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Cesário Verde
[object Object]
Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, onde frequentou, durante apenas alguns meses, o curso de Letras.
Ali conheceu Silva Pinto, grande amigo pelo resto da vida.
Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.
Em 1877 sentiu os primeiros sinais de tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mesmas mortes serviram de inspiração a um de seus principais poemas, Nós  de 1884.
A 19 de Julho de 1886 faleceu da doença contra a qual tinha vindo a lutar e, no ano seguinte, Silva Pinto organizou uma compilação da sua poesia, intitulado de O Livro de Cesário Verde , só disponível ao público em 1901.
De poesia delicada, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a Cidade e o Campo, os seus cenários preferidos. Evitou o lirismo tradicional, expressando-se de forma mais natural possível.,[object Object]
A Nível Temático ,[object Object]
Oposição cidade/campo - a cidade é conotada como a doença e como a morte; o campo aparece como um espaço de energia e de força vital (mito do Ateu), como fonte de vida e de refúgio;
Crítica social - denúncia da oposição entre a vida egoísta daqueles que são social e economicamente favorecidos e a miséria que condena os pobres. ,[object Object]
O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.
Anatomia do homem oprimido pela cidade.
Integração da realidade comezinha no mundo poético.,[object Object]
Precisão na construção da estrofe e do verso (versos decassilábicos e alexandrinos - dez e doze sílabas métricas);
Tradução plástica da realidade;
Exactidão vocabular;
Coexistência de registos de língua (literário, corrente e familiar);
Dupla e tripla adjectivação;
Utilização estilística do diminutivo;
Recurso à ironia;
Impressionismo (captação do real através de impressões - cor, luz, forma, movimento);
Antecipação do surrealismo - imaginação transformadora do real. ,[object Object]
Ao vaguear, ao deambular, o poeta percepciona a cidade e o “eu” é o resultado daquilo que vê.
Cesário não hesita em descrever nos seus poemas ambientes que, segundo a concepção da poesia, não tinham nada de poético.
Cesário não só surpreende os aspectos da realidade como sabe perfeitamente fazer uma reflexão sobre as personagens e certas condições.
A representação do real quotidiano é, frequentemente, marcada pela captação perfeita dos efeitos da luz e por uma grande capacidade de fazer ressaltar a solidez das formas (visão objectiva), embora sem menosprezar uma certa visão subjectiva – Cesário procura representar a impressão que o real deixa em si próprio e às vezes transfigura a realidade, transpondo-a numa outra.,[object Object]
Ave-Marias
       Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,Ou erro pelos cais a que se atracam botes.         E evoco, então, as crónicas navais:Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!Singram soberbas naus que eu não verei jamais!         E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!De um couraçado inglês vogam os escaleres;E em terra num tinir de louças e talheresFlamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.         Num trem de praça arengam dois dentistas;Um trôpego arlequim braceja numas andas;Os querubins do lar flutuam nas varandas;Àsportas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!         Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer.         O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba;E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina.         Batem os carros de aluguer, ao fundo,Levando à via férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!         Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:Como morcegos, ao cair das badaladas,Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
      Vazam-se os arsenais e as oficinas;Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,Correndo com firmeza, assomam as varinas.         Vêm sacudindo as ancas opulentas!Seus troncos varonis recordam-me pilastras;E algumas, à cabeça, embalam nas canastrasOs filhos que depois naufragam nas tormentas.        Descalças! Nas descargas de carvão,Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;E apinham-se num bairro aonde miam gatas,E o peixe podre gera os focos de infecção!
[object Object]
turba – multidão
calafates - homens que trabalhavam na calafetagem dos barcos, o que se fazia com alcatrão, daí o eles se apresentarem enfarruscados. Esta técnica continua ainda a ser utilizada artesanalmente na calafetagem, por exemplo, dos barcos moliceiros, na região de Aveiro.

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Cesario Verde Ave Marias Ana Catarina E Ana Sofia

  • 2.
  • 3. Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, onde frequentou, durante apenas alguns meses, o curso de Letras.
  • 4. Ali conheceu Silva Pinto, grande amigo pelo resto da vida.
  • 5. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.
  • 6. Em 1877 sentiu os primeiros sinais de tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mesmas mortes serviram de inspiração a um de seus principais poemas, Nós de 1884.
  • 7. A 19 de Julho de 1886 faleceu da doença contra a qual tinha vindo a lutar e, no ano seguinte, Silva Pinto organizou uma compilação da sua poesia, intitulado de O Livro de Cesário Verde , só disponível ao público em 1901.
  • 8.
  • 9.
  • 10. Oposição cidade/campo - a cidade é conotada como a doença e como a morte; o campo aparece como um espaço de energia e de força vital (mito do Ateu), como fonte de vida e de refúgio;
  • 11.
  • 12. O poeta interessa-se pelo conflito social do campo e da cidade, procurando documentá-lo e analisá-lo, embora sem interferir.
  • 13. Anatomia do homem oprimido pela cidade.
  • 14.
  • 15. Precisão na construção da estrofe e do verso (versos decassilábicos e alexandrinos - dez e doze sílabas métricas);
  • 18. Coexistência de registos de língua (literário, corrente e familiar);
  • 19. Dupla e tripla adjectivação;
  • 22. Impressionismo (captação do real através de impressões - cor, luz, forma, movimento);
  • 23.
  • 24. Ao vaguear, ao deambular, o poeta percepciona a cidade e o “eu” é o resultado daquilo que vê.
  • 25. Cesário não hesita em descrever nos seus poemas ambientes que, segundo a concepção da poesia, não tinham nada de poético.
  • 26. Cesário não só surpreende os aspectos da realidade como sabe perfeitamente fazer uma reflexão sobre as personagens e certas condições.
  • 27.
  • 29.        Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,Ou erro pelos cais a que se atracam botes.        E evoco, então, as crónicas navais:Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!Singram soberbas naus que eu não verei jamais!        E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!De um couraçado inglês vogam os escaleres;E em terra num tinir de louças e talheresFlamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.        Num trem de praça arengam dois dentistas;Um trôpego arlequim braceja numas andas;Os querubins do lar flutuam nas varandas;Àsportas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!        Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer.        O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba;E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina.        Batem os carros de aluguer, ao fundo,Levando à via férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!        Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:Como morcegos, ao cair das badaladas,Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
  • 30.       Vazam-se os arsenais e as oficinas;Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,Correndo com firmeza, assomam as varinas.        Vêm sacudindo as ancas opulentas!Seus troncos varonis recordam-me pilastras;E algumas, à cabeça, embalam nas canastrasOs filhos que depois naufragam nas tormentas.        Descalças! Nas descargas de carvão,Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;E apinham-se num bairro aonde miam gatas,E o peixe podre gera os focos de infecção!
  • 31.
  • 33. calafates - homens que trabalhavam na calafetagem dos barcos, o que se fazia com alcatrão, daí o eles se apresentarem enfarruscados. Esta técnica continua ainda a ser utilizada artesanalmente na calafetagem, por exemplo, dos barcos moliceiros, na região de Aveiro.
  • 34. boqueirão - grande boca; rua ou travessa que vai dar ao cais de um rio ou canal.
  • 35. escaler - pequeno barco para serviço de navio ou de repartição marítima. Os escaleres faziam a ligação entre o navio e a margem, uma vez que os grandes barcos nem sempre ficam atracados ao cais, mas ao largo.
  • 36. flamejar - (de flama 'chama') - lançar chamar; brilhar, resplandecer.
  • 37. arengam - dão à língua; falam, conversam
  • 38. trôpego arlequim - Nesta época já havia publicidade. Um arlequim é uma personagem da antiga comédia italiana, com trajes de várias cores, que a tornavam vistosa e atraíam o olhar. Esta figura andava trôpega, isto é, balançando de um lado para o outro, porque andava sobre umas andas, para chamar mais atenção das pessoas que circulavam na rua.
  • 39. querubins do lar - Esta expressão faz-nos imaginar mais do que uma situação possível. Querubim é uma palavra que significa 'anjo da primeira hierarquia'. Geralmente, as donas de casa são designadas em linguagem familiar e carinhosa como «fadas do lar». Tratar-se-á, neste caso, das donas de casa, que se vislumbram, lá em cima, nas varandas? Todavia, o verbo flutuar faz-nos pensar noutra hipótese, talvez mais sugestiva do que a anterior e, talvez, mais plausível. Nas varandas, por falta de outro lugar, costumam pendurar-se as roupas para secar.NOTAS
  • 40.
  • 41.
  • 42.
  • 43.
  • 44. A primeira divisão do poema, designada de Avé-Marias – denominação das seis da tarde, ironicamente sugestiva da organização da vida segundo os ritmos bem ordenados de uma sociedade ligada pela devoção religiosa – inicia descrevendo a angustiada reacção psicológica ao impacto das variadas sensações do anoitecer nas ruas familiares (as nossas ruas) de Lisboa.
  • 45. A visão das sombras que se salientam, o escutar dos sons ininterruptos gradualmente sufocados e o cheiro a maresia elevado pelo rio, avivam um universalizado desejo absurdo de sofrer que é a expressão subjectiva da pavorosa melancolia da própria cidade. A noite desce como uma barreira opressiva que vem fechar a cidade também de cima; na crescente escuridão, os prédios e os seres começam a fundir-se numa massa irregular; num todo morfológico que torna o ar repleto da sua sombria humanidade. (..) (est. 12)
  • 46. A cor que escurece os prédios e as chaminés e que altera as pessoas numa negra multidão – a turba – é descrita como monótona e londrina, o que ao mesmo tempo vem contradizer e difundir a série de associações evocadas pela descrição da cidade (Londres = grande capital mercantil da civilização industrial).
  • 47. O efeito enclausurador da cidade, que se encerra sobre si própria, à medida que as sombras escurecem e o ar se infecciona com o cheiro nauseabundo do gás extravasado, fomenta no sujeito uma ânsia inacessível de fugir, não obrigatoriamente para qualquer outra das cidades expostas, mas para a ampla plenitude delas extrapolada, o mundo, ironicamente caracterizada na passagem dos carros de aluguer que levam a via-férrea os que literalmente se vão. (est. 3)
  • 48. Mas, a lembrar-lhe o espaço real e o objectivo do momento presente, logo vê também a cidade aprisionante a alastrar-se, desmultiplicando-se em novas, pequenas prisões, ainda inacabadas. (est. 4) Neste mundo indeterminado que, no contexto do poema, vai adquirindo progressões alegóricas continuamente fortalecidas, o passeante solitário atravessa ruas que se abrem como abismos e estreitas passagens que inesperadamente se fecham, os boqueirões e os becos junto aos cais de onde aparecem os calafates, em grupos, escurecidos da fuligem. (est.5)
  • 49. Os pequenos barcos atracados nos cais reavivam o desejo de fugir; no entanto, enquanto que na terceira quadra a passagem dos carros de aluguer representara a ânsia de abraçar espacialmente o mundo real, este desejo expressa-se agora na ânsia pelo mundo do passado glorioso, por uma viagem saudosa no tempo. (est. 6) A evocação de Camões, que resume a grande fase criadora do passado português, centraliza numa só imagem multifacetada o esforço heróico que tornou possível lançar ao mar as soberbas naus que o narrador, reduzido a cismar junto aos botes atracados, não verá jamais - ele está em terra amarrado ao presente crepuscular do fim da tarde nas ruas da cidade que é a sua incomodada inspiração.
  • 50. A referência aos hotéis da moda e ao couraçado inglês não é apenas uma coincidência, simbolizam a riqueza da alta burguesia citadina e do poder naval que a garantia. Todas as personagens já anteriormente mencionadas, são relacionadas umas às outras pelo uso adjectival das formas verbais complementares que descreve as suas actividades (arengam, braceja, flutuam, enfadam-se) de forma a criarem uma imagem heterogénea da vaidade da vida burguesa citadina. A visão deste mundo é imediatamente sobreposta com o contrastante quadro vivo das massas trabalhadores (est. 19) que, como um sopro de liberdade vindo do mar, o cardume negro das varinas entra na cidade. (est.9-10)
  • 51. Tema O tema deste extenso poema (quarenta e quatro quadras) é o sentimento de desespero e protesto que atormenta um português (um “ocidental”) face à cidade de Lisboa, percorrida desde o anoitecer até à completa escuridão das “horas mortas”. A cidade provoca “melancolia”; “enjoo”; “desejo absurdo de sofrer”, que é ao mesmo tempo um produto da cultura vigorante e um protesto contra ela.
  • 52. Estrutura Interna O poema, com uma sinfonia em quatro andamentos, desenvolve-se em quatro secções. Cada uma com onze quadras. Trata-se dum registo das “percepções e impressões de um observador caminhando nas ruas nocturnas da cidade”, desde o anoitecer (“Avé-Marias”), continuando na “Noite Fechada”, depois já com a iluminação pública acesa (“Ao Gás”) e, finalmente, altas horas da noite (“Horas Mortas”). Este passeio é uma viagem para dentro da noite, na qual ele é confrontado pelas sombras reais que simbolizam a cidade nocturna (Noite = Cidade).
  • 53.
  • 54. O poeta vai evocando experiências de repetidas deambulações pela “velha cidade” que o deprime e nauseia.
  • 55.
  • 56. Em todas as quadras, a rima é interpolada e emparelhada, segundo o esquema rimático ABBA. Neste domínio, são ainda de assinalar: -rimas “em eco”: turba/perturba; andas/varandas, etc. -rimas por associação dos mesmo sufixos: viveiros/carpinteiros; dentistas/lojistas, etc. -rimas por vocábulos de categorias gramaticais diferentes (rima rica): navais/jamais, etc. - O uso da aliteração: “Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!” (Aliteração em v) “Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelo cais a que se atracam botes”. (Aliteração em b e em k)
  • 57. Cesário Verde aproveita, assim, a entidade fónica natural das palavras e prova que reproduz na sua poesia o ritmo do natural, sem convencionalismos.          
  • 58.
  • 59. Poesia do quotidiano;
  • 60. Captura factos sem referir causa/efeito;
  • 61.
  • 62. Avé-Marias está referente a que altura do dia?
  • 63. Qual é o estrato social que o Poeta critica?
  • 64.
  • 65. Guerra, João Augusto da Fonseca/ Vieira, José Augusto da Silva – Aula Viva, Literatura Portuguesa . 11ºano – Porto Editora;
  • 66.
  • 67.