Este trabalho apresenta uma experiência prática de agroecologia e diálogo de saberes realizada na comunidade de Itatuba, município de Embu das Artes. O objetivo foi implantar um sistema agroflorestal a partir do conhecimento tradicional camponês e da agroecologia, promovendo a conservação da diversidade cultural e natural local. Inicialmente, contextualiza a proposta teórica da agroecologia e seu enfoque sustentável, além de abordar o saber tradicional camponês e a migração cultural no Brasil. Em seguid
1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
JOHN HERBERT BADI ZAPPALA
A agroecologia e o saber tradicional camponês:
teoria e prática para a conservação da diversidade cultural e natural a
caminho do envolvimento sustentável numa nova realidade
São Paulo
2011
2. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
JOHN HERBERT BADI ZAPPALA
A agroecologia e o saber tradicional camponês:
teoria e prática para a conservação da diversidade cultural e natural a
caminho do envolvimento sustentável numa nova realidade
Trabalho de Graduação Individual II apresentado ao
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de bacharel em Geografia.
Orientação: Profª. Drª. Larissa Mies Bombardi
São Paulo
2011
3. Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
4. Para ser grande sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa
5. Agradecimentos_________________________________________________
Em primeiro lugar, quero agradecer a ―luz‖ que ilumina nossos caminhos
de acordo com os passos que queremos dar; e a vida, por ser tão rica de
momentos que nos transformam a cada dia.
Agradeço a meus pais, João e Claudete, meu irmão, Adalto, e toda
minha família por proporcionar meu crescimento com liberdade sobre minhas
escolhas e pelo amor transmitido com tanto carinho. Em memória, lembro
aqueles que já partiram daqui e deixaram muitas saudades, em especial
minhas avós Felipa e Odete, meu avô Salvador, minha tia Teresa e meu tio
Marcos, despertando em mim uma grande vontade de viver plenamente.
A minha companheira Angélica, pelo amor que cultivamos em nossa
relação de forma tão intensa, e a sua presença em minha vida e em toda minha
trajetória acadêmica, apoiando, dialogando e acreditando nos meus ideais para
construção de uma nova realidade. A sua família, agora também minha, sou
muito grato por toda confiança e carinho desde que nos conhecemos.
Aos amigos e companheiros que passaram por minha vida de maneira
tão cativante, com os quais compartilhei momentos tão especiais e
inesquecíveis.
A professora Larissa, pela orientação fundamental e paciência no longo
processo de elaboração deste trabalho. Pelo estímulo e respeito as minhas
idéias, com sugestões para que a pesquisa apresentasse uma postura mais
crítica perante a proposta. Pelas aulas, trabalhos de campo e pesquisa no
assentamento de reforma agrária durante a graduação, que me fizeram ter
grande admiração por suas idéias e tê-la como referência enquanto professora
e pesquisadora.
As professoras Sueli e Valéria, por terem contribuído imensamente no
desejo de elaborar este trabalho pelas discussões em aulas e trabalhos de
campo que realizamos nas disciplinas que ministraram. Também, por compor a
banca de avaliação desta pesquisa e contribuir com a discussão aqui proposta,
o que sem dúvida enriquecerá este importante momento de minha história.
A todos os demais professores da Geografia e da Educação por
despertar e orientar meu senso crítico pulsante. Agradeço também aos
funcionários e alunos companheiros que estiveram presentes nessa
6. caminhada, contribuindo com diálogos e reflexões onde todos puderam
construir uma parte de sua formação.
Ao querido coletivo EPARREH, por ter feito parte de minha vida durante
a graduação, pois nele obtive novas perspectivas de mundo que abriram
muitas portas na minha mente. Inegavelmente foi um divisor de águas no meu
rumo, possibilitando descobertas incríveis nos estudos e nas práticas que
realizamos naqueles felizes momentos. Muito do que construí e conquistei de
lá para cá devo a esse contato especial, pois ―todos somos um‖!
A todos que fizeram e fazem parte da equipe do projeto Colhendo
Sustentabilidade. Pela paciência, ensinamentos, conquistas, desafios,
discussões e grandes diálogos que me proporcionaram uma formação
profissional e pessoal singular. Que belo trabalho realizamos! Indiscutivelmente
deixamos contribuições para a construção de um mundo diferente.
A todas as famílias que fizeram parte desse projeto e permitiram uma
troca de saberes sobremaneira enriquecedora em nossos felizes encontros
cotidianos. Com essa gente simples e cativante o trabalho na terra foi único, e
as tenho em meu coração. Garanto que elas fizeram despertar ainda mais o
camponês existente em minha alma.
A todos que por ventura venham a utilizar este trabalho e de alguma
maneira multipliquem essa discussão.
Por fim, agradeço por viver e ser parte da natureza.
Dedico este trabalho a todos os agricultores que com sua arte tradicional
de tratar a terra, alimentam a vida no planeta e proporcionam ensinamentos
que podem contribuir para nos levar a novos rumos em sociedade.
7. Lista de Figuras_________________________________________________
Figura 01: Comparação entre sistemas de monocultura e sistemas com
diversidade.........................................................................................................21
Figura 02: Localização aproximada do território das populações tradicionais
não-indígenas no Brasil.....................................................................................53
Figura 03: Localização do município de Embu das Artes e suas bacias
hidrográficas......................................................................................................94
Figura 04: População migrante residente no município segundo seu local de
origem................................................................................................................99
Figura 05: Mapa de localização e área da APA Embu-Verde..........................100
Figura 06: Uso do solo na área da bacia hidrográfica do Rio Cotia
compreendida pelo município..........................................................................101
Figura 07: Localização do terreno disponibilizado para o sistema produtivo. A
área do polígono vermelho corresponde a inicialmente cedida, e a área em
amarelo a realmente utilizada..........................................................................115
Figuras 08 e 09: Algumas hortaliças e frutas cultivadas no
agroecossistema..............................................................................................129
Figura 10: Comparação entre a sucessão natural, agricultura convencional e
agricultura agroflorestal num ecossistema......................................................135
Figuras 11 e 12: Agricultores realizando as colheitas e levando os
produtos...........................................................................................................137
Figuras 13 e 14: Algumas hortaliças e plantas anuais colhidas no
agroecossistema..............................................................................................138
Lista de Fotografias______________________________________________
Foto 01: Vista panorâmica do núcleo urbano do bairro de Itatuba..................104
Foto 02: Sra. Josefa na residência onde viveu na comunidade de Itatuba.
Cultivava alimentos consorciados para seu consumo, a partir de seu saber
tradicional camponês originário na Bahia........................................................114
Foto 03: Propriedade do Sr. José Matias, onde realizava um cultivo de
hortaliças para comercialização direta no bairro de Itatuba e região. Seu
manejo é misto, com agricultura orgânica e convencional..............................114
Foto 04: Sr. Nelson, um dos moradores mais antigos da comunidade de Itatuba
vindo do interior paulista. Possui um Sistema Agroflorestal intuitivo consorciado
8. com diversos cultivos e criação animal............................................................114
Foto 05: Sr. Cassiano, morador da Fazenda Atalaia veio de Minas Gerais ainda
jovem. Possui um pequeno quintal Agroflorestal que cultiva com muito orgulho
e carinho a partir de seus conhecimentos tradicionais....................................114
Foto 06: Sr. Braulino, baiano morador da comunidade chamada Fazenda
Atalaia. Na residência onde vive, cultiva lavouras, hortaliças, plantas medicinais
e um pomar, além de criar galinhas.................................................................114
Foto 07: Sra. Henelida, moradora do bairro Capuava. Aplica o manejo
tradicional no cultivo de hortaliças, temperos e chás para auto-consumo, venda
e doação a parentes e vizinhos da comunidade..............................................114
Foto 08: Sra. Luiza Ferrazo, descendente de europeus que migrou do Rio
Grande do Sul para viver com sua família na comunidade do Jd. Mimás, onde
cultiva plantas medicinais, flores e ornamentais..............................................115
Foto 09: Sra. Zezé, agricultora com um conhecimento tradicional camponês
muito rico. Em sua residência na Fazenda Atalaia, cultivava uma grande
diversidade de culturas consorciadas em lavouras........................................ 115
Foto 10: Propriedade do Sr. Hirai e Sra. Miko, integrantes da colônia japonesa
e vivem no Vale do Sol. São pequenos agricultores convencionais com foco na
cultura de pêssego, hortaliças e orquídeas..................................................... 115
Foto 11: Pedro, jovem que trabalha com artesanato em sua residência no Jd.
Mimás. Em seu quintal ele mantém uma grande diversidade de cultivos para
alimentação e recuperação ambiental.............................................................115
Fotos 12 e 13: Produção de composto orgânico.............................................122
Fotos 14 e 15: Manejo e plantio de adubação verde.......................................123
Foto 16: Início da implantação do sistema produtivo de Itatuba......................125
Foto 17: Elaboração dos canteiros iniciais para o cultivo de hortaliças...........125
Foto 18: Primeiros cultivos consorciados de plantas anuais...........................128
Foto 19: Plantios iniciais de hortaliças associadas nos canteiros...................128
Foto 20: Diversidade de hortaliças na área onde antes havia adubação
verde................................................................................................................130
Foto 21: Canteiro circular com alfaces diversas e plantas aromáticas no
centro...............................................................................................................130
Foto 22: Elaboração de canteiro instantâneo com palha.................................131
Foto 23: Plantio de ervas medicinais no canteiro espiral estruturado com
9. entulho.............................................................................................................131
Foto 24: Área do SAF preparada antes de sua implantação no terreno.........133
Foto 25: Área do SAF após um ano e meio de crescimento das espécies
plantadas.........................................................................................................133
Foto 26: Mutirão para implantação de lavoura.................................................136
Foto 27: Mutirão para implantação da agrofloresta.........................................136
Foto 28: Banca semanal em frente ao parque municipal................................143
Foto 29: Comercialização na Feira Agrossustentável......................................143
Fotos 16 e 30: Imagens de dois momentos do agroecossistema de Itatuba no
mesmo ângulo de visão: no início em dezembro de 2008 e após três anos de
atividades em novembro de 2011....................................................................144
Lista de Tabelas_________________________________________________
Tabela 01: Efeitos negativos da agricultura moderna no ambiente...................19
Tabela 02: Comparação entre as tecnologias da Revolução Verde e da
Agroecologia......................................................................................................26
Tabela 03: Elementos técnicos básicos de uma estratégia com enfoque
agroecológico.....................................................................................................33
Tabela 04: Diferenças estruturais e funcionais entre ecossistemas naturais e
agroecossistemas..............................................................................................35
Tabela 05: Determinantes do agroecossistema que influem na agricultura de
cada região........................................................................................................36
Tabela 06: Uso de práticas tradicionais adaptadas as características ambientais
locais..................................................................................................................50
Tabela 07: Comparação de metodologias para implantação de áreas
protegidas..........................................................................................................85
Tabela 08: Variedade de espécies cultivadas em rotação atualmente no sistema
produtivo..........................................................................................................127
Tabela 09: Mudas plantadas e sua disposição no Sistema Agroflorestal........132
10. Sumário________________________________________________________
1. Introdução__________________________________________________09
2. A agroecologia______________________________________________15
2.1. A agroecologia e uma nova relação socioambiental............................................................15
2.2. Enfoque agroecológico em sistemas produtivos sustentáveis.............................................31
2.3. Diversidade biológica e cultural na agroecologia.................................................................42
2.4. A agroecologia e o conhecimento tradicional camponês.....................................................46
3. O saber tradicional camponês__________________________________49
3.1. Agricultura e comunidades tradicionais camponesas...........................................................49
3.2. O camponês e a terra...........................................................................................................57
3.3. Migração cultural camponesa...............................................................................................62
4. Diálogo de saberes à conservação cultural e natural_______________67
4.1. Premissas a um paradigma de conservação.......................................................................67
4.2. O contra-senso da conservação em áreas especialmente protegidas................................72
4.3. Uma estratégia à conservação das riquezas naturais e culturais........................................83
4.4. Caminhos para um ―envolvimento sustentável‖...................................................................86
5. Agroecologia e saber tradicional na prática______________________93
5.1. Contexto local e socioambiental de referência.....................................................................93
5.2. A esfera originária da prática..............................................................................................106
5.3. A experiência prática com enfoque agroecológico.............................................................116
5.4. Troca de experiências e saberes........................................................................................144
6. Considerações Finais________________________________________150
Referências Bibliográficas______________________________________156
Anexos______________________________________________________165
Anexo 01. Croqui do Sistema Agroflorestal de Itatuba..............................................................165
11. 1. Introdução____________________________________________________
Os caminhos que me levaram à Geografia foram sinuosos e com
algumas bifurcações... No entanto, antes mesmo de estar, e para ser parte do
meio acadêmico fui sendo guiado por um objetivo: entender criticamente a
realidade do descaso ambiental em nossa sociedade e fazer algo para
transformá-la. Ao adentrar na graduação, busquei maneiras de relacionar este
tema às diversas disciplinas oferecidas pelo curso, e assim construir um
conhecimento com o qual pudesse abarcar formas de contribuir para uma
mudança na desoladora realidade socioambiental que construímos, no tempo e
no espaço, por meio de nossa forma de organização em sociedade.
Ao longo do curso fui criando afinidades com algumas áreas do
conhecimento geográfico, nas quais minha compreensão sobre a relação das
pessoas com a natureza foi trabalhada de forma mais incisiva, em particular, na
biogeografia e na geografia agrária. Não que as demais disciplinas não tragam
esse tema, já que em geral a Geografia se propõe a essa discussão, ou que
elas tenham deixado de contribuir ao meu propósito; pelo contrário, sem elas
teria uma formação parcial sobre a questão ao qual me dediquei, e sou muito
grato aos professores por isto. Mas foi através dessas duas disciplinas
mencionadas que fui mais a fundo nessa temática e encontrei uma
particularidade ligada de maneira direta aos problemas socioambientais da
atualidade: a agricultura.
Em ambas, de formas distintas e complementares, a agricultura
praticada especificamente por populações tradicionais e camponesas veio-me
a luz, fornecendo uma gama de fatores, em âmbito social, cultural, econômico,
político e ambiental que estão relacionados ao trabalho da terra e, por
conseguinte, com toda sociedade, os quais mediaram e transformaram a
compreensão que tinha de mundo e de natureza. No que tange o olhar para as
relações humanas e delas com o meio natural, também obtive uma significativa
contribuição através de estudos e práticas realizadas na faculdade, porém de
forma não-curricular, com um grupo de alunos1 que se juntou para pensar,
1
Este grupo de alunos denominado EPARREH (Estudos e Práticas em Agroecologia e o Reencantamento
Humano) será abordado com mais detalhes no sub-capítulo 5.2.
9
12. discutir, militar e agir perante as problemáticas socioambientais que se referem
à agricultura, por meio, sobretudo, da agroecologia. Ao longo de minha
trajetória acadêmica, militante e profissional, com uma parte do aporte teórico-
conceitual adquirido e pela prática profissional que ele me possibilitou exercer,
deu-se a construção do presente trabalho.
Nele se pretende discutir e analisar como a agroecologia, enquanto
teoria e prática, associada ao saber e manejo agrícola das populações
tradicionais camponesas, por meio de sua cultura, podem vir a contribuir para
uma transformação socioambiental através da construção de uma agricultura
sustentável que promova a conservação das riquezas naturais e culturais ao
mesmo passo que possibilite a reprodução da vida de maneira mais solidária
entre as pessoas e equilibrada com os ecossistemas, dando passos em
direção a uma outra forma de organização em sociedade, atualmente orientada
pelo modelo de modernização sob os ditames do modo capitalista de produção,
que é baseado na exploração exacerbada do meio ambiente e na sujeição das
pessoas à sua lógica reprodutiva de exclusão social.
Procuraremos entender também se e como o conhecimento construído
na agroecologia e na agricultura tradicional podem colaborar com uma
mudança na mentalidade das pessoas em nossa sociedade e na sua forma de
reprodução, e então possibilitar a elaboração de um saber alternativo ao
pensamento moderno dominante onde rege a dicotomia homem-natureza, para
assim construir outra relação entre as pessoas e delas perante a natureza que
culmine, de maneira conjunta, em diferentes formas de conservação das
riquezas naturais e de produção na agricultura.
Partimos da hipótese de que as riquezas naturais de um determinado
lugar possam ser utilizadas de maneira mais equilibrada pela agricultura, com a
contribuição do conhecimento científico agroecológico e do tradicional
camponês em consonância com as necessidades fundamentais à reprodução
da vida, cuja razão seja a transformação da sociedade e a conservação da
natureza. Contudo, não iremos pressupor aqui, uma vida pautada pelo
determinismo dos lugares, ou exaltar com ―romantismo‖ exacerbado o modo de
vida das populações tradicionais camponesas; nem negar a importância dos
10
13. avanços das técnicas que a ciência conduz, sobretudo no que tange a
agricultura e a criação de áreas para proteção das riquezas naturais; e
tampouco pregar a agroecologia como solução de todos os problemas
socioambientais existentes. Mas sim, nesse sentido, em concordância com
Shiva (2003, p. 162), temos como pressuposto que as tecnologias sociais são o
elo entre as riquezas naturais e as necessidades humanas, e os sistemas de
saber e cultura podem fornecer um quadro referencial para a percepção e
utilização dessas riquezas.
Como base de discussão ao tema do presente trabalho, lançaremos
mão a uma bibliografia específica e a uma experiência prática relacionada à
análise teórica aqui construída. Para tanto, foram elaborados quatro capítulos
para o encadeamento da análise proposta nesta pesquisa, de forma que se
possa estabelecer co-relações ao entendimento dos pressupostos acima
descritos. Nos capítulos serão abordados os conceitos de agroecologia, de
sistemas agrícolas sustentáveis, de camponês e sua cultura tradicional, de
conservação da diversidade natural e cultural, de sustentabilidade, e desses
conceitos em relação a um capítulo sobre uma experiência prática.
Iniciaremos com um capítulo referente à agroecologia, onde será feita
uma abordagem sobre seus conceitos e princípios aplicados em sistemas
produtivos agrícolas sustentáveis. Será analisado como a agroecologia
contribui para uma nova relação socioambiental por meio da agricultura sob
seu enfoque. Nesse capítulo também serão abordadas a questão da
diversidade biológica e cultural em agroecossistemas, como a agroecologia se
relaciona com o conhecimento tradicional camponês, e os benefícios que a
agroecologia traz para uma transição do modelo convencional moderno de
produção agrícola para outra forma de produzir alimentos.
No capítulo seguinte, faz-se uma discussão acerca do saber tradicional
camponês referente ao manejo da terra e ao modo de organização das
relações culturais que eles possuem. Se procura compreender o conceito de
camponês sob o capitalismo e o quão significante é a sua ordem moral para
uma transformação das relações sociais e de produção na agricultura.
Traremos também idéias referentes à migração das populações tradicionais
11
14. camponesas com sua intrínseca cultura, e o que isso representa para elas e
para o lugar onde habitam e se reproduzem.
Para tratar da conservação cultural e natural na sociedade atual, tem-se
um capítulo onde essa questão será abordada problematizando-se as formas
de pensamento existentes que culminaram na idéia de criar áreas
especialmente protegidas para a conservação da natureza. Assim, traçamos
algumas premissas que levaram a implantação desses espaços, sobretudo
com relação à dicotomia homem-natureza, e o quanto eles podem ser
prejudiciais ao ecossistema e às populações que vivem nessas áreas.
Daremos enfoque sobre o histórico da criação de áreas protegidas e sua
relação com as populações humanas, sobretudo àquelas consideradas como
tradicionais camponesas e que vivem nesses espaços criados pelas
civilizações industriais ocidentais. Apresentaremos uma estratégia que concilie
a conservação e práticas agrícolas sustentáveis nesses locais e/ou noutros,
sem necessariamente que se tornem ou se criem áreas restritivas que
suprimam as relações culturais e produtivas existentes nas comunidades
populacionais em geral. Ao final do capítulo, buscam-se saberes que possam
levar a uma organização social que difira da atual e haja um modo sustentável
de vida com maior envolvimento das pessoas entre elas e entre o meio que
habitam.
No capítulo final, traremos para análise uma experiência prática em
agroecologia que ocorre no município de Embu das Artes, em uma comunidade
localizada no bairro de Itatuba, por meio de um projeto de agricultura urbana e
periurbana. Faremos uma contextualização socioambiental do lugar e do
projeto que originou tal prática. Trata-se do processo de implantação de um
sistema produtivo agroecológico onde boa parte dos agricultores são de origem
camponesa e carregam consigo a cultura tradicional. Além disso, as atividades
decorrentes dessa experiência prática se dão no interior de uma unidade de
conservação localizada numa região de fragmentos florestais e produtora de
águas que abastecem uma bacia hidrográfica. Portanto, por meio dessa
experiência procuraremos trazer o aporte teórico elaborado nos demais
capítulos com o intuito de ilustrar como é possível que conceitos e teorias
12
15. sejam aplicados na prática.
A metodologia utilizada especificamente neste último capítulo é baseada
em uma análise qualitativa interpretativa de observação participante ocorrida no
decorrer dos trabalhos da experiência prática. De acordo com Teis e Teis (2006,
p. 01-02), uma pesquisa com essa abordagem procura gerar dados
aproximando-se da perspectiva que os envolvidos possuem dos fatos por meio
de uma visão holística dos fenômenos, ou seja, que considere todos os
componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas.
―Para conseguir captar esse sentido, as ações do próprio pesquisador precisam
ser analisadas da mesma forma como as ações das pessoas observadas‖
(TEIS; TEIS, 2006, p. 01). Com isso, o processo de análise:
[...] busca a interpretação em lugar da mensuração, busca examinar o
mundo como é experienciado, compreendendo o comportamento
humano a partir do que cada pessoa ou pequeno grupo de pessoas
pensam ser a realidade, valoriza a indução e assume que fatos e
valores estão intimamente relacionados, tornando-se inaceitável uma
postura neutra do pesquisador (ANDRÉ, 1995, apud TEIS; TEIS,
2006, p. 02).
Nessa concepção de pesquisa, a necessidade do exercício da intuição e
da imaginação pelo pesquisador é enfatizada, como sendo um tipo de trabalho
―artesanal‖, visto não apenas como condição ao aprofundamento da análise,
mas, sobretudo, para a ―liberdade do intelectual‖ (MARTINS, 2004, p. 289, grifo
nosso). A linguagem escrita da pesquisa qualitativa possui aspecto informal,
num estilo narrativo que transmite claramente o caso estudado (OLIVEIRA,
[2009?] p. 05). ―Se há uma característica que constitui a marca dos métodos
qualitativos ela é a flexibilidade, principalmente quanto às técnicas de coleta de
dados, incorporando aquelas mais adequadas à observação que está sendo
feita‖ (MARTINS, 2004. p. 292). Portanto, o componente subjetivo é um
aspecto relevante na pesquisa qualitativa, pois ele pode influenciar na
formulação de questões e hipóteses da análise (TEIS; TEIS, 2006, p. 03)
De acordo com Brandão (1984), no que tange a observação participante
13
16. somente uma apreensão pessoal e demorada do todo possibilita a explicação
científica do que está em análise. Para esse autor, no decorrer do trabalho as
relações entre sujeito e objeto ocasionam pouco a pouco modificações na
maneira de pensar, fazer e usar pesquisas que culminaram na produção do
saber popular, essência da pesquisa participante, onde ocorre à passagem de
pesquisas sobre para pesquisas com, que conseqüentemente implicam na
construção de uma ―auto-pesquisa‖ (BRANDÃO, 1984, p. 237, grifo nosso). Na
técnica de observação participante o pesquisador adentra no mundo dos
sujeitos observados e tenta compreender o comportamento real dos envolvidos
em situações cotidianas de construção da realidade em que estão (OLIVEIRA,
[2009?] p. 8). Dessa forma, a observação participante configura-se como uma
estratégia de campo que associa de forma concomitante a participação ativa do
pesquisador com os sujeitos, o olhar intensivo ao meio ambiente, diálogos
abertos informais e análise documental (Idem, ibid.).
Entretanto, a análise qualitativa interpretativa de observação participante
da experiência prática a ser discutida não se iniciou especificamente para o
presente trabalho. Ela é decorrente do fato do presente autor ser parte da
equipe técnica que conduziu a implantação dessa prática por meio do projeto
de agricultura urbana e periurbana junto aos agricultores envolvidos, como será
discutido no capítulo cinco. Sendo assim, a observação não se configura
exatamente como um trabalho de campo direcionada a esta pesquisa, mas
como houve um acompanhamento muito próximo de toda atividade, com coleta
de dados, conversas informais e registros fotográficos, e o pesquisador pode
se inserir de fato no cotidiano dos envolvidos, tal metodologia tornou-se cabível
para embasar a elaboração desse capítulo.
14
17. 2. A agroecologia________________________________________________
2.1. A agroecologia e uma nova relação socioambiental
Através de uma visão integrada sobre a totalidade que compõe o meio
ambiente de cada lugar, a aplicação de conceitos e princípios ecológicos ao
manejo de sistemas de produção de alimentos, associado ao resgate e
valorização sócio-cultural do saber local tradicional camponês2, define-se a
essência da agroecologia. Desse modo, ela pode nos orientar a uma vida com
mais equilíbrio e harmonia em relação às riquezas naturais e sócio-culturais
que compõem o planeta.
O uso contemporâneo do termo agroecologia data dos anos 1970, mas
seu saber e prática são tão antigos quanto às origens da agricultura (ALTIERI,
1999, p. 15)3. A agroecologia possui como princípio fundamental o
entendimento dos seres humanos como parte da natureza, distinguindo-se
assim do pensamento dominante ocidental moderno onde homem e natureza
são dissociados4. Essa forma integrada de pensar as relações num meio
unívoco permite a aquisição de novos valores socioambientais, onde a
natureza não é vista como uma fonte de recursos disponíveis que possam ser
utilizados indiscriminadamente pelas pessoas. Ela também preza pelo resgate
e valorização de saberes tradicionais camponeses, uma das bases para
composição do conhecimento agroecológico, sobretudo por terem eles um
entendimento de pertencimento e co-relação com o meio natural nas práticas
que possibilitam a sua reprodução sócio-cultural (Idem, ibid.).
Na medida em que os pesquisadores estudam as agriculturas
tradicionais, que são relíquias modificadas de formas de cultivo mais antigas,
faz-se mais notório que muitos sistemas agrícolas desenvolvidos em âmbito
local incorporam rotineiramente mecanismos ancestrais para acomodar os
cultivos às variações do meio natural e sócio-cultural. Esses sistemas agrícolas
são uma interação complexa entre processos sociais externos e internos, e
2
Ver capítulo 3, no que se refere ao saber tradicional camponês.
3
Ver também Gliessman, 2005, p. 55.
4
Ver capítulo 4, no que se refere ao pensamento ocidental moderno e dissociação homem-natureza.
15
18. entre processos biológicos e ambientais. Estes podem ser entendidos
espacialmente no âmbito do terreno agrícola, mas também incluem uma
dimensão temporal. A agroecologia leva em conta tanto o sistema agrícola
como a organização em sociedades, no tempo e no espaço, em que estão
inseridos os agricultores. Ela coloca uma ênfase relativamente baixa nas
investigações realizadas nos centros de pesquisa e enfatiza fortemente os
experimentos de campo, permitindo assim uma maior participação dos
agricultores no processo de construção do conhecimento agroecológico
(ALTIERI, 1999).
Dessa maneira, a agroecologia se configura como algo muito além de
uma forma de produção agrícola. Ela ajuda a fortalecer a vida nas
comunidades onde está inserida, pois reforça a importância da participação
popular, dos princípios de cooperação entre os agricultores, do trabalho
associativo na produção e escoamento dos produtos, e dos movimentos sociais
(INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 17). Estes
quesitos fortalecem cada vez mais a agroecologia como uma forma de
(re)pensar o modo de vida atual e, por meio da associação do saber popular
tradicional e o agroecológico, transformar a realidade pela participação
daqueles que proporcionaram, com suas mãos e mentes, a gênese da
agroecologia.
Mais do que afirmar, de forma inequívoca, a validade dos princípios
agroecológicos e de sua aplicação em todos os contextos e em todos os
lugares, o que se procura é problematizar a leitura e investigação dos
processos de mudança socioambiental na agricultura que refletem na
sociedade como um todo, pois um outro mundo é possível e necessário.
(SAUER; BALESTRO, 2009, p. 178).
Outra grande riqueza da agroecologia é referente à sua composição
multidisciplinar. A teoria de seu conhecimento5 se constrói a partir do saber e
5
Epistemologia é a parte da Filosofia que estuda os limites da faculdade humana de conhecimento e os
critérios que condicionam a validade dos nossos conhecimentos. É o conhecimento sobre o
conhecimento. Segundo Noorgard, as bases epistemológicas da Agroecologia mostram que,
historicamente, a evolução da cultura humana pode ser explicada com referência ao meio ambiente, ao
mesmo tempo em que a evolução do meio ambiente pode ser explicada com referência à cultura
humana (NOORGARD, 1989, apud CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 14).
16
19. experiências já acumuladas em diversas ciências, o que proporciona um olhar
amplo ao meio, com ações e reflexões que permitem abranger um todo sem
perder elementos que constituem suas partes. A agroecologia se constitui como
uma ciência de amplo alcance conceitual e prático, na medida em que ela não
se restringe apenas ao conhecimento de uma técnica agrícola, mas sim,
procura construir um saber que proporcione uma nova relação com o universo
do conhecimento, em que se construa outra realidade socioambiental,
subvertendo à hoje dominante. Portanto:
A agroecologia é um enfoque científico e estratégico, [...] no
redesenho e no manejo de agroecossistemas que queremos que
sejam mais sustentáveis através do tempo [e do espaço]. Se trata de
uma orientação cujas pretensões e contribuições vão mais além de
aspectos meramente tecnológicos ou agronômicos da produção
agropecuária, incorporando dimensões mais amplas e complexas que
incluem tanto variáveis econômicas, sociais e ecológicas, como
variáveis culturais, políticas e éticas. Assim entendida, a agroecologia
corresponde ao campo de conhecimentos que proporciona as bases
cientificas para apoiar o processo de transição do modelo de
agricultura convencional [dominante] para estilos de agriculturas de
6
base ecológica ou sustentáveis , assim como do modelo
convencional de desenvolvimento a processos de [...]envolvimento
rural sustentável (CAPORAL; COSTABEBER, 2002, apud INSTITUTO
GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 15).
Como forma de investigações quantitativas e qualitativas, métodos sobre
análise agroecológica estão sendo desenvolvidos, como por exemplo, uma
investigação comparativa, geralmente envolvendo um sistema de monocultura
com um sistema agroecológico de maior complexidade. Para estabelecer uma
dinâmica simplificada e reduzir assim o número de variáveis ecológicas do
ambiente, desenvolveram-se versões artificiais de ecossistemas naturais, no
6
As agriculturas de base ecológica ou sustentáveis são os diferentes estilos de agricultura ecológica que
se desenvolveram ao redor do mundo, a exemplo das agriculturas regenerativa, orgânica, biodinâmica,
biológica, natural e ecológica, cada um contendo particularidades conceituais, culturais e
metodológicas, provenientes dos grupos sociais que foram responsáveis pela construção de cada estilo
(CANUTO, 1998, apud INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO/ PROGERA, 2009, p. 15). Ver
sub-capítulo 2.2.
17
20. qual essas variáveis podem ser controladas mais de perto e com isso realizar
uma comparação experimental com um sistema agroecológico. Há ainda,
sistemas agrícolas normativos construídos como modelos teóricos específicos
para facilitar a compreensão comparativa entre sistemas agroecológicos e um
ecossistema natural complexo ou um sistema agrícola tradicional (ALTIERI,
1999, p. 19).
A agroecologia se adapta bem as técnicas que requerem práticas
agrícolas mais sensíveis ao meio ambiente ao mesmo passo que concilia
envolvimento ambiental e participativo nas comunidades onde é aplicada. A
diversidade de preocupações e corpos de pensamento que influenciam a
construção da agroecologia são realmente amplos. É por esta razão que
vemos muitas equipes multidisciplinares trabalhando nestes assuntos no
campo e na cidade. Embora seja uma disciplina nova, a agroecologia
indubitavelmente alargou a discussão agrícola no mundo (ALTIERI, 1999, p.
30).
O sistema atual de produção global de alimentos está se encaminhando
a um processo de autodestruição porque as técnicas aplicadas que o
conduziram até aqui proporcionaram uma degradação excessiva e crescente
dos recursos naturais, como com a erosão do solo, o desperdício e uso
exagerado da água, e a perda da diversidade genética, dos quais a agricultura
depende para sua produção (GLIESSMAN, 2005, p. 33). Atualmente em países
da América do Sul, o solo é perdido por erosão a taxas anuais que variam de
cinco a dez toneladas por hectare. A água utilizada pela agricultura hoje,
representa aproximadamente dois terços de todo seu uso pela população
mundial, onde grande parte é desperdiçada pela evaporação e drenagem
superficial devido a não absorção dela pelas plantas. Nas últimas décadas a
variedade genética das plantas cultivadas caiu, pois muitas foram extintas pela
crescente uniformização das culturas (Idem, ibid., p. 41-47). A tabela 01
apresenta um apanhado de efeitos negativos causados no ambiente pela
agricultura moderna dominante.
18
21. Tabela 01: Efeitos negativos da agricultura moderna no ambiente
Dano ambiental ocasionado e/ou Ações negativas relacionadas ao
Recurso natural
intensificado dano
- Eliminação da vegetação
- Revolvimento excessivo e profundo
- Erosão hídrica e eólica
- Não reposição de matéria orgânica
- Degradação química e excesso de
Solo - Uso de queimadas
sais
- Irrigação com água salobra
- Degradação biológica e física
- Aplicação de agrotóxicos e
fertilizantes químicos industrializados
- Combustão de motores de
- Mudança do clima
máquinas agrícolas
- Redução da camada de ozônio
Atmosfera - Aplicação de agrotóxicos e
- Chuva ácida
fertilizantes químicos industrializados
- Poluição do ar
- Uso de queimadas
- Aplicação de agrotóxicos e
- Contaminação das águas fertilizantes químicos industrializados
Água
continentais e oceânicas - Uso intensivo de estrume da
criação animal
- Semeadura de variedades híbridas,
adventícias e geneticamente
- Perda da diversidade genética e
Genético modificadas
sementes nativas
- Criação animal com base genética
reduzida e inadaptadas
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Sauer e Balestro (2009. p. 29)
Esse modelo de agricultura criou uma altíssima dependência de
recursos não renováveis utilizados, sobretudo, na produção de insumos
químicos industrializados que são aplicados em seus cultivos. Ele também
forjou um sistema que cada vez mais retira a responsabilidade de cultivar
alimentos das mãos dos agricultores camponeses que são os guardiões das
terras agricultáveis em todo planeta (Idem, ibid., p. 33). Soma-se a isso, o fato
de que muitos desses comprovados impactos negativos causados ainda não
aparecem como um problema na opinião pública com a intensidade necessária,
retardando o debate e uma possível tomada de consciência da sociedade para
uma transformação permanente da preocupante realidade socioambiental, no
sentido de apoiar a construção de processos participativos de agriculturas de
base ecológica e de organização social adequadas à noção de sustentabilidade
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 19).
A agricultura moderna dominante dá indícios cada vez maiores sobre
sua insustentável forma de ser, porque degrada grande parte das condições
que a tornam possível, e em um curto espaço de tempo não será capaz de
produzir e fornecer alimentos à população mundial. Por exemplo, a partir da
década de 1980 a superfície mundial cultivada por grãos decresceu de 732
milhões de hectares para 670 milhões em vinte anos, e com o progressivo
19
22. aumento da população global nesse período, a produção passou de 0,23ha a
0,11ha por habitante (SAUER; BALESTRO, 2009, p.32-33). No cerne dessa
agricultura utilizam-se técnicas como a implantação de monoculturas, o cultivo
intensivo do solo, irrigação em larga escala, aplicação de fertilizantes sintéticos,
controle de pragas e doenças com uso de agrotóxicos e a manipulação
genética de plantas cultivadas (GLIESSMAN, 2005, p. 34). Consequentemente
são essas as técnicas da agricultura moderna que mais geram problemas
socioambientais e, contraditoriamente, são a causa de seu breve colapso.
Todo esse conjunto de técnicas se faz necessário principalmente pelo
sistema de produção em monoculturas. Essa prática consiste em plantar
apenas uma cultura agrícola numa área muito extensa, permitindo o uso de
maquinaria pesada desde o preparo do solo até a colheita. A monocultura se
configura como uma abordagem industrial moderna na agricultura, onde se
reduz gastos com mão de obra e investe-se em tecnologia para maximizar a
produtividade (SAUER; BALESTRO, 2009, p.08). Ela traz consigo uma
necessidade imensa de insumos externos ao sistema agrícola para a produção
e seu uso extensivo torna o sistema cada vez mais dependente, já que os
insumos internos vão se esgotando rapidamente devido ao uso intensivo que
sofreram (SHIVA, 2003). Não há como ser sustentável com uma lógica de
degradação e dependência externa ao agroecossistema, pois os recursos são
finitos e os insumos que advêm de fora geram grande vulnerabilidade a
qualquer sistema.
Diferentemente, a agroecologia preza pelos cultivos com grande
diversidade de espécies, em áreas menores adequadas à produção familiar
camponesa, que como vimos é a responsável por grande parte do cultivo de
alimentos no mundo. Há uma otimização dos recursos naturais internos e
mínima dependência dos externos. Ela valoriza o trabalhador camponês, tanto
com suas práticas como com seus conhecimentos, e usa a tecnologia de forma
ponderada, sem substituir a riqueza do trabalho tradicional com a terra. Na
figura 01, podemos observar as disparidades entre o sistema de monoculturas
não-sustentável e o sistema agroecológico sustentável baseado nas
diversidades que compõem o meio.
20
23. Figura 01: Comparação entre sistemas de monocultura e sistemas com diversidade
Fonte: Monoculturas da Mente (SHIVA, 2003, p. 98)
O modo de produzir em monoculturas é uma herança da chamada
―Revolução Verde‖ ocorrida a partir do final da Segunda Guerra Mundial,
lançando seus ―tentáculos‖ até os dias atuais (ALTIERI, 1999, p.28). A
estratégia da Revolução Verde se desenvolveu com o discurso de resolver os
problemas de pobreza e fome por meios tecnológicos avançados que
aumentariam a produção de alimentos no mundo todo de forma rápida e em
grande escala. Apoiados neste discurso, ―grandes corporações transnacionais
sediadas nos EUA [Estados Unidos da América] e Europa ligadas a produção
agrícola e de produtos alimentícios irão começar a desenvolver e a padronizar
um modelo de produção a ser adotado em todo mundo‖ (PINHEIRO, 2004, p.
05). Assim:
21
24. A substituição da agricultura tradicional por uma agricultura
modernizada representava a abertura de importantes canais para a
expansão dos negócios das grandes corporações econômicas, tanto
no fornecimento das máquinas e insumos modernos como na
comercialização mundial e nas indústrias de transformação dos
produtos agropecuários, sem esquecer o financiamento aos países
que aderissem ao processo de modernização (BRUM, 1988, p. 45,
apud PINHEIRO, 2004, p. 06).
Com isso, por trás da ―máscara‖ elaborada pela dita proposta de sanar a
fome, o que se fazia era elaborar bases para um modelo tecnológico
hegemônico detido por essas empresas em favorecimento da econômica dos
chamados países desenvolvidos. ―Este conjunto de novas tecnologias passou a
ser implementado simultaneamente em diversas regiões do mundo com
tamanho grau de padronização que acabou sendo denominado como ―pacote
tecnológico‖‖ (PINHEIRO, 2004, p. 06, grifo do autor). De acordo com Porto
Gonçalves:
A própria denominação revolução verde para o conjunto de
transformações nas ―relações de poder por meio da tecnolgia‖ indica
o caráter político e ideológico que ali estava implicado. A revolução
verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e político
das lutas contra a fome e a miséria, sobretudo após a Revolução
[...]
Chinesa, Camponesa e Comunista, de 1949 . Afinal, a grande
marcha de camponeses lutando contra a fome brandindo bandeiras
vermelhas deixara fortes marcas no imaginário. A revolução verde
tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um caráter
[...]
estritamente técnico . O verde dessa revolução reflete o medo do
perigo vermelho, com se dizia à época. Há com essa expressão
[...]
―revolução verde‖ uma ―técnica‖ própria da política , aqui por meio
da retórica (PORTO GONÇALVES, p. 212, in: OLIVEIRA; MARQUES,
2004, grifo do autor).
Porto Gonçalves (2004) coloca ainda que o meio rural passou a sofrer
mudanças significativas nas esferas ecológica, social, cultural e política, na
medida em que esses pacotes de tecnologia passam a ser adotados no
22
25. processo produtivo, aumentado assim, o poder das indústrias que os detém,
assim como os processos de normatização para sua implantação (In:
OLIVEIRA; MARQUES, 2004, p. 212). A partir da modernização da agricultura
propiciada pela Revolução Verde, o capital financeiro industrial começa a ser
investido em tecnologias que cada vez mais procuravam adaptar todo o
sistema de produção agro-alimentício de forma que fosse viabilizando-se o
controle sobre todas as etapas da produção, do plantio até o produto final
(PINHEIRO, 2004, p. 08). Vagarosamente e de forma constante, ―a idéia de
que a fome e a miséria são problemas sociais, políticos e culturais vai sendo
deslocada para o campo técnico-científico, como se este estivesse à margem
das relações sociais e de poder [...]‖ (PORTO GONÇALVES; in: OLIVEIRA;
MARQUES, 2004, p. 213)
No Brasil, essas mudanças ocorreram a partir do final da década de
1960 e intensificadas no início dos anos 1970 através de incentivos
governamentais com uso de recursos públicos destinados ao crédito
subsidiado, associado à assistência técnica, extensão rural, ensino e pesquisa
nessa área. Assim, o desenvolvimento agropecuário no país sofreu
transformações em sua base tecnológica com um pacote de técnicas e lógicas
produtivas, baseadas na química, mecânica e genética, destinadas à produção
de monoculturas em grandes extensões de terra, fato que excluía a grande
maioria dos pequenos produtores (SAUER; BALESTRO, 2009, p. 08-09). Desta
forma, o governo brasileiro passou a desempenhar um papel determinante na
adoção deste modelo tecnológico, ―[...] fazendo com que os interesses que
inicialmente eram das grandes corporações transnacionais fossem
gradativamente assumidos como interesse nacional‖ (PINHEIRO, 2004, p. 07).
A Revolução Verde realmente teve êxito no aumento da produção, mas
suas consequências sociais e ambientais levaram ao questionamento sobre
sua real funcionalidade (ALTIERI, 1999, p. 28). Grande parte da população
rural ficou marginalizada nesse processo e seus benefícios atingiram apenas
aqueles que já eram ricos em seus recursos financeiros, acentuando ainda
mais a estratificação social dos camponeses. Aprofundou também os
problemas de acesso a terra e reduziu as estratégias tradicionais de
23
26. subsistência disponíveis nas famílias camponesas, aumentando sua
dependência aos pacotes tecnológicos desenvolvidos por esse paradigma.
Houve ainda uma redução da base genética na agricultura com a implantação
das monoculturas em larga escala, o que aumentou os riscos de perda dos
cultivos, pois eles se tornaram mais vulneráveis a enfermidades e as variações
climáticas (Idem, ibid.). Os aumentos na produtividade e produção não foram
suficientes para erradicar a fome no mundo, que ao contrário, se agravou junto
ao aumento da desigualdade social nesse período. Com frequência, a
produção é essencialmente voltada para exportação, sobretudo de grãos
utilizados pela indústria e que não são destinados para alimentação. Segundo
Sauer e Balestro (2009, p. 10), outras conseqüências associadas à adoção
desse modelo de produção agrícola no campo foram ―o êxodo rural, a
ampliação da concentração fundiária e profundos impactos sobre o meio
ambiente [...]‖. Ainda de acordo com os autores:
[...] Em relação ao êxodo rural, o campo brasileiro abrigava mais ou
menos de 70% da população nas décadas de 1950 e 1960 chegando,
na década de 1990, a ter menos de 30% do total da população.
Ainda, a concentração fundiária ampliou antigos e gerou novos
conflitos no campo, agravando as disputas por terra em algumas
regiões [do país] [...]. [...] Os resultados ambientais são, entre outros
danos, a erosão e contaminação do solo, o desperdício e a
contaminação dos recursos hídricos, a destruição das florestas e o
empobrecimento da biodiversidade [...] (SAUER; BALESTRO, 2009,
p. 10-11).
A modernização da agricultura acentuou a desigualdade, pois seus
benefícios não são distribuídos uniformemente, e seus resultados reais são
devastação ambiental severa e dano social altamente grave. (GLIESSMAN,
2005, p. 50). Nesse contexto alarmante, se não conservarmos a superfície
cultivável e mudarmos os padrões de consumo e uso dela para benefícios
mútuos, podemos dizer que a fome nos ronda num futuro muito próximo.
Atualmente, é reconhecido que as tecnologias da Revolução Verde podem ser
aplicadas apenas em áreas limitadas, adequadas à sua lógica reprodutiva. A
24
27. utilização de seus pacotes tecnológicos requer recursos que a maioria dos
camponeses não dispõe. A produção de alimentos se tornou cada vez mais
dependente do desenvolvimento de tecnologias, como as aplicadas na
fabricação de fertilizantes e outros insumos químicos que estão condicionados
ao emprego de técnicas que somente as grandes corporações possuem,
criando uma dependência cada vez maior dos agricultores em relação a elas
(GONÇALVES, 2010, p. 46). De acordo com Pinheiro (2004, p. 10):
Estas críticas, porém, não impediram que fosse adotado como
modelo para agricultura nacional este sistema de produção
atualmente denominado de forma genérica como ―convencional‖ [...].
Embora este padrão tecnológico que se inicia a partir da Revolução
Verde seja o mais utilizado em todo o mundo, desde sua implantação
questiona-se os seus custos sociais e mais recentemente seus limites
produtivos e as severas conseqüências ambientais do uso excessivo
de substâncias químicas na produção agrícola (grifo do autor).
Contudo, surgiram dificuldades na aplicação dos pacotes tecnológicos
que se pretendia fazer de forma generalizada entre os produtores. Varias foram
as explicações de analistas de desenvolvimento rural para a dificuldade de
transferência dessas tecnologias modernas, incluindo a idéia de que os
camponeses eram muito ignorantes para utilizá-las, ou as dificuldades de
acesso ao crédito limitavam a adoção de tais técnicas. Na perspectiva desses
analistas, no primeiro caso a falha estava no camponês, e no segundo, a culpa
incidia em problemas de infra-estrutura, mas nunca se criticavam as
tecnologias em si. Na realidade, a verdadeira prova da qualidade desses
pacotes é a decisão do camponês em adotá-los ou não (RHOADES; BOOTH,
1982, apud ALTIERI, 1999, p. 30). Na prática, isto significa obter informações
dos camponeses e compreender a percepção que eles possuem sobre essa
proposta, pois este sistema de produção convencional, embora tenha sido
oficialmente adotado como o modelo a ser desenvolvido e utilizado no Brasil,
não conseguiu se tornar unânime entre todos os envolvidos com a produção
agrícola (PINHEIRO, 2004, p. 10). Neste caso, a agroecologia é uma valiosa
ferramenta analítica com um enfoque normativo para a investigação junto aos
25
28. camponeses (ALTIERI, 1999, p.30). Na tabela 02 temos uma comparação
sintética entre algumas tecnologias utilizadas pela Revolução Verde e pela
Agroecologia que auxiliam na investigação sobre suas características
principais.
Tabela 02: Comparação entre as tecnologias da Revolução Verde e da Agroecologia
Características Revolução Verde Agroecologia
Cultivos abrangidos Principalmente trigo, milho, arroz, Todos os cultivos
soja
Área afetada Sobretudo áreas planas e irrigáveis Todas as áreas, inclusive as
marginais
Sistema de cultivo dominante Monocultivos geneticamente Policultivos geneticamente
uniformes heterogêneos
Insumos predominantes Agroquímicos, maquinário pesado, Fixação de nitrogênio por plantas,
alta dependência de insumos controle biológico de seres vivos
externos e combustível fóssil adventícios, corretivos orgânicos,
grande dependência dos recursos
locais renováveis
Impactos e riscos à saúde Médios a altos (poluição química, Nenhum
erosão, salinização, resistência a
agrotóxicos, etc.). Riscos à saúde na
aplicação dos agrotóxicos e nos seus
resíduos no alimento
Cultivos suprimidos Na maioria, variedades tradicionais e Nenhum
nativas
Custos das pesquisas Relativamente altos Relativamente baixos
Necessidades Financeiras Altas. Todos os insumos devem ser Baixas. A maioria dos insumos está
adquiridos no mercado disponível no local
Retorno financeiro Alto. Resultados rápidos. Alta Médio. Precisa de um determinado
produtividade da mão-de-obra período para obter resultados mais
significativos. Baixa a média
produtividade da mão-de-obra
Desenvolvimento tecnológico Setor público-privado e empresas Na maioria, setor público; grande
privadas envolvimento de ONGs
Capacitações necessárias à Cultivo convencional e outras Ecologia e especializações
pesquisa disciplinas de ciências agrícolas multidisciplinares
Participação Baixa (na maioria, métodos de cima Alta. Socialmente ativadora, induz ao
para baixo). Utilizados para envolvimento da comunidade
determinar os obstáculos à adoção
das tecnologias
Integração cultural Muito baixa Alta. Uso extensivo de conhecimento
tradicional e formas locais de
organização
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (2008. p. 43).
A investigação da Revolução Verde foi muito importante para a evolução
do pensamento agroecológico, pois os estudos sobre o impacto deste
paradigma tecnológico foram um instrumento de avaliação sobre os prejuízos
socioambientais que predominaram sobre o pensamento agrícola e de des-
envolvimento7 nesse período. Assim, se fortaleceu a necessidade de um novo
7
O processo que vem se dando é a quebra do envolvimento, o des-envolvimento, o que significa que a
autonomia ficou cada vez mais relativa, cada vez menor a capacidade/possibilidade de determinar o
seu próprio destino. Nesse sentido des-envolver é, também, des-locar, ou seja, tirar dos locais, dos do
local, o poder (GONÇALVES, [19--?], p. 10). Ver também sub-capítulo 4.4.
26
29. enfoque na produção de alimentos baseado na diversidade em detrimento das
monoculturas, o que legitimou ainda mais o conhecimento tradicional
camponês e o agroecológico como alternativas para a construção de novos
valores socioambientais. O que se requer na produção agrícola é uma nova
abordagem da agricultura que promova um modo de vida diferente do atual e
atinja todas as esferas da sociedade. De acordo com Gliessman (2005, p. 54),
A agroecologia proporciona o conhecimento e a metodologia
necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente
consistente, altamente produtiva e economicamente viável. Ela abre a
porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura,
em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de
conhecimento e sua aplicação. Valoriza o conhecimento local
empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e sua
aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.
No enfoque agroecológico o potencial local de uma população é um
elemento essencial para uma transição na agricultura. Ele auxilia na
compreensão de fatores socioculturais e agroecossistêmicos8 estratégicos para
seguir através de estágios crescentes de sustentabilidade, conforme colocam
Caporal, Costabeber e Paulus (2006). Ainda segundo esses autores (2006, p.
02):
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a Agroecologia se constitui
num paradigma capaz de contribuir para o enfrentamento da crise
socioambiental da nossa época. Uma crise que, para alguns autores,
é, no fundo, a própria crise do processo civilizatório. Diante dessa
crise, os problemas ambientais assumiram um status que ultrapassa
o estágio da contestação contra a extinção de espécies ou a favor da
proteção ambiental, para transformar-se ―numa crítica radical do tipo
de civilização que construímos. Ele é altamente energívoro e
devorador de todos os ecossistemas [...]. Na atitude de estar por
sobre as coisas e por sobre tudo, parece residir o mecanismo
fundamental de nossa atual crise civilizacional‖ (BOFF, 1995), razão
8
Ver sub-capítulo 2.2, no que se refere à agroecossistema.
27
30. pela qual necessitamos de novas bases epistemológicas, novas
perguntas e novos conhecimentos, como nos proporciona a
Agroecologia, para o enfrentamento e superação desta crise.
Por tudo isso a agroecologia apresenta-se, como vimos, muito além de
simplesmente tratar sobre o manejo agrícola ecologicamente responsável dos
recursos naturais. Ela se constitui em um campo do conhecimento que, através
de uma ação coletiva de caráter participativo, com um enfoque e abordagem
sistêmica9, pretende contribuir para que as sociedades possam redirecionar o
curso alterado das relações socioambientais, nas suas múltiplas inter-relações
e mútua influência (CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2006, p. 03).
Através da perspectiva agroecológica coloca-se em destaque que os
sistemas agrícolas devem ser considerados como sistemas integrais. Enfatiza-
se também que os sistemas tradicionais de agricultura não são estáticos, pois
estão evoluindo por séculos. Essa perspectiva põe as pessoas e a sua forma
de pensar dentro do processo. Uma de suas características mais importantes é
a que outorga legitimidade ao conhecimento cultural e experimental dos
agricultores. Suas formas de raciocínio podem não traduzir-se como formas de
raciocínio científico, mas o entendido por eles provou ser apto para seu sistema
e pode ser usado para compreendê-lo. Com uma perspectiva agroecológica
pode-se superar o vago doutrinamento transmitido pela ciência cartesiana10.
Pode-se atingir assim, um verdadeiro respeito pela sabedoria dos agricultores
tradicionais, combinando seus conhecimentos a novas formas de
conhecimento e trabalhar juntos de forma eficaz (ALTIERI, 1999, p. 35).
Na agroecologia o conceito de transição agroecológica é entendido
como um processo gradual e multilateral de mudança que ocorre através do
tempo e no espaço, uma passagem transformadora num processo contínuo e
crescente não linear e sem um final determinado, como um ciclo onde se
9
Ver capítulo 4, no que se refere ao pensamento sistêmico.
10
A ciência cartesiana teve seu ápice com o método do pensamento analítico desenvolvido por René
Descartes entre os séculos XVI e XVII. Consiste em quebrar fenômenos complexos em pedaços a fim
de compreender o comportamento do todo a partir das propriedades das suas partes. Possui como
características principais o caráter pragmático do conhecimento e o homem como centro do mundo,
em oposição ao objeto e à natureza (CAPRA, 1996, p. 34; GONÇALVES, 2005, p. 33). Ver também
capítulo 4.
28
31. ingressa conhecimentos e práticas pertinentes em todo momento. Na
agricultura a transição tem como meta a passagem do modelo convencional
dominante a estilos que incorporem princípios e tecnologias de base ecológica.
Por se tratar também de um processo social, a transição agroecológica não
implica apenas numa busca por uma racionalização econômica e produtiva,
mais ainda, implica em uma mudança nas atitudes e valores dos atores sociais
em relação ao manejo e conservação das riquezas naturais e culturais em
esferas distintas de atuação (CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 12).
A transição, ou ruptura agroecológica implica na passagem de um
processo de reprodução da vida em grande medida insustentável a longo prazo
(ou de médio a curto prazo, já que estamos vivendo numa situação limite hoje)
para um processo que não carregue as tendências destrutivas contemporâneas
que ainda permanecem insistentemente (MESZÁROS, 2007, apud SAUER;
BALESTRO, 2009, p. 8). As experiências e iniciativas que se somam para
realizar essa ruptura não podem ser entendidas como um meio de formar
massa crítica ao enfrentamento de uma realidade indesejável. Elas devem
buscar uma forma de construção coletiva horizontal nas esferas basais dos
grupos sociais para construir um novo pensamento que contribua para atingir
uma vida equilibrada com os recursos existentes, tanto naturais quanto
tecnológicos. A título de síntese, encontramos em Guterres (2006) alguns
pontos metodológicos à transição agroecológica:
Realizar um planejamento das ações, com base nos grupos e nas comunidades, tendo
o território presente, buscando a articulação das dimensões econômica, política,
tecnológica, social, cultural e ambiental.
Discutir conceitos da agroecologia e dos agroecossistemas utilizando-se de uma
linguagem baseada em princípios pedagógicos de emancipação.
Gerar relações de co-responsabilidade entre as famílias envolvidas, suas organizações
e seus mediadores. As ações planejadas de forma participativa devem proporcionar
situações de reflexão e tomadas de decisão progressivas por parte de cada família e
pelo conjunto das comunidades envolvidas, e depois executadas com um constante
monitoramento, avaliação e re-planejamento. Logo, a obtenção dos resultados
esperados estará subordinada ao efetivo comprometimento de todos, buscando
alcançar os objetivos individuais e coletivos que venham a ser estabelecidos.
29
32. Considerar a complexidade e o dinamismo dos sistemas de produção, assim como os
limites ambientais em que se desenvolvem, de modo a contribuir para o
redimensionamento, redesenho e uso adequado dos meios de produção disponíveis e
ao alcance de todos.
Estabelecer uma articulação dos movimentos sociais com parcerias estratégicas, sejam
instituições de comunicação técnica e de ensino e pesquisa, buscando a formação de
redes, fóruns regionais, territoriais e outras formas de integração, em que a
participação das famílias envolvidas na definição de linhas de pesquisa, avaliação,
validação e recomendação de tecnologia apropriadas esteja no centro.
Considerar as especificidades relativas a etnias, gênero, geração e diferentes
condições socioeconômicas e culturais das populações envolvidas, em todos os
programas, projetos de comunicação técnica, pesquisa e atividades de formação.
Estimular a democratização dos processos de tomada de decisão, com participação de
todos os membros das famílias na gestão da unidade produtiva e nas estratégias de
envolvimento das comunidades.
Incentivar a participação de jovens e mulheres, considerando-se as especificidades
socioculturais, de forma central em todo processo de transição e um dos elementos
essenciais da metodologia.
Fortalecer iniciativas educacionais apropriadas para as populações envolvidas,
construídas a partir da realidade das famílias locais.
Ser o mais participativo possível e utilizar a vivência do dia-a-dia de cada pessoa,
estabelecendo estreita relação entre teoria e prática, propiciando a construção coletiva
de saberes, o intercâmbio de conhecimentos de experiências exitosas, com o qual os
agricultores e os técnicos mediadores possam aprender uns com os outros
11
(GUTERRES, 2006, p. 25) .
Um grande desafio da agroecologia como uma abordagem que busca
um diálogo de saberes é desenvolver um referencial teórico e prático capaz de
suprir a heterogeneidade do conhecimento e das ações humanas como coloca
Sauer e Balestro (2009, p. 186), de forma que se atinja uma nova relação
socioambiental compatível com as necessidades de cada lugar. Uma produção
sustentável somente pode acontecer no contexto onde haja uma organização
social que proteja a integridade dos recursos naturais e estimule a interação
harmônica entre populações humanas, o agroecossistema e o ambiente. A
agroecologia contribui com o fornecimento de metodologias eficientes para que
11
Tópicos adaptados pelo autor a partir dos tópicos presentes em Guterres (2006, p. 25).
30
33. a participação da comunidade venha a se tornar a força geradora dos objetivos
e atividades dos processos de transição e ruptura ao modelo convencional de
produção. Com isso, o objetivo é que os camponeses se tornem os arquitetos e
atores de sua própria realidade novamente (CHAMBERS, 1983 apud ALTIERI,
2008, p. 26).
2.2. Enfoque agroecológico em sistemas produtivos sustentáveis
No coração da agroecologia reside a idéia de que um campo de cultivo
configura-se como um ecossistema dentro do qual os processos ecológicos
que ocorrem em outros ambientes também ocorrem nesse sistema de
produção agrícola. No que tange a sistemas produtivos, a agroecologia se
centra nas relações ecológicas dentro da agricultura, com o propósito de
iluminar e compreender a forma, a dinâmica e as funções desta relação. Por
meio do conhecimento desses processos e relações os sistemas
agroecológicos podem ser melhor administrados, com menores impactos
negativos ao meio ambiente e a sociedade, ser mais sustentáveis e
consequentemente com menor uso de insumos externos ao sistema produtivo.
Como resultado, tem-se considerado as terras cultivadas com o enfoque
agroecológico como um tipo especial de ecossistema, um agroecossistema,
passando-se a formalizar as análises do conjunto de processos e interações
que intervêm em um sistema de cultivos desse (ALTIERI, 1999, p. 18).
De acordo com Gliessman (2005) o agroecossistema proporciona uma
estrutura com a qual se pode analisar os sistemas de produção de alimentos
como um todo, incluindo seus conjuntos complexos de insumos e produção e
as interconexões entre as partes que os compõem. Vale ressaltar que, como os
ecossistemas, os agroecossistemas possuem limites espaciais pré-
determinados, sendo geralmente unidades produtivas individuais ou coletivas.
Um ecossistema possui como definição básica estrutural a característica de ser
um sistema funcional de relações complementares entre estruturas bióticas
(organismos vivos) e abióticas (seu ambiente) que mantêm um equilíbrio
dinâmico no espaço e no tempo. Existem níveis com propriedades estruturais
31
34. específicas nos ecossistemas que podem ser aplicados diretamente a
agroecossistemas, organizados em uma hierarquia interativa entre as partes
que o compõem, iniciando pelo nível do organismo individual, passando pela
população de indivíduos de mesma espécie, pela comunidade de populações
de espécies diferentes, até atingir o nível de ecossistema. A função dos
ecossistemas é referente aos processos dinâmicos que ocorrem em seu
interior, referente ao movimento de matéria e energia e suas inter-relações com
os organismos no sistema. Esses processos funcionais são importantes em
agroecossistemas, pois podem determinar o fracasso ou o sucesso de um
cultivo ou de alguma prática de manejo (GLIESSMAN, 2005, p. 62-67).
Apesar de dinâmicos, os ecossistemas são estáveis em sua estrutura e
função por sua capacidade de auto-regulação, devido a sua complexidade e à
diversidade das espécies que o compõem. Contudo, eles não se desenvolvem
em direção a estabilidade, permanecendo dinâmicos e flexíveis, resilientes
perante as forças perturbadoras naturais. A combinação entre essa estabilidade
geral e a transformação dinâmica produz um equilíbrio dinâmico no
ecossistema, conceito consideravelmente importante em um agroecossistema.
A estabilidade refere-se ao uso sustentável dos recursos disponíveis, e a
transformação, ao manejo contínuo do sistema para auxiliá-lo ao ponto de se
auto-regular, produzindo seu equilíbrio (GLIESSMAN, 2005, p. 74).
Os agroecossistemas possuem vários graus de resiliência e
estabilidade, mas eles não estão estritamente determinados por fatores de
origem biótica ou ambiental. Fatores sociais também podem interferir em
sistemas agrícolas tanto quanto fenômenos naturais ou enfermidades nos
cultivos. Por outro lado, uma teia de conexões se espalha a partir de cada
agroecossistema para dentro da sociedade humana e de ecossistemas
naturais. A magnitude das diferenças de função ecológica entre um
ecossistema natural e um agroecossistema depende em grande medida da
intensidade e frequência das perturbações naturais e humanas que se fazem
sentir no ambiente. O resultado da interação entre características ambientais e
fatores culturais gera particularidades ao agroecossistema. Por esta razão, é
necessário uma perspectiva mais ampla para explicar um sistema de produção
32
35. com enfoque agroecológico. Apesar das semelhanças e de sua aplicabilidade
um sistema ecológico difere em vários aspectos fundamentais de um sistema
agrícola. Isso ocorre porque os agroecossistemas são permeados por relações
em sociedade de culturas distintas e se situam num gradiente de ecossistemas
que sofreram algum impacto humano (ALTIERI, 1999, p. 19; GLIESSMAN,
2005, p. 78).
As perturbações naturais e antrópicas, como, respectivamente, do clima
e das práticas agrícolas, podem ser superadas por agroecossistemas
vigorosos, que sejam adaptáveis e diversificados o suficiente para se
recuperarem do impacto sofrido. Contudo, ocasionalmente, os agricultores
procuram empregar métodos alternativos para controlar problemas específicos
nos cultivos ou deficiências do solo em sistemas agrícolas ainda frágeis. A
agroecologia engloba orientações de como fazer isso sem provocar danos
desnecessários ou irreparáveis, procurando restaurar a resiliência e a força do
agroecossistema. A causa do problema deve ser entendida como um
desequilíbrio, e então o objetivo do tratamento agroecológico é restabelecê-lo
da forma mais natural possível (ALTIERI, 2008, p. 24). Encontramos na tabela
03 um conjunto básico de princípios e diretrizes tecnológicas que orientam uma
estratégia com enfoque agroecológico para superação de perturbações
específicas e que atinjam o restabelecimento do equilíbrio no agroecossistema.
Tabela 03: Elementos técnicos básicos de uma estratégia com enfoque agroecológico
I. Conservação e Regeneração dos Recursos Naturais
a. Solo: controle da erosão, manutenção da fertilidade e saúde das plantas
b. Água: captação/coleta, conservação no local, manejo e irrigação adequada
c. Material Genético: espécies nativas de plantas e animais, material genético adaptado
d. Fauna e flora: controladores naturais, polinizadores, vegetação de múltiplo uso
II. Manejo dos Recursos Produtivos
a. Diversificação:
- temporal: rotações, sequências
- espacial: policultivos, agroflorestas, sistemas mistos de plantio/criação de animais
- genética: multilinhas
- regional: zoneamento
b. Reciclagem dos nutrientes e matéria orgânica:
33
36. - biomassa de plantas (adubo verde, resíduos das colheitas, fixação de nitrogênio)
- biomassa animal (esterco, urina)
- reutilização de nutrientes e recursos internos e externos à propriedade
c. Regulação biótica (proteção de cultivos e saúde animal):
- controle biológico natural (aumento dos agentes de controle natural)
- controle biológico artificial (importação e aumento dos agentes de controle natural, caldas
naturais botânicas, produtos veterinários alternativos)
III. Implementação de Elementos Técnicos
a. Definição de técnicas de regeneração, conservação e manejo de recursos adequados às
necessidades locais e ao contexto agroecológico e socioeconômico.
b. O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica, unidade produtiva
ou sistema de cultivo.
c. A implementação é orientada por uma concepção holística (integrada) e, portanto, não
sobrevaloriza elementos isolados.
d. A estratégia deve estar de acordo com o conhecimento camponês, incorporando elementos
do manejo tradicional dos recursos.
Fonte: Tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (2008, p. 25).
Vejamos algumas diferenças nos aspectos ecológicos que configuram
um ecossistema natural e um agroecossistema segundo Gliessman (2005, p.
75). No que tange o fluxo de energia, os agroecossistemas apresentam
alterações acentuadas devido à aplicação de insumos externos deixando de
ser auto-sustentáveis como os ecossistemas naturais. Eles também se tornam
mais abertos, pois parte considerável da energia interna é dirigida para fora
com o escoamento da produção e o manejo intensivo, ao invés de ser
armazenada na biomassa que poderia ser acumulada dentro do sistema. Esta
redução de biomassa diminui a reciclagem de nutrientes no agroecossistema,
pois a colheita e o espaçamento dos cultivos frequentemente expõe o solo,
criando perdas temporárias de nutrientes no sistema por erosão e lixiviação.
Com a relativa simplificação do ambiente, raramente populações de plantas
cultivadas são auto-reprodutoras ou auto-reguladoras. A introdução de
sementes ou agentes reguladores depende de subsídios de energia, o que
determina o tamanho das populações. Os agroecossistemas possuem menores
graus de estabilidade em relação aos ecossistemas naturais, devido à redução
na diversidade funcional e estrutural ocasionada pelo manejo agrícola. Existem
34
37. perturbações recorrentes no equilíbrio estabelecido, que só poderá ser mantido
se a interferência externa também for mantida (Idem, ibid.). Na tabela 04 temos
uma síntese complementar do explanado acima.
Tabela 04: Diferenças estruturais e funcionais entre ecossistemas naturais e agroecossistemas
Ecossistemas naturais Agroecossistemas
Produtividade líquida Menor Maior
Interações populacionais Complexas Simples
Diversidade de espécies Maior Menor
Diversidade genética Maior Menor
Ciclos de nutrientes Fechados Abertos
Estabilidade Maior Menor
Controle humano Independente Dependente
Permanência temporal Longa Curta
Modificação espacial Lenta Rápida
Heterogeneidade do habitat Complexa Moderada
Fonte: Tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Gliessman (2005, p. 76).
Essas comparações levam em conta ecossistemas naturais com um
baixo grau de intervenção e/ou perturbação. Em áreas degradadas pela ação
humana ou que sofreram drásticas perturbações naturais e posteriormente
tiveram a implantação de agroecossistemas, essas diferenças apresentadas na
tabela 04 podem se inverter significativamente. Ainda, reforçamos que para
todas essas diferenças relativas, tendo em vista que ambos existem num
contínuo, deve-se considerar a localização do ecossistema natural a fim de
entender sua relação com o agroecossistema ali implantado, e o quanto ele é
favorecido e enriquecido, no tempo e no espaço, pelo manejo tradicional
camponês e o agroecológico.
Também devemos colocar, como assinala Gliessman (2005, p. 76), que
poucos ecossistemas são verdadeiramente naturais, no sentido de serem
completamente independentes da influência humana12, e por outro lado, os
agroecossistemas podem variar intensamente em sua necessidade pela
interferência humana. As propriedades dos ecossistemas naturais podem ser
12
Ver sub-capítulo 4.1, a respeito da presença humana e seus impactos nos ambientes naturais do planeta.
35
38. aplicadas para o desenho dos agroecossistemas se aproximar o quanto for
possível do nível de sustentabilidade necessária para co-existir e se co-
relacionar de forma mais harmoniosa com o meio, levando em conta os
aspectos do manejo cultural de cada região em que está inserido. Para Altieri
(1999) cada região possui uma configuração única de agroecossistema, que
são o resultado das variações locais no clima, no solo, nas relações
econômicas, na estrutura social e na história. Esses fatores são alguns dos
determinantes que influenciam na agricultura de cada lugar, como mostra a
tabela 05.
Tabela 05: Determinantes do agroecossistema que influem na agricultura de cada região.
DETERMINANTES INFLUÊNCIAS
- Radiação
- Temperatura
Físicos - Chuva, fornecimento de água
- Relevo
- Solo
- Declividade
Condições da área - Disponibilidade de terra
- Fertilidade do solo
- Controladores naturais
- Comunidades de plantas espontâneas
- Enfermidades de plantas e animais
Biológicos
- Biota do solo
- Entorno com vegetação natural
- Eficiência de fotossíntese
Modelos de cultivos - Rotação de cultivos
- Densidade da população
- Organização local
- Economia (preços, mercados, verba e
disponibilidade de crédito)
Locais - Acompanhamento técnico
- Ferramentas de cultivo
- Grau de comercialização
- Disponibilidade de mão-de-obra
- Conhecimento tradicional
- Crenças
Culturais - Etnias
- Questão de gênero
- Feitos históricos
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (1999, p. 49)
De acordo com Caporal e Costabeber (2004), em diversos lugares do
mundo passaram a surgir agriculturas chamadas de alternativas, como a
agricultura orgânica, biológica, natural, ecológica, biodinâmica, permacultura,
36
39. entre outras, cada uma delas seguindo determinados conceitos, princípios,
tecnologias, normas e regras, segundo as respectivas correntes de
pensamento a que estão ligadas. A partir dos princípios ensinados pela
agroecologia, passaram a existir novos caminhos para a construção de
agriculturas alternativas de base ecológica ou sustentáveis.
Contudo, é preciso ter clareza de que as agriculturas de base ecológica
ou sustentáveis, geralmente, na teoria e na prática, são o resultado da
aplicação de técnicas e métodos diferenciados dos pacotes tecnológicos da
agricultura moderna convencional, normalmente estabelecidos de acordo e em
função de regulamentos e regras que orientam a produção e impõem limites ao
uso de certos tipos de insumos e a liberdade para o uso de outros. Assim,
estas correntes da agricultura alternativa não necessariamente precisam estar
seguindo as premissas básicas e os ensinamentos fundamentais da
agroecologia. Na realidade, uma agricultura que trata apenas de substituir
insumos químicos industrializados por insumos alternativos naturais não
necessariamente será uma agricultura de base ecológica sustentável com
enfoque agroecológico (CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 10).
A simples substituição de insumos químicos industrializados por insumos
orgânicos mal manejados pode não ser a solução para uma transformação da
realidade, podendo até causar outro tipo de contaminação ambiental e manter
o dano social. O uso inadequado dos produtos orgânicos, seja por excesso
e/ou por aplicação fora de época e do contexto ecossistêmico, provocará um
impacto negativo ou limitará o funcionamento dos ciclos naturais e
socioculturais. Por exemplo,
[...] a aplicação de doses importantes de adubo nitrogenado inibe a
função nitrificadora das bactérias do solo, assim como a disposição
da água e nutrientes [em excesso] condiciona o desenvolvimento do
sistema radicular das plantas. Em suma, se impõe a necessidade de
estudar não apenas o balanço do que entra e do que sai no sistema
agrário, mas também o que ocorre ou poderia ocorrer dentro e fora do
mesmo, alterando a relação planta, solo, ambiente (RIECHMANN,
2000, apud CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 10).
37
40. A agricultura sustentável, sob o enfoque agroecológico, é aquela que
com uma compreensão holística dos agroecossistemas seja capaz de entender
aos critérios de baixa dependência de insumos comerciais, use os recursos
renováveis localmente acessíveis, utilize-se dos impactos benéficos ou
benignos do meio ambiente local, aceite e/ou tolere as condições locais, antes
que haja uma dependência da intensa alteração ou tentativa de controle sobre
o ambiente, tenha uma manutenção em longo prazo da capacidade produtiva,
preserve a diversidade biológica e cultural, utilize o conhecimento e a cultura
da população local, e produza mercadorias para o consumo interno e externo
num circuito alternativo de economia13 (GLIESSMAN, 1990, apud CAPORAL;
COSTABEBER, 2004, p. 15). Assim, quando se fala sobre uma agricultura
sustentável com enfoque agroecológico, quer-se inferir a presença de estilos
de agricultura de base ecológica que atendam a requisitos socioculturais de
solidariedade, equidade e harmonia entre as gerações atuais e futuras em
equilíbrio dinâmico com os ecossistemas locais.
Os conceitos básicos de um sistema agrícola auto-suficiente, de baixos
insumos, diversificado e eficaz, devem sintetizar-se em sistemas alternativos
práticos que se ajustem as necessidades específicas das comunidades
agrícolas em distintas regiões. Uma importante estratégia da agricultura
sustentável é a de regular a diversidade agrícola no tempo e no espaço
(ALTIERI, 1999, p. 91).
A corrente de pensamento agroecológico defende a construção de
agriculturas de base ecológica que sejam justificadas por seus méritos
intrínsecos, ao incorporar sempre a idéia da participação social e conservação
ambiental, em que haja a busca e a construção de uma lógica alternativa a
economia de mercado para o escoamento da produção comercial. Ao contrário,
outras correntes alternativas geralmente propõem uma agricultura que se
orienta exclusivamente pela lógica do mercado que almeja lucro sem garantir
sua sustentabilidade, assemelhando-se nesse aspecto ao modelo convencional
13
A Economia Solidária se apresenta como uma alternativa à economia de mercado. Consiste em inserir a
solidariedade na economia, de forma que ela seja organizada igualitariamente pelos que se associam
para produzir, comerciar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais ao
invés do contrato entre desiguais (SINGER, 2002, p. 09).
38
41. de produção, como colocam Caporal e Costabeber (2004, p. 18). Ou seja, há
uma reforma na prática de produção sem que necessariamente haja uma
transformação da realidade convencional moderna de reprodução social,
produzindo então uma ―agricultura alternativa conservadora‖.
Ao mesmo passo que a corrente agroecológica sustenta a necessidade
de que sejam elaborados processos de envolvimento comunitário e de
agriculturas sustentáveis, outras correntes ditas alternativas estão orientadas,
sobretudo, pela expectativa de gerar lucros individuais em curto prazo,
minimizando parte dos compromissos éticos e socioambientais. Com isso,
[...] podemos até supor que venha a existir [se é que já não exista]
uma monocultura orgânica de larga escala, baseada em mão-de-obra
assalariada, mal remunerada e “movida a chicote”. Essa ―monocultura
ecológica” poderá até atender aos anseios e caprichos de
consumidores informados sobre as benesses de consumir produtos
agrícolas ―limpos‖, ―orgânicos‖, isentos de resíduos contaminantes.
No entanto, o grau de informação ou de esclarecimento de dito
consumidor talvez não lhe permita identificar ou ter conhecimentos
das condições sociais em que o denominado produto orgânico foi ou
vem sendo produzido; talvez, nem mesmo lhe interesse saber. Neste
caso, no limite teórico e sob a consideração ética acima mencionada,
nenhum produto será verdadeiramente ecológico se a sua produção
estiver sendo realizada às custas da exploração da mão-de-obra. Ou,
ainda, quando o não uso de certos insumos (para atender
convenções de mercado) estiver sendo ―compensado‖ por novas
formas de esgotamento do solo, de degradação dos recursos naturais
ou de subordinação dos agricultores aos setores agroindustriais. [...]
Inclusive, teoricamente, uma agricultura nesses moldes
mundialmente não guardaria espaço para um diferencial de preços
pela característica ecológica ou orgânica de seus produtos
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 18, grifo do autor).
No que tange um processo de transição com enfoque agroecológico nas
práticas de agriculturas sustentáveis, é preciso levar em conta a complexidade
tecnológica, metodológica e organizacional de acordo com os objetivos e metas
estabelecidos, assim como do grau necessário para se atingir a
39