Este documento discute como a televisão brasileira participa da articulação das identidades culturais na fronteira entre o Brasil e países vizinhos como o Paraguai. Apresenta a perspectiva teórica dos Estudos Culturais e da Antropologia Cultural que guiaram a pesquisa. Também analisa como as representações televisivas são apropriadas de forma diferente por brasileiros e paraguaios e como podem reforçar estereótipos.
Cópia de AULA 2- ENSINO FUNDAMENTAL ANOS INICIAIS - LÍNGUA PORTUGUESA.pptx
Fichamento - Roberta Brandalise
1. 1
UNIVERSIDADE DE SOROCABA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA
FICHAMENTO: BRANDALISE, Roberta. A Televisão Brasileira nas
Fronteiras do Brasil com o Paraguai, a Argentina e o Uruguai: um
estudo sobre como as Representações Televisivas participam da
articulação das Identidades Culturais no cotidiano fronteiriço.
Universidade de São Paulo, 2011.
PROFESSOR: Professor Doutor Paulo Celso da Silva
ALUNO: Luiz Guilherme Leite Amaral. E-mail: luiz.amaral.mestrado@gmail.com
p. 16 Há dez anos, quando surgiu a oportunidade para contribuir para o
campo da Comunicação por meio do trabalho de pesquisa, entramos
em contato com as obras de teóricos contemporâneos da
Comunicação – dos Estudos Culturais Britânicos e Latinos, como
Stuart Hall e Jesús Martin-Barbero. A partir destas leituras,
aprendemos a atribuir sentido para a diversidade cultural registrada
em nossas memórias e decidimos estudar a participação dos meios de
comunicação de massa, tal como a televisão, no contexto fronteiriço.
p. 16-17 No esforço de compreender os processos de comunicação existentes
nas fronteiras, plasmados em meio a processos culturais e sociais mais
abrangentes, seguimos a mesma orientação teórico-metodológica dos
Estudos Culturais Britânicos e Latinos, enriquecida pelo nosso
envolvimento com o ensino de Antropologia Cultural.
p. 17 Essa perspectiva foi fundamental para “situar-nos” (Geertz, 1978)
nesses contextos específicos, a fim de identificar as estruturas de
2. 2
significado em curso e suas bases sociais de importância por meio de
uma “descrição densa” (Geertz, 1978). Do mesmo modo como a
noção de “interpretação das culturas” de Geertz (1978) nos iluminou,
também a teoria de Lévi-Strauss (1970) sobre a “colaboração das
culturas” teimou em se fazer presente ao longo da pesquisa.
p. 17 O objetivo geral desta pesquisa é aprender sobre o modo como a
televisão brasileira participa da articulação das identidades culturais
no cotidiano fronteiriço, estudando os casos de Ciudad del Este
(Paraguai)-Foz do Iguaçu (Brasil), Paso de Los Libres (Argentina)-
Uruguaiana (Brasil) e Rivera (Uruguai)-Santana do Livramento
(Brasil).
p. 18 Compreendemos que a proposta contemporânea de Jesús Martin-
Barbero para estudar o objeto da comunicação por meio das
“mediações culturais” (Martín-Barbero, 2001), bem como a
abordagem contemporânea de Stuart Hall sobre o estudo das
“identidades culturais” (Hall, 1999), são convergentes com a
perspectiva antropológica, uma vez que ela também considera o
universo simbólico indissociável da prática social, operando no
sentido de dissolver a separação dessas instâncias para focalizar sua
inter-relação dinâmica.
p. 18 Elas não reduzem, portanto, os intrincados interesses e conflitos de
diferentes grupos ou categorias sociais, ou mesmo a participação da
televisão dentro desses contextos, a uma explicação unívoca, seja ela
econômica, política ou de outra natureza, mas incorporam todos
esses aspectos à análise, na medida em que são relevantes para
compreender o objeto de estudo.
p. 18 Conforme Lopes (2002), a pesquisa qualitativa é o laboratório das
Ciências Humanas. Nesse tipo de trabalho não sabemos quantas
pessoas procedem de determinada forma, mas sabemos que tal
3. 3
procedimento existe.
p. 153 Os brasileiros utilizaram a memória da vivência no campo para
distinguir o modo de vida rural do da urbana, sem no entanto
considerar um deles superior ao outro. Apenas estabeleceram
relações de identidade e diferença, por exemplo quando
especificaram que na vida do campo era mais fácil reunir a família,
sem todavia esquecer que ela também era mais sofrida, se comparada
com a que ocorre na cidade.
p. 154 Já́ para os paraguaios o universo simbólico relativo à ruralidade tem a
ver com a manutenção das tradições guaranis de cultivo da terra e
aciona a identidade nacional, uma vez que a vida no campo
representa um espaço de luta contra os estrangeiros ali estabelecidos.
A interferência estrangeira mais recente no meio rural paraguaio é
exercida por brasileiros. E é por isso que eles podem ser
representados pelos paraguaios como “imperialistas”, aqueles contra
quem é preciso proteger-se para não subsumir, o que determina o
acionamento da identidade nacional. Nesse sentido, para os
paraguaios a ruralidade constitui um universo simbólico que
configura um afastamento em relação aos brasileiros, havendo a
necessidade de se sublinhar os limites. Porém, também é possível
perceber a identificação de paraguaios em relação aos brasileiros,
uma vez que estes também podem representar para aqueles os
“irmãos latinos” – nesse caso, é a solidariedade latina que alimenta o
uso do termo.
p. 155 Os brasileiros não utilizam essa representação televisiva porque não
se sentem ameaçados pelos paraguaios; suas preocupações giram em
torno de outros aspectos como a mecanização da produção agrícola e
as relações entre o rural e o urbano. Já́ os paraguaios apropriam-se da
representação televisiva em torno da questão das disputas de terras
4. 4
para posicionarem-se em relação ao ponto de vista brasileiro. Eles
utilizam o discurso televisivo porque se sentem ameaçados pelos
brasileiros dentro de seu próprio território e, dessa forma, a televisão
acaba participando do jogo entre as identidades culturais naquele
contexto.
p. 168-169 Este contexto de diversidade étnica em que paraguaios e brasileiros
estão imersos medeia o modo como os entrevistados se apropriam do
discurso televisivo. Primeiro, reconhecendo que as representações
televisivas não dão conta da complexidade e heterogeneidade que
experimentam cotidianamente na fronteira. Segundo, vendo nas
narrativas ficcionais brasileiras pouca representação da diversidade
étnica, mesmo em se tratando da diversidade da própria sociedade
brasileira – isso chama a atenção de brasileiros e paraguaios, ainda
que façam usos diferentes dela. No caso dos brasileiros, a diversidade
étnica representada na novela é utilizada para reiterar a relação de
alteridade entre os descendentes de imigrantes europeus da fronteira
e os descendentes de africanos, também brasileiros. No caso dos
paraguaios, a telenovela foi utilizada como forma de aprendizado
informal acerca da história do Brasil. E, terceiro, o fato de os
paraguaios se sentirem representados quando os guaranis são
incluídos na narrativa tele jornalística, ao passo que os brasileiros
sequer mencionam o tema, demonstra que os usos e apropriações das
representações televisivas depende do jogo identitário em que os
consumidores estão imersos.
p. 180 Embora as apropriações e usos do discurso televisivo variem em
diferentes situações entre paraguaios e brasileiros, os entrevistados
de ambas as nacionalidades entendem que as representações
televisivas não são inverdades. Contudo, compreendemos que a
reiteração dessa lógica na formação discursiva da televisão brasileira
5. 5
sobre a fronteira e o Paraguai é muitas vezes pouco contextualizada
e, no jogo identitário, parece participar negativamente da
conformação da autoestima do povo paraguaio e reforçar, no
imaginário social brasileiro, um estereótipo negativo em relação aos
paraguaios. Ressaltamos ainda que o estilo de vida brasileiro
retratado nas narrativas ficcionais brasileiras, consumidas pelos
paraguaios, reforçam a representação de que seus vizinhos de
território tem mais poder aquisitivo do que eles e povoam o
imaginário de paraguaios que almejam a distinção social – que muitas
vezes a buscam por meio do consumo de mercadorias na cidade
brasileira, participando assim do espelhamento constante do jogo
identitário fronteiriço.
p. 214 O cenário político contemporâneo, no entanto, ainda não tem
colaborado para reforçar a identidade nacional. Pelo contrário, a
figura do atual presidente da república, que simbolizava a
“esperança” (Lúcia, 45; Gonzalo, 38; Augusto, 47), passou a
representar a “traição” (Augusto, 47) de valores nacionais – como os
valores familiares e os religiosos partilhados na cultura paraguaia.
Contudo, ainda há “esperança” de que o presidente anti-herói
“compense” (Mário, 22) a “dor que causou” (José, 56), trabalhando
pelo bem-estar nacional, como de fato tem tentado fazer ao batalhar
a renegociação do acordo que envolve a Usina de Itaipu, em
benefício dos paraguaios.
p. 215 No imaginário social brasileiro, os paraguaios estão associados à
desonestidade, sobretudo pela fama de “falsificadores”. O estereótipo
foi construído historicamente, é reproduzido em larga escala na
televisão brasileira (como no programa de humor que analisamos) e
participa da construção da identidade que os brasileiros atribuem aos
6. 6
paraguaios. Isso também certamente não corrobora para o reforço da
identidade nacional paraguaia, bem como do da identidade
fronteiriça, uma vez que afeta negativamente a autoestima do povo
paraguaio e, muitas vezes, no cotidiano fronteiriço, alimenta relações
de preconceito do brasileiro em relação ao paraguaio, tal como
desenvolveremos mais adiante.
p. 226 De modo geral, brasileiros e paraguaios resistem às representações
televisivas brasileiras que retratam constantemente a região ou o
Paraguai como um espaço em que “as leis não parecem valer”
(conforme o paraguaio Gonzalo, 38) ou como “uma zona de
operações ilegais, bastante contrabando e até tráfico de drogas, de
armas (...)” (conforme o brasileiro Adilson, 58), que “sempre aparece
quando alguém tem que fugir do país” (Paula, brasileira, 26) e
“aparece como sinônimo de falso, desonesto” (Diego, brasileiro, 23)
ou “lugar de crime, de criminoso” (Mayara, paraguaia, 37).
p. 253 Compreendemos que essas narrativas televisivas participam do jogo
identitário fronteiriço da seguinte forma. Há mais de duas décadas, as
representações televisivas vêm reiterando um estereótipo que, na
verdade, foi construído anteriormente, uma vez que, como vimos,
fazem parte da identidade fronteiriça as relações comerciais que
podem ser caracterizadas como de contrabando, embora os próprios
fronteiriços repudiem essa atividade quando realizada em larga
escala e para benefício de estranhos ou não fronteiriços. O que
acontece é que, apesar de ocorrerem outras referências a respeito do
Paraguai ou da região fronteiriça nas narrativas televisivas, as
relacionadas à ilegalidade são mais frequentes e os crimes retratados
têm se tornado cada vez mais graves. E ainda assim, quando surgem
outras representações, poucas delas contam algo de positivo sobre o
7. 7
povo ou a região – são ressaltados os aspectos negativos – e elas
dificilmente saem do plano do estereótipo.
p. 253-254 Por fim, compreendemos ainda que as representações televisivas que
envolvem atividades ilegais não colaboram para o reforço da
identidade fronteiriça porque é comum serem utilizadas para
alimentar relações preconceituosas e estigmatizantes, dos brasileiros
em relação aos paraguaios. Ainda assim, observamos que mesmo
nessas situações, a solidariedade fronteiriça não chega a desaparecer,
permanece o interesse comum de cultivar a identidade regional
associada a sentidos positivos. Até porque, os mesmos brasileiros
fronteiriços que, por vezes, atribuem aos paraguaios o sentido de
desonestidade, temem que eles mesmos sejam caracterizados dessa
forma pelo restante do povo brasileiro, simplesmente, pelo fato de
viverem na fronteira Ciudad del Este-Foz do Iguaçu.
p. 265 É relevante apontar ainda que embora sejam diversas as apropriações
e usos da ficção televisiva seriada brasileira no contexto fronteiriço, o
consumo comum da telenovela gera sociabilidade entre paraguaios e
brasileiros, é pauta de diálogos no cotidiano e participa da memória
coletiva dos fronteiriços. Nesse sentido, podemos dizer que a
telenovela brasileira aproxima paraguaios e brasileiros, exceto
quando ela constrói sua narrativa utilizando estereótipos negativos
sobre os paraguaios.
p. 324 Embora ao longo de nosso trabalho de campo não tenham surgido
informações sobre práticas semelhantes por parte do exército
brasileiro em Uruguaiana, é importante apontar que, por estar
localizada numa fronteira quase que equidistante de Porto Alegre,
Buenos Aires, Montevideo e Assunción, desde a sua fundação a
8. 8
cidade foi planejada para servir ao Brasil como um ponto estratégico
comercial e militar. Para servir a fins militares, por exemplo, quase
que todas as suas ruas foram construídas de modo retilíneo e são
largas como se fossem avenidas – a fim de permitirem a passagem de
tanques de guerra se necessário, tal como levantamos em nossos
estudos anteriores (2002 e 2006) –, bem como as quadras da região
urbana da cidade são padronizadas em suas medidas, com 110 metros
quadrados. Interessante é que a cidade fundada pelos farroupilhas foi
planejada desse modo ainda no século XIX, sendo a primeira do
Brasil a ser projetada com essas características.
p. 235 De acordo com o que compreendemos, essas representações
televisivas colaboram para gerar distanciamentos que perpassam as
relações argentino-brasileiras nessa fronteira em todas as suas
dimensões, inclusive em relação aos aspectos que abordamos nesse
estudo. Por outro lado, os fronteiriços apontaram como positiva a
representação das relações entre brasileiros e argentinos nas
narrativas ficcionais brasileiras. Tal como compreendemos,
principalmente por meio da caracterização positiva do povo
argentino ou da Argentina, as narrativas ficcionais colaboram para
gerar aproximações nas relações sociais cotidianas inter-fronteiriças.
p. 236 Entre os inúmeros exemplos mencionados pela nossa amostra, nos
quais a televisão brasileira sublinha a rivalidade entre o Brasil e a
Argentina, abordaremos as disputas políticas e econômicas entre
esses países, especialmente retratadas nas narrativas noticiosas sobre
os desacordos do Mercosul. Apontaremos também exceções do
telejornalismo brasileiro a esse tipo de representação. Trataremos
ainda de representações televisivas em que essa rixa é construída a
partir do futebol. E apresentaremos exemplos em que essa rivalidade
9. 9
é explorada na propaganda de televisão.
p. 338 Os argentinos apontaram ainda que a rivalidade pode ser “saudável”
para os negócios em alguma medida, mas que no caso das relações
argentino- brasileiras “mais prejudica do que ajuda”, principalmente
esse tipo de “golpe” que um país desfere no outro, e essa rivalidade
entre brasileiros e argentinos também foi caracterizada como uma
“irracionalidade”.
p. 339 É válido registrar ainda que, uma década depois de iniciarmos nossos
estudos na fronteira Uruguaiana-Paso de los Libres, compreendemos
que a participação das narrativas noticiosas da televisão brasileira no
cotidiano fronteiriço ainda ocorre preponderantemente por meio da
construção de representações em que o Brasil e a Argentina estão em
lados opostos de interesse. No retrato das relações econômicas e
políticas entre esses dois países, e especialmente das contendas em
torno do Mercosul, essas narrativas ainda sublinham a rivalidade
entre brasileiros e argentinos, caracterizando-os como adversários e,
com isso, ainda colaboram para o reforço das identidades nacionais
no cotidiano fronteiriço, em detrimento da identidade regional ou
fronteiriça. Evidentemente, as notícias das disputas comerciais entre
Brasil e Argentina, entranhadas da ideia de competição ou de
conflito, são fundadas na realidade.
p. 351 A colaboração entre brasileiros e argentinos com respeito ao carnaval
é algo que já se mostrava relevante na pesquisa que realizamos em
2006, quando tivemos a oportunidade de entrevistar uma família
brasileira de afrodescendentes que, na ocasião, morava em Paso de
los Libres em decorrência de seu envolvimento com a concretização
do carnaval libreño. Essa família nos contou que enfrentava
10. 10
preconceito racial em seu cotidiano na cidade argentina, assim como
ocorria na cidade brasileira, mas nos levou a entender que o racismo
não se manifestava no meio carnavalesco da cidade, por razão das
contribuições que eles traziam para a festa argentina.
Compreendemos, portanto, que o carnaval não anula as diferenças
entre brasileiros e argentinos ou o preconceito racial entre brancos e
não brancos, mas mesmo assim, ao ser partilhado pelos fronteiriços,
gera identificação entre eles.
p. 362 Ao sublinhar a rivalidade entre brasileiros e argentinos no âmbito do
futebol – caracterizando Pelé e Maradona como adversários,
satirizando Maradona , ou de alguma outra forma –, a televisão
brasileira participa do jogo identitário fronteiriço colaborando para o
reforço das identidades nacionais, em detrimento de outras formas
de identificação. Além disso, essas narrativas de gênero noticioso,
humorístico ou outros, tanto quanto os próprios jogos de futebol
entre argentinos e brasileiros, medeiam as relações sociais cotidianas
nessa fronteira reforçando o sentido de rivalidade. Isso colabora para
afastar os fronteiriços ou para imprimir às relações entre eles um
caráter de conflito que se manifesta de diversas formas: agressões
físicas, agressões verbais de cunho racista, extorsão por parte de
autoridades, entre outras.
p. 367-368 A partir das colaborações de nossa amostra compreendemos que eles
mesmos entendem que essas propagandas são construídas com base
na caracterização constante dos brasileiros e dos argentinos como
rivais no imaginário social argentino e brasileiro. Compreendemos
também que essas propagandas, tal com outras representações
televisivas que sublinham essa rivalidade, participam do jogo
identitário fronteiriço reforçando as identidades nacionais em
11. 11
detrimento de outras formas de identificação. Depreendemos
também que, especialmente quando essas representações se
constroem fazendo uso da figura de Maradona, considerado um
símbolo da nação argentina, elas colaboram para gerar o afastamento
entre os brasileiros e argentinos que vivem nessa fronteira, ou para
imprimir às relações entre eles um caráter de conflito.(…) Por outro
lado, essa mesma observação e os próprios entrevistados também nos
fornecem elementos para compreendermos que essa realidade
entranhada de rivalidade se configurou historicamente com a
participação, dentre outros fatores, da ação dos Estados nacionais, do
futebol e dos próprios meios de comunicação de massa que
reafirmam constantemente essa caracterização.
p. 536 Compreendemos que a narrativa televisiva participa da memória da
família uruguaia e as produções de sentido construídas a partir da
representação televisiva são positivas, uma vez que o país é
caracterizado como o lugar de onde um tesouro foi roubado. Os
termos “diamantes” e “tesouro” associam o Uruguai ao sentido de
riqueza e a narrativa se desenvolve em torno de uma caça ao tesouro,
relacionando o país à ideia de aventura.
p. 537 (...) o Uruguai foi mencionado na narrativa como o destino de um
fugitivo, o que nos remete imediatamente ao estudo de caso
Paraguai-Brasil e à caracterização daquela fronteira como o rumo a
ser seguido pelos criminosos foragidos. (...) a apropriação da narrativa
ocorreu no sentido de associar o Uruguai novamente aos
“diamantes”.
p. 537 (...) o Uruguai é pouco retratado na televisão brasileira e, diante da
recuperação da memória da representação do país em O Mapa da
Mina (associada aos “diamantes”), a entrevista citou outra narrativa
12. 12
na qual o “Uruguai” e os “diamantes” fazem parte do enredo.
p. 540 Compreendemos que, com esta passagem, a narrativa colabora para
construir o sentido de que, tantos as disputas de fronteira e as
competições comerciais, quanto as alianças entre brasileiros e
uruguaios, são recorrentes nas relações entre os dois povos.
p. 541-542 Assim, compreendemos que na formação discursiva da narrativa o
povo de origem hispânica é visto como “escória”. Acreditamos que
essas representações são construídas desde os discursos fundadores
dos países, sob influência das matrizes coloniais ibéricas que
disputavam entre si o domínio deste território.
p. 548 (...) “a tradição do gaúcho é nossa também porque demorou muito
para se acertar as fronteiras na campanha, os uruguaios dizem que lá
é que surgiu o gauchismo, mas a verdade é que o Rio Grande do Sul
tem muita mescla com os castelhanos, como na família do Bento
Gonçalves. Mesmo assim, eu entendo que a amizade com eles era
vista como tradição mesmo, ainda hoje se vê um pouco disso”.
p. 548 O meu marido fez muitos negócios com brasileiros, mas sempre
ficava alerta para que não se aproveitassem e eles também pareciam
ter a mesma preocupação.
p. 549 (...) nós já fizemos parte do Brasil, somos amigos dos brasileiros mas
tivemos que lutar pela nossa independência e ainda hoje de outras
formas estamos ligados e dependemos um do outro, mas nem sempre
somos tratados como irmãos.
p. 549 Percebemos que a perspectiva histórica, representada em alguma
medida na narrativa, participa da desconstrução do estereótipo de
que o Uruguai é o país amigo e de que essa é a fronteira da paz.
p. 550 (...) ao longo destes estudo havíamos identificado outras ocasiões nas
quais as produções de sentido dos entrevistados contradisseram o
estereótipo.
13. 13
p. 551 Na família brasileira, a narrativa colaborou para produzir sentidos
em torno da formação étnica da fronteira.
p. 552 Célio estabelece que o “gauchismo” ou a “tradição do gaúcho” é
cultura comum no Uruguai e no Rio Grande do Sul. Entretanto,
apesar de produzir sentidos que reforçam a identidade fronteiriça, ao
enfatizar que a cultura gaúcha é partilhada por uruguaios e
brasileiros, ele utiliza a narrativa para ressaltar que “mesmo assim, eu
entendo que a amizade com eles era vista como traição”, referindo-se
ao modo como os gaúchos ou “rio-grandenses” representados na
minissérie atribuíram a Bento Gonçalves o epíteto de traidor.
p. 553 (...) trampitas são mentiras ou delitos que os fronteiriços comumente
cometem para utilizar as instituições brasileiras e uruguaias a seu
favor, como por exemplo, nascer em um país e se registrar em outro,
mentir que mora do lado brasileiro da fronteira para poder trabalhar
em Santana do Livramento, obter aposentadoria nos dois países, ou
ainda, casar de um lado da fronteira e permanecer solteiro do outro a
fim de continuar a usufruir algum tipo de pensão.
p. 554 Ao se apropriar da Narrativa, uma das entrevistadas uruguaias
produz sentidos sobre a formação étnica da região fronteiriça e sobre
a relação com o meio rural. Suzana afirma que “o que nos une é o
mesmo que nos separa”, ou seja, o que aproxima brasileiros e
uruguaios é o sentimento de pertença ao mesmo grupo étnico
(“somos todos gaúchos”), assim como o modo de vida regional que
ainda tem muito a ver com a produção rural (“vivemos muito do
campo”).
p. 554 Ao se apropriar da narrativa, a uruguaia Emília primeiro reproduz o
sentido do estereótipo de amizade que circula na fronteira. Ao dizer
“somos todos amigos dos brasileiros”, ela caracteriza que as relações
entre uruguaios e brasileiros são positivas. (...) Apesar de Emília
14. 14
considerar que os dois países “dependem” ou estão “ligados” um ao
outro, mesmo na atualidade ou “ainda hoje”, ela descontrói o
estereótipo de amizade ao pontuar “mas nem sempre somos tratados
como irmãos”.
p. 556-557 A partir de suas apropriações da narrativa, a uruguaia Vanessa
produz sentidos sobre a formação étnica da região. Ela se refere aos
imigrantes mais recentes como “outros povos” ou “eles”, destacando
que os recém-chegados “não tomam mate” e “nem apreciam a lida no
campo e os animais”.
p. 557 (...) a mesma entrevistada uruguaia pondera que “já teve muito
derramamento de sangue para chegarmos à paz”, indicando um
passado de desentendimento, guerra e morte – como evidencia o uso
do termo “sangue”, em oposição à atualidade em que impera a
concórdia e a “paz”, que é congruente com o estereótipo que
identificamos circulando na fronteira. Porém, em seguida, ela mesma
desconstrói, em alguma medida, o sentido de paz ao dizer “mas se
você ver bem, ainda temos brigas e ciúmes”.
p. 558 Logo no início de nosso trabalho de campo, nos demos conta que os
brasileiros e os uruguaios que vivem na região da divisa atribuem ao
Uruguai a conotação de país amigo e a essa região o epíteto de
fronteia da paz. Esses sentidos circulam na região configurando um
estereótipo positivo a partir do qual os fronteiriços comumente
constroem suas representações acerca das relações entre uruguaios e
brasileiros. Identificamos que a configuração do estereótipo está
associada ao discurso fundador do Uruguai como nação
independente, em 1828, quando foi associado ao sentido de
diplomacia ou visto como ponto de estabilidade entre Argentina e
Brasil, sendo inclusive caracterizado como um “algodão entre
cristais” por um dos mediadores britânicos que participou das
15. 15
negociações que levaram à independência do país.
p. 559 Desse modo, entendemos que apesar de recentemente circularem por
essa fronteira as caracterizações de amizade e paz, configuradas de
modo estereotipado, a rivalidade entre uruguaios e brasileiros,
fundada discursivamente ainda no período colonial, segue fazendo
parte no imaginário fronteiriço. E assim, as apropriações, e usos da
narrativa ficcional brasileira participam do jogo identitário
fronteiriço reforçando, por um lado, a ideia de que a formação étnica
regional é semelhante, bem como os costumes e modos de produção
adotados, e por outro, gerando uma reavaliação do sentido de
cordialidade ou de relações pacíficas entre uruguaios e brasileiros,
uma vez que a amostra utiliza a minissérie para ressaltar os conflitos
ou disputas existentes entre os dois povos. Com isso, os entrevistados
sublinham os limites nacionais e dão pistas de que a solidariedade
implicada na identidade fronteiriça cede espaço para afastamentos ou
desconfiança, principalmente no âmbito da produção e
comercialização de bens de consumo primários, um tema bastante
relevante para os fronteiriços.
p. 561 Acreditamos que com esse trabalho conseguimos também tratar de
temas relevantes, sobretudo para os argentinos, os brasileiros, os
paraguaios e os uruguaios que vivem em regiões de fronteira e que
consomem a televisão brasileira cotidianamente, uma vez que nos
propusemos a conhecer a sua realidade e a pluralidade de vozes que a
constitui, confrontando as representações televisivas que eles
mesmos consideraram pertinentes, com suas próprias representações
sociais acerca dessa mesma realidade. (…)as narrativas televisivas
brasileiras medeiam as relações sociais entre argentinos e brasileiros,
paraguaios e brasileiros, e entre uruguaios e brasileiros, bem como
16. 16
participam do jogo identitário que se desenvolve entre eles.
p. 562 Quanto mais mergulhamos no jogo entre as identidades culturais que
se desenvolvem nessas fronteiras, mais o consideramos situacional.
Demonstramos ao longo desse estudo que, dependendo das
representações construídas em suas narrativas, e das apropriações e
usos que os fronteiriços fazem delas, a televisão brasileira colabora
para imprimir às relações entre eles um caráter de identificação ou
de alteridade, ora sublinhando as identidades nacionais, ora
reforçando a identidade regional ou fronteiriça.
p. 562 Considerando sempre quais são as representações construídas em
suas narrativas e quais são as apropriações e usos que os fronteiriços
fazem delas, demonstramos também que a televisão brasileira
colabora para aumentar ou diminuir a sociabilidade inter-fronteiriça,
por vezes contribuindo para imprimir a essas relações um caráter de
aproximação ou de distanciamento, e em alguns casos, cooperando
para imprimir a elas um caráter de solidariedade ou de conflito.
p. 562 Nesse sentido, destacamos que no caso da fronteira Paraguai-Brasil, a
televisão brasileira associa preponderantemente o Paraguai, os
paraguaios ou a região de fronteira que estudamos à falsificação, ao
contrabando, ao roubo, à fraude, à fuga de suspeitos e ao tráfico.
p. 563 Entre as representações menos frequentes no telejornalismo constam
uma reportagem e uma nota, nas quais os paraguaios se reconhecem
a partir da identidade guarani, e que retratam uma reunião de índios
guaranis de vários países, realizada para discutir a preservação de
suas áreas de terra; duas nas quais o paraguaio sem-terra é
considerado um invasor ou uma ameaça para o brasileiro proprietário
de terras no Paraguai; uma em que os paraguaios são associados à
17. 17
pobreza; e outras que tem a ver com o futebol e com as relações
políticas e econômicas entre o Paraguai e o Brasil – e mesmo nesses
casos encontramos algumas representações negativas do Paraguai,
dos paraguaios ou dessa fronteira.
p. 563 No caso da fronteira Argentina-Brasil, destacamos que com respeito
às relações argentino-brasileiras no âmbito político e econômico, e
especialmente em torno do Mercosul, bem como na seara do futebol,
e particularmente em torno das figuras de Pelé e Maradona, a
televisão brasileira caracteriza essas vinculações
preponderantemente como de rivalidade e o argentino é
representado como concorrente ou adversário do brasileiro. Isso
ocorre em propagandas, em um programa de humor e,
principalmente, nas narrativas de gênero noticioso que estudamos.
p. 563-564 Já as narrativas ficcionais que estudamos não só distanciam-se do
sentido de rivalidade constantemente atribuído às relações entre
argentinos e brasileiros e da caracterização do argentino tal qual um
adversário, como associam o povo argentino e seu país ao alto nível
cultural, à sofisticação e ao requinte, especialmente no que concerne
à mulher argentina, e apresentam ainda a Argentina como um
destino turístico proeminente.
p. 564 No caso da fronteira Uruguai-Brasil, destacamos que para nossa
amostra, a televisão brasileira retrata preponderantemente o Uruguai
como um “país amigo”, essa fronteira como a “fronteira da paz”, e as
relações uruguaio- brasileiras como “boas”. Nesse sentido, entre
outras matérias que estudamos, destacaram-se as de um programa de
jornalismo temático que retratou o Uruguai como um destino
turístico de muita beleza e com recursos naturais benéficos à saúde.
18. 18
Nele, os uruguaios foram caracterizados como um povo que vive em
harmonia com a natureza e que é amigo dos brasileiros.
p. 564-565 Estudar os processos de comunicação intercultural mediados pela
televisão, na complexidade e na heterogeneidade das realidades
fronteiriças, entre outros aspectos que já consideramos aqui, nos
permitiu identificar quando as representações televisivas dessas
realidades refletem ou refratam os interesses dos diversos grupos que
interagem socialmente no cotidiano dessas fronteiras. Isso nos
permitiu compreender também como operam os estereótipos
positivos e negativos no cotidiano quando reafirmados pela televisão,
assim como pudemos entender como as representações televisivas
participam da manifestação de atitudes racistas de brancos em
relação a não brancos.