico; a ‘fase moderna’ está
ligada à administração de Aloísio Magalhães, que teria levado para o Iphan a preocupação com o patrimônio
imaterial, e um olhar antropológico.

A nomeação de Aloísio Magalhães para a presidência do Iphan foi uma decorrência do trabalho que ele
vinha desenvolvendo desde 1975, na cidade de Brasília, no âmbito da pesquisa e da ação em cultura popular.
O ‘olhar antropológico’ que Aloísio teria levado para o Instituto do Patrimônio, ainda segundo um consenso
entre os estudiosos e o próprio órgão de preservação, teria sido gestado no período entre 1975 e 1979, no
Centro Nacional de Referência Cultural. Pesquisando sobre tal órgão, e buscando compreender a gênese do
novo paradigma antropológico aplicado às políticas públicas veiculadas pelo Iphan a partir da administração
de Aloísio Magalhães, não encontrei menções significantes à antropologia, mas sim, ao design.

Observei que o que foi tomado como um paradigma antropológico – associado às idéias de Magalhães – era,
em sua concepção, uma tentativa de busca por um design propriamente nacional. O que pretendo explorar é o
fato de que Aloísio Magalhães entrou para o campo das políticas culturais pensando em design, e não em
antropologia. O que se passa, a meu ver, é que, talvez, a sua concepção de design fosse tal que suscitasse
associações com a disciplina antropológica, que, naqueles anos da década de 1970, se disseminava e se
popularizava pelo mundo, em função do contexto sócio-cultural associado à contra-cultura, e às
conseqüências de todos os protestos contra a ordem geral das coisas, que eclodiram por volta de 1968.



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Mesmo fazendo parte de tal contexto, Aloísio Magalhães fincava pé no design, e no pensamento do que seria
um design nacional, para pesquisar e pretender agir politicamente na busca do que ele acreditava ser uma
saída para o desenvolvimento do país – o encontro com sua cultura, com os fazeres e as tecnologias geradas
pelo homem simples, que ele denominava de ‘proto-tecnologia’, ‘tecnologia de sobrevivência’ ou ‘pré-
design’.

Não pretendo dizer que as idéias de Magalhães não tivessem nenhuma relação com o que se entende por
antropologia. Mas que há um deslocamento entre o que se diz – e o que se entendeu – que ele fez, ou que ele
pensava, e o que encontramos nos documentos escritos por ele e pela equipe do Centro. Os que falam de
Aloísio e do CNRC associam suas idéias a uma perspectiva antropológica. Aloísio e seus parceiros
pensavam em termos de processos culturais, de produtos e de tecnologias, falando explicitamente em termos
de design.

Uma coisa não nega a outra. Mas é importante investigarmos com que categorias lidam – de fato – aqueles
de quem falamos. Se lermos atentamente os escritos da equipe do Centro não encontramos quase o termo
antropologia. A partir de tal constatação, parti para uma investigação mais detalhada sobre o discurso de
Aloísio Magalhães e da equipe do CNRC sobre as suas propostas de política cultural. Analisei as categorias e
os termos encontrados nas leituras do material gerado pelo órgão, que encontrei nos arquivos da sede do
Iphan, em Brasília, contrastando-os com a literatura acadêmica que comenta tal experiência.

Das minhas análises, pude entender que é preciso estar atento para o que se diz, e que facilmente tomamos
uma coisa por outra, neste caso, mais especificamente, design por antropologia. Se inicei uma investigação
tentando compreender as vinculações de um designer com o chamado ‘olhar antropológico’, fui levada de
volta ao design, pois era naquele campo que o ‘nativo’ sobre o qual eu debruçava meu olhar ancorava seu
discurso e suas ações. No fim, percebi que fazia pesquisa em design, sem tê-lo pretendido. Eu, uma designer
de formação, que iniciara um mestrado em antropologia, fui levada de volta ao design, e descobri, em minha
pesquisa sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, um discurso sobre o design brasileiro vinculado à
figura de Aloísio Magalhães a alguns designers que compartilham da visão de Aloísio, e que ainda hoje
dedicam-se à profissão e à busca de um entendimento do que seja fazer design no Brasil.

O Centro Nacional de Referência Cultural

Em minha dissertação de mestrado, pequisei sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, um órgão de
pesquisa e ação em cultura popular, concebido em 1975 por Aloísio Magalhães, Severo Gomes e Vladimir
Murtinho em Brasília. Sobre a criação de tal órgão, segundo Aloísio Magalhães, em um dos encontros onde
os três informalmente discutiam sobre o país, o Ministro teria lançado a questão: ‘Por que o produto
brasileiro não tinha força própria?’. Nas palavras do designer,

            tudo começou quando o Ministro Severo Gomes me perguntou o que poderia ser feito para dar uma maior
            identidade ao produto brasileiro. Ora, uma pergunta assim só poderia dar ensejo a uma investigação
            cuidadosa. E da investigação à constatação de que não se conhecia esse produto cultural brasileiro foi um
            passo. E passo óbvio, pois se você observar bem verá que não há uma maneira sistemática de se conhecer
            esse produto cultural. Não existem indicadores catalogados e sistematizados. E os indicadores são
            peculiares a qualquer realidade cultural. Precisam, portanto, ser conhecidos (Magalhães, 1976a: 02).

Inspirado pelas discussões sobre o produto brasileiro, o grupo levou tais questões adiante, e em função do
posicionamento político de Severo Gomes e Vladimir Murtinho, foi possível a viabilização do órgão.
Inicialmente, a proposta de criação do CNRC estava vinculada ao projeto que Murtinho desenvolvia para a
implantação de uma infra-estrutura cultural em Brasília. Esse projeto previa uma biblioteca central, um
museu da civilização brasileira e um organismo dedicado ao estudo dos problemas da cultura nacional.



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Em fevereiro de 1975, a comissão interministerial responsável pela implementação de tal infra-estrutura
estabeleceu um grupo de trabalho que tinha por objetivo averiguar a viabilidade de criação de um organismo
capaz de estabelecer um sistema referencial básico, a ser empregado na descrição e na análise da dinâmica
cultural brasileira. Financiado pela Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e
Comércio, instalado em um espaço cedido pela Universidade de Brasília e sob coordenação de Aloísio
Magalhães, o grupo iniciou suas atividades em 01 de junho de 1975.

Em um primeiro momento, o CNRC propunha-se a desenvolver um banco de dados – ou sistema de
indexação - sobre a cultura brasileira. Diferentemente de um museu, tal órgão não colecionaria objetos, mas,
sim, ‘peculiaridades relevantes’ da produção cultural nacional - não o objeto, mas a referência a ele. Para a
equipe do Centro, ‘referenciar’ significava considerar o produto focalizado enquanto processo - em sua
dinâmica de produção e de inter-relação com os contextos local e nacional.

Tal projeto surgiu a partir da preocupação do grupo com o que Aloísio Magalhães definia como
‘achatamento do mundo’, que seria conseqüência do processo acelerado de industrialização por que passava
o mundo ocidental – em suas palavras, “uma espécie de fastio, monotonia, achatamento de valores causado
pelo próprio processo de industrialização muito acelerado e sofisticado. Enfim, o mundo começou a ficar
chato” (Magalhães, 1997: 115). Segundo Magalhães, tal processo levava as culturas locais a perderem suas
características próprias. Assim, sua maior preocupação era que “determinados ingredientes vivos, dinâmicos,
passíveis de serem observados dentro do processo histórico, fossem abafados pela presença atuante de outros
enfoques” (1997: 34).

Por essas razões, Magalhães, Gomes e Murtinho investiram na criação de um órgão que tinha por objetivo
último produzir, no Brasil, alternativas para o processo de achatamento (ou erosão) cultural, que, para eles,
ameaçava a sobrevivência dos processos culturais ‘espontâneos’. Para os criadores do CNRC, tais
alternativas se evidenciariam a partir da consideração e dinamização das peculiaridades criativas de cada
produção cultural localmente produzida. Partindo de tais constatações, o órgão pretendia ‘captar a dinâmica
dos processos culturais’ para disseminá-la pelo país como um todo, fazendo, dessa forma, com que um
processo cultural alimentasse outro, e assim por diante. Para o os criadores do Centro, somente desse modo –
criando-se uma ‘rede de referências’ da cultura brasileira - seria possível evitar a descaracterização e
extinção das culturas locais e promover, no país, um desenvolvimento verdadeiramente autônomo.

Em 01 de agosto de 1976, foi assinado um convênio multi-institucional, viabilizando a estruturação
definitiva do CNRC. Entre as instituições integrantes do convênio estavam a Secretaria de Planejamento da
Presidência da República, a Caixa Econômica Federal, o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da
Educação e Cultura, o Ministério do Interior, o Ministério das Relações Exteriores, a Fundação Universidade
de Brasília e a Fundação Cultural do Distrito Federal. Em 1978, foi assinado um Termo Aditivo ao Convênio
inicial, em que se integraram o Banco do Brasil e o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e
Tecnológico.

O órgão, organizado em quatro programas de estudo (‘Mapeamento do Artesanato Brasileiro’,
‘Levantamentos Sócio-culturais’, ‘História da Ciência e da Tecnologia no Brasil’ e ‘Levantamento de
Documentação sobre o Brasil’), buscava desenvolver projetos em diversas regiões do país, cobrindo uma
vasta gama de processos culturais, com maior ou menor grau de complexidade, a fim de levantar uma
amostragem que fosse representativa da produção cultural brasileira. Os projetos poderiam surgir a partir de
idéias do grupo, mas também, e preferencialmente, deveriam vir de fora. Para a equipe do CNRC, o ideal
seria que os projetos fossem propostos pelos próprios produtores de cultura, pois, em sua concepção,
somente dessa forma se alcançaria uma amostragem razoável e espontânea do ‘fazer brasileiro’.

Em quatro anos de trabalho, foram desenvolvidos 27 projetos. Em 1978, em função da proximidade do fim
do Termo Aditivo ao Convênio de 1976, a equipe passou a discutir possibilidades para a institucionalização

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definitiva do CNRC. Dentre as alternativas levantadas, surgiu a possibilidade de fusão com o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão oficial de preservação do patrimônio no país, vinculado ao
Ministério da Educação e Cultura. Essa opção consolidou-se como definitiva quando Aloísio Magalhães foi
convidado a presidir o Iphan, em 1979. Em sua gestão, realizou-se a reforma institucional do Instituto, que se
fundiu ao CNRC e ao PCH (Programa de Reconstrução das Cidades Históricas), e, por fim, se desmembrou
em duas instituições: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Fundação Nacional Pró-
Memória, que passaram a operar sob a sigla de Sphan/Pró-Memória.

Algumas premissas do órgão:
1. O relacionamento entre cultura e desenvolvimento

“Sem respeito à cultura, não se cria desenvolvimento” (Magalhães, 1978: 02). A partir de uma tal
constatação, o CNRC vinculou a idéia de indexar e referenciar a cultura brasileira ao desenvolvimento. A
questão que se colocava como premissa para a criação do órgão era: se o Brasil é um país com uma cultura
nascente, em que medida – diante “da aceleração do processo de desenvolvimento e do crescimento dos
meios de comunicação de massa” (CNRC, 1975: 03) – estariam sendo criadas ‘condições adequadas para a
sua evolução’? Os criadores do Centro teriam ‘diagnosticado’ uma ameaça à sobrevivência do ‘meio cultural
brasileiro’, e, em conseqüência, se propunham a preservar as áreas da cultura nacional que, em sua opinião,
estavam mais expostas à descaracterização e à homogeneização impostas pelo ‘acelerado’ processo de
desenvolvimento sócio-econômico.

Acreditava-se que conhecendo a dinâmica das práticas culturais seria possível intervir positiva e
adequadamente na realidade brasileira, incentivando um desenvolvimento baseado em elementos da própria
cultura, em vez de um formado por modelos impostos externamente. Para Aloísio Magalhães e os
pesquisadores do Centro, não bastava “relacionar a cultura apenas com as artes e humanidades ou ligar o
termo desenvolvimento unicamente a questões econômicas e sociais. No mundo real ambos os conceitos
estão inter-relacionados, pois a cultura representa um dado indispensável na busca de soluções para os
dilemas políticos, econômicos e sociais” (CNRC, 1979a: 03).

Segundo essa visão, o desenvolvimento acelerado estaria destruindo as culturas locais, através de um
processo denominado de ‘erosão cultural’. Em nome da produtividade, as pequenas comunidades estariam se
afastando de suas bases culturais, o que, em vez de servir ao seu desenvolvimento, as estaria impedindo de
desenvolverem-se plena e verdadeiramente. A saída para tal dilema estaria na cultura – ‘a força coesiva
básica de uma nação’ (1979a: idem). Somente um projeto de desenvolvimento que levasse em conta a
dinâmica de produção e reprodução cultural local poderia impedir a ‘erosão’ das culturas. Para Aloísio
Magalhães e o CNRC, o desenvolvimento só aconteceria de fato se estivesse atrelado à cultura.

Em função de tais considerações, o órgão pregava o ‘desenvolvimento autóctone’, que deveria acontecer não
‘de cima para baixo’, mas ‘de baixo para cima’. Nas palavras de Magalhães, “acreditamos que as políticas
econômica e tecnológica do país necessitam re-inserir os bens culturais nacionais para concretizarmos um
desenvolvimento autônomo” (Magalhães, 1997: 60). O CNRC deveria, então, trabalhar no sentido de criar
alternativas para que os bens culturais nacionais pudessem participar como instrumentos no processo de
desenvolvimento.

Para Severo Gomes, a preservação ‘das nossas referências culturais’ é um dos principais problemas a serem
enfrentados “quando se atravessa um período de rápido crescimento econômico” (Gomes, 1982: 02), uma
vez que a transferência de um modelo estrangeiro de desenvolvimento de um país para outro implicaria
necessariamente em graves desequilíbrios culturais. Gomes não rejeita a idéia de interdependência entre os
países, mas afirma que é preciso compatibilizar uma estratégia global de desenvolvimento com os interesses
nacionais (1982: idem), através do estabelecimento de uma ‘interdependência horizontal’. Para ele, é preciso

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que as políticas de desenvolvimento estejam vinculadas não somente às referências do crescimento da
economia, mas, também, aos aspectos qualitativos da vida de uma cultura. Afinal, “uma política de
desenvolvimento econômico não pode ser pensada isoladamente. Não pode ser separada de uma política
cultural e social, da compreensão de todo o universo cultural e humanístico da nação” (1982: 01).

Assim, o CNRC teria um “papel ativo no sentido de coordenar esforços na obtenção dos indicadores
culturais e ecológicos de uma dada região a fim de melhor caracterizá-la e definir o sentido de sua evolução
num certo momento” (CNRC, 1976: 08), na medida em que a atuação do órgão contribuiria para impedir a
aculturação e a descaracterização das culturas regionais, apontando para a possibilidade de um
desenvolvimento ‘mais de acordo’ com as características próprias de cada região. Confirmando essa posição,
no Relatório Técnico n. 10, afirma-se que “uma das funções precípuas do CNRC é exatamente a do exame
de condições adequadas para o acoplamento fértil das bases culturais do país com seu desenvolvimento
científico e tecnológico” (1976: 09).

Aloísio Magalhães, Severo Gomes e Vladimir Murtinho partiram da constatação de que a mera importação
de modelos tecnológicos oriundos do Hemisfério Norte não estaria levando o Brasil a se desenvolver com
autonomia – ao contrário, o desenvolvimento que aparentemente acontecera, a partir da segunda metade do
século 20, era um desenvolvimento dependente. Esse modelo não satisfazia os ideais do grupo, que com a
criação do CNRC, buscava intervir em tal processo, encontrando nos fazeres próprios ao Brasil saídas para o
impasse nacional, no que se referia ao seu desenvolvimento.

2. Dinâmica cultural e tecnologia patrimonial

O CNRC lidava não só com cultura, mas, também, com tecnologia. A questão que se colocava era: que
tecnologia? Se, como afirma Aloísio Magalhães, “em todos os projetos do CNRC há tecnologia”
(Magalhães, 1997: 232), e se, nas palavras do designer, “a tecnologia em si não é danosa. A tecnologia em si
mesma é maravilhosa” (1997: 98), a questão residia no fato de que “o mal é quando essa tecnologia, que em
si mesma é neutra, está a serviço de uma persuasão, de uma insinuação negativa” (1997: idem). Assim, o
CNRC parte para a investigação sobre outros modos de se construir tecnologia – algo que foi chamado de
‘tecnologia patrimonial’.

Fausto Alvim Jr. afirma que ‘tecnologia patrimonial’, como era entendida pelo CNRC, remete ao ‘sentido
amplo do termo’, tal como fora proposto por Bell (1979): ‘indigenous technical knowledge’, ou, como
traduzido por Alvim Jr., ‘conhecimento técnico imerso e enraizado em grupos sociais específicos’ (Alvim Jr,
1979a: 01), algo que Aloísio Magalhães caracterizava como ‘tecnologia de sobrevivência’ (Magalhães, 1997:
232). Para o designer, os ‘homens do interior’ teriam encontrado, ‘intuitivamente’, soluções de tecnologias
alternativas inconvencionais, que não estariam sendo consideradas pelo país. Esses seriam “outros valores
que, na proposta do CNRC, poderiam ser manipulados, trazidos à tona e adaptados a um novo
comportamento industrial” (Magalhães, 1975).

Tratava-se, assim, de uma vasta gama de processos de produção cultural que “por estarem inseridos na
dinâmica viva do cotidiano não são considerados como (produtores de) bens culturais nem utilizados na
formulação das políticas econômica e tecnológica” (Magalhães, s/d: 05). Algo que Aloísio Magalhães
também definiu como ‘prototecnologia’ (Magalhães, 1976b), ou ‘pré-design’. “Diria, de início, que, na
realidade, dentro dos padrões ortodoxos, não existe artesanato no Brasil. O que existe é uma disponibilidade
imensa para o fazer. É possível, até, caracterizar-se essa alta inventividade como uma atitude que se poderia
chamar de pré-design” (Magalhães, 1977b: 131).

As ‘tecnologias de sobrevivência’ (Magalhães, 1997: 232) que os ‘homens do interior’ encontravam
‘intuitivamente’ - soluções de tecnologias alternativas inconvencionais, não só eram desconsideradas, como
reprimidas por uma “imposição da estrutura científica que nos é em grande parte estranha” (D’Ambrosio,

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1976: 04). O que o CNRC propõe, então, é que as ‘tecnologias de sobrevivência’ e os modos inventivos não
hegemônicos sejam considerados e utilizados como instrumentos aptos a capacitar o país a propor novos
padrões de desenvolvimento. Magalhães ironiza: “Evidente que elas [as tecnologias de sobrevivência] não
vão resolver o balanço de pagamentos nacional, mas que vão melhorar o sujeito lá de baixo, quer dizer, as
bases, vão” (Magalhães, 1997: 233).

No CNRC, as ditas ‘tecnologias patrimoniais’ eram tomadas como elementos das estruturas vivas de cultura
das comunidades (Alvim Jr, 1979a: 02). Logo, não poderiam ser consideradas desvinculadas do seu contexto
de produção – para compreender o enraizamento de uma técnica, processo ou saber dentro de uma cultura
específica, seria necessário, então, que fosse destrinchado o contexto sócio-cultural em que tal processo
ocorre.

3. A cultura e seu contexto

O entendimento de que a cultura só pode ser apreendida se cotejada com o contexto sócio-econômico-
cultural no qual ela se insere, é algo que Fausto Alvim Jr. denomina de uma ‘visão gestáltica’ (Alvim Jr.,
1979b: 03) ou ‘ecológica’ (1979b: 06) dos fenômenos culturais’. Nessa visão, que considera todo o processo
de produção cultural, e não só os seus produtos, o contexto que envolve a dinâmica cultural é um fator
fundamental para o entendimento das trajetórias dos saberes e fazeres locais - objeto de interesse dos
projetos do CNRC. Assim, “atributos como originalidade, tipicidade ou o artístico da arte popular
constituem-se em reflexos da relação íntima dos processos e dos produtos artesanais com os peculiares
contextos culturais em que se desenvolvem (CNRC, 1979b: 05).

Dessa forma, se o Centro buscava encontrar alternativas para o desenvolvimento do produto cultural
brasileiro, respeitando suas peculiaridades, acreditava que tal feito só seria possível se houvesse um
conhecimento profundo da realidade cultural do país. Então, realizar uma pesquisa sobre algum saber
específico implicava, necessariamente, em observar e compreender todo o ambiente que circundava a
produção e a reprodução de tal fazer.

Ou seja, para o CNRC, conhecer os processos culturais implicaria necessariamente em conhecer as
comunidades (Alvim Jr., 1979b: 06). Aliás, não só conhecê-las, mas trabalhar com elas, considerando os
produtores de cultura como sujeitos que tinham o que ensinar, tanto aos pesquisadores, quanto ao país.
Assim, os produtores culturais locais, que no modelo ortodoxo de desenvolvimento eram desvalorizados e
forçados a abandonarem os saberes de que eram herdeiros ou criadores, na dinâmica de trabalho do CNRC,
eram tratados de uma nova forma, chamados a contribuir, exatamente porque detinham um saber ‘enraizado’
só conhecido por eles.

4. O design como responsabilidade social

Em suas pesquisas, o CNRC buscava investigar e dinamizar a ‘inventiva brasileira’, que traria, em seu modo
peculiar de ser, alternativas para o processo de achatamento cultural que o mundo ocidental sofria. Tal
‘inventiva’ estaria depositada no ‘homem do interior’, o chamado artesão – caracterização discutida por
Aloísio Magalhães quando se trata de sua aplicação à realidade brasileira. Afinal, ele acreditava que “o
artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do que propriamente um artesão no
sentido clássico” (Magalhães, 1997: 181). Dessa forma, considerando os produtores dos saberes locais
específicos como ‘designers’ – criadores, e valorizando as soluções criativas de que eles se valiam para
desenvolver as tais ‘tecnologias de sobrevivência’ ou ‘pré-design’, o CNRC não deixava de lidar com
questões da área de origem de Aloísio Magalhães – o design. Afinal, o que seria a proposta do Centro se não
a pesquisa por soluções originais para o problema da fragilidade do produto brasileiro?



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Aloísio, Severo Gomes e Vladimir Murtinho partiram da constatação que a mera importação de modelos
tecnológicos oriundos do Hemisfério Norte não estaria levando o Brasil a se desenvolver com autonomia –
ao contrário, o desenvolvimento que aparentemente acontecera, a partir da segunda metade do século 20, era
um desenvolvimento dependente. Esse modelo não satisfazia os ideais do grupo, que com a criação do
CNRC, buscava intervir em tal processo, encontrando nas raízes dos fazeres próprios ao Brasil saídas para o
impasse nacional no que se referia ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, Aloísio Magalhães confessa: “não
é sem razão que, depois de 15 anos de trabalho como designer no Brasil, eu tenha me voltado para o projeto
do CNRC, que considero como projeto de design. Pois se conseguirmos detectar, ao longo do espaço
brasileiro, as atividades artesanais e influenciá-las, estaremos criando um design novo, o design brasileiro”
(Magalhães, 1977a).

Se o objetivo do Centro era ‘construir um desenho projetivo para o Brasil’, o modo como Aloísio Magalhães
entendia a profissão era algo vital para o estabelecimento dos princípios de atuação do CNRC. Afinal, “o
trabalho do design visa a compatibilizar duas áreas de atuação. Uma é o conhecimento tecnológico,
extremamente racional. A outra é a criação. De um lado você tem a razão, do outro a intuição. No momento
em que harmoniza estes dois pólos, você caminha no sentido de uma boa solução. Em outras palavras, não há
bom design só com a metodologia, como não há bom design só com intuição. É preciso a junção das duas”
(Magalhães, 1977a). Assim como a ‘boa solução’ em design surgiria da compatibilização entre metodologia
e intuição, então a ‘boa solução’ para o país deveria vir no mesmo caminho, ou seja, sempre considerando as
soluções peculiares que o ‘fazer’ nacional desenvolvia.

5. Aplicações da Antropologia

Nos documentos encontrados no arquivo, não aparecem muitas referências à Antropologia. No entanto,
analisando o trabalho realizado pelo CNRC, nota-se que termos e princípios próprios da disciplina
circulavam entre os pesquisadores, sendo aplicados, de modo informal, nos projetos. Os documentos do
Centro mencionam ‘pesquisa de campo’, ‘observação participante’, ‘contexto’, conceitos que fazem parte do
vocabulário antropológico.

Apesar de tais conceitos inspirarem o trabalho do Centro, dos documentos encontrados no arquivo, apenas
um faz referência direta à Antropologia. No Relatório Técnico n. 20, o antropólogo George de Cerqueira
Leite Zarur sugere algumas possíveis “aplicações da antropologia no caso de SUAPE em Pernambuco”.
Nesse texto, o pesquisador introduz algumas “temáticas antropológicas que poderão servir de amarras
teóricas no pensar sobre o problema” (Zarur, 1977: 01). Desse modo, Zarur propõe explicitamente o
desenvolvimento de aplicações da Antropologia no contexto brasileiro (1977: 12), por considerar que a
utilização de ‘temáticas antropológicas’ com um ‘interesse aplicado’ enriqueceriam tanto a disciplina quanto
os projetos onde tais ‘temáticas’ se aplicassem.

Se a Antropologia não é mencionada extensivamente, isso se deve ao posicionamento assumido pelo CNRC,
no que se refere à aplicação de metodologias prévias em suas pesquisas. No entanto, acredito que havia uma
inspiração antropológica, que, mesmo não assumida, balizava muitos dos princípios orientadores do trabalho
no Centro. Trata-se, então, de uma Antropologia aplicada a um projeto de desenvolvimento - em que a
atitude projetiva, característica do design, subjaz às experiências e propostas? Se o CNRC propositadamente
se distancia de qualquer disciplina, não podemos deixar de observar, no entanto, a proximidade de suas
propostas com a atividade projetiva própria do design, e também com a perspectiva antropológica, entre
outras. Enfim, nem somente antropologia, nem somente design, mas, enfim, de tudo um pouco.

Bibliografia

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Aloísio magalhães e o centro nacional de referência cultur…

  • 1. Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural, ou como fazer pesquisa em design sem sabê-lo. Aloísio Magalhães and the Centro Nacional de Referência Cultural, or how to do research on design without noticing it. ANASTASSAKIS, Zoy Mestre e doutoranda em Antropologia Social, PPGAS-Museu Nacional/UFRJ Palavras-chave: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, patrimônio cultural. Nesta comunicação, exploro algumas semelhanças e diferenças entre o discurso acadêmico que analisa a presenca de Aloísio Magalhães no campo das políticas culturais e aquele produzido pelo designer pernambucano. Analisando os documentos do CNRC, afirmo que o que se tomou por antropologia, na visão de Aloísio, era, apenas, design. Key-words: Centro Nacional de Referência Cultural, Aloísio Magalhães, cultura patrimony. In this paper. I exploit some similarities and differences between the academic speech wich analyses the presence of Aloísio Magalhães in the cultural policies and that produced by the designer. Analysing the CNRC’s documents, I afirm that what has been understood as anthropology, was, in Aloísio’s vision, only design. Aloísio Magalhães e as políticas culturais No ano de 1979, o designer Aloísio Magalhães foi nomeado presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão oficial de preservação do patrimônio cultural no Brasil. O Iphan foi fundado em 1937, e tem sua trajetória dividida em duas fases – a ‘heróica’, que iria de 1937 até 1979, e a ‘moderna’, que inicia-se com a entrada de Aloísio Magalhães em campo. Esta divisão é amplamente aceita, tanto entre os estudiosos do patrimônio, quanto pelo próprio órgão. Dentro dessa classificação da trajetória oficial de preservação do patrimônio cultural brasileiro, a ‘fase heróica’ está vinculada a presença de intelectuais modernistas, ao patrimônio material – ‘de pedra e cal’, e a um paradigma histórico; a ‘fase moderna’ está ligada à administração de Aloísio Magalhães, que teria levado para o Iphan a preocupação com o patrimônio imaterial, e um olhar antropológico. A nomeação de Aloísio Magalhães para a presidência do Iphan foi uma decorrência do trabalho que ele vinha desenvolvendo desde 1975, na cidade de Brasília, no âmbito da pesquisa e da ação em cultura popular. O ‘olhar antropológico’ que Aloísio teria levado para o Instituto do Patrimônio, ainda segundo um consenso entre os estudiosos e o próprio órgão de preservação, teria sido gestado no período entre 1975 e 1979, no Centro Nacional de Referência Cultural. Pesquisando sobre tal órgão, e buscando compreender a gênese do novo paradigma antropológico aplicado às políticas públicas veiculadas pelo Iphan a partir da administração de Aloísio Magalhães, não encontrei menções significantes à antropologia, mas sim, ao design. Observei que o que foi tomado como um paradigma antropológico – associado às idéias de Magalhães – era, em sua concepção, uma tentativa de busca por um design propriamente nacional. O que pretendo explorar é o fato de que Aloísio Magalhães entrou para o campo das políticas culturais pensando em design, e não em antropologia. O que se passa, a meu ver, é que, talvez, a sua concepção de design fosse tal que suscitasse associações com a disciplina antropológica, que, naqueles anos da década de 1970, se disseminava e se popularizava pelo mundo, em função do contexto sócio-cultural associado à contra-cultura, e às conseqüências de todos os protestos contra a ordem geral das coisas, que eclodiram por volta de 1968. 1
  • 2. Mesmo fazendo parte de tal contexto, Aloísio Magalhães fincava pé no design, e no pensamento do que seria um design nacional, para pesquisar e pretender agir politicamente na busca do que ele acreditava ser uma saída para o desenvolvimento do país – o encontro com sua cultura, com os fazeres e as tecnologias geradas pelo homem simples, que ele denominava de ‘proto-tecnologia’, ‘tecnologia de sobrevivência’ ou ‘pré- design’. Não pretendo dizer que as idéias de Magalhães não tivessem nenhuma relação com o que se entende por antropologia. Mas que há um deslocamento entre o que se diz – e o que se entendeu – que ele fez, ou que ele pensava, e o que encontramos nos documentos escritos por ele e pela equipe do Centro. Os que falam de Aloísio e do CNRC associam suas idéias a uma perspectiva antropológica. Aloísio e seus parceiros pensavam em termos de processos culturais, de produtos e de tecnologias, falando explicitamente em termos de design. Uma coisa não nega a outra. Mas é importante investigarmos com que categorias lidam – de fato – aqueles de quem falamos. Se lermos atentamente os escritos da equipe do Centro não encontramos quase o termo antropologia. A partir de tal constatação, parti para uma investigação mais detalhada sobre o discurso de Aloísio Magalhães e da equipe do CNRC sobre as suas propostas de política cultural. Analisei as categorias e os termos encontrados nas leituras do material gerado pelo órgão, que encontrei nos arquivos da sede do Iphan, em Brasília, contrastando-os com a literatura acadêmica que comenta tal experiência. Das minhas análises, pude entender que é preciso estar atento para o que se diz, e que facilmente tomamos uma coisa por outra, neste caso, mais especificamente, design por antropologia. Se inicei uma investigação tentando compreender as vinculações de um designer com o chamado ‘olhar antropológico’, fui levada de volta ao design, pois era naquele campo que o ‘nativo’ sobre o qual eu debruçava meu olhar ancorava seu discurso e suas ações. No fim, percebi que fazia pesquisa em design, sem tê-lo pretendido. Eu, uma designer de formação, que iniciara um mestrado em antropologia, fui levada de volta ao design, e descobri, em minha pesquisa sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, um discurso sobre o design brasileiro vinculado à figura de Aloísio Magalhães a alguns designers que compartilham da visão de Aloísio, e que ainda hoje dedicam-se à profissão e à busca de um entendimento do que seja fazer design no Brasil. O Centro Nacional de Referência Cultural Em minha dissertação de mestrado, pequisei sobre o Centro Nacional de Referência Cultural, um órgão de pesquisa e ação em cultura popular, concebido em 1975 por Aloísio Magalhães, Severo Gomes e Vladimir Murtinho em Brasília. Sobre a criação de tal órgão, segundo Aloísio Magalhães, em um dos encontros onde os três informalmente discutiam sobre o país, o Ministro teria lançado a questão: ‘Por que o produto brasileiro não tinha força própria?’. Nas palavras do designer, tudo começou quando o Ministro Severo Gomes me perguntou o que poderia ser feito para dar uma maior identidade ao produto brasileiro. Ora, uma pergunta assim só poderia dar ensejo a uma investigação cuidadosa. E da investigação à constatação de que não se conhecia esse produto cultural brasileiro foi um passo. E passo óbvio, pois se você observar bem verá que não há uma maneira sistemática de se conhecer esse produto cultural. Não existem indicadores catalogados e sistematizados. E os indicadores são peculiares a qualquer realidade cultural. Precisam, portanto, ser conhecidos (Magalhães, 1976a: 02). Inspirado pelas discussões sobre o produto brasileiro, o grupo levou tais questões adiante, e em função do posicionamento político de Severo Gomes e Vladimir Murtinho, foi possível a viabilização do órgão. Inicialmente, a proposta de criação do CNRC estava vinculada ao projeto que Murtinho desenvolvia para a implantação de uma infra-estrutura cultural em Brasília. Esse projeto previa uma biblioteca central, um museu da civilização brasileira e um organismo dedicado ao estudo dos problemas da cultura nacional. 2
  • 3. Em fevereiro de 1975, a comissão interministerial responsável pela implementação de tal infra-estrutura estabeleceu um grupo de trabalho que tinha por objetivo averiguar a viabilidade de criação de um organismo capaz de estabelecer um sistema referencial básico, a ser empregado na descrição e na análise da dinâmica cultural brasileira. Financiado pela Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio, instalado em um espaço cedido pela Universidade de Brasília e sob coordenação de Aloísio Magalhães, o grupo iniciou suas atividades em 01 de junho de 1975. Em um primeiro momento, o CNRC propunha-se a desenvolver um banco de dados – ou sistema de indexação - sobre a cultura brasileira. Diferentemente de um museu, tal órgão não colecionaria objetos, mas, sim, ‘peculiaridades relevantes’ da produção cultural nacional - não o objeto, mas a referência a ele. Para a equipe do Centro, ‘referenciar’ significava considerar o produto focalizado enquanto processo - em sua dinâmica de produção e de inter-relação com os contextos local e nacional. Tal projeto surgiu a partir da preocupação do grupo com o que Aloísio Magalhães definia como ‘achatamento do mundo’, que seria conseqüência do processo acelerado de industrialização por que passava o mundo ocidental – em suas palavras, “uma espécie de fastio, monotonia, achatamento de valores causado pelo próprio processo de industrialização muito acelerado e sofisticado. Enfim, o mundo começou a ficar chato” (Magalhães, 1997: 115). Segundo Magalhães, tal processo levava as culturas locais a perderem suas características próprias. Assim, sua maior preocupação era que “determinados ingredientes vivos, dinâmicos, passíveis de serem observados dentro do processo histórico, fossem abafados pela presença atuante de outros enfoques” (1997: 34). Por essas razões, Magalhães, Gomes e Murtinho investiram na criação de um órgão que tinha por objetivo último produzir, no Brasil, alternativas para o processo de achatamento (ou erosão) cultural, que, para eles, ameaçava a sobrevivência dos processos culturais ‘espontâneos’. Para os criadores do CNRC, tais alternativas se evidenciariam a partir da consideração e dinamização das peculiaridades criativas de cada produção cultural localmente produzida. Partindo de tais constatações, o órgão pretendia ‘captar a dinâmica dos processos culturais’ para disseminá-la pelo país como um todo, fazendo, dessa forma, com que um processo cultural alimentasse outro, e assim por diante. Para o os criadores do Centro, somente desse modo – criando-se uma ‘rede de referências’ da cultura brasileira - seria possível evitar a descaracterização e extinção das culturas locais e promover, no país, um desenvolvimento verdadeiramente autônomo. Em 01 de agosto de 1976, foi assinado um convênio multi-institucional, viabilizando a estruturação definitiva do CNRC. Entre as instituições integrantes do convênio estavam a Secretaria de Planejamento da Presidência da República, a Caixa Econômica Federal, o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da Educação e Cultura, o Ministério do Interior, o Ministério das Relações Exteriores, a Fundação Universidade de Brasília e a Fundação Cultural do Distrito Federal. Em 1978, foi assinado um Termo Aditivo ao Convênio inicial, em que se integraram o Banco do Brasil e o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O órgão, organizado em quatro programas de estudo (‘Mapeamento do Artesanato Brasileiro’, ‘Levantamentos Sócio-culturais’, ‘História da Ciência e da Tecnologia no Brasil’ e ‘Levantamento de Documentação sobre o Brasil’), buscava desenvolver projetos em diversas regiões do país, cobrindo uma vasta gama de processos culturais, com maior ou menor grau de complexidade, a fim de levantar uma amostragem que fosse representativa da produção cultural brasileira. Os projetos poderiam surgir a partir de idéias do grupo, mas também, e preferencialmente, deveriam vir de fora. Para a equipe do CNRC, o ideal seria que os projetos fossem propostos pelos próprios produtores de cultura, pois, em sua concepção, somente dessa forma se alcançaria uma amostragem razoável e espontânea do ‘fazer brasileiro’. Em quatro anos de trabalho, foram desenvolvidos 27 projetos. Em 1978, em função da proximidade do fim do Termo Aditivo ao Convênio de 1976, a equipe passou a discutir possibilidades para a institucionalização 3
  • 4. definitiva do CNRC. Dentre as alternativas levantadas, surgiu a possibilidade de fusão com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão oficial de preservação do patrimônio no país, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura. Essa opção consolidou-se como definitiva quando Aloísio Magalhães foi convidado a presidir o Iphan, em 1979. Em sua gestão, realizou-se a reforma institucional do Instituto, que se fundiu ao CNRC e ao PCH (Programa de Reconstrução das Cidades Históricas), e, por fim, se desmembrou em duas instituições: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Fundação Nacional Pró- Memória, que passaram a operar sob a sigla de Sphan/Pró-Memória. Algumas premissas do órgão: 1. O relacionamento entre cultura e desenvolvimento “Sem respeito à cultura, não se cria desenvolvimento” (Magalhães, 1978: 02). A partir de uma tal constatação, o CNRC vinculou a idéia de indexar e referenciar a cultura brasileira ao desenvolvimento. A questão que se colocava como premissa para a criação do órgão era: se o Brasil é um país com uma cultura nascente, em que medida – diante “da aceleração do processo de desenvolvimento e do crescimento dos meios de comunicação de massa” (CNRC, 1975: 03) – estariam sendo criadas ‘condições adequadas para a sua evolução’? Os criadores do Centro teriam ‘diagnosticado’ uma ameaça à sobrevivência do ‘meio cultural brasileiro’, e, em conseqüência, se propunham a preservar as áreas da cultura nacional que, em sua opinião, estavam mais expostas à descaracterização e à homogeneização impostas pelo ‘acelerado’ processo de desenvolvimento sócio-econômico. Acreditava-se que conhecendo a dinâmica das práticas culturais seria possível intervir positiva e adequadamente na realidade brasileira, incentivando um desenvolvimento baseado em elementos da própria cultura, em vez de um formado por modelos impostos externamente. Para Aloísio Magalhães e os pesquisadores do Centro, não bastava “relacionar a cultura apenas com as artes e humanidades ou ligar o termo desenvolvimento unicamente a questões econômicas e sociais. No mundo real ambos os conceitos estão inter-relacionados, pois a cultura representa um dado indispensável na busca de soluções para os dilemas políticos, econômicos e sociais” (CNRC, 1979a: 03). Segundo essa visão, o desenvolvimento acelerado estaria destruindo as culturas locais, através de um processo denominado de ‘erosão cultural’. Em nome da produtividade, as pequenas comunidades estariam se afastando de suas bases culturais, o que, em vez de servir ao seu desenvolvimento, as estaria impedindo de desenvolverem-se plena e verdadeiramente. A saída para tal dilema estaria na cultura – ‘a força coesiva básica de uma nação’ (1979a: idem). Somente um projeto de desenvolvimento que levasse em conta a dinâmica de produção e reprodução cultural local poderia impedir a ‘erosão’ das culturas. Para Aloísio Magalhães e o CNRC, o desenvolvimento só aconteceria de fato se estivesse atrelado à cultura. Em função de tais considerações, o órgão pregava o ‘desenvolvimento autóctone’, que deveria acontecer não ‘de cima para baixo’, mas ‘de baixo para cima’. Nas palavras de Magalhães, “acreditamos que as políticas econômica e tecnológica do país necessitam re-inserir os bens culturais nacionais para concretizarmos um desenvolvimento autônomo” (Magalhães, 1997: 60). O CNRC deveria, então, trabalhar no sentido de criar alternativas para que os bens culturais nacionais pudessem participar como instrumentos no processo de desenvolvimento. Para Severo Gomes, a preservação ‘das nossas referências culturais’ é um dos principais problemas a serem enfrentados “quando se atravessa um período de rápido crescimento econômico” (Gomes, 1982: 02), uma vez que a transferência de um modelo estrangeiro de desenvolvimento de um país para outro implicaria necessariamente em graves desequilíbrios culturais. Gomes não rejeita a idéia de interdependência entre os países, mas afirma que é preciso compatibilizar uma estratégia global de desenvolvimento com os interesses nacionais (1982: idem), através do estabelecimento de uma ‘interdependência horizontal’. Para ele, é preciso 4
  • 5. que as políticas de desenvolvimento estejam vinculadas não somente às referências do crescimento da economia, mas, também, aos aspectos qualitativos da vida de uma cultura. Afinal, “uma política de desenvolvimento econômico não pode ser pensada isoladamente. Não pode ser separada de uma política cultural e social, da compreensão de todo o universo cultural e humanístico da nação” (1982: 01). Assim, o CNRC teria um “papel ativo no sentido de coordenar esforços na obtenção dos indicadores culturais e ecológicos de uma dada região a fim de melhor caracterizá-la e definir o sentido de sua evolução num certo momento” (CNRC, 1976: 08), na medida em que a atuação do órgão contribuiria para impedir a aculturação e a descaracterização das culturas regionais, apontando para a possibilidade de um desenvolvimento ‘mais de acordo’ com as características próprias de cada região. Confirmando essa posição, no Relatório Técnico n. 10, afirma-se que “uma das funções precípuas do CNRC é exatamente a do exame de condições adequadas para o acoplamento fértil das bases culturais do país com seu desenvolvimento científico e tecnológico” (1976: 09). Aloísio Magalhães, Severo Gomes e Vladimir Murtinho partiram da constatação de que a mera importação de modelos tecnológicos oriundos do Hemisfério Norte não estaria levando o Brasil a se desenvolver com autonomia – ao contrário, o desenvolvimento que aparentemente acontecera, a partir da segunda metade do século 20, era um desenvolvimento dependente. Esse modelo não satisfazia os ideais do grupo, que com a criação do CNRC, buscava intervir em tal processo, encontrando nos fazeres próprios ao Brasil saídas para o impasse nacional, no que se referia ao seu desenvolvimento. 2. Dinâmica cultural e tecnologia patrimonial O CNRC lidava não só com cultura, mas, também, com tecnologia. A questão que se colocava era: que tecnologia? Se, como afirma Aloísio Magalhães, “em todos os projetos do CNRC há tecnologia” (Magalhães, 1997: 232), e se, nas palavras do designer, “a tecnologia em si não é danosa. A tecnologia em si mesma é maravilhosa” (1997: 98), a questão residia no fato de que “o mal é quando essa tecnologia, que em si mesma é neutra, está a serviço de uma persuasão, de uma insinuação negativa” (1997: idem). Assim, o CNRC parte para a investigação sobre outros modos de se construir tecnologia – algo que foi chamado de ‘tecnologia patrimonial’. Fausto Alvim Jr. afirma que ‘tecnologia patrimonial’, como era entendida pelo CNRC, remete ao ‘sentido amplo do termo’, tal como fora proposto por Bell (1979): ‘indigenous technical knowledge’, ou, como traduzido por Alvim Jr., ‘conhecimento técnico imerso e enraizado em grupos sociais específicos’ (Alvim Jr, 1979a: 01), algo que Aloísio Magalhães caracterizava como ‘tecnologia de sobrevivência’ (Magalhães, 1997: 232). Para o designer, os ‘homens do interior’ teriam encontrado, ‘intuitivamente’, soluções de tecnologias alternativas inconvencionais, que não estariam sendo consideradas pelo país. Esses seriam “outros valores que, na proposta do CNRC, poderiam ser manipulados, trazidos à tona e adaptados a um novo comportamento industrial” (Magalhães, 1975). Tratava-se, assim, de uma vasta gama de processos de produção cultural que “por estarem inseridos na dinâmica viva do cotidiano não são considerados como (produtores de) bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômica e tecnológica” (Magalhães, s/d: 05). Algo que Aloísio Magalhães também definiu como ‘prototecnologia’ (Magalhães, 1976b), ou ‘pré-design’. “Diria, de início, que, na realidade, dentro dos padrões ortodoxos, não existe artesanato no Brasil. O que existe é uma disponibilidade imensa para o fazer. É possível, até, caracterizar-se essa alta inventividade como uma atitude que se poderia chamar de pré-design” (Magalhães, 1977b: 131). As ‘tecnologias de sobrevivência’ (Magalhães, 1997: 232) que os ‘homens do interior’ encontravam ‘intuitivamente’ - soluções de tecnologias alternativas inconvencionais, não só eram desconsideradas, como reprimidas por uma “imposição da estrutura científica que nos é em grande parte estranha” (D’Ambrosio, 5
  • 6. 1976: 04). O que o CNRC propõe, então, é que as ‘tecnologias de sobrevivência’ e os modos inventivos não hegemônicos sejam considerados e utilizados como instrumentos aptos a capacitar o país a propor novos padrões de desenvolvimento. Magalhães ironiza: “Evidente que elas [as tecnologias de sobrevivência] não vão resolver o balanço de pagamentos nacional, mas que vão melhorar o sujeito lá de baixo, quer dizer, as bases, vão” (Magalhães, 1997: 233). No CNRC, as ditas ‘tecnologias patrimoniais’ eram tomadas como elementos das estruturas vivas de cultura das comunidades (Alvim Jr, 1979a: 02). Logo, não poderiam ser consideradas desvinculadas do seu contexto de produção – para compreender o enraizamento de uma técnica, processo ou saber dentro de uma cultura específica, seria necessário, então, que fosse destrinchado o contexto sócio-cultural em que tal processo ocorre. 3. A cultura e seu contexto O entendimento de que a cultura só pode ser apreendida se cotejada com o contexto sócio-econômico- cultural no qual ela se insere, é algo que Fausto Alvim Jr. denomina de uma ‘visão gestáltica’ (Alvim Jr., 1979b: 03) ou ‘ecológica’ (1979b: 06) dos fenômenos culturais’. Nessa visão, que considera todo o processo de produção cultural, e não só os seus produtos, o contexto que envolve a dinâmica cultural é um fator fundamental para o entendimento das trajetórias dos saberes e fazeres locais - objeto de interesse dos projetos do CNRC. Assim, “atributos como originalidade, tipicidade ou o artístico da arte popular constituem-se em reflexos da relação íntima dos processos e dos produtos artesanais com os peculiares contextos culturais em que se desenvolvem (CNRC, 1979b: 05). Dessa forma, se o Centro buscava encontrar alternativas para o desenvolvimento do produto cultural brasileiro, respeitando suas peculiaridades, acreditava que tal feito só seria possível se houvesse um conhecimento profundo da realidade cultural do país. Então, realizar uma pesquisa sobre algum saber específico implicava, necessariamente, em observar e compreender todo o ambiente que circundava a produção e a reprodução de tal fazer. Ou seja, para o CNRC, conhecer os processos culturais implicaria necessariamente em conhecer as comunidades (Alvim Jr., 1979b: 06). Aliás, não só conhecê-las, mas trabalhar com elas, considerando os produtores de cultura como sujeitos que tinham o que ensinar, tanto aos pesquisadores, quanto ao país. Assim, os produtores culturais locais, que no modelo ortodoxo de desenvolvimento eram desvalorizados e forçados a abandonarem os saberes de que eram herdeiros ou criadores, na dinâmica de trabalho do CNRC, eram tratados de uma nova forma, chamados a contribuir, exatamente porque detinham um saber ‘enraizado’ só conhecido por eles. 4. O design como responsabilidade social Em suas pesquisas, o CNRC buscava investigar e dinamizar a ‘inventiva brasileira’, que traria, em seu modo peculiar de ser, alternativas para o processo de achatamento cultural que o mundo ocidental sofria. Tal ‘inventiva’ estaria depositada no ‘homem do interior’, o chamado artesão – caracterização discutida por Aloísio Magalhães quando se trata de sua aplicação à realidade brasileira. Afinal, ele acreditava que “o artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do que propriamente um artesão no sentido clássico” (Magalhães, 1997: 181). Dessa forma, considerando os produtores dos saberes locais específicos como ‘designers’ – criadores, e valorizando as soluções criativas de que eles se valiam para desenvolver as tais ‘tecnologias de sobrevivência’ ou ‘pré-design’, o CNRC não deixava de lidar com questões da área de origem de Aloísio Magalhães – o design. Afinal, o que seria a proposta do Centro se não a pesquisa por soluções originais para o problema da fragilidade do produto brasileiro? 6
  • 7. Aloísio, Severo Gomes e Vladimir Murtinho partiram da constatação que a mera importação de modelos tecnológicos oriundos do Hemisfério Norte não estaria levando o Brasil a se desenvolver com autonomia – ao contrário, o desenvolvimento que aparentemente acontecera, a partir da segunda metade do século 20, era um desenvolvimento dependente. Esse modelo não satisfazia os ideais do grupo, que com a criação do CNRC, buscava intervir em tal processo, encontrando nas raízes dos fazeres próprios ao Brasil saídas para o impasse nacional no que se referia ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, Aloísio Magalhães confessa: “não é sem razão que, depois de 15 anos de trabalho como designer no Brasil, eu tenha me voltado para o projeto do CNRC, que considero como projeto de design. Pois se conseguirmos detectar, ao longo do espaço brasileiro, as atividades artesanais e influenciá-las, estaremos criando um design novo, o design brasileiro” (Magalhães, 1977a). Se o objetivo do Centro era ‘construir um desenho projetivo para o Brasil’, o modo como Aloísio Magalhães entendia a profissão era algo vital para o estabelecimento dos princípios de atuação do CNRC. Afinal, “o trabalho do design visa a compatibilizar duas áreas de atuação. Uma é o conhecimento tecnológico, extremamente racional. A outra é a criação. De um lado você tem a razão, do outro a intuição. No momento em que harmoniza estes dois pólos, você caminha no sentido de uma boa solução. Em outras palavras, não há bom design só com a metodologia, como não há bom design só com intuição. É preciso a junção das duas” (Magalhães, 1977a). Assim como a ‘boa solução’ em design surgiria da compatibilização entre metodologia e intuição, então a ‘boa solução’ para o país deveria vir no mesmo caminho, ou seja, sempre considerando as soluções peculiares que o ‘fazer’ nacional desenvolvia. 5. Aplicações da Antropologia Nos documentos encontrados no arquivo, não aparecem muitas referências à Antropologia. No entanto, analisando o trabalho realizado pelo CNRC, nota-se que termos e princípios próprios da disciplina circulavam entre os pesquisadores, sendo aplicados, de modo informal, nos projetos. Os documentos do Centro mencionam ‘pesquisa de campo’, ‘observação participante’, ‘contexto’, conceitos que fazem parte do vocabulário antropológico. Apesar de tais conceitos inspirarem o trabalho do Centro, dos documentos encontrados no arquivo, apenas um faz referência direta à Antropologia. No Relatório Técnico n. 20, o antropólogo George de Cerqueira Leite Zarur sugere algumas possíveis “aplicações da antropologia no caso de SUAPE em Pernambuco”. Nesse texto, o pesquisador introduz algumas “temáticas antropológicas que poderão servir de amarras teóricas no pensar sobre o problema” (Zarur, 1977: 01). Desse modo, Zarur propõe explicitamente o desenvolvimento de aplicações da Antropologia no contexto brasileiro (1977: 12), por considerar que a utilização de ‘temáticas antropológicas’ com um ‘interesse aplicado’ enriqueceriam tanto a disciplina quanto os projetos onde tais ‘temáticas’ se aplicassem. Se a Antropologia não é mencionada extensivamente, isso se deve ao posicionamento assumido pelo CNRC, no que se refere à aplicação de metodologias prévias em suas pesquisas. No entanto, acredito que havia uma inspiração antropológica, que, mesmo não assumida, balizava muitos dos princípios orientadores do trabalho no Centro. Trata-se, então, de uma Antropologia aplicada a um projeto de desenvolvimento - em que a atitude projetiva, característica do design, subjaz às experiências e propostas? Se o CNRC propositadamente se distancia de qualquer disciplina, não podemos deixar de observar, no entanto, a proximidade de suas propostas com a atividade projetiva própria do design, e também com a perspectiva antropológica, entre outras. Enfim, nem somente antropologia, nem somente design, mas, enfim, de tudo um pouco. Bibliografia ALVIM JR., Fausto. Dinâmica cultural e tecnologias patrimoniais. In: Seminário de Tecnologias Patrimoniais. Documentos básicos. CNRC: Brasília, 1979a. 7
  • 8. _____. Da consultoria técnica para o CNRC. Relatório Primeiro, partes 1 e 2, 09/02/1979b. CNRC. Coordenação do Projeto. O Centro Nacional de Referência Cultural – idéias básicas em sua instalação. In: Relatório Técnico n. 1. Brasília: CNRC, 29/07/1975. _____. Comissões Especializadas e Coordenação do Projeto. Propostas resultantes do Encontro para debate dos Efeitos produzidos pelos Centros Industriais nas comunidades localizadas em suas áreas de influência (Maceió, 17 a 19 de maio de 1976). In: Relatório Técnico n. 10. Brasília: CNRC, 28/05/1976a. _____. Coordenação do Grupo de Trabalho para o Projeto. O Grupo de Trabalho para o Projeto do Centro Nacional de Referência Cultural, junho de 1975 a maio de 1976 – Relatório Parcial sobre as Atividades e Conceitos Desenvolvidos. In: Relatório Técnico n. 12. Brasília: CNRC, 22/06/1976b. _____. Quatro anos de trabalho. Brasília: CNRC, 1979a. _____. Bases para um trabalho de artesanato hoje. Brasília: CNRC, 1979b. D’AMBROSIO, Ubiratan. Tradição e criatividade em ciência. In: Relatório Técnico n. 15. Brasília: CNRC, 12/07/1976. GOMES, Severo. Desenvolvimento industrial e trópico. In: MOTTA, Roberto. Anais do Seminário de Tropicologia (1975). Recife:. Recife: Fundaj, Massangana, 1982, p.22-26. MAGALHÃES, Aloísio. Bens culturais: instrumentos para um desenvolvimento harmonioso. Brasília: CNRC, s/d. ______. In: As novas funções do design brasileiro. Visão: 08/12/1975, p. 96. ______. In: Aloísio Magalhães e Fausto Alvim – em busca dos elos perdidos. Brasília: Jornal de Brasília, 18/01/1976a, p. 02. ______. In: Pensando o Brasil. Brasília: Correio Braziliense, 03/10/1976b, Segundo Caderno, p.05. ______. In: O produto brasileiro começa a ter desenhada a sua fisionomia. Rio de Janeiro: O Globo, 05/01/1977a, p.41. ______. Da invenção e do fazer – reflexão sobre o artesanato e o homem. In: Separata da Revista Pernambucana de Desenvolvimento, v.4, n.1, jan/jun 1977b. ______. In: Importar tecnologia sem virar cidadão de segunda classe. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, Caderno B, 07/09/1978, p. 05. ______. E Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Roberto Marinho, 1997 (1985). ZARUR, Georges. Aplicações da antropologia no caso de SUAPE em Pernambuco. In: Relatório Técnico n. 20. Brasília: CNRC, 08/07/1977. 8