3. Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, onde frequentou, durante apenas alguns meses, o curso de Letras.
5. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.
6. Em 1877 sentiu os primeiros sinais de tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mesmas mortes serviram de inspiração a um de seus principais poemas, Nós de 1884.
7. A 19 de Julho de 1886 faleceu da doença contra a qual tinha vindo a lutar e, no ano seguinte, Silva Pinto organizou uma compilação da sua poesia, intitulado de O Livro de Cesário Verde , só disponível ao público em 1901.
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10. Oposição cidade/campo - a cidade é conotada como a doença e como a morte; o campo aparece como um espaço de energia e de força vital (mito do Ateu), como fonte de vida e de refúgio;
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12. O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.
29. Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E evoco, então, as crónicas navais:Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!Singram soberbas naus que eu não verei jamais! E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!De um couraçado inglês vogam os escaleres;E em terra num tinir de louças e talheresFlamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas;Um trôpego arlequim braceja numas andas;Os querubins do lar flutuam nas varandas;Àsportas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba;E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina. Batem os carros de aluguer, ao fundo,Levando à via férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:Como morcegos, ao cair das badaladas,Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
30. Vazam-se os arsenais e as oficinas;Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas!Seus troncos varonis recordam-me pilastras;E algumas, à cabeça, embalam nas canastrasOs filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvão,Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;E apinham-se num bairro aonde miam gatas,E o peixe podre gera os focos de infecção!
33. calafates - homens que trabalhavam na calafetagem dos barcos, o que se fazia com alcatrão, daí o eles se apresentarem enfarruscados. Esta técnica continua ainda a ser utilizada artesanalmente na calafetagem, por exemplo, dos barcos moliceiros, na região de Aveiro.
34. boqueirão - grande boca; rua ou travessa que vai dar ao cais de um rio ou canal.
35. escaler - pequeno barco para serviço de navio ou de repartição marítima. Os escaleres faziam a ligação entre o navio e a margem, uma vez que os grandes barcos nem sempre ficam atracados ao cais, mas ao largo.
38. trôpego arlequim - Nesta época já havia publicidade. Um arlequim é uma personagem da antiga comédia italiana, com trajes de várias cores, que a tornavam vistosa e atraíam o olhar. Esta figura andava trôpega, isto é, balançando de um lado para o outro, porque andava sobre umas andas, para chamar mais atenção das pessoas que circulavam na rua.
39. querubins do lar - Esta expressão faz-nos imaginar mais do que uma situação possível. Querubim é uma palavra que significa 'anjo da primeira hierarquia'. Geralmente, as donas de casa são designadas em linguagem familiar e carinhosa como «fadas do lar». Tratar-se-á, neste caso, das donas de casa, que se vislumbram, lá em cima, nas varandas? Todavia, o verbo flutuar faz-nos pensar noutra hipótese, talvez mais sugestiva do que a anterior e, talvez, mais plausível. Nas varandas, por falta de outro lugar, costumam pendurar-se as roupas para secar.NOTAS
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44. A primeira divisão do poema, designada de Avé-Marias – denominação das seis da tarde, ironicamente sugestiva da organização da vida segundo os ritmos bem ordenados de uma sociedade ligada pela devoção religiosa – inicia descrevendo a angustiada reacção psicológica ao impacto das variadas sensações do anoitecer nas ruas familiares (as nossas ruas) de Lisboa.
45. A visão das sombras que se salientam, o escutar dos sons ininterruptos gradualmente sufocados e o cheiro a maresia elevado pelo rio, avivam um universalizado desejo absurdo de sofrer que é a expressão subjectiva da pavorosa melancolia da própria cidade. A noite desce como uma barreira opressiva que vem fechar a cidade também de cima; na crescente escuridão, os prédios e os seres começam a fundir-se numa massa irregular; num todo morfológico que torna o ar repleto da sua sombria humanidade. (..) (est. 12)
46. A cor que escurece os prédios e as chaminés e que altera as pessoas numa negra multidão – a turba – é descrita como monótona e londrina, o que ao mesmo tempo vem contradizer e difundir a série de associações evocadas pela descrição da cidade (Londres = grande capital mercantil da civilização industrial).
47. O efeito enclausurador da cidade, que se encerra sobre si própria, à medida que as sombras escurecem e o ar se infecciona com o cheiro nauseabundo do gás extravasado, fomenta no sujeito uma ânsia inacessível de fugir, não obrigatoriamente para qualquer outra das cidades expostas, mas para a ampla plenitude delas extrapolada, o mundo, ironicamente caracterizada na passagem dos carros de aluguer que levam a via-férrea os que literalmente se vão. (est. 3)
48. Mas, a lembrar-lhe o espaço real e o objectivo do momento presente, logo vê também a cidade aprisionante a alastrar-se, desmultiplicando-se em novas, pequenas prisões, ainda inacabadas. (est. 4) Neste mundo indeterminado que, no contexto do poema, vai adquirindo progressões alegóricas continuamente fortalecidas, o passeante solitário atravessa ruas que se abrem como abismos e estreitas passagens que inesperadamente se fecham, os boqueirões e os becos junto aos cais de onde aparecem os calafates, em grupos, escurecidos da fuligem. (est.5)
49. Os pequenos barcos atracados nos cais reavivam o desejo de fugir; no entanto, enquanto que na terceira quadra a passagem dos carros de aluguer representara a ânsia de abraçar espacialmente o mundo real, este desejo expressa-se agora na ânsia pelo mundo do passado glorioso, por uma viagem saudosa no tempo. (est. 6) A evocação de Camões, que resume a grande fase criadora do passado português, centraliza numa só imagem multifacetada o esforço heróico que tornou possível lançar ao mar as soberbas naus que o narrador, reduzido a cismar junto aos botes atracados, não verá jamais - ele está em terra amarrado ao presente crepuscular do fim da tarde nas ruas da cidade que é a sua incomodada inspiração.
50. A referência aos hotéis da moda e ao couraçado inglês não é apenas uma coincidência, simbolizam a riqueza da alta burguesia citadina e do poder naval que a garantia. Todas as personagens já anteriormente mencionadas, são relacionadas umas às outras pelo uso adjectival das formas verbais complementares que descreve as suas actividades (arengam, braceja, flutuam, enfadam-se) de forma a criarem uma imagem heterogénea da vaidade da vida burguesa citadina. A visão deste mundo é imediatamente sobreposta com o contrastante quadro vivo das massas trabalhadores (est. 19) que, como um sopro de liberdade vindo do mar, o cardume negro das varinas entra na cidade. (est.9-10)
51. Tema O tema deste extenso poema (quarenta e quatro quadras) é o sentimento de desespero e protesto que atormenta um português (um “ocidental”) face à cidade de Lisboa, percorrida desde o anoitecer até à completa escuridão das “horas mortas”. A cidade provoca “melancolia”; “enjoo”; “desejo absurdo de sofrer”, que é ao mesmo tempo um produto da cultura vigorante e um protesto contra ela.
52. Estrutura Interna O poema, com uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve-se em quatro secções. Cada uma com onze quadras. Trata-se dum registo das “percepções e impressões de um observador caminhando nas ruas nocturnas da cidade”, desde o anoitecer (“Avé-Marias”), continuando na “Noite Fechada”, depois já com a iluminação pública acesa (“Ao Gás”) e, finalmente, altas horas da noite (“Horas Mortas”). Este passeio é uma viagem para dentro da noite, na qual ele é confrontado pelas sombras reais que simbolizam a cidade nocturna (Noite = Cidade).
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54. O poeta vai evocando experiências de repetidas deambulações pela “velha cidade” que o deprime e nauseia.
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56. Em todas as quadras, a rima é interpolada e emparelhada, segundo o esquema rimático ABBA. Neste domínio, são ainda de assinalar: -rimas “em eco”: turba/perturba; andas/varandas, etc. -rimas por associação dos mesmo sufixos: viveiros/carpinteiros; dentistas/lojistas, etc. -rimas por vocábulos de categorias gramaticais diferentes (rima rica): navais/jamais, etc. - O uso da aliteração: “Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!” (Aliteração em v) “Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelo cais a que se atracam botes”. (Aliteração em b e em k)
57. Cesário Verde aproveita, assim, a entidade fónica natural das palavras e prova que reproduz na sua poesia o ritmo do natural, sem convencionalismos.