3. “Os judeus chegaram ao território português e instalaram-se
muito antes da fundação da nacionalidade e até antes de existir o
nome „Portugal‟. Isto é seguro. Não se sabe é números. Nos séculos
XII e XIII espalhavam-se por todo o País, em comunidades mais ou
menos numerosas” (SOUSA, 1993)
Foi por determinação de D. Afonso IV (1325-57) que se tornou
obrigatória a fixação de residência nas chamadas judiarias, com
acesso fechado e toque de recolher imperativo.
É possível, no entanto, que, apesar de segregacionista, essa medida
não tivesse tom persecutório, mas visasse proteger a população
judaica de possíveis perseguições cristãs – a essa altura isoladas,
nem sempre relacionadas a motivos religiosos e sempre combatidas
pela Coroa.
4. “Podemos dizer que até 1497, o ano que ficará na história da
comunidade judaica portuguesa, a sociedade hebraica vivia quase
intactamente, nas judiarias. [...]Aqui os judeus apesar de não
estarem formalmente separados do reino, preservavam a sua
intimidade, viviam em gestão autónoma e possuíam uma
sinagoga, que por vezes funcionava não somente como lugar de
culto mas também como escola. Até então a lei protegia o seu
culto.” (HAMERSKÁ, 2006)
Sousa aponta que a população israelita em Portugal não teria
atingido a marca dos 4% nem no total da população do Reino nem
em cada localidade isoladamente. Configuravam, assim, uma
minoria étnica, mas “extremamente activa, económica e
culturalmente muito acima da média” (SOUSA, 2003)
5. Os muçulmanos, colocados como população de segunda categoria
após a derrota militar nas guerras de Reconquista, embora ainda
fossem relativamente numerosos no Algarve até o século XIV,
foram progressivamente se dissolvendo na população cristã.
Gradualmente, o termo “mouro” deixa de designar os
remanescentes da conquista almorávida para se referir às pessoas
trazidas do continente africano (inclusive da região subsaariana)
como escravas.
Não há histórico de perseguição em massa nem de conversão
forçada da população judia e muçulmana anteriormente à expulsão
geral ordenada por D. Manuel em 1496.
7. Mesmo a partir da expulsão dos judeus espanhóis em 1492, a posição da
Coroa portuguesa continua sendo de tolerância:
“A postura do rei de Portugal neste assunto é outra vez favorável aos
judeus. O rei não fechou a fronteira aos fugitivos, exigindo
deles, segundo o cronista da corte Damião de Góis, um imposto de 8
cruzados, sendo aqueles que desempenhavam a profissão de
ferreiros, malhoeiros, latoeiros e armeiros somente obrigados a pagar
metade da quantia.” (HAMERSKÁ, 2006)
9. O édito de expulsão dos judeus e mouros forros foi resultado de
uma cláusula colocada no acordo de casamento entre D. Manuel e
a infanta D. Beatriz, filha dos reis católicos, o que tornaria o
monarca português um possível herdeiro dos tronos de Castela e
Aragão. O decreto espanhol, no entanto, trata apenas de judeus.
É possível perceber uma série de medidas tomadas por D. Manuel
visando garantir a permanência dessa população no Reino:
• Prazo maior (10 meses);
• Batismo forçado de crianças e jovens e separação de suas
famílias;
• Isenção de inquirição religiosa aos cristãos-novos durante 20
anos;
• Restrição do embarque dos que insistiam em partir;
10. • Conversão geral dos adultos (maio a setembro de 1497) – é o fim
dos judeus e início do cristão-novismo em Portugal;
• Políticas de integração na sociedade cristã, como a proibição de
casamentos de cristãos-novos entre si;
• Proibição da emigração dos cristãos-novos em 1499.
Após o grande massacre de 1506, a discriminação dos cristãos-
novos é temporariamente abolida, assim como a interdição de não
poderem vender os seus bens livremente e viajarem para o
estrangeiro.
Dessa forma, durante os primeiros anos do governo de D. Manuel
não se pode falar nem de uma expulsão propriamente dita nem da
instalação sistemática de políticas de limpeza de sangue.
11. No entanto, alguns fatores vão causar o abandono progressivo dessa
política de integração:
• A pressão dos cristãos-velhos, diante da insatisfação com as
vantagens econômicas obtidas pelos cristãos-novos a partir do
decreto da igualdade de direitos e deveres;
• A constatação de que uma parte significativa de cristãos-velhos
continuava se casando e se relacionando entre si e não conseguia
(ou não desejava) se desvincular da antiga religião e de seus
antecessores.
Em 1515, D. Manuel “encomenda” ao papa, através do seu
embaixador em Roma, uma inquisição aos moldes da espanhola,
especialmente focada na população de origem judaica, rompendo a
promessa de não-inquirição religiosa que deveria durar 20 anos e
havia acabado de ser renovada até pelo menos 1531.
12. «Pelo que, e porque satisfaçamos ante Deus com a obrigação que
nisto lhe temos, não somente acerca destes que assim são vindos de
Castela a estes nossos reinos e senhorias, mas ainda acerca dos
Cristãos-Novos naturais deles, que neles se converteram em tempos
passados à nossa Fé, nos parece que devemos mandar entender
com fiel e justa inquisição para castigar os faltosos.» (apud
FERRO TAVARES, 1997)
D. Manuel morre em 1521 sem ter consolidado a política de
integração nem encaminhado a instalação da Inquisição em
Portugal.
D. João III inicia seu reinado confirmando as leis manuelinas contra
a discriminação dos cristãos-novos.
13. No entanto, a atmosfera de crescente pressão dos cristãos-velhos e
manifestações de antijudaísmo mudariam esse quadro poucos anos
depois.
15. A Inquisição portuguesa foi estabelecida mais
permanentemente, como aponta José Pedro Paiva (2011), em
1536, na sequência de difíceis negociações desencadeadas pelo rei
D. João III. Ela vigorou nos territórios de Portugal e de seu império
pluricontinental, desde Macau, no Extremo Oriente, até o Brasil e
foi extinta em 1821.
As negociações com o papa (Clemente VII) recomeçam em
1531, tendo como resultado a bula Cum ad nihil magis, que
nomeava como inquisidor-mor D. Fr. Diogo da Silva, confessor do
rei.
Embora tivesse início a instalação dos primeiros tribunais
regionais, em 1533 (1534?), Clemente VII revoga essa bula. Mas a
sua morte torna incerto o cumprimento da revogação.
16. Seu sucessor, Paulo III, inicialmente emite um breve dando
continuidade à revogação determinada por seu antecessor. Mas, em
1536 (HAMERSKÁ aponta que parcialmente por pressão de Carlos
V, seu cunhado), dá início ao reestabelecimento da Inquisição em
Portugal.
No entanto, em sua forma inicial, são determinadas a proibição da
política de segredo e a garantia de não haver confisco de bens
durante 10 anos.
“O Papa determinava três inquisidores gerais - os bispos de
Coimbra, Lamego e Ceuta e o rei tinha direito nomear um outro.
Além disso Paulo III reservava-se o direito de controlar a
realização da bula e de decidir em última instância mediante o seu
núncio em Lisboa.” (HAMERSKÁ, 2006)
17. Continuam, no entanto, os esforços, para o estabelecimento de
uma Inquisição aos moldes castelhanos: com menor
interferência papal e com um processo próprio, que incluísse os
confiscos e o direito a executar a política de segredo.
Após mais uma série de conflituosas negociações, finalmente em
1547 o infante D. Henrique (nomeado pelo rei) é confirmado pelo
papa como Inquisidor geral. Isso significou o final do processo
comum e a ratificação dos estilos da Inquisição moderna, assim
como a instalação da censura à imprensa com a publicação do
Index.
18. A Inquisição portuguesa, como aponta Paiva, não teve lastro
medieval a precedê-la, ao contrário das outras. Embora alguns
inquisidores – franciscanos e dominicanos – tivessem sido
nomeados pelo papa, não há registro de sua atuação.
“Tal como o Santo Ofício espanhol, o Santo Ofício de Portugal,
desde sua criação, em 1536, fora objeto de interferência direta da
Coroa. Embora seja uma instituição de origem claramente
eclesiástica, ele acaba por ter uma jurisdição mista (secular e
eclesiástica), que é absorvida pelos organismos das monarquias,
uma vez que os reis propõem o inquisidor-geral e fica ao cargo do
poder secular a execução e julgamento de determinadas penas, tais
como as penas capitais [também porque a execução penal é
privilégio do rei]. Nos reinos da Península Ibérica, a Inquisição
consegue perpetuar-se por mais de três séculos em muito por (...)
19. (...) conta desse jogo de dupla fidelidade com a Igreja e a Coroa.”
(ROCHA, 2012)
Os tribunais ibéricos tinham, como reforça Paiva, uma aparência
híbrida, com fortes vinculações e dependências em relação à Coroa
e ao sumo pontífice, o que foi bem usado para garantir certa
independência, em especial no caso português.
Nos casos espanhol e romano, os confrontos entre bispos e
inquisidores foram mais fortes e recorrentes, enquanto em Portugal
houve, de modo geral, grande cooperação e complementaridade
entre eles.
20. “O Tribunal do Santo Oficio estendeu a sua acção a todo o país e a
quase todos os territórios submetidos à Coroa portuguesa no longo
período da sua existência (1536-1821). Para efeitos do exercício do
poder inquisitorial, as diferentes regiões do Reino estavam adstritas
aos tribunais de Lisboa, de Coimbra e de Évora (os de Tomar, Porto
e Lamego tiveram vida efémera). As ilhas do Atlântico, o Brasil e os
territórios portugueses da costa ocidental de África, dependiam do
tribunal de Lisboa e os da costa oriental africana dependiam do
tribunal de Goa, criado em 1560.
“Nos primeiros tempos o Tribunal português regeu-se pelas normas
da Inquisição espanhola. Datam de 1541 as primeiras instruções
portuguesas para o seu funcionamento, por ocasião do
estabelecimento do tribunal em Coimbra, e o primeiro regimento (...)
21. (...) só foi dado em 1552. A Inquisição teve segundo regimento em
1613, um terceiro em 1640 e o último data de 1774.
“As leis pombalinas, a que declarou abolida a distinção entre
cristãos novos e cristãos velhos e a que equiparou o Santo Ofício
aos outros tribunais régios, retirando a censura da sua alçada,
fizeram o Santo Ofício perder a sua anterior vitalidade. O regime
liberal deu o golpe final à Inquisição portuguesa: em 1821 as
Cortes Gerais Constituintes decretaram a sua extinção.” (AATT)
22. Todas as Inquisições modernas, como aponta Paiva, tinham um
mesmo objetivo principal: eliminar as heresias e preservar a
ortodoxia do catolicismo romano.
“Mas elas se concentraram em grupos distintos. A portuguesa
centrou sua atividade na perseguição aos cristãos-novos
judaizantes, e assim se manteve até 1773, quando foi abolida pelo
marquês de Pombal a distinção entre cristãos-novos e velhos. A
espanhola, inicialmente, teve sua mira apontada para o mesmo
alvo. No entanto, os delitos quantitativamente mais significativos
foram as blasfêmias e o cripto-islamismo praticado pelos
mouriscos.
“O rigor repressivo também foi diferente. Em termos de volume, a
espanhola se destacou. As penas aplicadas eram variadas: (...)
23. (...) prisão, degredo, exposição pública na porta das igrejas, uso de
hábito de condenado (sambenitos). A que teve mais condenados à
pena capital foi a lusitana (cerca de 6%), seguida da espanhola
(3,5%) e da romana, esta muito cautelosa em aplicar este tipo de
sentença.” (PAIVA, 2011)
26. Diferentemente da América castelhana, a América portuguesa não
sediou nenhum tribunal, mas ficou sob a jurisdição do Tribunal de
Lisboa. Isso não quer dizer que a Inquisição não atuasse no
território colonial: sua ação se fazia presente através das visitas e da
atuação dos familiares.
“A Inquisição portuguesa só passou a frequentar as terras
brasileiras no final do século XVI. Entre os anos 1540 e 1560, só
houve dois casos: o do donatário de Porto Seguro, o blasfemo Pero
do Campo Tourinho, e o do francês calvinista Jean de Bolés. O
primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, e o segundo, preso pelo
bispo da Bahia, que tinha jurisdição sobre as heresias. Foram
ocorrências isoladas e desvinculadas da preocupação maior do
Santo Ofício lusitano desde a sua criação: perseguir os cristãos-
novos judaizantes.
27. “A estreia da Inquisição no Brasil ocorreu em 1591, com a primeira
visitação do Tribunal de Lisboa à Bahia e a Pernambuco. Justifica-
se: na segunda metade do século XVI, o Brasil recebeu muitos
cristãos-novos envolvidos com a nascente economia açucareira.
Eles viveram em paz durante décadas. Muitos continuaram a
professar o judaísmo nas sinagogas domésticas, além de se unirem,
pelo matrimônio, com os cristãos-velhos. A ameaça de índios na
terra e de piratas no mar funcionava como força de coesão.
“Tudo mudou com a chegada da visitação, que integrou nova
estratégia inquisitorial, em tempo de União Ibérica, voltada para o
Atlântico hispano-português. A estreia do Santo Ofício no Brasil
amedrontou mais do que prendeu os cristãos-novos, embora tenha
destroçado a sinagoga de Matoim, no Recôncavo Baiano. Em todo
caso, deixou um rastro deletério, rompendo a solidariedade
cotidiana que unia cristãos-velhos e novos da Colônia.
28. “Ao longo do século XVII, outras visitações deram seguimento à
ação inquisitorial, reforçada, no século XVIII, pela consolidação de
uma rede de familiares e comissários, além da justiça eclesiástica,
que pinçava suspeitos de heresia em suas visitas diocesanas. Foi
esta a máquina que viabilizou a Inquisição no Brasil, resultando no
seguinte balanço: 1.074 presos, sendo 776 homens e 298 mulheres;
48% deles e 77% delas eram cristãos-novos acusados de judaizar; a
grande maioria dos homens presos (62%) morava na Bahia, em
Pernambuco e no Rio de Janeiro, enquanto a maioria das mulheres
(54%) vivia em terra fluminense, seguidas de longe pelas mulheres
da Bahia (14%).
“O auge da ação inquisitorial ocorreu na primeira metade do século
XVIII (51% dos presos). Vinte homens e duas mulheres da Colônia
foram queimados em Lisboa, todos por judaizar. Dentre eles, o
dramaturgo carioca Antônio José da Silva (1739) e a
octogenária(...)
29. (...) Ana Rodrigues, matriarca do engenho de Matoim. A velha sinhá
embarcou para Lisboa acompanhada de uma escrava e morreu no
cárcere em 1593. Nem assim ela escapou da fogueira. O Santo
Ofício desenterrou seus ossos para queimá-los em auto de fé, no
Terreiro do Paço.” (VAINFAS, 2013)