Memórias Sentimentais de João Miramar é uma obra fragmentária que narra a trajetória de vida do personagem João Miramar através de 163 episódios curtos. O estilo revolucionário do texto, com linguagem telegráfica e desprezo pela pontuação tradicional, faz uma dura crítica à sociedade burguesa e ao casamento por interesses econômicos na época. A obra também satiriza as relações humanas baseadas em aspectos patrimoniais e a utilização de recursos públicos para fins particulares de alguns artistas
2.
Publicado em 1924
Desejo de explorar o mundo junto a seus amigos.
Se apaixona por Celia, casa-se com ela, e tem uma filha.
Reuniões com seus amigos(Dr. Pilatos, Dr. Mandarim
Pedroso, De. Machado Penumbra, Britinho, o poeta Fileas
entre outras personalidades.)
O cortejo a madame Rolah.
3. Investimento na industria cinematográfica.
A falência de João Miramar, e o divorcio com
Célia.
A perda da guarda de sua filha.
Falecimento de Celia, e a retomada de sua filha.
o fim de suas memórias, pela viuvez
4. Memórias Sentimentais de João Miramar é uma obra até
certo ponto caótica. Em virtude disso, a análise de categorias
como tempo, espaço e personagens é quase impossível.
A época o local em que os fatos ocorreram não tem
importância. O que importa é a maneira pela qual o narrador
filtrou aquelas experiências e, principalmente, a linguagem
que emprega para contá-las ao leitor.
A obra parece seguir uma ordem vagamente cronológica.
5. Os espaços não existem para além das sugestões, das emoções
que provocaram no narrador. Por isso, ele não se dá ao
trabalho de fazer descrições, remetendo o leitor aos locais
onde os fatos ocorreram pela simples menção de seus nomes
(São Paulo, Paris, etc.).
Cada personagem tem sua vida própria, mas sua interferência
na narrativa só existe sob a perspectiva do narrador. Por isso,
com exceção de algumas características muitos gerais,
nenhuma delas (nem mesmo o narrador) foi delineada,
descrita física e psicologicamente. Tem um nome, isto basta.
Contudo, há um traço que une-as:- seu apego excessivo ao
dinheiro. É a partir deste ponto que a narrativa foi construída
com o intuito de desmascarar, de satirizar suas relações sociais
(ou devemos dizer econômicas?)
6. João Miramar: filho de fazendeiro do interior paulista
(família proprietária da Fazenda dos Bambus e NovaLombardia, na
região de Aradópolis, comarca de
Pindobaville);
Tia Gabriela: viúva, que se casou novamente, irmã de
Miramar e sogra dele;
Nair, Célia, Candoca ou Cotita (Maria dos Anjos) e Pantico
(José Elesão da Cunha): filhos do primeiro casamento de tia
Gabriela;
7. CÉLIA: PRIMA DE Miramar;
CELINHA: filha de Miramar e Célia.
GUSTAVO DALBERT;JOSÉ CHELININI (que veio a se casar
com tia Gabriela, exibindo o título de conde, e se tornou
sócio de Miramar;
DR. PÔNCIO PILATOS: primo de Célia; “agigantada figura
moral”; defensor dos interesses da família;
MACHADO PENUMBRA: autor do prólogo do livro e de
textos parnasianos, sobretudo como orador;
8. DR. MANDARIM PEDROSO: figura de projeção na
sociedade, poeta e orador festejado;
SR. FíLEAS:poeta apreciador de floreios parnasianos (um
cosmético de sonetos );
DR. PEPE ESBORRACHA: medico da família;
BRITINHO:respeitado homem de negócios , sócio de
Miramar;
BRITINHAS:vizinhas e amigas de Célia;
MINÃO DA SILVA: sem instrução, mas atraído pela
literatura, escrevia cartas cheias de erros gramaticais;
9. MLLE ROLAH: atriz sem talento de cinema, ligou-se a
Miramar por interesses financeiros, largou-o quando
soube que ele faliu;
MADAMA ROCAMBOLA:mãe de Rolah, que
sobrevivia praticando ocultismo de falcatruas e que
apoiou o “caso” da filha com Miramar;
MADÔ: moça filha de um comerciante francês que
Miramar namorou ocasionalmente em sua viagem à
Europa.
10. Composto de 163 episódios numerados, tem por personagem principal
João Miramar. A montagem fragmentária do romance impossibilita uma
leitura tradicional e linear da história.
Uma série de inventivos traços de estilo e um agudo senso crítico da
sociedade da época fazem desse texto uma grande obra de vanguarda.
De fato, o estilo fragmentário e sintético do texto é revolucionário na
nossa prosa, assim como seu caráter cinematográfico. Os episódios
assemelham-se mais a seqüências de um filme do que a capítulos de
romance. Há uma ênfase muito grande no elemento visual e muitas das
descrições adotam uma linha geométrica e sintética, bastante próximas
dos princípios cubistas, que visa a apresentar fragmentos justapostos da
realidade, numa tentativa de captá-la na sua totalidade.
11. O foco narrativo na obra é predominantemente de 1ª
pessoa. João Miramar relata os principais momentos de
sua trajetória.
"Entrei para a escola mista de D. Matilde." (Cap. 5)
"Não disse nada do que queria dizer a Madô." (Cap. 10)
"Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira
nascer meu pai." (Cap. 58)
Em alguns momentos, o narrador de 1ª pessoa cede espaço
a outros narradores também de 1ª pessoa. Isto ocorre
quando são transcritas cartas e bilhetes:
12. Carta administradora
"Ilmo. Sr. Dr.
Cordeais saudações
Junto com esta um jacá de 15 frango que é para a
criancinha se não morrê.
Confirmo a minha de 11 próximo passado que aqui vai
tudo em ordem e a lavoura vai bem já estou dando a
segunda carpa.”
13. Há momentos, ainda, em que foco narrativo de 1ª pessoa
deixa de existir. Isto acontece quando a narrativa cede espaço
à poesia.
Recreio Pingue-Pongue
“Miramar a vida é relativa
O acontecimento não teria sido
Se nascesses só
Sem a mãe que te deixou virtudes caladas
O acontecimento te ofertou
A filhinha de olhos claros
Abertos para os dias a vir
És o ele de uma cadeia infinita
Abraça o Dr. Mandarim
E soma ele o azul desta manhã
Louçã”
14. Em alguns capítulos a narrativa é impessoal, como se o
narrador fosse de 3ª pessoa. Através deste artifício o autor dá
a impressão que a narrativa vai se construindo por si mesma
sem a interferência do narrador de 1ª pessoa que predomina
na obra.
Costeleta milanesa
"Mas na limpidez da manhã mendiga cornamusas vieram sob
janelas de grandes sobrados.
Milão estendia os Alpes imóveis no orvalho."
15. A linguagem empregada nesta obra é telegráfica. O
autor não narra, mas sugere através de capítulos
curtos uma história com começo meio e fim. Contudo,
cada capítulo é uma unidade que até pode ser lida
independente das demais. O sentido de cada parte não
se perde fora do contexto geral da obra.
Mas, isto não quer dizer que a prosa de Oswald de
Andrade seja fácil. Ao contrário, cada um dos capítulos,
apesar de extremamente curto, é uma charada, um
enigma a ser desvendado. Oswald não facilita o
trabalho do leitor.
16. Seu estilo opõe-se de um lado aos exageros científico-
detalhistas da escola Realista e à passionalidadeemotiva da narrativa da escola Romântica. Em cada
um dos capítulos o trabalho essencial do autor foi
com a linguagem. Não se deixou envolver nem pela
ciência nem pela emoção, filtrou a ambas procurando
dar uma nova conformação a literatura.
No início, a linguagem fragmentada lembra muito a
maneira de falar das crianças. Miramar (o narrador),
relata sua infância.
17. Recursos expressivos
Ao longo da obra Oswald abusa de recursos de linguagem,
muitas vezes misturando-os com um poder de síntese invejável.
METONÍMIA - "... de geografia aberta sobre a mesa..." (Cap. 79)
= mapa
ONOMATOPÉIA - "...No silêncio tique-taque..." (Cap. 8)
(Antítese:- silêncio/barulho)
"Dez horas da noite, o relógio farto batia dão! dão! dão! dão!
dão! dão! dão! dão! dão! dão!
HIPÉRBATO - "... mapas do secreto Mundo." (Cap. 9) ao invés de
"...mapas do Mundo secreto."
18. ALITERAÇÃO - "...punha patetismos pretos..." (Cap. 22)
PARADOXO - "...Companhia Industrial e Segurista de Imóveis
Móveis..." (Cap. 119)
PROSOPOPÉIA - "... Depois casas baixas desanimaram a planície
cansada." (Cap. 113)
SINESTESIA - "...de janelas cerradas e acesos silêncios." (Cap. 153)
O emprego de trocadilhos é comum na obra:- "... sátiras à
sociedade de sátiros..." (Cap. 72)
19. A exemplo de outros escritores, Oswald também realiza
diálogos intertextuais, fazendo referência aos seguintes
autores, personagens e obras:
- O primo Basílio (Eça de Queiroz) Cap. 100
-Herodes (Bíblia) Cap. 98
-Lord Byron (poeta romântico) Cap. 155
-Virgílio (poeta latino) Cap. 163
Faz referência à vanguarda artística européia (Picasso,
Satie e João Cocteau - Cap. 51, Isadora Duncan - Cap.
47).
20. Também é marcante o emprego de vocábulos e
expressões em línguas estrangeiras:- Inglês Francês
Espanhol Italiano: dancing habitué encuentro de
ustedes si sinhore / It is very beautiful!
Mademoiselle / board-house tour du monde / Albany
Street goudron-citron / Latim / Res non verba!
A obra registra também uma variante do português
resultante da influência da migração árabe:- "- Aqui
nong teng acordo. Teng pagamento! (Cap. 148)
21. A obra apresenta uma crítica ao casamento como instituição
burguesa (união por interesse).
"Separação precavida de bens" (Cap. 62)
O motivo da separação do casal João Miramar/Célia é falência
financeira dele: "A margem disso o caso financeiro negreja no
horizonte. O Senhor adquiriu rapidamente uma reputação de
dilapidador." (Cap. 142)
O interesse do pai pela filha só ocorre após a morte da mulher:
"Foi à ele que corri na aflita busca de minha Celiazinha, feita
milionária e só pelo Deus das revisões do processo." (Cap. 157)
22. Através do livro, Oswald ressalta e satiriza o caráter patrimonial das
relações sociais burguesas: "E Rolah trazia ao céu do cinema um
destino de letra de câmbio." (Cap. 32)
Em duas oportunidades Oswald registra a utilização de dinheiro
público para viagens de artistas ao exterior: "Dalbert de subsídio e
trombone ia partir para a conquista da Europa." (Cap. 26)
"João Jordão que não era artista nem nada parecida magro e uma
tarde arranjou subsídio governamental para estudar pintura em
Paris." (Cap. 22)
A linguagem também reflete uma escolha ideológica. Oswad quebra a
forma usual de narrar, rompendo definitivamente com as escolas
literárias que o antecederam, e com uma determinada concepção da
língua portuguesa (abusa de neologismo, cria verbos, adjetivos, etc.).
23. Nesta obra Oswald de Andrade aproveitou as técnicas do
vanguardismo europeu e as adaptou a transmissão
literária de um país em transição: primeiras décadas do
século XX, contexto social e mental da realidade urbana
em processo inicial de industrialização, mas
culturalmente presa a um passado parnasiano,
econômica e politicamente contaminada pela guerra
européia
24. Tendo ou não lido “Ulysses” obra publicada em 1922
com edição restrita do irlandês James Joyce, citado
mundialmente como o grande revolucionário da
linguagem literário, Oswald de Andrade fez essa mesma
revolução no Brasil. Oswald foi o primeiro importador do
Futurismo em nossa literatura, movimento lançado por
Marinetti em seu manifesto de 1.909, publicado no jornal
“Fígaro” de Paris: “Queremos exaltar o movimento
agressivo, a insônia febril, a corrida, o salto mortal, a
bofetada e o soco” declarava o italiano na França, por
onde andava Oswald na época.
25. O prefácio da obra, na verdade um pseudoprefácio,
intitulado “A Guisa de Prefácio” e assinado por
Machado Penumbra, “faz a apresentação do livro em
estilo empolado e arrebicado, recheado de clichês
acadêmicos, num contraste gritante com o estilo do
próprio autor, João Miramar-Oswald.”
26. “Torna-se lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução
emocional dos surtos humanos. Se no meu foro interior um velho
sentimentalismo racial vibra ainda nas doces cordas alexandrinas de Bilac
e Vicente de Carvalho, não posso deixar de reconhecer o direito sagrado
das inovações, mesmo quando elas ameaçam nas suas mãos hercúleas o
ouro argamassado pela idade parnasiana.
“Esperemos com calma os frutos dessa nova revolução que nos apresenta
pela primeira vez o estilo telegráfico e a metáfora lancinante.”
“O fato é que o trabalho de plasma de uma língua modernista, nascida da
mistura do português com as contribuições das outras línguas imigradas
entre nós e contudo tendendo paradoxalmente para uma construção de
simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original. A uma coisa
apenas oponho legítimos embargos – é a violação das regras comuns da
pontuação. Isso resulta em lamentáveis confusões, apesar de, sem dúvida,
fazer sentir “a grande forma da frase”.
27. Nesses fragmentos do prefácio de Machado Penumbra já podemos notar as
intenções da obra: uma paródia linguística e estilística; “mostrar artificialismo de
uma linguagem anacrônica”( São Paulo de 1912, época em que se passa o
Miramar, era uma província, o que não retira a atualidade da sátira, pois até hoje, a
linguagem culta-acadêmica é vista como forma de status e intelectualidade)
através episódios que assemelham-se mais a sequência de um filme do que a
capítulos de romance.
Além da paródia, Miramar apresenta uma crítica social, ao pedantismo de uma
burguesia endinheirada que circulava pelos salões literários, cafés e livrarias nas
ruas de São Paulo. De característica acaciana, as personagens de Miramar são
movidas “dentro de um mesmo círculo vicioso de alienação”.
Memórias sentimentais de João Miramar é uma sátira social que mistura vários
estilos e uma forte crítica à sociedade, fazendo dessa obra um grito de vanguarda.
Oswald em viagem à Europa (1912) empolgou-se com o Futurismo de Marinetti. O
Manifesto anunciava as “palavras em liberdade”, a “destruição da sintaxe”, a
“imaginação sem fios”, a demolição de “museus e bibliotecas” etc, e no prefácio de
Miramar, Machado Penumbra afirma que: “Há além disso, nesse livro novo, um
sério trabalho em torno da “volta ao material” – tendência muito de nossa época
como se pode ver no Salão de Outono em Paris”, referindo-se a primeira exposição
coletiva dos pintores cubistas (1911), ao simultaneísmo (apresentação de
fragmentos justapostos da realidade, numa tentativa de captá-la na sua totalidade;
a ênfase no estilo fragmentário e sintético do texto; a imagística sonoro-visual; as
descrições em linha geométrica e o cubo-futurismo plástico-estilístico dos trechos
28. Haroldo de Campos, Metalinguagem (“Estilística Miramarina”), Editora
Vozes, Petrópolis, 1967, apresenta duas fases da evolução modernista
de Oswald nas artes visuais: ”1º., a deformação através do
impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e
Mallarmé, Rodin e Debussy até agora; 2º., o lirismo, a apresentação no
templo, os materiais, a inocência construtiva”...”O trabalho contra o
detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo
equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela
invenção e pela surpresa”...”Substituir a perspectiva visual e naturalista,
por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica,
ingênua”...”Nossa época anuncia a volta ao sentido puro. Um quadro são
linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz”...”Nenhuma fórmula
para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”.
29. Outra tendência observada em Memórias
sentimentais de João Miramar é o uso de expressões
estrangeiras incorporadas a língua portuguesa, forma
encontrada por Oswald de Andrade para criticar as
influências estrangeiras em nosso país. Contudo,
como observou o próprio Oswald, não se trata de uma
crítica de todo negativa. A proposta antropofágica
trazida no manifesto veio mostrar que se poderia
aproveitar as influências, mas digerindoas,
repensando-as e devolvendo-as de forma crítica,
reflexiva, como “uma civilização que estamos
comendo” .
30. No prefácio da obra, a personagem Machado Penumbra, um parnasiano declarado,
observa que: (...) o fato é que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida
da mistura do português com as contribuições de outras línguas imigradas entre nós e
contudo tendo para uma construção de simplicidade latina, não deixa de ser
interessante e original (...)
Assim, Penumbra valoriza esta tendência, ressaltando sua originalidade. Na obra,
pode-se visualizar este recurso em vários fragmentos, entretanto, escolheram-se
alguns considerados mais
relevantes ao presente trabalho. No capítulo 46, intitulado “Anglomania”, observa-se a
crítica ao uso de estrangeirismos, exaustivamente utilizados pelo narrador para relatar
parte de suas férias: Tomamos board-house francesa em Albany Street não longe do
Hyde Park. Durante o dia almoçávamos a cidade
visitando entre jardins múmias do British Museum. Chegava a noite pontual e
policemen corriam pesados estores do céu para alexandrinais poetas compatriotas
percorrerem de tube o famoso astro da metrópole cor-decinza. 50 Fechávamos-lhe a
porta à cara branca e alugávamos com Muset e Murger aconchego de
rendas em cortinas insones. No texto acima, percebe-se a ironia na descrição das
atividades realizadas no período de férias na Europa através do uso de termos
estrangeiros que demonstram o quanto o narrador
está permeado desta influência. Palavras como “board-house”, “street”, “park”,
“Museum” e “policemen” possuem correspondentes diretos na língua portuguesa,
entretanto, o narrador as utiliza no idioma inglês justamente para mostrar o processo
da aculturação por estrangeirismos, já sugerido pelo
31. título do capítulo. No fragmento “63. Idiotismo” tem-se a crítica quanto à falta de
objetivo das viagens realizadas. Miramar expõe um sonho irônico da viagem idílica
com Célia: Iríamos em tournée à Europa. E pela tarde lilás do Bois, ela guiaria a nossa
Packard 120 HP. Sairíamos nas férias pelos caminhos sem mata-burros nem
mamangavas nem taturanas e faríamos caridade e ouviríamos a missa dos bons curas
nas catedrais da Média Idade. E prosseguiríamos por hotéis e hotéis, olhos nos olhos
etc. Neste fragmento, observa-se o uso de palavras estrangeiras como “tournée”,
“Packard 120 HP” e “Bois”, as quais se encontram mescladas com expressões
tipicamente brasileiras como “mata-burros”, “mamangavas” e “taturanas”. Assim,
obtém-se um efeito de língua “modernista”, ao mesmo tempo em que se faz uma
crítica à importação da cultura estrangeira vista de forma supervalorizada em relação à
cultura
nacional. No fragmento “78. A sabida” tem-se a carta de Nair, irmã de Célia, relatando
à irmã a adaptação de sua mãe no novo mundo: “Ela já sabe falar quelque chose, eau
chaude e beaucoup d’argent” . O episódio, além de mostrar a assimilação da cultura
importada, aponta uma crítica àquela burguesia, sendo a palavra “argent” o expoente
dessa crítica - dentre as primeiras 51 expressões aprendidas está o dinheiro, símbolo
dessa classe social. Pode-se dizer que as viagens de João Mirarmar aparecem
na obra como um recurso de contraste entre o Brasil e a Europa. Apesar da aparente
valorização estrangeira explicitada a partir do uso das expressões importadas,
percebe-se sempre a sobreposição
dos valores nacionais sobre os estrangeiros, sendo esta uma intenção da obra. O uso
de termos e expressões estrangeiras configuram a linguagem modernista, refletindo a
visão antropofágica na língua brasileira.