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FILOSOFIA




A Filosofia de
Platão




Jorge Nunes Barbosa




                     iBooks Author
Secção

Conteúdos

                                         Introdução	     	     	    	     	    	     	   	   	     	    	

                                         2. Os Principais Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão	 	

Nome:     Jorge Nunes Barbosa            2.1 A Tradição Anglo-Saxónica	 	      	     	   	   	     	    	
Título:   Filosofia de Platão
                                         2.2 Interpretação de Heidegger	 	     	     	   	   	     	    	
Edição:   http://web.mac.com/jbarbo00/
Data:     16 de Agosto de 2007           2.3 A Tradição Alemã		     	     	    	     	   	   	     	    	

                                         2.4 Conclusão	 	      	    	     	    	     	   	   	     	    	

                                         3. A Filosofia de Platão e a Estilometria	   	   	   	     	    	

                                         3.1 Diálogos Socráticos	   	     	    	     	   	   	     	    	

                                         3.2 Diálogos de Transição	 	     	    	     	   	   	     	    	

                                         3.3 Diálogos de Maturidade	      	    	     	   	   	     	    	

                                         3.3.1 O Fédon	 	      	    	     	    	     	   	   	     	    	

                                         3.3.2 O Banquete	     	    	     	    	     	   	   	     	    	

                                         3.3.3 A República	    	    	     	    	     	   	   	     	    	



                                                                                                            1




                                                iBooks Author
3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção Política.	

3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não Escritas	

4. Leitura Ontológica do Bem	

Bibliografia	




                                                                                 2




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Secção

Introdução

                                                         companheiros. Compreende-se, assim, como a
                                                         fundação da Academia corresponde a um objectivo
O objectivo da filosofia de Platão dificilmente pode
                                                         essencialmente educativo perseguido por Platão.
ser apreendido só a partir dos seus diálogos; é
                                                         Mais, entenderemos sobretudo que é no quadro de
também indispensável analisar toda a sua Tarefa
                                                         uma perspectiva educativa que tem de ser analisada
Filosófica. Em Platão, mais do que em algum outro
                                                         e compreendida a tarefa política de Platão. Por outro
filósofo, é tão importante a filosofia escrita como o
                                                         lado, através das suas cartas, podemos comprovar
percurso do filosofar. Assim, por exemplo, as suas
                                                         que a intenção de Platão, quando se deslocou a
reiteradas tentativas de intervenção na política de
                                                         Siracusa, era a de pôr em prática a sua concepção de
Siracusa, a fundação da Academia, a decisão que
                                                         que o filósofo é quem deve governar; este objectivo
tomou relativamente à forma de escrita (diálogos e
                                                         pode ser alcançado de duas maneiras: ou
mitos), parecem conduzir à mesma conclusão: a um
                                                         conseguindo o poder para os filósofos, ou suscitando
projecto político que Platão procura concretizar por
                                                         o interesse pela filosofia naqueles que governam ou
todas as vias possíveis. De acordo com o mais
                                                         podem vir a governar.
famoso dos seus mitos, o “Mito da Caverna”, para
Platão a política é a acção que realiza o escravo que    Porventura de forma menos imediata, mas igualmente
se liberta das correntes, que contempla a realidade      certo é o papel, coerente com a sua proposta política,
verdadeira e que tem a obrigação de educar os seus       que o seu estilo de escrita desempenha na sua obra.


                                                                                                             3




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Mas, para o entender, temos de retroceder a Sócrates,     O diálogo de Platão é uma trama dramática, onde
seu mestre, e aceder às razões da crítica da escrita no   interessa menos convencer o interlocutor, ou até o
mito de “Teut e Tamis” no Fedro ou na Carta VII.          leitor, do que pôr em evidência a forma como reagem
Platão critica a escrita pela sua impossibilidade de      os interlocutores de Sócrates diante de certas
“estar viva”: perante as dúvidas, a escrita não dá        situações, ou o que dizem perante certas perguntas,
resposta; perante as más interpretações (mal              ou o que se passa quando reparam que estão a
intencionadas ou não), a escrita não pode defender-       contradizer-se, etc.
se. Por isso, dado que a escrita é mais ou menos          O diálogo é uma arma política de primeira grandeza,
inevitável, é preferível uma escrita onde haja menos      porque põe em evidência os actores. E tem ainda mais
escrita e mais “oralidade”, isto é, diálogo. Por outro    impacto quando estes actores são sofistas que
lado, a escrita não pode nunca poupar-nos o caminho       pretendem impor o poder do mais forte ou “vender” a
da aprendizagem filosófica, que será sempre uma             virtude, ou o que eles entendem por virtude (boas
aprendizagem interior, realizada com o nosso próprio      palavras), como instrumento para triunfar na vida
esforço, e que consiste basicamente numa intuição         política, aceitando todas as convenções enquanto
(como confessa na Carta VII) que nem todos os             possam ser úteis. Para Platão, pelo contrário, a acção
homens conseguem alcançar. O diálogo é a forma de         política, a justiça, está intimamente ligada à verdade.
escrita que melhor permite realizar esse caminho
                                                          Por isso, o nascimento da política está associado ao
próprio e que melhor se pode defender das más
                                                          nascimento da ontologia. Isto é o que diz J. Patock
interpretações. O diálogo era também o que fazia o
                                                          que defende que, com a filosofia, nasce (em Platão e
seu mestre Sócrates, e é a actividade política por
                                                          em Demócrito) uma única árvore com três ramos a
excelência.
                                                          que ele chama o cuidado da alma: os projectos ético,
                                                          político e ontológico. Para perceber como o projecto
                                                                                                                    4




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ético e o político nascem de uma raiz comum, basta
recorrer ao Mito do Carro Alado do Fedro de Platão: a
alma, tal como é (parece), coincide com a tripla
estrutura da sociedade que é referida na República (o
diálogo político ou sobre a justiça, por excelência).




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Capítulo 1


Paradigmas
Interpretativos da
Obra de Platão

A perspectiva, esboçada na Introdução,
sobre a importância da acção política,
entendida como pedagogia, na tarefa
filosófica de Platão não deve impedir-nos
de analisar outras interpretações
contemporâneas da sua obra.




                                         iBooks Author
2. Os Principais Paradigmas                               considera este diálogo, de forma bastante unilateral e
                                                          forçada (para além de anacrónica) como uma suposta
Interpretativos da Obra de Platão                         teoria do conhecimento platónica.
                                                          Este paradigma interpretativo não nos deve
                                                          surpreender, já que é perfeitamente coerente com o
                                                          predomínio do neo-positivismo em terras de Sua
                                                          Majestade. Com efeito, as perguntas, que estes
2.1 A Tradição Anglo-Saxónica                             intérpretes fazem a Platão, são as perguntas que
                                                          podem ser feitas do ponto de vista do positivismo. O
Desde finais do século XIX, em total concordância
                                                          que é mais surpreendente é a forma como esta
com as perspectivas historicistas, a “estilometria” é o
                                                          perspectiva está a ganhar raízes em Portugal, por via,
método mais universalizado para ordenar
                                                          não do debate, mas da imposição do júri de exames
sequencialmente os diálogos de Platão, de acordo
                                                          de filosofia no ensino secundário.
com o momento cronológico em que foram escritos.
                                                          Precisamente porque as limitações do paradigma
Este método acabou por ser a panaceia para a
                                                          interpretativo positivista deixam muitos pontos sem
tradição analítica anglo-saxónica, representada, neste
                                                          clarificação e muitas perguntas sem resposta, a
aspecto, por exemplo, por Cornford.
                                                          estilometria permitia compensar as lacunas
À partida, esta tradição anglo-saxónica elabora a sua
                                                          interpretativas, explicando-as como “mudanças de
interpretação, centrando-a na fundamentação da
                                                          opinião” de Platão, ao longo da sua vida. É, em
Teoria das Ideias de um ponto de vista lógico e, em
                                                          consequência disto, que surge a famosa divisão da
certos casos, epistemológico. Assim, por exemplo,
                                                          obra de Platão em três ou quatro etapas.
Cornford, na sua famosa interpretação do Teeteto,

                                                                                                               7




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O que deve ser dito, a este respeito, do ponto de vista   filosóficas que possam interpelar o percurso do seu
da pura metodologia científica, é que, embora seja         próprio pensamento. Ora, o caminho do seu pensar,
inegável que qualquer filósofo possa (ou até deva)         nessa altura, vem de Nietzsche. Consequentemente,
mudar de doutrinas ao longo da sua vida reflexiva,         Heidegger interpreta a doutrina platónica de acordo
este é, todavia, um recurso interpretativo de que não     com o anti-platonismo de Nietzsche, isto é, como um
convém abusar. Com efeito, entre duas interpretações      desvio no sentido originário da busca da verdade
que expliquem a totalidade da obra de Platão, de          como desocultação do ente, para a correcção (ou
acordo com o axioma da simplicidade, deveremos            ortótese) do olhar1.
escolher aquela que menos mudanças de opinião ou          Independentemente dos pormenores da sua
doutrina seja necessário supor, uma vez que o autor       interpretação, que têm mais a ver com a sua reflexão
não as enunciou explicitamente.                           sobre o acontecer histórico do ser, a nós interessa-nos
                                                          sobretudo destacar a sua concepção ontológica da
                                                          filosofia de Platão: O Bem seria o Ser de todos os
2.2 Interpretação de Heidegger
                                                          entes2. Diferentemente da hermenêutica saxónica, não
                                                          faz uma leitura moral da ontologia, mas uma leitura
                                                          ontológica da moral. Isto é importante para o estudo
Heidegger faz uma interpretação nitidamente
                                                          da obra de Platão, porque, na perspectiva de
histórico-ontológica da filosofia de Platão. O texto,
                                                          Heidegger, a reflexão de Platão sobre a justiça deixaria
onde explicita esta interpretação, é a sua famosa lição
                                                          de ser um tema meramente político (entendendo-se
sobre a doutrina platónica da verdade, onde realiza
                                                          aqui o político como acção dissociada da teoria), para
uma exegese do Mito da Caverna.
                                                          passar a ser uma preocupação essencialmente
Antes de mais, convém lembrar que Heidegger,
                                                          ontológica, a que não faltariam consequências
enquanto pensador, só se interessa por doutrinas
                                                                                                                8




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políticas, antes pelo contrário, elevaria a dignidade    totalidade do que se sabe a partir de ou a respeito
teórica da política.                                     de Platão, e não só os seus textos escritos.
                                                         No caso de Platão, esta clarificação é essencial,
2.3 A Tradição Alemã                                     porque existe uma tradição indirecta que fala de
                                                         coisas de que Platão falava, e que não chegaram até
Há uma terceira tradição interpretativa, relativamente   nós escritas por ele. Isto não tem nada de estranho,
mais recente, que acolhe uma maior amplitude de e        uma vez que todos os críticos concordam em
uma menor rigidez na interpretação. Trata-se da          entender os diálogos platónicos numa perspectiva
tradição alemã, assim designada por ser no seio da       pedagógica, e num contexto em que a escrita não é
cultura filosófica alemã que granjeou mais adeptos e       considerada o instrumento mais digno, nem sequer o
por nela se situarem as escolas mais influentes, em       mais adequado, para transmitir certas reflexões de
particular, a Escola de Tübingen. No entanto, nem        calado filosófico: a escrita não teria dimensão para
todos os hermeneutas, que podem ser incluídos nesta      suportar, sem a encalhar, a reflexão filosófica mais
terceira via, são alemães e nem toda a cultura alemã     profunda.
segue esta via; basta o exemplo da perspectiva de
                                                         Apesar das críticas, sobretudo a que decorre da
Heidegger, para o percebermos de imediato. A
                                                         perspectiva hermenêutica de Schleiermacher, a Escola
interpretação, mais ou menos coincidente com as
                                                         de Tübingen demonstrou que não é possível fechar os
orientações da escola de Tübingen tem
                                                         olhos perante as numerosas provas, que conferem
representantes de peso também em França e na Itália.
                                                         dignidade filosófica suficiente à tradição não escrita.
Um dos grandes contributos desta linha interpretativa
                                                         Os argumentos, que Kramer e Gaiser apresentam, são
da Escola de Tübingen consiste em aceitar a
                                                         os seguintes:


                                                                                                                9




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➡ Deve ter-se em conta que Aristóteles, que, na      Estes autores descobrem na doutrina não escrita,
  sua Metafísica, fala da “doutrina dos princípios   transmitida de forma indirecta, uma Teoria dos
  do uno e da díade indefinida, ouviu lições de       Princípios. Os princípios são o Uno e a Díade
  Platão na Academia.                                Indefinida (princípio do ser), assim se entendendo a
➡ Deve ter-se em conta a doxografia que, desde        afirmação na República de que o Bem (que é o Uno)
  sempre, se referiu a doutrinas não escritas de     está para além do Ser.
  Platão.                                            Deste modo, a estrutura hierárquica da ontologia de
➡ As razões de Platão para não escrever certas       Platão teria quatro níveis: 1) Princípios, 2)Ideias, 3)
  coisas inserem-se num contexto arcaico e, por      Entes Matemáticos, 4) Sensíveis.
  isso, devemos esclarecê-las (nada nos impede       A doutrina dos princípios corresponde a um
  de escrever agora sobre essas coisas).             pluralismo metodológico, mas constitui também
➡ Estas razões foram expostas na obra escrita de     uma polivalência funcional. Estes princípios são,
  Platão, como no Fedro e na República, e em         tanto os elementos primeiros a que se chega pela
  algumas das suas cartas, em especial na Carta      elementarização, como os géneros universais a que
  VII. Nesses textos, são-nos apresentados           se acede pela generalização.
  argumentos de peso filosófico para não confiar à      Com esta doutrina, estão também relacionados os
  palavra escrita o mais essencial da reflexão        modos de argumentação de Platão: um redutivo-
  filosófica.                                          regressivo (de baixo para cima) e outro derivativo-
➡ Os diálogos, com esta interpretação, não perdem    dedutivo (de cima para baixo).
  conteúdo nem sentido filosóficos, antes pelo
  contrário, ganham-nos.

                                                                                                          10




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outros sábios (por ex. Parménides). Por outro
                                                             lado, se Platão escolhe a forma de diálogo é
2.4 Conclusão                                                porque, ao contrário do que acontece num
                                                             discurso ou num tratado, não há nenhum
Este resumo muito resumido do estado
                                                             personagem que possua a verdade, mas a
contemporâneo dos paradigmas hermenêuticos, sob
                                                             v e r d a d e é a q u i l o q u e d e v e s u rg i r d a
os quais se tenta tirar o máximo partido da obra de
                                                             contraposição dialéctica.
Platão, não pode, nem deve, ser considerado como
um exercício de erudição gratuita. Muito antes pelo        2. Nos diálogos platónicos, não só se dizem coisas,
contrário, só a partir daqui poderemos ser rigorosos,        mas também se passam coisas. Os
tanto para respeitar as limitações inultrapassáveis da       personagens fazem coisas a que os críticos
escrita platónica, como para a interpretar em toda a         anglo-saxões não prestaram, em regra, a menor
sua riqueza, tendo em conta que nada podemos fazer           atenção. Só contrapondo o fazer com a palavra
para obviar os limites de uma escrita em forma de            (logos) se consegue entender a verdadeira ironia
diálogo. Assumir, então, a literalidade da escrita e o       de Platão.
que podemos conhecer através da tradição conduz-           3. Só à luz desta confrontação entre o fazer e a
nos aos seguintes enquadramentos hermenêuticos,              palavra, adquire sentido e magnitude a
em contradição com muito do que se fez no mundo              verdadeira crítica política de Platão aos sofistas.
da interpretação de Platão de acordo com um muito            Só lendo o que Platão os faz dizer em cada
discutível “senso comum”:                                    momento, tendo em conta o que a tradição nos
  1. Sócrates não é a voz oculta de Platão. Para             transmitiu que faziam, é que podemos descobrir
     começar, nem sequer aparece em todos os                 a verdadeira dimensão da reflexão filosófica de
     diálogos; em outros aparece como aprendiz de            Platão sobre a justiça.
                                                                                                                   11




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4. Não esqueçamos, entretanto, que muitos
  diálogos são designados pelo nome de um
  sofista ou de outra personagem conhecida de
  Atenas do seu tempo. Deve ter-se em conta que
  só o nome (próprio ou situação) corresponde ao
  título escolhido por Platão. O subtítulo
  alexandrino (aparentemente indicador do tema
  tratado) não é de Platão. Se Platão pôs o título
  de Górgias a um diálogo, temos, então, de
  pensar que é esse o tema do diálogo.




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Capítulo 2


A Filosofia de
Platão e a
Estilometria

Não é legítimo esquecermo-
nos de que toda a sua filosofia
obedece a uma preocupação
central com a justiça.




                               iBooks Author
3. A Filosofia de Platão e a Estilometria                   são mais ou menos defensáveis as diferentes
                                                           interpretações.


Seja como for, é um facto, que todos os críticos, hoje
em dia, convencionaram aceitar uma certa disposição        3.1 Diálogos Socráticos

cronológica da obra escrita de Platão, e admitem que       De acordo com a tradição anglo-saxónica (por ex.
essa ordem corresponde a ganhos em temas e em              Ross), os primeiros diálogos (Carmides, Laques,
profundidade de tratamento, partindo de um período         Eutifron, Hippias, etc.) já pressupõem uma Teoria das
em que o Sócrates dos diálogos é bastante                  Ideias. Concretamente, segundo ela, Sócrates, ao
assimilável ao que sabemos do Sócrates histórico,
                                                           perguntar “O que é X?” está a pressupor que a X
para chegar finalmente a uma série de diálogos de
                                                           corresponde alguma forma, independentemente de
grande complexidade discursiva e de composição,
                                                           como a concebamos nós de facto. A cada nome
com um esquema variável, mas em que todos os
                                                           comum, corresponde uma entidade real única e que
personagens (incluindo Sócrates) são ficções ao
                                                           admite definição, embora a abordagem de Platão,
serviço da unidade dialógica. Por isso, vale a pena
                                                           neste período, não revele um verdadeiro interesse
fazer economia da apresentação detalhada daquela
                                                           metafísico: estas primeiras ideias não pretendem
divisão em etapas, com que praticamente todos os
                                                           fundamentar o mundo, nem constituir a génese do
críticos concordam, para analisar a reflexão de Platão
                                                           conhecimento. O interesse destas ideias é prático,
sobre a justiça, a partir dos paradigmas interpretativos
                                                           ético e político (tornar os cidadãos virtuosos). Que
atrás referidos. Seguindo o fio condutor da noção de
                                                           esta virtude se possa alcançar pelo conhecimento
justiça, veremos, a pouco e pouco, em que sentido
                                                           deriva de uma postura de intelectualismo moral,
                                                           segundo a qual ninguém faz o mal sabendo-o.
                                                                                                              14




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Encontramos aqui, portanto, um primeiro aspecto da         ideia é também classificação no sentido de espécie,
reflexão filosófica de Platão sobre a justiça: necessita      género...
de conhecimento. A virtude exige o conhecimento. Do        Em Platão, há duas maneiras de exprimir a relação
ponto de vista dialógico, a intenção política da escrita   dos universais com os particulares: participação
filosófica é evidente, não só no conteúdo do que             (imanência) e imitação (transcendência). Não nos
afirmam os diferentes personagens e na importância          podemos decidir por nenhuma delas em particular, no
concedida à virtude, mas também na reivindicação           conjunto da obra de Platão, mas nesta primeira etapa,
que faz Platão da figura de Sócrates. Sabe-se pela          as ideias são imanentes aos particulares: “Todas as
Carta VII que, desde o início da sua obra, a intenção      virtudes têm uma única e mesma forma”. No Crátilo,
filosófica de Platão é orientada pela preocupação em         surge a ideia de que, para que haja conhecimento,
realizar a justiça na polis (ou, dito de outro modo,       nem tudo deve estar submetido ao fluir de Heraclito.
sobre como deve ser organizada uma polis para que a
                                                           O esquema básico destes diálogos, cujo tema é
filosofia não seja de novo objecto de perseguição).
                                                           sempre de ordem moral, consiste no que se
A ideia ou forma platónica, palavra que já aparece nos     denominou estrutura aporética: há uma pretensão de
seus primeiros diálogos, embora não com um sentido         conhecimento, por parte de um determinado
técnico, deriva do verbo grego Idein (ver), e, no          personagem que intervém no diálogo (usualmente o
princípio, tinha o sentido de forma externa, figura.        que dá nome ao diálogo). Esta pretensão de
Mais tarde, o termo desenvolve-se e já pode significar      conhecimento é reduzida ao seu carácter de
forma interna, natureza (physis, também de objectos        pretensão por Sócrates que, através da interrogação
incorpóreos, quase essência), embora continue              (maiêutica) conduz o personagem em questão à
também a significar forma externa. Por outro lado,          aporia (= falta de recursos). Deve ter-se em conta que
                                                           Sócrates também não pretende resolver a questão.
                                                                                                                 15




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Sócrates mantém-se sempre firme no seu “só sei que          3.2 Diálogos de Transição
nada sei”, e a única coisa que pretende pôr à prova é
o saber dos que acham que sabem algo. Esta postura
só se verifica nestes diálogos do primeiro período que,     Como sabemos, a filosofia platónica foi-se
precisamente por isso, se chama socrático, (porque         enriquecendo com o contacto que Platão estabeleceu
parece manter-se nas teses do Sócrates histórico).         nas suas viagens à Sicília com a filosofia pitagórica.
Mais tarde, Sócrates, nos diálogos de Platão,              Desta seita, Platão recolheu a idealidade dos objectos
começará a expor certos núcleos de doutrina positiva       matemáticos, a sua concepção de harmonia        a sua
que constituem precisamente o núcleo central do que        concepção de alma. Isto é: tudo o que lhe faltava, da
se chama Teoria das Ideias. No entanto, já podemos         influência de Sócrates, para dar corpo à sua Teoria
ver, na pergunta pela essência da virtude, a               das Ideias.
preparação deste núcleo doutrinário posterior.
                                                           Mas não é legítimo esquecermo-nos de que toda a
Segundo a tradição heideggeriana, interpreta-se a          sua filosofia obedece a uma preocupação central com
busca da virtude nos primeiros diálogos a partir de        a justiça. As suas viagens à Sicília tiveram sempre
uma perspectiva ontológica: a virtude não seria mais       uma intenção política, no sentido digno que tem para
do que o ser do ente, precisamente o que, mais tarde,      Platão. Sabemos isto pelas suas cartas, em particular
será a ideia de Bem.                                       a Carta VII. Nestas viagens tentou pôr à prova a
                                                           possibilidade de a filosofia governar a cidade, sem
                                                           sucesso, diga-se em abono da verdade. Mais tarde,
                                                           ao regressar da sua primeira viagem3, fundou a
                                                           Academia com a mesma intenção: formar os possíveis
                                                           estadistas da cidade. Como sabemos pelo Mito da
                                                                                                               16




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Caverna, a acção política não é nem mais nem menos        inata ao homem. É uma capacidade da alma imortal,
do que educar os que ainda não viram o exterior da        que conheceu as ideias antes de incarnar
caverna.                                                  A hermenêutica da Escola de Tübingen dá particular
É costume considerar o Ménon como o primeiro              relevo à argumentação de Sócrates sobre a
diálogo de transição, uma vez que nele já aparecem        veracidade da anamnese: esta teoria exige esforço
elementos pitagóricos, ainda antes de estar               (ascese) aos homens. Evidentemente, em pano de
completamente desenvolvida a sua Teoria das Ideias.       fundo está a polémica com o ensino dos sofistas.
No Ménon, expõe a Teoria da Reminiscência ou              Ménon é um ateniense rico que pagou muito dinheiro
Anamnese, segundo a qual todo o conhecimento é só         para aprender o que é a virtude dos sofistas. Face a
a recordação do que a alma (que, portanto, deve pré-      um saber que não requer esforço, mas que se compra
existir ao corpo) conheceu quando ainda estava livre      com dinheiro, Platão contrapõe um saber que não se
do corpo.                                                 pode comprar (e, por isso, pode ser adquirido por um
A função do sensível no conhecimento do mundo             escravo), mas que só depende do esforço pessoal.
empírico é a de nos recordar as ideias; isto é o que se   Por isso, a libertação das próprias correntes, no Mito
pretende demonstrar no episódio em que Sócrates           da Caverna, surge como individual e intransmissível.
interroga um escravo e, exclusivamente através da
interrogação, consegue que o escravo chegue à
relação, em que a área do quadrado aumenta, sempre
que se duplica o seu lado. Dito de outro modo: o
conhecimento matemático (absolutamente verdadeiro)
não carece de nenhuma cultura prévia para ser
alcançado; basta “raciocinar bem”: esta capacidade é
                                                                                                                 17




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3.3 Diálogos de Maturidade                                 Na mesma linha do Ménon, também aqui a doutrina
3.3.1 O Fédon                                              da anamnese cumpre uma dupla função de exigência
                                                           de esforço aos homens:
                                                             1. P o r u m l a d o , a c l a r a d i v i s ã o e n t r e o
O Fédon é seguramente o diálogo mais pitagórico que
                                                               conhecimento interior (pessoal e intransmissível,
conhecemos. È nele que aparecem, pela primeira vez,
                                                               que requer esforço, mas que é o único que nos
as Ideias não como Universais que se manifestam nos
                                                               proporciona sabedoria) e o conhecimento exterior
particulares, mas como ideais, modelos ou limites de
                                                               (a via da doxa de Parménides, as opiniões dos
que as coisas individuais só se conseguem
                                                               sofistas).
aproximar4. A relação entre as ideias e as coisas é
mais uma mimese do que uma participação. Nos                 2. Por outro lado, a questão da morte. Na medida
diálogos anteriores, a relação era só de participação.         em que a filosofia consiste em aprender a separar
                                                               a alma do corpo (o inteligível do sensível), a
A relação que se estabelece entre o conhecimento
                                                               filosofia também não é mais do que aprender a
sensível e a razão é a seguinte: o conhecimento
                                                               morrer e a estar morto. Não esqueçamos a cena
sensível suscita em nós a noção das ideias, mas isto
                                                               contextual do Fédon: um Sócrates valente e feliz
só acontece porque já as conhecemos antes.
                                                               dispõe-se a morrer bebendo a cicuta, rodeado de
A doutrina da anamnese (que já tinha aparecido no
                                                               companheiros pitagóricos (Cebes e Simmias) que
episódio do escravo no Ménon) implica a existência
                                                               choram desesperadamente a sua morte.
separada das Ideias. O conhecimento interior tem de
ser directo entre a alma e as ideias; não pode ter
origem na imanência no sensível.                           3.3.2 O Banquete



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No Banquete, o tema central parece ser a soberba5         afirma que Eros é o mais antigo dos deuses e, para
(hybris) de Sócrates. Sócrates quer discutir com          além disso, o mais eficaz para que os homens
Ágaton, talvez por inveja do seu sucesso. Esta            alcancem a virtude e a felicidade, pois é o que inspira
degradação da filosofia (se entendermos que Sócrates        a coragem, pela qual o amante chega a dar a vida
é a figura da filosofia) poderia ser corroborada pelo        pelo amado. É também diante do amado que o
facto de a verdade já não estar em Sócrates, mas em       amante se envergonha por agir sem honra ou com
Diotima, ou pela participação infeliz de Alcibíades6, o   covardia. Evidentemente, Fedro faz o seu discurso do
fracasso pedagógico de Sócrates. Àgaton é o amado         ponto de vista da sua posição de amado. Não
de Sócrates, e Sócrates inveja-o. Alcibíades está         podemos deixar de ver neste discurso a ironia
ciumento de Ágaton, pois, antes dele, Alcibíades foi      platónica, tendo em conta a pouca virtude que
amado por Sócrates (tê-lo-á deixado devido à sua          demonstra Alcibíades, o amante de Sócrates.
relação com o poder?). Na bebedeira de Alcibíades e       Segundo Pausanias, há duas Afrodites: a Afrodite
no facto de Alcibíades falar por imagens (o nível mais    Pandemo (para todo o povo) e a Afrodite Urânia
baixo da doxa) e de começar as frases por “parece-        (celeste, divina); por conseguinte, haveria dois tipos de
me”, talvez esteja patente que a relação de               amor. O amor vulgar é o que dá satisfação ao desejo
Alcibíades-Sócrates é uma degradação da relação           e, por isso, com esse amor amam-se as mulheres e os
Sócrates-Ágaton. Numa e noutra, o problema é o            mancebos; com o amor celeste, só se amam os
poder. De qualquer modo, o discurso de Diotima é          rapazes que já possuem entendimento, pois este é o
relatado por Sócrates a Fedro e não a nenhum dos          amor da alma.
outros dois.
                                                          Erixímaco (médico) concorda com distinção dos dois
Fedro insiste desde o princípio no seu especial           tipos de amor; no entanto, o amor não existe só nos
interesse pelo tema do amor. No seu discurso, Fedro       homens, mas em todo o mundo natural como
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inclinação para outros objectos. Entende o amor como       Assim sendo, o amor não é bom nem é belo; mas
“tendência”, afirmando por isso que existe um amor          também não é mau nem é feio. É um intermediário
no corpo são e outro no corpo doente. O amor seria         entre os deuses e os homens: um daimon. “A
um poder universal.                                        divindade não contacta directamente com o homem,
Aristófanes (o cómico), por sua vez, conta o mito do       mas é através deste género de seres que têm lugar
Andrógino: o ser humano era composto por um                todo o comércio e todo o diálogo entre os deuses e os
homem e uma mulher, embora houvesse alguns                 homens”. O emparelhamento que faz Sócrates entre o
compostos por dois homens e outros compostos por           amor e a sabedoria põe em causa Alcibíades, que
duas mulheres. Neste sentido, o amor seria a busca         tinha de ser muito ignorante para não ser consciente
da “outra metade”. Obviamente, esta concepção              da sua própria ignorância.
conservadora do amor, que o identifica com a
instituição social do casamento, não era a que mais        3.3.3 A República
convinha aos personagens do Banquete.
Ágaton (que ganhou o prémio do melhor discurso)
                                                           O objecto da República (mais correctamente, Politeia)
contradiz Fedro, defendendo que o amor é o mais
                                                           é o chamado desafio de Gláucon: fazer a defesa da
jovem dos deuses e, para alem disso, delicado. As
                                                           justiça. Glaucon e Adimanto constatam que ninguém,
virtudes do amor seriam as seguintes: o amor
                                                           alguma vez, provou que a injustiça fosse o maior de
participa da justiça, da temperança, da valentia e da
                                                           todos os males, nem a justiça o maior de todos os
sabedoria7.
                                                           bens. É isto que pedem a Sócrates que prove.
Finalmente, chega a vez de Sócrates que explica o
                                                           Sócrates não inventa nenhuma utopia, mas propõe
que lhe disse a ele Diotima: o amor é tendência para,
                                                           que se imagine a génese de uma grande cidade.
e, portanto, para algo de que carece, que lhe faz falta.
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Começamos por uma pequena cidade ou aldeia que            diferentes, o dinheiro, a honra ou prémios, e a
vive em paz e justiça. A cidade cresce com o              sabedoria.
aparecimento do luxo e da riqueza, ou, dito de outro      Platão não afirma que esta é a única tipologia
modo: com a possibilidade dos prazeres sem limite (o      possível. Podemos encontrar muito mais motivações
fluir, a díade indefinida). O indicador deste crescimento   para a acção humana, por exemplo, a paixão
é a necessidade de guardiães. Uma cidade pequena          amorosa. O que acontece, segundo Platão, é que esta
(“de porcos”, em   grego8)   não precisa de guardiães,    tipologia é a mais interessante, pois são estas paixões
mas uma cidade grande precisa deles. O problema do        que dão forma à cidade: a produção é indispensável e
crescimento consiste, então, no perigo de esses           a protecção da cidade grande também. Mas a
guardiães se tornarem nos lobos da própria cidade, se     predominância de qualquer uma destas paixões
não forem convenientemente educados. A educação           deformaria a cidade.
dos guardiães é a purificação da cidade grande.
                                                          Tanto as paixões como os desejos não podem, nem
Apresenta depois a semelhança entre a alma humana         devem, ser eliminados da cidade (corresponderia a
e a justiça, entendida como a boa administração: a        eliminar a riqueza ou a segurança), mas devem ser
virtude dos produtores é a temperança; a virtude dos      guiados pela sabedoria, para que não se destrua a
guardiães tem de ser a coragem e a dos filósofos é a       coesão. Sobre esta tipologia, falar-se-á com mais
prudência. A justiça da cidade consiste em que cada       pormenor à luz da interpretação do Fedro, porque é
parte faça o que lhe corresponde de forma harmónica.      nesta obra que ele nos explica com o “que é que se
Importa destacar que Platão não faz qualquer divisão      parece a alma humana”.
de classes sociais; estabelece simplesmente uma
                                                          No início do livro sétimo da República, encontramos a
tipologia humana: os homens motivam-se por coisas
                                                          magistral conjugação das questões essenciais da
                                                          filosofia: o Mito da Caverna. Não é possível
                                                                                                               21




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acrescentar nada aos rios de tinta que já foram         quem Platão se bate pela ocupação do espaço de
escritos sobre este tema. Mesmo assim, alguns           transmissão da virtude.
aspectos merecem ser salientados.                       A imagem de escravos, num mundo irreal feito de
Em primeiro lugar: este mito não é um mito sobre a      imagens e opiniões, não nos deveria parecer tão
Teoria do Conhecimento. Antes de mais, porque a         estranha como pareceu a Glaucon. Não nos deveria
Teoria do Conhecimento não corresponde a nada,          parecer estranho, a nós que vivemos no mundo da
antes do século XIX. Depois, porque se insere no        opinião pública, das sondagens, das campanhas de
contexto de um debate sobre a justiça. Finalmente,      marketing, de consciência cívica e de educação para
porque Sócrates diz explicitamente que pretende         a saúde, etc.
explicar a situação do homem “relativamente à           O dilema que aparece no mito é o eterno dilema da
educação e à falta dela”. Isto é, este mito é sobre a   humanidade: a tripla batalha entre o conhecimento, a
educação, ou, o que é o mesmo, sobre a transmissão      liberdade e a felicidade. Não podemos ser livres, se
da virtude, tema verdadeiramente nuclear da filosofia     não conhecemos a nossa situação (isto é: o que
platónica, que considera a educação como a acção        realmente escolhemos, quando acreditamos estar a
política mais importante dos humanos.                   fazer opções), mas, por outro lado, para poder
O interior da caverna reproduz o mundo da opinião       conhecer, já temos de ser um pouco livres (como o
construída a partir de imagens e de crenças. As         primeiro escravo que se liberta das correntes). A
imagens são fabricadas por outros indivíduos que        pergunta que nunca passa de moda é a que nos leva a
transportam objectos à luz do fogo. Na Grécia de        procurar saber se estamos dispostos a trocar a nossa
Platão, os fazedores de imagens são, para além de       ignorante felicidade pela simples aspiração a uma
alguns poetas, fundamentalmente os sofistas, contra      (possível) felicidade mais elevada, sabendo que
                                                        corremos o risco de perder tudo.
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alcance quando nós próprios “vemos” aquilo que se
3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção       nos quer fazer entender. Esta visão interna do
Política.                                                indivíduo, que requer esforço e treino, não pode ser
                                                         comprada por nenhuma quantia de dinheiro.
                                                         Podemos, agora, entender com mais clareza o que é
A tese, defendida neste texto sobre a filosofia de
                                                         que está a querer saber Platão, quando se questiona
Platão, é a de que a questão da transmissão da virtude
                                                         sobre a possibilidade de transmissão da virtude. Após
é o núcleo central de todos os diálogos platónicos e é
                                                         o que acabamos de dizer, poderíamos optar
o que os torna mais inteligíveis9.
                                                         simplesmente por pensar que a virtude não pode pura
Como já vimos no Ménon, Platão parte da posição
                                                         e simplesmente ser transmitida. Mas a verdade é que
situada no extremo contrário à dos sofistas: o
                                                         há mecanismos psicológicos e meios de
conhecimento não pode ser objecto de comércio, uma
                                                         comunicação, de que os sofistas estavam bem
vez que só ocorre no interior daquele que conhece e
                                                         conscientes, que podem tornar a virtude desejável,
não é independente das suas capacidades nem da
                                                         digna de apreço e de ser praticada. Estes
sua vontade. O facto de que um escravo (que não
                                                         mecanismos são fundamentais para manter ou alterar
possui nada, mas tem capacidade de esforço) seja
                                                         a ordem política. A Platão, como pensador político,
mais capaz de conseguir compreender uma dedução
                                                         não passa despercebida a ideia de que a ordem
matemática do que um rico ateniense, possuidor de
                                                         política só pode ser construída sobre uma eficiente
muitos cursos de sofistas, mas incapaz de esforço
                                                         transmissão da virtude. De facto, a transmissão dos
intelectual, mostra-nos que a incapacidade para o
                                                         sofistas era, em geral, eficiente, já que conseguiam
esforço não é inata: chama-se preguiça. De facto, o
                                                         aquilo que se propunham alcançar. Só que, para
conhecimento matemático, que é sempre o exemplo
                                                         Platão, a concepção sofista da virtude era uma
do conhecimento para Platão, só fica ao nosso
                                                                                                            23




                                                  iBooks Author
concepção degradada que construía uma                      massas e sem despesas exorbitantes em “campanhas
comunidade, baseada na força e não na harmonia.            eleitorais”.
A pergunta de Platão, sobre a possibilidade de             A este respeito, poder-se-á objectar se não estamos a
transmissão da virtude, não está, de forma nenhuma,        confundir dois domínios separados, a ética e a
fora de moda. Pelo contrário, o debate nos tempos          política. Mas precisamente esta é a grande descoberta
actuais sobre a educação para os valores corresponde       de Platão: a impossibilidade de separar a ética da
à mesma preocupação fundamental: como se                   política. Na sua opinião, caso a virtude fosse
transmite a virtude? No entanto, tudo parece indicar       transmissível e fosse possível a existência de uma
que a resposta a esta pergunta, no nosso tempo,            cidade mais ou menos justa, tal situação não resultaria
como em todos, deve ser bem mais prudente do que           simplesmente de ter boas leis e boas instituições. A
o que por aí se diz e se faz com muita frequência.         justiça é, antes de tudo e sobretudo, uma virtude da
É neste contexto que devemos situar a tão famosa           alma humana. Não pode haver uma cidade justa
quanto mal compreendida critica de Platão à                composta por homens injustos.
democracia. A objecção que Platão apresenta à              Mas, afinal, o que é a justiça para Platão? Tal como
democracia (não esqueçamos que foi a democracia            para Aristóteles, a justiça é uma questão matemática:
ateniense que executou Sócrates) não é nada que não        fazer cada um aquilo que lhe é adequado, isto é,
seja do nosso conhecimento: a democracia facilmente        equidade e retribuição mútua. Embora Aristóteles só
se torna em demagogia10, quando a palavra é objecto        proponha uma via ao homem, por, no seu entender, a
de comércio e de manipulação. Todos sabemos que,           humanidade ser a mesma coisa para todos, Platão,
actualmente, nenhum partido consegue ganhar                muito mais pragmático e conhecedor da política
eleições “democráticas” sem um acordo prévio (tácito       concreta, propõe diferentes vias para a justiça. Isto é:
ou explícito) com alguns meios de comunicação de           segundo Platão, poderia acontecer que fosse pedir
                                                                                                                 24




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demasiado que todos os homens aspirassem à              elementos, deve haver “forças” ou “motores” que
perfeição. Assim sendo, o que deverá fazer-se é pedir   serão as causas dos impulsos, isto é, daquilo que tem
a cada um aquilo que possa dar à comunidade e dar a     o poder de mover o homem.
cada um aquilo que queira obter dela. Isto será a       Segundo Platão, o homem move-se por dois impulsos
justiça para Platão.                                    básicos: os desejos e as paixões. Os desejos, aquilo
Para sabermos o que é adequado a cada homem, é          que mais nos aproxima dos animais (embora, pela sua
necessário que os classifiquemos, isto é, é necessário   plasticidade, sejam muito diferentes dos impulsos e
que procedamos à classificação das almas dos             instintos animais) relacionam-se com a materialidade
homens.                                                 do nosso corpo: impulsos sexuais, fome, etc. Os
Tendo essa classificação uma clara intenção política,    desejos é o que é representado, no mito, pelo “cavalo
as suas consequências podem ser encontradas na          negro”. Por outro lado, também somos movidos por
organização da cidade proposta na Politeia              paixões: o amor, o ódio, a glória, o sucesso, a
(República). No entanto, a fonte, onde podemos          riqueza.... Por fim, há um terceiro princípio na alma: o
encontrar a sua concepção da alma, é o mito do carro    condutor ou áuriga, que não tem força nenhuma, só a
alado explicado por Sócrates no diálogo Fedro.          capacidade de ver. Por isso, a sua única missão é a
                                                        de conduzir, guiar o carro o mais alto possível, mas
Interpretemos, então, o mito. Os grego concebem a
                                                        em harmonia, evitando a ruptura da parelha de
vida como auto-movimento e a alma como o princípio
                                                        cavalos. Este terceiro princípio da alma é a forma
desse auto-movimento vital. A alma é, assim, como
                                                        platónica de entender a sabedoria.
que o “motor” do corpo, se por movimento
entendermos qualquer mudança (crescimento,              Nesta perspectiva, haverá que reconhecer que Platão
aprendizagem, etc.). Para entender a alma, temos de a   não é em absoluto um racionalista, como muitas vezes
decompor nos seus elementos. Entre esses                tem sido qualificado, uma vez que, para ele, a razão
                                                                                                             25




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(logos) carece de força própria e depende tanto dos      simples impulso, que não contém em si os seus
desejos como das paixões, que lhe emprestam as           próprios limites: assim, quando temos muita fome,
suas forças não destrutivas ou paralisantes, para        tendemos a servir-nos de mais comida do que a que
conduzir os homens.                                      somos capazes de comer (ter mais olhos do que
Importa agora explicar a diferença entre desejos e       barriga) e muito mais do que a que nos convém
paixões e por que é que Platão considera a paixão um     comer. O mesmo acontece com todos os desejos. A
princípio positivo (que nos ajuda a ir mais alto) e      imagem de Platão para o desejo é a de fluxo. Os
considera o desejo um princípio negativo (que nos faz    desejos são um fluxo interminável, incapaz de refrear-
rastejar).                                               se a si mesmo e que só nos pode conduzir à doença,
                                                         à pobreza e, em geral, à infelicidade.
A diferença é, muitas vezes, subtil. Por exemplo, o
desejo sexual é simplesmente isso mesmo: desejo;         A imagem de fluxo também é correcta num outro
pelo contrário, o amor é uma paixão. Mas será            sentido. Os desejos só o são de um objecto
realmente tão fácil distingui-los? Do mesmo modo,        determinado, até que sejam saciados. Isto implica
enquanto todos os vícios resultantes de uma              que, para manter viva a chama do desejo, que pode
excessiva subordinação ao corpo (como a gula) são        ser muito facilmente confundida com a chama da vida,
desejos, já a subordinação àquilo que nos permite        temos de mudar continuamente o objecto do desejo.
usufruir desses vícios (o dinheiro) é uma paixão. Como   Em termos hegelianos, diríamos que o desejo só é, no
poderemos, então, estabelecer diferenças e               fundo, desejo de desejar (para sentir-se vivo).
hierarquias entre eles?                                  É aqui que aparecem as paixões, por uma superação
Por desejo, devemos entender toda a inclinação ou        dialéctica. Neste sentido, a paixão supera o simples
tendência imediata para algo. Aqui, a palavra chave é    desejo.
“imediata”. O desejo não é auto-consciente, é um
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As paixões são também uma força que, não sendo           nossos actos é fundamental para uma vida
controlada, nos pode conduzir às piores desgraças.       harmonizada na sociedade; perdendo-se este respeito
Mas têm algo a seu favor: a capacidade de sacrifício.    (sentimento de vergonha ou de culpa), a sociedade
Com efeito, se para alguém é muito importante ser o      estará perdida; se, para além de respeitarmos o “que
primeiro em algo (paixão pelo sucesso), terá de ser      possa ser dito”, nos apropriarmos da virtude pública
capaz de se sacrificar para o conseguir. Isto é o que a   como algo “apreciável em si mesma”, então ela
paixão tem de bom e, por isso, ajuda-nos a subir mais    surgirá em todo o seu esplendor. Assim pensa Platão.
alto, porque contém em si a capacidade para o            Por isso, faz representar as paixões pelo cavalo
esforço, que, como vimos, é fundamental para a           branco. Este princípio, comandado pelas paixões,
transmissão da virtude. Aquele que não seja capaz de     poderia parecer politicamente conservador, se não se
se sacrificar por nada, que não tenha paixões, não        desse o caso de Platão o submeter ao auto-
alcançará nunca a virtude.                               conhecimento, ao conhecimento de si mesmo.
No entanto, embora, na sua componente sócio-             À Razão compete, por conseguinte, conduzir as
comunitária, a virtude seja desejada e apreciada pela    paixões com moderação e sabedoria, conjugando-as
generalidade das pessoas, ela será sobretudo             com o desejo, de modo a que a parelha de cavalos se
procurada por aqueles que queiram triunfar na vida.      mantenha coesa e que, em resultado disso, seja
Mesmo que a virtude não seja desejada por si mesma,      mantida a aspiração à perfeição.
mas pelo respeito e admiração que inspira nos outros,    Nesta descrição relata-se o que seria o ideal, segundo
a verdade é que ela será de qualquer modo muito útil     Platão, no entanto o seu pragmatismo leva-o a
para a convivência social sem que, só por isso, se       reconhecer que são poucos os que aspiram à
constitua num bom princípio moral. Dito de outro         verdadeira perfeição como algo desejável por si
modo: o respeito pelo que “seja dito” a respeito dos     mesmo. Segundo a classificação de Platão, a cada
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parte da alma corresponde uma tipo de homem. Há,           1. Desejos ou apetites. O desejo, uma vez que, em
portanto, homens guiados prioritariamente pelo               última análise, deseja sempre tudo, constitui-se
desejo, há homens prioritariamente guiados pelas             como um fluxo incessante e indeterminado. Os
paixões e há homens prioritariamente guiados pela            desejos constituem a base do nosso querer, e a
sabedoria. Consistindo a justiça em que cada um faça         sua satisfação proporciona-nos a felicidade mais
aquilo que lhe é próprio, esta tipologia de Platão           imediata.
conduz a uma divisão política da comunidade. Esta          2. Mas, precisamente em resultado da sua
divisão não é estática, consiste num equilíbrio              indeterminação (o querer sempre tudo), precisam
dinâmico que resulta precisamente do facto de o              de algo que os determine: temos de renunciar a
problema central da comunidade, o principal problema         algumas coisas para conseguir outras. A
político, ser precisamente a transmissão da virtude. É       satisfação dos nossos apetites, muitas vezes (na
por esta razão que o Mito da Caverna é tão                   realidade, quase sempre), requer esforço. A esta
determinante para a compreensão de toda a filosofia            capacidade de nos sacrificarmos por algo é
de Platão.                                                   aquilo a que se chama força de vontade,
Vejamos agora como é que o esquema de forças, que            representada pelo cavalo brando no mito de
movem a alma, pode ser expresso de outro modo,               Platão. Em resumo: quem tudo quiser e não for
uma vez que constitui o núcleo central do que mais           capaz de fazer o menor sacrifício para conseguir
tarde (na época moderna, sobretudo com Kant), será           alguma coisa, aposta em todos os números que
chamado o problema da vontade. Para que haja algo a          garantidamente não lhe darão nunca a sorte
que possamos chamar vontade, são necessários três            grande. Ao processo que nos permite fazer
elementos:                                                   opções, abdicando de alguns dos nossos


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desejos, chama-se, nos dias de hoje,                   que se encontram face à virtude. Deste modo,
    determinação da vontade.                               entende ele, será possível fazer a justiça na cidade,
  3. Por fim, à razão compete mediar as duas forças         respeitando cada um.
    anteriores. Temos de decidir sobre quais os            Há indivíduos, em que predomina claramente o fluxo
    objectivos que são mais viáveis ou plausíveis e        dos desejos e a incapacidade para o sacrifício. Estes
    quais os que são uma verdadeira loucura. A             indivíduos são felizes como consumidores. Neles, e no
    vontade é livre, se a decisão da razão estiver         facto de constituírem a maioria, baseia-se o
    acima das duas forças (desejos e paixões) e se         consumismo da sociedade, do tempo de Platão, como
    as puder contemplar a uma certa distância.             do nosso (ainda que o do nosso tempo seja muito
    Fique, todavia, bem claro que quando se fala de        distinto). A estes consumidores não podemos pedir
    razão, em Platão, não nos estamos a referir ao         que se sacrifiquem pelo bem comum, só lhes
    mero cálculo (deliberação), mas a uma faculdade        podemos pedir que produzam aquilo que consomem.
    que nos permite discernir sobre os objectivos          Por outro lado, a estes indivíduos não lhes interessa a
    mais cabais. Para Platão, como para outros             política (o governo do que é comum), a não ser que
    filósofos (sobretudo Kant), a razão é o verdadeiro      vejam nela uma oportunidade de negócio. Por isso,
    critério da virtude, e não o benefício ou o prejuízo   segundo Platão, é preferível mantê-los afastados da
    de uma escolha.                                        actividade política. Platão chama a este grupo os
Nesta ordem de pensamento, porque, para Platão,            produtores, por estas mesmas razões. Não devemos
nem todos os homens se encontram no mesmo nível            ver nesta classificação nada que se pareça sequer
de virtude ao mesmo tempo, e alguns nem sequer             com uma divisão de classes sociais. O conceito de
ambicionam a perfeição, podemos classificar os              classes sociais é moderno e não se aplica à
indivíduos em função precisamente da situação em           antiguidade; por outro lado, o conceito de produtores

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de Platão, aplicado ao nosso tempo, seria                  cidade. O bom governo implica a manutenção do
seguramente transversal a todas as classes sociais,        equilíbrio dinâmico entre as duas forças opostas: os
uma vez que se refere a indivíduos dominados pelos         produtores e os guardiães. Este equilíbrio consegue-
desejos e pela incapacidade para o sacrifício.             se, dando-se a cada um aquilo de que necessita e só
Um outro grupo de pessoas aspira, acima de tudo, a         lhe pedindo aquilo que possa dar à comunidade.
ser reconhecido; esses buscam a honra, a fama, a           Observemos, de passagem, que, segundo Platão,
glória, o êxito. Se deixássemos o governo da cidade        deve aceder ao poder aquele que não o deseja nem o
nas suas mãos, seriam tanto ou mais perigosos do           quer, uma vez que será o único que não converterá a
que os anteriores, como acontece nas ditaduras             cidade num grande mercado ou numa praça militar.
militares, porque não hesitariam em inventar guerras       Sobre o que diz no Fedro, a respeito da transmissão
só para poderem ser condecorados, como diz Platão.         da virtude, ainda há um assunto que merece
No entanto devemos reconhecer neles a capacidade           destaque: o papel da escrita.
para sacrificarem todos os seus desejos, a própria
                                                           O Fedro é um dos documentos essenciais11 para
vida, se for caso disso, para salvar a comunidade. Por
                                                           compreender a critica de Platão à escrita. É também
isso, Platão acha que devem ser os guardiães da
                                                           aquele que é muito referenciado pela escola de
cidade.
                                                           Tübingen para situar o diálogo no contexto da filosofia
O ideal, já o vimos, consiste no equilíbrio entre as       de Platão como tarefa filosófica. A critica que se faz
duas forças da alma, sob o comando da razão.               neste diálogo, através do mito de Teut e Tamis, segue
Filósofo é aquele que é capaz de sacrificar os seus         a linha já esboçada no Ménon: as palavras podem ser
desejos e as suas paixões em nome do conhecimento          muito atraentes; pode haver indivíduos que devorem
“simplesmente porque sim”. Só aquele que assim             livros como quem devora manjares (este parece ser o
governa a sua alma tem capacidade para governar a          perfil de Fedro); mas a partir do momento em que a
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palavra pode ser comprada e vendida, objecto de           Só falta dizer que estes últimos diálogos tornam-se
troca, de luxo ou de moda, fica difícil conseguir que      especialmente ricos se, em vez de procurarmos
essa palavra nos conduza ao conhecimento interior. A      contradições, procurarmos uma aproximação com as
palavra, por si só, não consegue defender-se do mau       doutrinas ensinadas por Aristóteles, supostamente
uso que possa ser feito dela.                             ensinadas por Platão na Academia.
Esta critica é uma pista fundamental para                 Segundo Aristóteles, os princípios platónicos seriam o
entendermos como devem ser lidos os diálogos              Uno e a Díade Indefinida.
platónicos: nenhum dos personagens é a voz oculta         Tentemos, então interpretar estes últimos diálogos, à
de Platão; pelo contrário, Platão obriga-nos a jogar o    luz das doutrinas não escritas, tal como o fazem os
jogo que está a ser jogado, obriga-nos a fazer um         hermeneutas da Escola de Tübingen.
esforço para ver para além do que é mostrado.
                                                          Antes de mais, é conveniente esclarecer que a
                                                          dualidade originária de princípios em Platão, contém
3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não      suficiente rigor para não cair na duplicação de um
Escritas                                                  hipotético Uno originário (como acontece no
                                                          Neoplatonismo). O princípio oposto à multiplicidade
                                                          (díade indefinida do grande e do pequeno) não é
Os diálogos Timeu, Leis, Político, Teeteto, Sofista,
                                                          entendido com contrário à unidade, mas como
Parménides e outros costumam ser considerados
                                                          contraditório, isto é, como não unidade, como
como pertencentes à última etapa de Platão.
                                                          indeterminado e ilimitado...
A tradição saxónica utilizou a estilometria para pôr em
                                                          Neste sentido, os princípios participam em conjunto
evidência as supostas contradições com o conteúdo
                                                          no ser, de um modo idêntico a como o fazem a
de outros diálogos anteriores. Já nos referimos a isto.
                                                          matéria e a forma em Aristóteles.
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Por outro lado, estes princípios explicariam a
concepção dialéctica de Platão:
  ➡ Uma dialéctica positiva: todas as coisas têm
     determinações, portanto são unas.
  ➡ Uma dialéctica negativa: Todas as tentativas de
     reduzir a coisa à sua determinação serão
     infrutíferas. Isto é: não é possível encontrar, de
     facto, a unidade que, de direito, deve existir.
Embora a Escola de Tubingen tire muito mais partido
destes princípios, pela nossa parte limitar-nos-emos a
assinalar que, tendo-os presentes, diálogos como o
Parménides, incompreensíveis para uma boa parte da
critica, adquirem muito mais sentido.
Para Platão, o Uno é tanto medida, como limite e
norma. Deste modo, pode também ser identificado
com o Bem que surge no mito da caverna como causa
de tudo o que é. Quer isto dizer que o Bem já não é
uma ideia, mas um princípio das Ideias, que está para
além do ser.




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Capítulo 3



Leitura
Ontológica
do Bem
A compreensão do Bem (isto é: da
perfeição) é tão importante para fazer
bons carros como para construir boas
comunidades.




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4. Leitura Ontológica do Bem                            A tese aqui defendida é a de que o Bem é um
                                                        princípio puramente ontológico, sem deixar, por isso,
                                                        de ser moral ou político.
Embora tenha sido assumido, desde o princípio, que
este texto se orientaria pela noção platónica de        Vejamos então:
“justiça”, não seria correcto esquecer que uma          Antes de mais, coloquemos entra parêntesis as
enorme quantidade de leituras da obra de Platão         nossas actuais divisões e classificações que
partem de uma perspectiva ontológica.                   entendem que “o moral”, “o político” e “o ontológico”
Por isso, poderia parecer que este texto estaria a      seriam ramos diferentes do saber. Recordemos que a
“desfigurar” a obra de Platão ou a evitar os elementos   palavra “bem”, no seu sentido ontológico, por acaso,
mais complexos e mais ricos do seu pensamento. Não      é uma palavra que usamos ainda nesse sentido.
é essa, em todo o caso, a minha opinião. O que          Quando dizemos de algo, por exemplo, que “é um
acontece é exactamente o contrário: nas                 bom carro”, não nos estamos a referir aos seus
interpretações ontológicas, o Bem da República é uma    valores morais, mas a coisa muito diferente: que
espécie de “reducionismo moral ou político” de          cumpre perfeitamente a missão para que foi fabricado.
Platão. Não se entende muito bem como pode um           Pelo contrário, um “mau carro” é aquele que acaba
princípio moral ser o fundamento do que há (“a causa    por não cumprir essa função. Um mau carro não deixa
das estações do ano...”). Pela nossa parte,             de ser um carro-carro, é simplesmente um carro que
deixaremos àqueles que assim interpretam Platão o       não presta. A expressão duplicada (“carro-carro”
encargo de provar que a principal preocupação da sua    também é de uso acertado na nossa língua: uma
obra é ontológica e que o moral e o político é algo     maçã-maçã é uma maçã que tem todas as qualidades
assim como que “deduzido”, à maneira dos sistemas       que deve ter. Utilizando agora a linguagem platónica,
filosóficos do século XIX.                                poderíamos dizer que só o triângulo matemático é
                                                                                                           34




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triângulo-triângulo no seu sentido estrito, uma vez que
todos os triângulos matérias têm sempre algo de
imperfeito.
Por isso, a compreensão do Bem (isto é: da perfeição)
é tão importante para fazer bons carros como para
construir boas comunidades. Se hierarquizarmos
estas coisas, chegaremos à conclusão de que é
prioritário construir boas comunidades, porque, só
neste contexto, podemos saber, mais para além do
que é um bom carro, se os carros, em si, são bons.
Em jeito de conclusão, como foi dito no princípio, de
acordo com a perspectiva de Jan Patocka, em Platão
só há uma coisa, o cuidado da alma, que supõe tanto
um projecto ontológico, como um projecto ético e
político. Só a abstracção formal de um pensamento
analítico os pode separar.




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Secção

Bibliografia

1. CORNFORD,F.M.: La Teoria platónica del
   conocimiento, Ed. Paidós, Barcelona, 1983

2. PATOCKA, J.: Platon et l’Europe, Lagrasse:
   Ed Verdier, 1983

3. ROSEN, S.: Hermenutics as Politics.
   Odeon/Oxford University Press, 1987

4. SALE, J.: L’Ensenyament Platónic I: figures
   i desplaçaments. 1992




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A Filosofia de Platão segundo os principais paradigmas interpretativos

  • 1. FILOSOFIA A Filosofia de Platão Jorge Nunes Barbosa  iBooks Author
  • 2. Secção Conteúdos Introdução 2. Os Principais Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão Nome: Jorge Nunes Barbosa 2.1 A Tradição Anglo-Saxónica Título: Filosofia de Platão 2.2 Interpretação de Heidegger Edição: http://web.mac.com/jbarbo00/ Data: 16 de Agosto de 2007 2.3 A Tradição Alemã 2.4 Conclusão 3. A Filosofia de Platão e a Estilometria 3.1 Diálogos Socráticos 3.2 Diálogos de Transição 3.3 Diálogos de Maturidade 3.3.1 O Fédon 3.3.2 O Banquete 3.3.3 A República 1  iBooks Author
  • 3. 3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção Política. 3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não Escritas 4. Leitura Ontológica do Bem Bibliografia 2  iBooks Author
  • 4. Secção Introdução companheiros. Compreende-se, assim, como a fundação da Academia corresponde a um objectivo O objectivo da filosofia de Platão dificilmente pode essencialmente educativo perseguido por Platão. ser apreendido só a partir dos seus diálogos; é Mais, entenderemos sobretudo que é no quadro de também indispensável analisar toda a sua Tarefa uma perspectiva educativa que tem de ser analisada Filosófica. Em Platão, mais do que em algum outro e compreendida a tarefa política de Platão. Por outro filósofo, é tão importante a filosofia escrita como o lado, através das suas cartas, podemos comprovar percurso do filosofar. Assim, por exemplo, as suas que a intenção de Platão, quando se deslocou a reiteradas tentativas de intervenção na política de Siracusa, era a de pôr em prática a sua concepção de Siracusa, a fundação da Academia, a decisão que que o filósofo é quem deve governar; este objectivo tomou relativamente à forma de escrita (diálogos e pode ser alcançado de duas maneiras: ou mitos), parecem conduzir à mesma conclusão: a um conseguindo o poder para os filósofos, ou suscitando projecto político que Platão procura concretizar por o interesse pela filosofia naqueles que governam ou todas as vias possíveis. De acordo com o mais podem vir a governar. famoso dos seus mitos, o “Mito da Caverna”, para Platão a política é a acção que realiza o escravo que Porventura de forma menos imediata, mas igualmente se liberta das correntes, que contempla a realidade certo é o papel, coerente com a sua proposta política, verdadeira e que tem a obrigação de educar os seus que o seu estilo de escrita desempenha na sua obra. 3  iBooks Author
  • 5. Mas, para o entender, temos de retroceder a Sócrates, O diálogo de Platão é uma trama dramática, onde seu mestre, e aceder às razões da crítica da escrita no interessa menos convencer o interlocutor, ou até o mito de “Teut e Tamis” no Fedro ou na Carta VII. leitor, do que pôr em evidência a forma como reagem Platão critica a escrita pela sua impossibilidade de os interlocutores de Sócrates diante de certas “estar viva”: perante as dúvidas, a escrita não dá situações, ou o que dizem perante certas perguntas, resposta; perante as más interpretações (mal ou o que se passa quando reparam que estão a intencionadas ou não), a escrita não pode defender- contradizer-se, etc. se. Por isso, dado que a escrita é mais ou menos O diálogo é uma arma política de primeira grandeza, inevitável, é preferível uma escrita onde haja menos porque põe em evidência os actores. E tem ainda mais escrita e mais “oralidade”, isto é, diálogo. Por outro impacto quando estes actores são sofistas que lado, a escrita não pode nunca poupar-nos o caminho pretendem impor o poder do mais forte ou “vender” a da aprendizagem filosófica, que será sempre uma virtude, ou o que eles entendem por virtude (boas aprendizagem interior, realizada com o nosso próprio palavras), como instrumento para triunfar na vida esforço, e que consiste basicamente numa intuição política, aceitando todas as convenções enquanto (como confessa na Carta VII) que nem todos os possam ser úteis. Para Platão, pelo contrário, a acção homens conseguem alcançar. O diálogo é a forma de política, a justiça, está intimamente ligada à verdade. escrita que melhor permite realizar esse caminho Por isso, o nascimento da política está associado ao próprio e que melhor se pode defender das más nascimento da ontologia. Isto é o que diz J. Patock interpretações. O diálogo era também o que fazia o que defende que, com a filosofia, nasce (em Platão e seu mestre Sócrates, e é a actividade política por em Demócrito) uma única árvore com três ramos a excelência. que ele chama o cuidado da alma: os projectos ético, político e ontológico. Para perceber como o projecto 4  iBooks Author
  • 6. ético e o político nascem de uma raiz comum, basta recorrer ao Mito do Carro Alado do Fedro de Platão: a alma, tal como é (parece), coincide com a tripla estrutura da sociedade que é referida na República (o diálogo político ou sobre a justiça, por excelência). 5  iBooks Author
  • 7. Capítulo 1 Paradigmas Interpretativos da Obra de Platão A perspectiva, esboçada na Introdução, sobre a importância da acção política, entendida como pedagogia, na tarefa filosófica de Platão não deve impedir-nos de analisar outras interpretações contemporâneas da sua obra.  iBooks Author
  • 8. 2. Os Principais Paradigmas considera este diálogo, de forma bastante unilateral e forçada (para além de anacrónica) como uma suposta Interpretativos da Obra de Platão teoria do conhecimento platónica. Este paradigma interpretativo não nos deve surpreender, já que é perfeitamente coerente com o predomínio do neo-positivismo em terras de Sua Majestade. Com efeito, as perguntas, que estes 2.1 A Tradição Anglo-Saxónica intérpretes fazem a Platão, são as perguntas que podem ser feitas do ponto de vista do positivismo. O Desde finais do século XIX, em total concordância que é mais surpreendente é a forma como esta com as perspectivas historicistas, a “estilometria” é o perspectiva está a ganhar raízes em Portugal, por via, método mais universalizado para ordenar não do debate, mas da imposição do júri de exames sequencialmente os diálogos de Platão, de acordo de filosofia no ensino secundário. com o momento cronológico em que foram escritos. Precisamente porque as limitações do paradigma Este método acabou por ser a panaceia para a interpretativo positivista deixam muitos pontos sem tradição analítica anglo-saxónica, representada, neste clarificação e muitas perguntas sem resposta, a aspecto, por exemplo, por Cornford. estilometria permitia compensar as lacunas À partida, esta tradição anglo-saxónica elabora a sua interpretativas, explicando-as como “mudanças de interpretação, centrando-a na fundamentação da opinião” de Platão, ao longo da sua vida. É, em Teoria das Ideias de um ponto de vista lógico e, em consequência disto, que surge a famosa divisão da certos casos, epistemológico. Assim, por exemplo, obra de Platão em três ou quatro etapas. Cornford, na sua famosa interpretação do Teeteto, 7  iBooks Author
  • 9. O que deve ser dito, a este respeito, do ponto de vista filosóficas que possam interpelar o percurso do seu da pura metodologia científica, é que, embora seja próprio pensamento. Ora, o caminho do seu pensar, inegável que qualquer filósofo possa (ou até deva) nessa altura, vem de Nietzsche. Consequentemente, mudar de doutrinas ao longo da sua vida reflexiva, Heidegger interpreta a doutrina platónica de acordo este é, todavia, um recurso interpretativo de que não com o anti-platonismo de Nietzsche, isto é, como um convém abusar. Com efeito, entre duas interpretações desvio no sentido originário da busca da verdade que expliquem a totalidade da obra de Platão, de como desocultação do ente, para a correcção (ou acordo com o axioma da simplicidade, deveremos ortótese) do olhar1. escolher aquela que menos mudanças de opinião ou Independentemente dos pormenores da sua doutrina seja necessário supor, uma vez que o autor interpretação, que têm mais a ver com a sua reflexão não as enunciou explicitamente. sobre o acontecer histórico do ser, a nós interessa-nos sobretudo destacar a sua concepção ontológica da filosofia de Platão: O Bem seria o Ser de todos os 2.2 Interpretação de Heidegger entes2. Diferentemente da hermenêutica saxónica, não faz uma leitura moral da ontologia, mas uma leitura ontológica da moral. Isto é importante para o estudo Heidegger faz uma interpretação nitidamente da obra de Platão, porque, na perspectiva de histórico-ontológica da filosofia de Platão. O texto, Heidegger, a reflexão de Platão sobre a justiça deixaria onde explicita esta interpretação, é a sua famosa lição de ser um tema meramente político (entendendo-se sobre a doutrina platónica da verdade, onde realiza aqui o político como acção dissociada da teoria), para uma exegese do Mito da Caverna. passar a ser uma preocupação essencialmente Antes de mais, convém lembrar que Heidegger, ontológica, a que não faltariam consequências enquanto pensador, só se interessa por doutrinas 8  iBooks Author
  • 10. políticas, antes pelo contrário, elevaria a dignidade totalidade do que se sabe a partir de ou a respeito teórica da política. de Platão, e não só os seus textos escritos. No caso de Platão, esta clarificação é essencial, 2.3 A Tradição Alemã porque existe uma tradição indirecta que fala de coisas de que Platão falava, e que não chegaram até Há uma terceira tradição interpretativa, relativamente nós escritas por ele. Isto não tem nada de estranho, mais recente, que acolhe uma maior amplitude de e uma vez que todos os críticos concordam em uma menor rigidez na interpretação. Trata-se da entender os diálogos platónicos numa perspectiva tradição alemã, assim designada por ser no seio da pedagógica, e num contexto em que a escrita não é cultura filosófica alemã que granjeou mais adeptos e considerada o instrumento mais digno, nem sequer o por nela se situarem as escolas mais influentes, em mais adequado, para transmitir certas reflexões de particular, a Escola de Tübingen. No entanto, nem calado filosófico: a escrita não teria dimensão para todos os hermeneutas, que podem ser incluídos nesta suportar, sem a encalhar, a reflexão filosófica mais terceira via, são alemães e nem toda a cultura alemã profunda. segue esta via; basta o exemplo da perspectiva de Apesar das críticas, sobretudo a que decorre da Heidegger, para o percebermos de imediato. A perspectiva hermenêutica de Schleiermacher, a Escola interpretação, mais ou menos coincidente com as de Tübingen demonstrou que não é possível fechar os orientações da escola de Tübingen tem olhos perante as numerosas provas, que conferem representantes de peso também em França e na Itália. dignidade filosófica suficiente à tradição não escrita. Um dos grandes contributos desta linha interpretativa Os argumentos, que Kramer e Gaiser apresentam, são da Escola de Tübingen consiste em aceitar a os seguintes: 9  iBooks Author
  • 11. ➡ Deve ter-se em conta que Aristóteles, que, na Estes autores descobrem na doutrina não escrita, sua Metafísica, fala da “doutrina dos princípios transmitida de forma indirecta, uma Teoria dos do uno e da díade indefinida, ouviu lições de Princípios. Os princípios são o Uno e a Díade Platão na Academia. Indefinida (princípio do ser), assim se entendendo a ➡ Deve ter-se em conta a doxografia que, desde afirmação na República de que o Bem (que é o Uno) sempre, se referiu a doutrinas não escritas de está para além do Ser. Platão. Deste modo, a estrutura hierárquica da ontologia de ➡ As razões de Platão para não escrever certas Platão teria quatro níveis: 1) Princípios, 2)Ideias, 3) coisas inserem-se num contexto arcaico e, por Entes Matemáticos, 4) Sensíveis. isso, devemos esclarecê-las (nada nos impede A doutrina dos princípios corresponde a um de escrever agora sobre essas coisas). pluralismo metodológico, mas constitui também ➡ Estas razões foram expostas na obra escrita de uma polivalência funcional. Estes princípios são, Platão, como no Fedro e na República, e em tanto os elementos primeiros a que se chega pela algumas das suas cartas, em especial na Carta elementarização, como os géneros universais a que VII. Nesses textos, são-nos apresentados se acede pela generalização. argumentos de peso filosófico para não confiar à Com esta doutrina, estão também relacionados os palavra escrita o mais essencial da reflexão modos de argumentação de Platão: um redutivo- filosófica. regressivo (de baixo para cima) e outro derivativo- ➡ Os diálogos, com esta interpretação, não perdem dedutivo (de cima para baixo). conteúdo nem sentido filosóficos, antes pelo contrário, ganham-nos. 10  iBooks Author
  • 12. outros sábios (por ex. Parménides). Por outro lado, se Platão escolhe a forma de diálogo é 2.4 Conclusão porque, ao contrário do que acontece num discurso ou num tratado, não há nenhum Este resumo muito resumido do estado personagem que possua a verdade, mas a contemporâneo dos paradigmas hermenêuticos, sob v e r d a d e é a q u i l o q u e d e v e s u rg i r d a os quais se tenta tirar o máximo partido da obra de contraposição dialéctica. Platão, não pode, nem deve, ser considerado como um exercício de erudição gratuita. Muito antes pelo 2. Nos diálogos platónicos, não só se dizem coisas, contrário, só a partir daqui poderemos ser rigorosos, mas também se passam coisas. Os tanto para respeitar as limitações inultrapassáveis da personagens fazem coisas a que os críticos escrita platónica, como para a interpretar em toda a anglo-saxões não prestaram, em regra, a menor sua riqueza, tendo em conta que nada podemos fazer atenção. Só contrapondo o fazer com a palavra para obviar os limites de uma escrita em forma de (logos) se consegue entender a verdadeira ironia diálogo. Assumir, então, a literalidade da escrita e o de Platão. que podemos conhecer através da tradição conduz- 3. Só à luz desta confrontação entre o fazer e a nos aos seguintes enquadramentos hermenêuticos, palavra, adquire sentido e magnitude a em contradição com muito do que se fez no mundo verdadeira crítica política de Platão aos sofistas. da interpretação de Platão de acordo com um muito Só lendo o que Platão os faz dizer em cada discutível “senso comum”: momento, tendo em conta o que a tradição nos 1. Sócrates não é a voz oculta de Platão. Para transmitiu que faziam, é que podemos descobrir começar, nem sequer aparece em todos os a verdadeira dimensão da reflexão filosófica de diálogos; em outros aparece como aprendiz de Platão sobre a justiça. 11  iBooks Author
  • 13. 4. Não esqueçamos, entretanto, que muitos diálogos são designados pelo nome de um sofista ou de outra personagem conhecida de Atenas do seu tempo. Deve ter-se em conta que só o nome (próprio ou situação) corresponde ao título escolhido por Platão. O subtítulo alexandrino (aparentemente indicador do tema tratado) não é de Platão. Se Platão pôs o título de Górgias a um diálogo, temos, então, de pensar que é esse o tema do diálogo. 12  iBooks Author
  • 14. Capítulo 2 A Filosofia de Platão e a Estilometria Não é legítimo esquecermo- nos de que toda a sua filosofia obedece a uma preocupação central com a justiça.  iBooks Author
  • 15. 3. A Filosofia de Platão e a Estilometria são mais ou menos defensáveis as diferentes interpretações. Seja como for, é um facto, que todos os críticos, hoje em dia, convencionaram aceitar uma certa disposição 3.1 Diálogos Socráticos cronológica da obra escrita de Platão, e admitem que De acordo com a tradição anglo-saxónica (por ex. essa ordem corresponde a ganhos em temas e em Ross), os primeiros diálogos (Carmides, Laques, profundidade de tratamento, partindo de um período Eutifron, Hippias, etc.) já pressupõem uma Teoria das em que o Sócrates dos diálogos é bastante Ideias. Concretamente, segundo ela, Sócrates, ao assimilável ao que sabemos do Sócrates histórico, perguntar “O que é X?” está a pressupor que a X para chegar finalmente a uma série de diálogos de corresponde alguma forma, independentemente de grande complexidade discursiva e de composição, como a concebamos nós de facto. A cada nome com um esquema variável, mas em que todos os comum, corresponde uma entidade real única e que personagens (incluindo Sócrates) são ficções ao admite definição, embora a abordagem de Platão, serviço da unidade dialógica. Por isso, vale a pena neste período, não revele um verdadeiro interesse fazer economia da apresentação detalhada daquela metafísico: estas primeiras ideias não pretendem divisão em etapas, com que praticamente todos os fundamentar o mundo, nem constituir a génese do críticos concordam, para analisar a reflexão de Platão conhecimento. O interesse destas ideias é prático, sobre a justiça, a partir dos paradigmas interpretativos ético e político (tornar os cidadãos virtuosos). Que atrás referidos. Seguindo o fio condutor da noção de esta virtude se possa alcançar pelo conhecimento justiça, veremos, a pouco e pouco, em que sentido deriva de uma postura de intelectualismo moral, segundo a qual ninguém faz o mal sabendo-o. 14  iBooks Author
  • 16. Encontramos aqui, portanto, um primeiro aspecto da ideia é também classificação no sentido de espécie, reflexão filosófica de Platão sobre a justiça: necessita género... de conhecimento. A virtude exige o conhecimento. Do Em Platão, há duas maneiras de exprimir a relação ponto de vista dialógico, a intenção política da escrita dos universais com os particulares: participação filosófica é evidente, não só no conteúdo do que (imanência) e imitação (transcendência). Não nos afirmam os diferentes personagens e na importância podemos decidir por nenhuma delas em particular, no concedida à virtude, mas também na reivindicação conjunto da obra de Platão, mas nesta primeira etapa, que faz Platão da figura de Sócrates. Sabe-se pela as ideias são imanentes aos particulares: “Todas as Carta VII que, desde o início da sua obra, a intenção virtudes têm uma única e mesma forma”. No Crátilo, filosófica de Platão é orientada pela preocupação em surge a ideia de que, para que haja conhecimento, realizar a justiça na polis (ou, dito de outro modo, nem tudo deve estar submetido ao fluir de Heraclito. sobre como deve ser organizada uma polis para que a O esquema básico destes diálogos, cujo tema é filosofia não seja de novo objecto de perseguição). sempre de ordem moral, consiste no que se A ideia ou forma platónica, palavra que já aparece nos denominou estrutura aporética: há uma pretensão de seus primeiros diálogos, embora não com um sentido conhecimento, por parte de um determinado técnico, deriva do verbo grego Idein (ver), e, no personagem que intervém no diálogo (usualmente o princípio, tinha o sentido de forma externa, figura. que dá nome ao diálogo). Esta pretensão de Mais tarde, o termo desenvolve-se e já pode significar conhecimento é reduzida ao seu carácter de forma interna, natureza (physis, também de objectos pretensão por Sócrates que, através da interrogação incorpóreos, quase essência), embora continue (maiêutica) conduz o personagem em questão à também a significar forma externa. Por outro lado, aporia (= falta de recursos). Deve ter-se em conta que Sócrates também não pretende resolver a questão. 15  iBooks Author
  • 17. Sócrates mantém-se sempre firme no seu “só sei que 3.2 Diálogos de Transição nada sei”, e a única coisa que pretende pôr à prova é o saber dos que acham que sabem algo. Esta postura só se verifica nestes diálogos do primeiro período que, Como sabemos, a filosofia platónica foi-se precisamente por isso, se chama socrático, (porque enriquecendo com o contacto que Platão estabeleceu parece manter-se nas teses do Sócrates histórico). nas suas viagens à Sicília com a filosofia pitagórica. Mais tarde, Sócrates, nos diálogos de Platão, Desta seita, Platão recolheu a idealidade dos objectos começará a expor certos núcleos de doutrina positiva matemáticos, a sua concepção de harmonia a sua que constituem precisamente o núcleo central do que concepção de alma. Isto é: tudo o que lhe faltava, da se chama Teoria das Ideias. No entanto, já podemos influência de Sócrates, para dar corpo à sua Teoria ver, na pergunta pela essência da virtude, a das Ideias. preparação deste núcleo doutrinário posterior. Mas não é legítimo esquecermo-nos de que toda a Segundo a tradição heideggeriana, interpreta-se a sua filosofia obedece a uma preocupação central com busca da virtude nos primeiros diálogos a partir de a justiça. As suas viagens à Sicília tiveram sempre uma perspectiva ontológica: a virtude não seria mais uma intenção política, no sentido digno que tem para do que o ser do ente, precisamente o que, mais tarde, Platão. Sabemos isto pelas suas cartas, em particular será a ideia de Bem. a Carta VII. Nestas viagens tentou pôr à prova a possibilidade de a filosofia governar a cidade, sem sucesso, diga-se em abono da verdade. Mais tarde, ao regressar da sua primeira viagem3, fundou a Academia com a mesma intenção: formar os possíveis estadistas da cidade. Como sabemos pelo Mito da 16  iBooks Author
  • 18. Caverna, a acção política não é nem mais nem menos inata ao homem. É uma capacidade da alma imortal, do que educar os que ainda não viram o exterior da que conheceu as ideias antes de incarnar caverna. A hermenêutica da Escola de Tübingen dá particular É costume considerar o Ménon como o primeiro relevo à argumentação de Sócrates sobre a diálogo de transição, uma vez que nele já aparecem veracidade da anamnese: esta teoria exige esforço elementos pitagóricos, ainda antes de estar (ascese) aos homens. Evidentemente, em pano de completamente desenvolvida a sua Teoria das Ideias. fundo está a polémica com o ensino dos sofistas. No Ménon, expõe a Teoria da Reminiscência ou Ménon é um ateniense rico que pagou muito dinheiro Anamnese, segundo a qual todo o conhecimento é só para aprender o que é a virtude dos sofistas. Face a a recordação do que a alma (que, portanto, deve pré- um saber que não requer esforço, mas que se compra existir ao corpo) conheceu quando ainda estava livre com dinheiro, Platão contrapõe um saber que não se do corpo. pode comprar (e, por isso, pode ser adquirido por um A função do sensível no conhecimento do mundo escravo), mas que só depende do esforço pessoal. empírico é a de nos recordar as ideias; isto é o que se Por isso, a libertação das próprias correntes, no Mito pretende demonstrar no episódio em que Sócrates da Caverna, surge como individual e intransmissível. interroga um escravo e, exclusivamente através da interrogação, consegue que o escravo chegue à relação, em que a área do quadrado aumenta, sempre que se duplica o seu lado. Dito de outro modo: o conhecimento matemático (absolutamente verdadeiro) não carece de nenhuma cultura prévia para ser alcançado; basta “raciocinar bem”: esta capacidade é 17  iBooks Author
  • 19. 3.3 Diálogos de Maturidade Na mesma linha do Ménon, também aqui a doutrina 3.3.1 O Fédon da anamnese cumpre uma dupla função de exigência de esforço aos homens: 1. P o r u m l a d o , a c l a r a d i v i s ã o e n t r e o O Fédon é seguramente o diálogo mais pitagórico que conhecimento interior (pessoal e intransmissível, conhecemos. È nele que aparecem, pela primeira vez, que requer esforço, mas que é o único que nos as Ideias não como Universais que se manifestam nos proporciona sabedoria) e o conhecimento exterior particulares, mas como ideais, modelos ou limites de (a via da doxa de Parménides, as opiniões dos que as coisas individuais só se conseguem sofistas). aproximar4. A relação entre as ideias e as coisas é mais uma mimese do que uma participação. Nos 2. Por outro lado, a questão da morte. Na medida diálogos anteriores, a relação era só de participação. em que a filosofia consiste em aprender a separar a alma do corpo (o inteligível do sensível), a A relação que se estabelece entre o conhecimento filosofia também não é mais do que aprender a sensível e a razão é a seguinte: o conhecimento morrer e a estar morto. Não esqueçamos a cena sensível suscita em nós a noção das ideias, mas isto contextual do Fédon: um Sócrates valente e feliz só acontece porque já as conhecemos antes. dispõe-se a morrer bebendo a cicuta, rodeado de A doutrina da anamnese (que já tinha aparecido no companheiros pitagóricos (Cebes e Simmias) que episódio do escravo no Ménon) implica a existência choram desesperadamente a sua morte. separada das Ideias. O conhecimento interior tem de ser directo entre a alma e as ideias; não pode ter origem na imanência no sensível. 3.3.2 O Banquete 18  iBooks Author
  • 20. No Banquete, o tema central parece ser a soberba5 afirma que Eros é o mais antigo dos deuses e, para (hybris) de Sócrates. Sócrates quer discutir com além disso, o mais eficaz para que os homens Ágaton, talvez por inveja do seu sucesso. Esta alcancem a virtude e a felicidade, pois é o que inspira degradação da filosofia (se entendermos que Sócrates a coragem, pela qual o amante chega a dar a vida é a figura da filosofia) poderia ser corroborada pelo pelo amado. É também diante do amado que o facto de a verdade já não estar em Sócrates, mas em amante se envergonha por agir sem honra ou com Diotima, ou pela participação infeliz de Alcibíades6, o covardia. Evidentemente, Fedro faz o seu discurso do fracasso pedagógico de Sócrates. Àgaton é o amado ponto de vista da sua posição de amado. Não de Sócrates, e Sócrates inveja-o. Alcibíades está podemos deixar de ver neste discurso a ironia ciumento de Ágaton, pois, antes dele, Alcibíades foi platónica, tendo em conta a pouca virtude que amado por Sócrates (tê-lo-á deixado devido à sua demonstra Alcibíades, o amante de Sócrates. relação com o poder?). Na bebedeira de Alcibíades e Segundo Pausanias, há duas Afrodites: a Afrodite no facto de Alcibíades falar por imagens (o nível mais Pandemo (para todo o povo) e a Afrodite Urânia baixo da doxa) e de começar as frases por “parece- (celeste, divina); por conseguinte, haveria dois tipos de me”, talvez esteja patente que a relação de amor. O amor vulgar é o que dá satisfação ao desejo Alcibíades-Sócrates é uma degradação da relação e, por isso, com esse amor amam-se as mulheres e os Sócrates-Ágaton. Numa e noutra, o problema é o mancebos; com o amor celeste, só se amam os poder. De qualquer modo, o discurso de Diotima é rapazes que já possuem entendimento, pois este é o relatado por Sócrates a Fedro e não a nenhum dos amor da alma. outros dois. Erixímaco (médico) concorda com distinção dos dois Fedro insiste desde o princípio no seu especial tipos de amor; no entanto, o amor não existe só nos interesse pelo tema do amor. No seu discurso, Fedro homens, mas em todo o mundo natural como 19  iBooks Author
  • 21. inclinação para outros objectos. Entende o amor como Assim sendo, o amor não é bom nem é belo; mas “tendência”, afirmando por isso que existe um amor também não é mau nem é feio. É um intermediário no corpo são e outro no corpo doente. O amor seria entre os deuses e os homens: um daimon. “A um poder universal. divindade não contacta directamente com o homem, Aristófanes (o cómico), por sua vez, conta o mito do mas é através deste género de seres que têm lugar Andrógino: o ser humano era composto por um todo o comércio e todo o diálogo entre os deuses e os homem e uma mulher, embora houvesse alguns homens”. O emparelhamento que faz Sócrates entre o compostos por dois homens e outros compostos por amor e a sabedoria põe em causa Alcibíades, que duas mulheres. Neste sentido, o amor seria a busca tinha de ser muito ignorante para não ser consciente da “outra metade”. Obviamente, esta concepção da sua própria ignorância. conservadora do amor, que o identifica com a instituição social do casamento, não era a que mais 3.3.3 A República convinha aos personagens do Banquete. Ágaton (que ganhou o prémio do melhor discurso) O objecto da República (mais correctamente, Politeia) contradiz Fedro, defendendo que o amor é o mais é o chamado desafio de Gláucon: fazer a defesa da jovem dos deuses e, para alem disso, delicado. As justiça. Glaucon e Adimanto constatam que ninguém, virtudes do amor seriam as seguintes: o amor alguma vez, provou que a injustiça fosse o maior de participa da justiça, da temperança, da valentia e da todos os males, nem a justiça o maior de todos os sabedoria7. bens. É isto que pedem a Sócrates que prove. Finalmente, chega a vez de Sócrates que explica o Sócrates não inventa nenhuma utopia, mas propõe que lhe disse a ele Diotima: o amor é tendência para, que se imagine a génese de uma grande cidade. e, portanto, para algo de que carece, que lhe faz falta. 20  iBooks Author
  • 22. Começamos por uma pequena cidade ou aldeia que diferentes, o dinheiro, a honra ou prémios, e a vive em paz e justiça. A cidade cresce com o sabedoria. aparecimento do luxo e da riqueza, ou, dito de outro Platão não afirma que esta é a única tipologia modo: com a possibilidade dos prazeres sem limite (o possível. Podemos encontrar muito mais motivações fluir, a díade indefinida). O indicador deste crescimento para a acção humana, por exemplo, a paixão é a necessidade de guardiães. Uma cidade pequena amorosa. O que acontece, segundo Platão, é que esta (“de porcos”, em grego8) não precisa de guardiães, tipologia é a mais interessante, pois são estas paixões mas uma cidade grande precisa deles. O problema do que dão forma à cidade: a produção é indispensável e crescimento consiste, então, no perigo de esses a protecção da cidade grande também. Mas a guardiães se tornarem nos lobos da própria cidade, se predominância de qualquer uma destas paixões não forem convenientemente educados. A educação deformaria a cidade. dos guardiães é a purificação da cidade grande. Tanto as paixões como os desejos não podem, nem Apresenta depois a semelhança entre a alma humana devem, ser eliminados da cidade (corresponderia a e a justiça, entendida como a boa administração: a eliminar a riqueza ou a segurança), mas devem ser virtude dos produtores é a temperança; a virtude dos guiados pela sabedoria, para que não se destrua a guardiães tem de ser a coragem e a dos filósofos é a coesão. Sobre esta tipologia, falar-se-á com mais prudência. A justiça da cidade consiste em que cada pormenor à luz da interpretação do Fedro, porque é parte faça o que lhe corresponde de forma harmónica. nesta obra que ele nos explica com o “que é que se Importa destacar que Platão não faz qualquer divisão parece a alma humana”. de classes sociais; estabelece simplesmente uma No início do livro sétimo da República, encontramos a tipologia humana: os homens motivam-se por coisas magistral conjugação das questões essenciais da filosofia: o Mito da Caverna. Não é possível 21  iBooks Author
  • 23. acrescentar nada aos rios de tinta que já foram quem Platão se bate pela ocupação do espaço de escritos sobre este tema. Mesmo assim, alguns transmissão da virtude. aspectos merecem ser salientados. A imagem de escravos, num mundo irreal feito de Em primeiro lugar: este mito não é um mito sobre a imagens e opiniões, não nos deveria parecer tão Teoria do Conhecimento. Antes de mais, porque a estranha como pareceu a Glaucon. Não nos deveria Teoria do Conhecimento não corresponde a nada, parecer estranho, a nós que vivemos no mundo da antes do século XIX. Depois, porque se insere no opinião pública, das sondagens, das campanhas de contexto de um debate sobre a justiça. Finalmente, marketing, de consciência cívica e de educação para porque Sócrates diz explicitamente que pretende a saúde, etc. explicar a situação do homem “relativamente à O dilema que aparece no mito é o eterno dilema da educação e à falta dela”. Isto é, este mito é sobre a humanidade: a tripla batalha entre o conhecimento, a educação, ou, o que é o mesmo, sobre a transmissão liberdade e a felicidade. Não podemos ser livres, se da virtude, tema verdadeiramente nuclear da filosofia não conhecemos a nossa situação (isto é: o que platónica, que considera a educação como a acção realmente escolhemos, quando acreditamos estar a política mais importante dos humanos. fazer opções), mas, por outro lado, para poder O interior da caverna reproduz o mundo da opinião conhecer, já temos de ser um pouco livres (como o construída a partir de imagens e de crenças. As primeiro escravo que se liberta das correntes). A imagens são fabricadas por outros indivíduos que pergunta que nunca passa de moda é a que nos leva a transportam objectos à luz do fogo. Na Grécia de procurar saber se estamos dispostos a trocar a nossa Platão, os fazedores de imagens são, para além de ignorante felicidade pela simples aspiração a uma alguns poetas, fundamentalmente os sofistas, contra (possível) felicidade mais elevada, sabendo que corremos o risco de perder tudo. 22  iBooks Author
  • 24. alcance quando nós próprios “vemos” aquilo que se 3.3.4 O Fedro: A Transmissão da Virtude como Acção nos quer fazer entender. Esta visão interna do Política. indivíduo, que requer esforço e treino, não pode ser comprada por nenhuma quantia de dinheiro. Podemos, agora, entender com mais clareza o que é A tese, defendida neste texto sobre a filosofia de que está a querer saber Platão, quando se questiona Platão, é a de que a questão da transmissão da virtude sobre a possibilidade de transmissão da virtude. Após é o núcleo central de todos os diálogos platónicos e é o que acabamos de dizer, poderíamos optar o que os torna mais inteligíveis9. simplesmente por pensar que a virtude não pode pura Como já vimos no Ménon, Platão parte da posição e simplesmente ser transmitida. Mas a verdade é que situada no extremo contrário à dos sofistas: o há mecanismos psicológicos e meios de conhecimento não pode ser objecto de comércio, uma comunicação, de que os sofistas estavam bem vez que só ocorre no interior daquele que conhece e conscientes, que podem tornar a virtude desejável, não é independente das suas capacidades nem da digna de apreço e de ser praticada. Estes sua vontade. O facto de que um escravo (que não mecanismos são fundamentais para manter ou alterar possui nada, mas tem capacidade de esforço) seja a ordem política. A Platão, como pensador político, mais capaz de conseguir compreender uma dedução não passa despercebida a ideia de que a ordem matemática do que um rico ateniense, possuidor de política só pode ser construída sobre uma eficiente muitos cursos de sofistas, mas incapaz de esforço transmissão da virtude. De facto, a transmissão dos intelectual, mostra-nos que a incapacidade para o sofistas era, em geral, eficiente, já que conseguiam esforço não é inata: chama-se preguiça. De facto, o aquilo que se propunham alcançar. Só que, para conhecimento matemático, que é sempre o exemplo Platão, a concepção sofista da virtude era uma do conhecimento para Platão, só fica ao nosso 23  iBooks Author
  • 25. concepção degradada que construía uma massas e sem despesas exorbitantes em “campanhas comunidade, baseada na força e não na harmonia. eleitorais”. A pergunta de Platão, sobre a possibilidade de A este respeito, poder-se-á objectar se não estamos a transmissão da virtude, não está, de forma nenhuma, confundir dois domínios separados, a ética e a fora de moda. Pelo contrário, o debate nos tempos política. Mas precisamente esta é a grande descoberta actuais sobre a educação para os valores corresponde de Platão: a impossibilidade de separar a ética da à mesma preocupação fundamental: como se política. Na sua opinião, caso a virtude fosse transmite a virtude? No entanto, tudo parece indicar transmissível e fosse possível a existência de uma que a resposta a esta pergunta, no nosso tempo, cidade mais ou menos justa, tal situação não resultaria como em todos, deve ser bem mais prudente do que simplesmente de ter boas leis e boas instituições. A o que por aí se diz e se faz com muita frequência. justiça é, antes de tudo e sobretudo, uma virtude da É neste contexto que devemos situar a tão famosa alma humana. Não pode haver uma cidade justa quanto mal compreendida critica de Platão à composta por homens injustos. democracia. A objecção que Platão apresenta à Mas, afinal, o que é a justiça para Platão? Tal como democracia (não esqueçamos que foi a democracia para Aristóteles, a justiça é uma questão matemática: ateniense que executou Sócrates) não é nada que não fazer cada um aquilo que lhe é adequado, isto é, seja do nosso conhecimento: a democracia facilmente equidade e retribuição mútua. Embora Aristóteles só se torna em demagogia10, quando a palavra é objecto proponha uma via ao homem, por, no seu entender, a de comércio e de manipulação. Todos sabemos que, humanidade ser a mesma coisa para todos, Platão, actualmente, nenhum partido consegue ganhar muito mais pragmático e conhecedor da política eleições “democráticas” sem um acordo prévio (tácito concreta, propõe diferentes vias para a justiça. Isto é: ou explícito) com alguns meios de comunicação de segundo Platão, poderia acontecer que fosse pedir 24  iBooks Author
  • 26. demasiado que todos os homens aspirassem à elementos, deve haver “forças” ou “motores” que perfeição. Assim sendo, o que deverá fazer-se é pedir serão as causas dos impulsos, isto é, daquilo que tem a cada um aquilo que possa dar à comunidade e dar a o poder de mover o homem. cada um aquilo que queira obter dela. Isto será a Segundo Platão, o homem move-se por dois impulsos justiça para Platão. básicos: os desejos e as paixões. Os desejos, aquilo Para sabermos o que é adequado a cada homem, é que mais nos aproxima dos animais (embora, pela sua necessário que os classifiquemos, isto é, é necessário plasticidade, sejam muito diferentes dos impulsos e que procedamos à classificação das almas dos instintos animais) relacionam-se com a materialidade homens. do nosso corpo: impulsos sexuais, fome, etc. Os Tendo essa classificação uma clara intenção política, desejos é o que é representado, no mito, pelo “cavalo as suas consequências podem ser encontradas na negro”. Por outro lado, também somos movidos por organização da cidade proposta na Politeia paixões: o amor, o ódio, a glória, o sucesso, a (República). No entanto, a fonte, onde podemos riqueza.... Por fim, há um terceiro princípio na alma: o encontrar a sua concepção da alma, é o mito do carro condutor ou áuriga, que não tem força nenhuma, só a alado explicado por Sócrates no diálogo Fedro. capacidade de ver. Por isso, a sua única missão é a de conduzir, guiar o carro o mais alto possível, mas Interpretemos, então, o mito. Os grego concebem a em harmonia, evitando a ruptura da parelha de vida como auto-movimento e a alma como o princípio cavalos. Este terceiro princípio da alma é a forma desse auto-movimento vital. A alma é, assim, como platónica de entender a sabedoria. que o “motor” do corpo, se por movimento entendermos qualquer mudança (crescimento, Nesta perspectiva, haverá que reconhecer que Platão aprendizagem, etc.). Para entender a alma, temos de a não é em absoluto um racionalista, como muitas vezes decompor nos seus elementos. Entre esses tem sido qualificado, uma vez que, para ele, a razão 25  iBooks Author
  • 27. (logos) carece de força própria e depende tanto dos simples impulso, que não contém em si os seus desejos como das paixões, que lhe emprestam as próprios limites: assim, quando temos muita fome, suas forças não destrutivas ou paralisantes, para tendemos a servir-nos de mais comida do que a que conduzir os homens. somos capazes de comer (ter mais olhos do que Importa agora explicar a diferença entre desejos e barriga) e muito mais do que a que nos convém paixões e por que é que Platão considera a paixão um comer. O mesmo acontece com todos os desejos. A princípio positivo (que nos ajuda a ir mais alto) e imagem de Platão para o desejo é a de fluxo. Os considera o desejo um princípio negativo (que nos faz desejos são um fluxo interminável, incapaz de refrear- rastejar). se a si mesmo e que só nos pode conduzir à doença, à pobreza e, em geral, à infelicidade. A diferença é, muitas vezes, subtil. Por exemplo, o desejo sexual é simplesmente isso mesmo: desejo; A imagem de fluxo também é correcta num outro pelo contrário, o amor é uma paixão. Mas será sentido. Os desejos só o são de um objecto realmente tão fácil distingui-los? Do mesmo modo, determinado, até que sejam saciados. Isto implica enquanto todos os vícios resultantes de uma que, para manter viva a chama do desejo, que pode excessiva subordinação ao corpo (como a gula) são ser muito facilmente confundida com a chama da vida, desejos, já a subordinação àquilo que nos permite temos de mudar continuamente o objecto do desejo. usufruir desses vícios (o dinheiro) é uma paixão. Como Em termos hegelianos, diríamos que o desejo só é, no poderemos, então, estabelecer diferenças e fundo, desejo de desejar (para sentir-se vivo). hierarquias entre eles? É aqui que aparecem as paixões, por uma superação Por desejo, devemos entender toda a inclinação ou dialéctica. Neste sentido, a paixão supera o simples tendência imediata para algo. Aqui, a palavra chave é desejo. “imediata”. O desejo não é auto-consciente, é um 26  iBooks Author
  • 28. As paixões são também uma força que, não sendo nossos actos é fundamental para uma vida controlada, nos pode conduzir às piores desgraças. harmonizada na sociedade; perdendo-se este respeito Mas têm algo a seu favor: a capacidade de sacrifício. (sentimento de vergonha ou de culpa), a sociedade Com efeito, se para alguém é muito importante ser o estará perdida; se, para além de respeitarmos o “que primeiro em algo (paixão pelo sucesso), terá de ser possa ser dito”, nos apropriarmos da virtude pública capaz de se sacrificar para o conseguir. Isto é o que a como algo “apreciável em si mesma”, então ela paixão tem de bom e, por isso, ajuda-nos a subir mais surgirá em todo o seu esplendor. Assim pensa Platão. alto, porque contém em si a capacidade para o Por isso, faz representar as paixões pelo cavalo esforço, que, como vimos, é fundamental para a branco. Este princípio, comandado pelas paixões, transmissão da virtude. Aquele que não seja capaz de poderia parecer politicamente conservador, se não se se sacrificar por nada, que não tenha paixões, não desse o caso de Platão o submeter ao auto- alcançará nunca a virtude. conhecimento, ao conhecimento de si mesmo. No entanto, embora, na sua componente sócio- À Razão compete, por conseguinte, conduzir as comunitária, a virtude seja desejada e apreciada pela paixões com moderação e sabedoria, conjugando-as generalidade das pessoas, ela será sobretudo com o desejo, de modo a que a parelha de cavalos se procurada por aqueles que queiram triunfar na vida. mantenha coesa e que, em resultado disso, seja Mesmo que a virtude não seja desejada por si mesma, mantida a aspiração à perfeição. mas pelo respeito e admiração que inspira nos outros, Nesta descrição relata-se o que seria o ideal, segundo a verdade é que ela será de qualquer modo muito útil Platão, no entanto o seu pragmatismo leva-o a para a convivência social sem que, só por isso, se reconhecer que são poucos os que aspiram à constitua num bom princípio moral. Dito de outro verdadeira perfeição como algo desejável por si modo: o respeito pelo que “seja dito” a respeito dos mesmo. Segundo a classificação de Platão, a cada 27  iBooks Author
  • 29. parte da alma corresponde uma tipo de homem. Há, 1. Desejos ou apetites. O desejo, uma vez que, em portanto, homens guiados prioritariamente pelo última análise, deseja sempre tudo, constitui-se desejo, há homens prioritariamente guiados pelas como um fluxo incessante e indeterminado. Os paixões e há homens prioritariamente guiados pela desejos constituem a base do nosso querer, e a sabedoria. Consistindo a justiça em que cada um faça sua satisfação proporciona-nos a felicidade mais aquilo que lhe é próprio, esta tipologia de Platão imediata. conduz a uma divisão política da comunidade. Esta 2. Mas, precisamente em resultado da sua divisão não é estática, consiste num equilíbrio indeterminação (o querer sempre tudo), precisam dinâmico que resulta precisamente do facto de o de algo que os determine: temos de renunciar a problema central da comunidade, o principal problema algumas coisas para conseguir outras. A político, ser precisamente a transmissão da virtude. É satisfação dos nossos apetites, muitas vezes (na por esta razão que o Mito da Caverna é tão realidade, quase sempre), requer esforço. A esta determinante para a compreensão de toda a filosofia capacidade de nos sacrificarmos por algo é de Platão. aquilo a que se chama força de vontade, Vejamos agora como é que o esquema de forças, que representada pelo cavalo brando no mito de movem a alma, pode ser expresso de outro modo, Platão. Em resumo: quem tudo quiser e não for uma vez que constitui o núcleo central do que mais capaz de fazer o menor sacrifício para conseguir tarde (na época moderna, sobretudo com Kant), será alguma coisa, aposta em todos os números que chamado o problema da vontade. Para que haja algo a garantidamente não lhe darão nunca a sorte que possamos chamar vontade, são necessários três grande. Ao processo que nos permite fazer elementos: opções, abdicando de alguns dos nossos 28  iBooks Author
  • 30. desejos, chama-se, nos dias de hoje, que se encontram face à virtude. Deste modo, determinação da vontade. entende ele, será possível fazer a justiça na cidade, 3. Por fim, à razão compete mediar as duas forças respeitando cada um. anteriores. Temos de decidir sobre quais os Há indivíduos, em que predomina claramente o fluxo objectivos que são mais viáveis ou plausíveis e dos desejos e a incapacidade para o sacrifício. Estes quais os que são uma verdadeira loucura. A indivíduos são felizes como consumidores. Neles, e no vontade é livre, se a decisão da razão estiver facto de constituírem a maioria, baseia-se o acima das duas forças (desejos e paixões) e se consumismo da sociedade, do tempo de Platão, como as puder contemplar a uma certa distância. do nosso (ainda que o do nosso tempo seja muito Fique, todavia, bem claro que quando se fala de distinto). A estes consumidores não podemos pedir razão, em Platão, não nos estamos a referir ao que se sacrifiquem pelo bem comum, só lhes mero cálculo (deliberação), mas a uma faculdade podemos pedir que produzam aquilo que consomem. que nos permite discernir sobre os objectivos Por outro lado, a estes indivíduos não lhes interessa a mais cabais. Para Platão, como para outros política (o governo do que é comum), a não ser que filósofos (sobretudo Kant), a razão é o verdadeiro vejam nela uma oportunidade de negócio. Por isso, critério da virtude, e não o benefício ou o prejuízo segundo Platão, é preferível mantê-los afastados da de uma escolha. actividade política. Platão chama a este grupo os Nesta ordem de pensamento, porque, para Platão, produtores, por estas mesmas razões. Não devemos nem todos os homens se encontram no mesmo nível ver nesta classificação nada que se pareça sequer de virtude ao mesmo tempo, e alguns nem sequer com uma divisão de classes sociais. O conceito de ambicionam a perfeição, podemos classificar os classes sociais é moderno e não se aplica à indivíduos em função precisamente da situação em antiguidade; por outro lado, o conceito de produtores 29  iBooks Author
  • 31. de Platão, aplicado ao nosso tempo, seria cidade. O bom governo implica a manutenção do seguramente transversal a todas as classes sociais, equilíbrio dinâmico entre as duas forças opostas: os uma vez que se refere a indivíduos dominados pelos produtores e os guardiães. Este equilíbrio consegue- desejos e pela incapacidade para o sacrifício. se, dando-se a cada um aquilo de que necessita e só Um outro grupo de pessoas aspira, acima de tudo, a lhe pedindo aquilo que possa dar à comunidade. ser reconhecido; esses buscam a honra, a fama, a Observemos, de passagem, que, segundo Platão, glória, o êxito. Se deixássemos o governo da cidade deve aceder ao poder aquele que não o deseja nem o nas suas mãos, seriam tanto ou mais perigosos do quer, uma vez que será o único que não converterá a que os anteriores, como acontece nas ditaduras cidade num grande mercado ou numa praça militar. militares, porque não hesitariam em inventar guerras Sobre o que diz no Fedro, a respeito da transmissão só para poderem ser condecorados, como diz Platão. da virtude, ainda há um assunto que merece No entanto devemos reconhecer neles a capacidade destaque: o papel da escrita. para sacrificarem todos os seus desejos, a própria O Fedro é um dos documentos essenciais11 para vida, se for caso disso, para salvar a comunidade. Por compreender a critica de Platão à escrita. É também isso, Platão acha que devem ser os guardiães da aquele que é muito referenciado pela escola de cidade. Tübingen para situar o diálogo no contexto da filosofia O ideal, já o vimos, consiste no equilíbrio entre as de Platão como tarefa filosófica. A critica que se faz duas forças da alma, sob o comando da razão. neste diálogo, através do mito de Teut e Tamis, segue Filósofo é aquele que é capaz de sacrificar os seus a linha já esboçada no Ménon: as palavras podem ser desejos e as suas paixões em nome do conhecimento muito atraentes; pode haver indivíduos que devorem “simplesmente porque sim”. Só aquele que assim livros como quem devora manjares (este parece ser o governa a sua alma tem capacidade para governar a perfil de Fedro); mas a partir do momento em que a 30  iBooks Author
  • 32. palavra pode ser comprada e vendida, objecto de Só falta dizer que estes últimos diálogos tornam-se troca, de luxo ou de moda, fica difícil conseguir que especialmente ricos se, em vez de procurarmos essa palavra nos conduza ao conhecimento interior. A contradições, procurarmos uma aproximação com as palavra, por si só, não consegue defender-se do mau doutrinas ensinadas por Aristóteles, supostamente uso que possa ser feito dela. ensinadas por Platão na Academia. Esta critica é uma pista fundamental para Segundo Aristóteles, os princípios platónicos seriam o entendermos como devem ser lidos os diálogos Uno e a Díade Indefinida. platónicos: nenhum dos personagens é a voz oculta Tentemos, então interpretar estes últimos diálogos, à de Platão; pelo contrário, Platão obriga-nos a jogar o luz das doutrinas não escritas, tal como o fazem os jogo que está a ser jogado, obriga-nos a fazer um hermeneutas da Escola de Tübingen. esforço para ver para além do que é mostrado. Antes de mais, é conveniente esclarecer que a dualidade originária de princípios em Platão, contém 3.4 Os Últimos Diálogos de Platão e as Doutrinas não suficiente rigor para não cair na duplicação de um Escritas hipotético Uno originário (como acontece no Neoplatonismo). O princípio oposto à multiplicidade (díade indefinida do grande e do pequeno) não é Os diálogos Timeu, Leis, Político, Teeteto, Sofista, entendido com contrário à unidade, mas como Parménides e outros costumam ser considerados contraditório, isto é, como não unidade, como como pertencentes à última etapa de Platão. indeterminado e ilimitado... A tradição saxónica utilizou a estilometria para pôr em Neste sentido, os princípios participam em conjunto evidência as supostas contradições com o conteúdo no ser, de um modo idêntico a como o fazem a de outros diálogos anteriores. Já nos referimos a isto. matéria e a forma em Aristóteles. 31  iBooks Author
  • 33. Por outro lado, estes princípios explicariam a concepção dialéctica de Platão: ➡ Uma dialéctica positiva: todas as coisas têm determinações, portanto são unas. ➡ Uma dialéctica negativa: Todas as tentativas de reduzir a coisa à sua determinação serão infrutíferas. Isto é: não é possível encontrar, de facto, a unidade que, de direito, deve existir. Embora a Escola de Tubingen tire muito mais partido destes princípios, pela nossa parte limitar-nos-emos a assinalar que, tendo-os presentes, diálogos como o Parménides, incompreensíveis para uma boa parte da critica, adquirem muito mais sentido. Para Platão, o Uno é tanto medida, como limite e norma. Deste modo, pode também ser identificado com o Bem que surge no mito da caverna como causa de tudo o que é. Quer isto dizer que o Bem já não é uma ideia, mas um princípio das Ideias, que está para além do ser. 32  iBooks Author
  • 34. Capítulo 3 Leitura Ontológica do Bem A compreensão do Bem (isto é: da perfeição) é tão importante para fazer bons carros como para construir boas comunidades.  iBooks Author
  • 35. 4. Leitura Ontológica do Bem A tese aqui defendida é a de que o Bem é um princípio puramente ontológico, sem deixar, por isso, de ser moral ou político. Embora tenha sido assumido, desde o princípio, que este texto se orientaria pela noção platónica de Vejamos então: “justiça”, não seria correcto esquecer que uma Antes de mais, coloquemos entra parêntesis as enorme quantidade de leituras da obra de Platão nossas actuais divisões e classificações que partem de uma perspectiva ontológica. entendem que “o moral”, “o político” e “o ontológico” Por isso, poderia parecer que este texto estaria a seriam ramos diferentes do saber. Recordemos que a “desfigurar” a obra de Platão ou a evitar os elementos palavra “bem”, no seu sentido ontológico, por acaso, mais complexos e mais ricos do seu pensamento. Não é uma palavra que usamos ainda nesse sentido. é essa, em todo o caso, a minha opinião. O que Quando dizemos de algo, por exemplo, que “é um acontece é exactamente o contrário: nas bom carro”, não nos estamos a referir aos seus interpretações ontológicas, o Bem da República é uma valores morais, mas a coisa muito diferente: que espécie de “reducionismo moral ou político” de cumpre perfeitamente a missão para que foi fabricado. Platão. Não se entende muito bem como pode um Pelo contrário, um “mau carro” é aquele que acaba princípio moral ser o fundamento do que há (“a causa por não cumprir essa função. Um mau carro não deixa das estações do ano...”). Pela nossa parte, de ser um carro-carro, é simplesmente um carro que deixaremos àqueles que assim interpretam Platão o não presta. A expressão duplicada (“carro-carro” encargo de provar que a principal preocupação da sua também é de uso acertado na nossa língua: uma obra é ontológica e que o moral e o político é algo maçã-maçã é uma maçã que tem todas as qualidades assim como que “deduzido”, à maneira dos sistemas que deve ter. Utilizando agora a linguagem platónica, filosóficos do século XIX. poderíamos dizer que só o triângulo matemático é 34  iBooks Author
  • 36. triângulo-triângulo no seu sentido estrito, uma vez que todos os triângulos matérias têm sempre algo de imperfeito. Por isso, a compreensão do Bem (isto é: da perfeição) é tão importante para fazer bons carros como para construir boas comunidades. Se hierarquizarmos estas coisas, chegaremos à conclusão de que é prioritário construir boas comunidades, porque, só neste contexto, podemos saber, mais para além do que é um bom carro, se os carros, em si, são bons. Em jeito de conclusão, como foi dito no princípio, de acordo com a perspectiva de Jan Patocka, em Platão só há uma coisa, o cuidado da alma, que supõe tanto um projecto ontológico, como um projecto ético e político. Só a abstracção formal de um pensamento analítico os pode separar. 35  iBooks Author
  • 37. Secção Bibliografia 1. CORNFORD,F.M.: La Teoria platónica del conocimiento, Ed. Paidós, Barcelona, 1983 2. PATOCKA, J.: Platon et l’Europe, Lagrasse: Ed Verdier, 1983 3. ROSEN, S.: Hermenutics as Politics. Odeon/Oxford University Press, 1987 4. SALE, J.: L’Ensenyament Platónic I: figures i desplaçaments. 1992 36  iBooks Author