Orientação Técnico-Pedagógica EMBcae Nº 001, de 16 de abril de 2024
O Mistério de Capitu
1. DOM CASMURRO
FUVEST / UNICAMP / 2012
AUTOR
ÉPOCA
GÊNERO
ESPÉCIE
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Valdir Ferreira
Machado de Assis
Realismo no Brasil
Narrativo
Romance
1. SÍNTESE DO ENREDO
Publicado em 1900, DOM CASMURRO é o terceiro livro da segunda
fase da obra de Machado de Assis, iniciada em 1881 com MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, e pode ser considerado como a autopsicanálise de
Bento de Albuquerque Santiago, personagem central da narrativa, que, por
seu comportamento sério e calado, é conhecido por Dom Casmurro.
Aos cinquenta e quatro anos, vivia praticamente isolado em sua
casa no Engenho Novo, a qual era uma cópia da de Matacavalos, onde ele
vivera durante a infância e a adolescência. Resolve, então, escrever um livro
contando sua vida.
Inicialmente, explica o título do livro: Casmurro, por ser uma
pessoa fechada, ensimesmada; Dom foi acrescentado por ironia para conferirlhe ares de fidalguia. Em seguida, fala sobre os motivos que o levaram a
escrever um livro com o intuito de se livrar dos fantasmas do passado e
demonstrar que não errara em relação à mulher e ao filho, quando deles se
separou.
Alternando a narração dos fatos com a reflexão sobre eles,
Bentinho, nome carinhoso pelo qual era conhecido, informa-nos ter nascido
em 1842. Seus pais eram Pedro de Albuquerque Santiago e D. Maria da
Glória Fernandes Santiago.
Dois anos após seu nascimento, seu pai foi eleito deputado e
mudou-se de sua fazenda em Itaguaí, no Rio de Janeiro, para a casa de
Matacavalos, na cidade.
Aos quatro anos de idade, Bentinho perdeu o pai. Dona Glória
vendeu a fazenda e os escravos, aplicou o dinheiro e passou a viver de rendas.
Trouxe para o seu convívio dois parentes, igualmente viúvos: Cosme, seu
irmão, e Justina, sua prima.
A história propriamente dita começa quando Bentinho evoca “uma
célebre tarde de novembro de 1857”, em que, ao entrar em casa, ouviu seu
nome numa conversa entre sua mãe e o agregado José Dias. Este alertava a
viúva sobre a necessidade de ela cumprir a promessa que fizera antes do
nascimento de Bentinho. Para sua tristeza, este fica sabendo que sua mãe
pretendia, de fato, cumprir a promessa que fizera a Deus. Como seu primeiro
filho nascera morto, se tivesse um filho homem e saudável, ele seguiria a
carreira eclesiástica.
Embora protelasse o cumprimento da promessa, D. Glória viu-se
obrigada a apressá-la porque José Dias a alertara sobre o envolvimento de
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Bentinho com Capitu (Capitolina Pádua), filha dos vizinhos João Pádua e
Dona Fortunata.
Bentinho e Capitu fizeram planos para impedir que ele fosse para
o seminário. Todos fracassaram. Mesmo ele dizendo não ter vocação para a
vida eclesiástica, D. Glória não cedeu e combinou com Padre Cabral que,
depois de dois anos, se Bentinho não revelasse realmente vocação para o
sacerdócio, estaria livre para seguir outra carreira.
Já no seminário, Bentinho conheceu outro seminarista sem vocação: Ezequiel de Sousa Escobar, filho de um advogado de Curitiba.
Tornaram-se amigos inseparáveis.
Durante a permanência de Bentinho no seminário, Capitu começou a frequentar sua casa e conquistou a afeição de D. Glória que passou a
admitir um romance de seu filho com a vizinha. Se isso acontecesse, dois
problemas estariam resolvidos: o primeiro seria a promessa quebrada por
Bentinho e não por ela; o segundo seria o fim da sua infelicidade por causa da
ausência do único filho.
Numa das visitas à família, Bentinho levou Escobar, cuja simpatia
conquistou todos. Bentinho, por sua vez, continuava seus esforços com José
Dias, para que o ajudasse a sair do seminário. Entretanto foi Escobar quem
encontrou a solução. Segundo ele, D. Glória prometera a Deus um sacerdote
que poderia ser outra pessoa e não necessariamente Bentinho. Para isso,
bastaria que ela custeasse os estudos de um rapaz pobre, mas com vocação
para o sacerdócio. D. Glória consultou o Padre Cabral. Este, o bispo que não
reprovou a ideia. Com isso, Bentinho saiu do seminário aos dezessete anos e
foi estudar Direito em São Paulo, formando-se cinco anos depois.
Por sua vez, Escobar também saiu do seminário, tornou-se um
comerciante bem-sucedido e casou-se com Sancha, amiga de Capitu. O casal
teve uma filha, batizada com o nome de Capitolina, em homenagem a Capitu.
Em 1865, Bentinho e Capitu se casaram e foram morar no Bairro
da Glória. Anos depois, nasceu o filho do casal, batizado com o nome Ezequiel,
em homenagem a Escobar.
Os casais viviam felizes. Em 1871, Escobar morreu afogado no
mar. No enterro, Bentinho surpreendeu Capitu olhando fixamente o cadáver
como se o quisesse tragar como as ondas do mar em dia de ressaca. Ficou
abalado com a cena e quase não conseguiu proferir o discurso que preparara
para fazer à beira do túmulo.
Ezequiel crescia e Bentinho, sempre inseguro e ciumento, começou a ver nele as feições de Escobar. Para ele, ambos não se assemelhavam
apenas nas feições, mas nos gestos e no gosto pela Aritmética. À medida que
Ezequiel crescia, as semelhanças aumentavam e Escobar parecia ressurgir
fisicamente no menino. Não suportando mais ver o filho, Bentinho colocou-o
num internato. Mesmo distante, Ezequiel apegou-se mais a Bentinho, o que
tornou a situação mais difícil.
Levado pelo ciúme e certo de que Ezequiel era fruto da traição de
Capitu, Bentinho decidiu suicidar-se com veneno. Num sábado à noite, foi ao
teatro para assistir à peça OTELO, de Shakespeare. Associou o drama de Otelo
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ao seu e concluiu que quem deveria morrer seria Capitu, tal como ocorrera
com Desdêmona, esposa de Otelo. Passou a noite na rua e chegou pela manhã
a sua casa com o propósito de suicidar-se. Colocou o veneno numa xícara com
café, mas foi interrompido pela chegada de Ezequiel. Teve um impulso
assassino e ofereceu o café envenenado ao menino. No último instante, recuou
gritando que não era seu pai. Capitu entrou na sala, quis saber o que estava
ocorrendo e Bentinho repetiu que não era pai de Ezequiel. Discutiram
bastante e decidiram separar-se. Bentinho levou Capitu e Ezequiel para a
Suíça e voltou sozinho. Depois disso, trocaram algumas cartas e Bentinho
viajou algumas vezes para a Europa, com o objetivo de manter as aparências,
mas sem se encontrar com Capitu. Nesse espaço de tempo, morreram Dona
Glória e José Dias, o agregado.
Bentinho mudou-se para o Engenho Novo. Capitu morreu e foi
enterrada na Suíça. Algum tempo depois, Bentinho recebeu a visita de
Ezequiel, que era a imagem perfeita de Escobar. Ezequiel permaneceu pouco
tempo no Rio de Janeiro, partindo em seguida para uma viagem de estudos
arqueológicos no Oriente Médio. Vítima do tifo, morreu onze meses depois,
sendo enterrado nas proximidades de Jerusalém.
Com a morte dos familiares e de velhos conhecidos, Bentinho
procurou viver da melhor maneira possível, recebendo o consolo de muitas
amigas, mas nenhuma delas o fez esquecer-se de Capitu. Decidiu escrever um
livro de memórias com o objetivo de “atar as duas pontas da vida”, ou seja,
atar o passado e o presente, tentando reconstruir sua história para entender o
que realmente havia ocorrido.
2. PERSONAGENS
Em DOM CASMURRO, há dois tipos de personagens: esféricas,
com grande densidade psicológica, e planas, sem densidade psicológica. Entre
as primeiras, estão Bentinho e Capitu. As demais encaixam-se no segundo
tipo.
•
Bentinho: narrador e personagem, era uma pessoa insegura e ciumenta. Na infância e adolescência, foi dominado pela mãe. Depois foi Capitu
quem o dominou. O próprio nome nos dá impressão de uma pessoa fraca
e submissa. Não tinha vontade própria.
•
Capitu: Protagonista do romance. Duas expressões definem o caráter
dessa personagem, que é surpreendente e misteriosa. Ambas têm a ver
com os seus olhos que são o espelho da alma: “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada”, no dizer de José Dias, e “olhos de ressaca”, segundo
Bentinho. São expressões significativas para caracterizá-la como falsa e
com o poder de “tragar” as pessoas como as ondas do mar em dia de
ressaca. Decidida, sabia o que queria e procurava atingir seus objetivos
“não de salto, mas aos saltinhos”. Ainda conforme Bentinho, “Capitu era
Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era
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homem.” Capitu era pobre e tinha um projeto de vida: subir socialmente.
Seu casamento com Bentinho foi um meio para isso.
•
Escobar: companheiro de Bentinho no seminário. Era de família pobre
de Curitiba. Era uma pessoa decidida que gostava do comércio e teve sucesso negociando café. De raciocínio rápido, fazia cálculos com rapidez e
correção. Demonstrava certo interesse pela fortuna de D. Glória. Era
calculista e esperto. Suposto amante de Capitu, na ótica de Bentinho,
pelos inúmeros indícios que a narrativa nos apresenta.
•
José Dias: tornou-se agregado da família de Bentinho, depois de se
fazer passar por médico homeopata na fazenda de Pedro de Albuquerque Santiago. Conquistou a amizade da família e tinha grande
influência nas decisões de D. Glória. Alimentava o sonho de viajar pela
Europa. Tinha o hábito de empregar adjetivos no grau superlativo. Era
interesseiro e esperto. Foi o primeiro a ver nos olhos de Capitu sinais de
dissimulação.
•
Dona Glória: mãe de Bentinho. Aos quarenta e dois anos, ficou viúva e
manteve-se fiel à memória do marido. Preservou a herança do marido,
depois transferida a Bentinho. Na visão deste, era “uma santa”; na de
Capitu, uma “beata! Carola! Papa-missas!” Sua atitude de fazer uma
promessa de tornar o filho um sacerdote nos sugere egoísmo de sua
parte para satisfazer seu exagerado sentimento de religiosidade. O nome
dado ao filho (Bento) demonstra isso. Era mãe superprotetora.
•
Tio Cosme: irmão de D. Glória, viúvo, advogado. Vivia com a irmã desde
a morte de sua esposa. Era bonachão. Embora não aprovasse a forma de
educação que D. Glória dava a Bentinho, nunca interferiu. Era muito
discreto.
•
Prima Justina: Também viúva e quarentona, foi morar com D. Glória.
Era uma pessoa ressentida, que não viveu bem com o marido. Era muito
franca. Ao referir-se a Capitu, disse a Bentinho que ela era “um pouco
trêfega e olhava por baixo.” Como Tio Cosme, jamais interferiu nas decisões de D. Glória.
•
Pádua: pai de Capitu, funcionário público. Era colecionador de passarinhos e esbanjador. Era um fracassado. José Dias referia-se a ele de forma pejorativa, chamando-o “Tartaruga”, por causa de uma leve corcunda
que ele tinha.
•
Dona Fortunata: esposa de Pádua e mãe de Capitu. Era resoluta e
tomava todas as decisões na casa. Era uma típica dona de casa.
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•
Sancha: amiga de Capitu e esposa de Escobar. Após a morte deste, foi
com a filha (Capitolina) para Curitiba, onde vivia a família de Escobar.
De pouca participação na narrativa.
•
Ezequiel: personagem-chave para se compreenderem as dúvidas de
Bentinho. Seria seu filho ou de Escobar? Todos os indícios (fisionomia,
gestos, fala, “a cabeça aritmética”), na ótica de Bentinho, sugerem- nos a
segunda hipótese. Com a separação do casal, foi com Capitu para a Suíça, onde estudou Arqueologia. Morreu vitimado pela febre tifoide e foi enterrado nas proximidades de Jerusalém, “onde os dous amigos da universidade lhe levantaram um túmulo.” A notícia de sua morte parece não ter
abalado Bentinho que disse: “Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro.”
•
Manduca: jovem leproso com quem Bentinho mantinha correspondência e com quem travou uma polêmica sobre a Guerra da Crimeia
em que países aliados venceram os russos. Manduca defendia com ardor
os aliados. Morreu aos dezoito anos.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
•
DOM CASMURRO é um romance memorialista que se enquadra no
Realismo Psicológico. É composto por 148 capítulos enumerados e
intitulados. O enredo e a ação ocupam plano secundário na narrativa.
Em primeiro, está a sondagem do mundo interior das personagens, o que
é uma característica de Machado de Assis.
• Narrativa não-linear: inicia-se pelo fim, com Bentinho aos cinquenta e
quatro anos. O leitor conhece primeiro a solidão dele nos dois capítulos
iniciais para, em seguida, conhecer os motivos que o levaram a essa
situação. Além disso, a narrativa é marcada por muitas digressões.
•
Entre as digressões, merece destaque a do Capítulo IX, intitulado A ópera, em que um velho tenor italiano, amigo de Bentinho, associa a vida a
uma ópera, ao expor a este a “história da criação”. Após a longa digressão
desse capítulo, Bentinho afirma no seguinte: “Eu, leitor amigo, aceito a
teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita
vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.
Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor.”
Traduzindo as palavras finais de Bentinho, teremos a síntese da
narrativa de DOM CASMURRO:
— duo terníssimo = Bentinho e Capitu
— trio
= Bentinho, Capitu e Escobar
— quatuor
= Bentinho, Capitu, Escobar e Ezequiel
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•
O leitor incluso, característica do estilo machadiano, também está presente nesse romance. A título de exemplo, veja-se a passagem acima
transcrita.
•
Também estão presentes em DOM CASMURRO, a intertextualidade e a
paródia. Bentinho pode ser considerado a paródia de Otelo, personagem
central da peça de igual nome de Shakespeare. Ambos são movidos pelo
ciúme. Há referências a passagens da ILÍADA, de Homero: no Capítulo
XVII, Bentinho faz alusão ao mito da lança de Aquiles que feriu Télefos,
rei da Mísia, e, posteriormente, curou a ferida com a ferrugem da própria lança, ao refletir sobre uma passagem bíblica dita pelo Padre CaCabral. Também o capítulo LXI apresenta intertextualidade com a ILÍADA. José Dias visita Bentinho no seminário. Durante o diálogo, os olhos
do agregado chamam a atenção do seminarista que compara seus movimentos “à vaca de Homero”, episódio em que Menelau, rei de Esparta e
marido de Helena, procura proteger Pátroclo, fiel escudeiro de Aquiles ferido em combate, da mesma forma que faria uma vaca com a sua cria.
•
A metalinguagem (o texto falando do próprio texto), o humor, a ironia e o
pessimismo são constantes na narrativa de Bentinho.
•
Temas que merecem destaque em DOM CASMURRO: a ambição (Capitu
e família), o egoísmo (Dona Glória), o ciúme e a insegurança de si
(Bentinho), o interesse (José Dias e Escobar), o adultério (Capitu e
Escobar) e a elite oitocentista (família de Bentinho.
•
Como romance da segunda fase da obra machadiana, DOM CASMURRO
põe em evidência o choque AMOR x PODER. Este — representado pela
ambição, pelo desejo de ascensão social, pela cobiça e pelo interesse —
sufoca o primeiro, que representa o sentimento.
•
Foco Narrativo: primeira pessoa.
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