Ce diaporama a bien été signalé.
Le téléchargement de votre SlideShare est en cours. ×

Séverine

Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Publicité
Chargement dans…3
×

Consultez-les par la suite

1 sur 8 Publicité

Plus De Contenu Connexe

Publicité

Plus récents (20)

Séverine

  1. 1. Tinha muita pressa. Toda a pressa do mundo. Tinha a pressa dos que fogem. Numa pequena mala, desordenadamente, guardou algumas roupas, dois livros e poucos pertences. Por vezes precisava de muito para viver. Outras, o pouco bastava-lhe. Correu as cortinas do quarto e fechou a porta. Antes de correr as da sala ainda espreitou a cidade que começava a acordar. Nascia, preguiçosamente, a manhã e não chovia. Apanhou a maleta, os documentos, o sobretudo, desligou a luz e bateu a porta do apartamento. Desceu as escadas com as chaves na mão e no hall do prédio pensou em atirá-las para dentro da caixa do correio. Para que serviriam as chaves de uma casa à qual não se pretende voltar? Para nada. No entanto, enfiou-as no bolso e recordou a frase tão usada por sua mãe: há mar e mar, há ir e voltar. Atravessou a rua, dobrou a esquina e entrou no café. Pediu o de sempre, mas que lhe embrulhassem os croissants. Fazia-se tarde e o tempo urgia. Queria alcançar a estrada antes das oito e trinta. Cruzou a cidade e achou-a muito mais bonita do que costumava achar, ou talvez fossem os seus olhos de adeus que a ela emprestavam mais encantos. Conhecia-lhe tão bem os meandros, os becos, as ruelas, as esquinas e também as largas e imponentes avenidas mas havia chegado a hora de deixá-la para aqueles que a quisessem. Já na estrada, parado no posto de gasolina e enquanto aguardava a vistoria nos pneus e o abastecimento do automóvel, aproveitou e comeu os croissants. O seu dia seria longo e extenuante.
  2. 2. Já percorrera muitos quilômetros quando, finalmente, despontou o sol. Um sol radiante num céu muito azul e límpido. Fizera-se uma bela e gélida manhã e, conforme ouvira no rádio, para os próximos dias as temperaturas seriam muito baixas e havia previsão de neve. Seria um inverno rigoroso, informara a locutora que, em seguida, em voz empostada, anunciou uma hora só de música. Cantarolou com Charles Aznavour Hier encore / J'avais vingt ans / Je caressais le temps ... e, realmente, iam longe os seus vinte anos como já estava longe a cidade que deixara ficar para trás. Já percorrera grande distância e naquele trecho a estrada estava deserta. Não avistava outros automóveis, nem aldeias e tampouco pessoas. Sentiu- se bem assim, sozinho e, fingindo estar feliz, por breves instantes, teve a impressão de que não fugia. A mesma sensação tinha-a quando, com doze ou treze anos, escapava do liceu e, refugiado em segurança nos fundos da loja do velho amigo alfarrabista, deliciava-se com as leituras que, em casa, lhe eram proibidas. Anos mais tarde, desertara. Não era homem de armas, de exércitos, nem de guerras e, muito menos, de imposições. Custara-lhe, essa decisão, anos de clandestinidade, de indigência, de fugas e perseguições e, essencialmente, de abandono e medo. Depois, tempo passado, os ventos da História disseram-lhe que ele deixara de ser um fugitivo. Qualificava, sem fingimento, todas as suas fugas como atos de coragem e não de covardia.
  3. 3. Desde que partira, havia parado uma única vez para reabastecimento do automóvel e para tomar um café. Começou a sentir os primeiros sinais de cansaço e de fome. Escurecia rapidamente, embora não fossem ainda cinco horas da tarde. Na estrada, o trânsito tornara-se intenso e era-lhe desconfortante conduzir assim. Pararia na próxima povoação que encontrasse. Não lhe pareceu feia a cidadezinha, apesar de pouco iluminada e morta, como mortas eram todas as vilas durante o inverno, especialmente as litorâneas, como aquela onde jamais estivera. Estacionou o carro na praça principal e entrou num restaurante. Lugar modesto, com pouquíssimas mesas ocupadas, mas com uma sopa quente, pão e vinho muito bons, tudo o que necessitava para lhe saciar a fome e afugentar o frio atroz que sentia. Enquanto fazia a refeição observou a praça: árvores despidas, ao centro uma pequena fonte, em frente um banco, uma farmácia, uma correnteza de lojinhas, a maioria já com as luzes das vitrines apagadas, um outro restaurante, de toldos verdes, e ao fundo, um cinema, cujo filme em cartaz era "Belle de Jour". Lugar ideal para se refazer da fadiga de tão longa viagem e para, em ambiente quente e confortável, conseguir um repouso antes de prosseguir a sua jornada.
  4. 4. Há muito que queria ter visto aquele filme, do tão aclamado Buñuel. Surgira agora a oportunidade e não a desperdiçaria. A pequena sala estava quase vazia, o que lhe permitiu a escolha de uma boa poltrona. Desde o início, acompanhou cada detalhe do filme com atenção, embrenhou-se em seu enredo e acariciou com o olhar a sua atriz preferida. Belíssima, como sempre, uma obra de arte esculpida pela Natureza. Avançava o filme para o seu final quando, de repente, vê pular do écran “a sua atriz” - vestido preto de golinha branca, sapatos igualmente pretos, de verniz, qual traje de uma colegial - e deslizar em sua direção. Sentiu-lhe o calor e o cheiro ao sentar-se a seu lado, apreciou-lhe a etérea beleza e o sorriso mais triste que até então vira, quando ela, ao seu ouvido, sussurrou: - Fugi do filme. - Eu vi. Catherine Deneuve? Perguntou-lhe. - Deneuve é outra. Eu sou Séverine. Cansei-me de fingir. Ora finjo que sou prostituta, ora finjo que não sou. Estou farta. Tire-me daqui. Fuja comigo. - Vamos, seremos dois fugitivos e não fingiremos que sonhamos ...
  5. 5. Despertou com alguém a bater-lhe no ombro e a dizer-lhe: - Desculpe, senhor, mas o cinema tem de fechar. Tive pena de acordá-lo. Parece exausto. - E estou. Foram muitas horas ao volante ... Lá fora, agradeceu e despediu-se do porteiro com um aperto de mão. A inclemência do frio, fê-lo calçar as luvas e levantar a gola do sobretudo. Procuraria uma pensão para pernoitar. Começara a nevar ... Antes de entrar no carro olhou o cartaz do cinema e disse para si: Ah! se todas as putas que conheço fossem como Séverine ...

×