O romance de Lima Barreto sobre o escrivão Isaías Caminha
1. A
CHAVE
DO
ROMANCE;
uma
leitura
de
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha
por
Manoel
Neves
ASPECTOS
BIOGRÁFICOS
Afonso
Henriques
de
Lima
Barreto
nasceu
no
Rio
de
Janeiro
a
13
de
maio
de
1881
e
morreu
na
mesma
cidade
a
primeiro
de
novembro
de
1922.
Filho
de
um
tipógrafo
da
Imprensa
Nacional
e
de
uma
professora
pública,
era
mestiço
de
nascença
e
foi
iniciado
nos
estudos
pela
própria
mãe,
que
perdeu
aos
7
anos
de
idade.
Fez
seus
primeiros
estudos
e,
pela
mão
de
seu
padrinho
de
batismo,
o
Visconde
de
Ouro
Preto,
ministro
do
Império,
completou-‐os
no
Ginásio
Nacional
[Pedro
II],
entrando
em
1897
para
a
Escola
Politécnica,
pretendendo
ser
engenheiro.
Teve,
porém,
de
abandonar
o
curso
para
assumir
a
chefia
e
o
sustento
da
família,
devido
ao
enlouquecimento
do
pai,
em
1902,
almoxarife
da
Colônia
de
Alienados
da
Ilha
do
Governador.
Nesse
ano,
estreia
na
imprensa
estudantil.
A
família
muda-‐se
para
o
subúrbio
do
Rio
de
Janeiro,
Engenho
de
Dentro,
onde
o
futuro
escritor
resolve
candidatar-‐se
a
um
cargo
vago
na
Secretaria
da
Guerra,
mediante
concurso
público,
tendo
passado
em
segundo
lugar
e
ocupado
a
vaga,
por
desistência
do
primeiro
colocado,
1903.
Com
o
modesto
salário,
passa
a
residir
com
a
família
em
Todos
os
Santos,
em
casa
simples,
e
na
qual,
em
1904,
inicia
a
primeira
versão
do
romance
Clara
dos
Anjos.
No
ano
seguinte,
começa
o
romance
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
publicado
em
Lisboa
em
1909.
Publica,
também,
uma
série
de
reportagens
no
jornal
Correio
da
manhã.
Inicia
o
romance
Vida
e
morte
de
M.
J.
Gonzaga
de
Sá,
publicado
apenas
em
1919.
Colabora
na
revista
Fon-‐fon
e,
com
amigos,
lança
em
fins
de
1907
a
revista
Floreal,
que
sobreviveria
com
quatro
números
apenas,
mas
que
chamou
a
atenção
do
crítico
literário
José
Veríssimo.
Nessa
época,
dedica-‐se
à
leitura
na
Biblioteca
Nacional
dos
grandes
nomes
da
literatura
mundial,
dos
escritores
realistas
europeus
de
seu
tempo,
tendo
sido
dos
poucos
escritores
brasileiros
a
tomar
conhecimento
e
ler
os
romancistas
russos.
Em
1910,
faz
parte
do
júri
no
julgamento
dos
participantes
do
episódio
chamado
“Primavera
de
sangue”,
condenando
os
militares
no
assassinato
de
um
estudante,
sendo
por
isso
preterido,
daí
para
frente,
nas
promoções
na
Secretaria
da
Guerra.
Em
1911,
em
três
meses,
escreve
o
romance
Triste
fim
de
Policarpo
Quaresma,
publicado
em
folhetins
no
Jornal
do
comércio,
onde
escreve,
e
também
na
Gazeta
da
tarde.
Publica,
em
1912,
dois
fascículos
das
Aventuras
do
Dr.
Bogoloff,
além
de
dois
outros
livretos
de
humor,
um
deles
pela
revista
O
riso.
O
vício
da
bebida
começa
a
manifestar-‐se
nele,
porém
não
o
impede
de
continuar
a
sua
colaboração
na
imprensa,
iniciando
em
1914
uma
série
de
crônicas
diárias
no
Correio
da
noite.
O
jornal
A
noite
publica
em
folhetins,
em
1915,
seu
romance
Numa
e
a
ninfa,
e
Lima
Barreto
inicia
longa
fase
de
colaboração
na
revista
Careta,
em
artigos
políticos
sobre
variados
assuntos.
Nos
primeiros
meses
de
1916
aparece
em
volume
o
romance
Triste
fim
de
Policarpo
Quaresma,
que
reúne
também
alguns
contos
notáveis
como
“A
Nova
Califórnia”
e
“O
homem
que
sabia
javanês”,
tendo
boa
acolhida
por
parte
da
crítica
que
vê
em
Lima
Barreto
o
legítimo
sucessor
de
Machado
de
Assis.
Passa
a
escrever
para
o
semanário
político
A.B.C..
Em
julho
de
1917,
após
internação
1
2. hospitalar,
entrega
ao
seu
editor,
J.
Ribeiro
dos
Santos,
os
originais
de
Os
Bruzundangas,
sátiras,
somente
publicado
em
1922,
um
mês
após
a
morte
do
autor.
Candidata-‐se
à
vaga
na
Academia
Brasileira
de
Letras,
mas
seu
pedido
de
inscrição
não
é
sequer
considerado.
Lança
a
segunda
edição
de
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha
e,
em
seguida,
o
romance
Numa
e
a
ninfa,
em
volume.
Passa
a
publicar
artigos
e
crônicas
na
imprensa
alternativa
da
época:
A
Lanterna,
A.B.C.
e
Brás
Cubas,
que
publica
um
artigo
seu,
em
que
manifesta
simpatia
pela
causa
revolucionária
russa.
Após
o
diagnóstico
de
epilepsia
tóxica,
é
aposentado
em
dezembro
de
1918,
mudando-‐se
para
outra
casa
na
Rua
Major
Mascarenhas,
em
Todos
os
Santos,
onde
irá
residir
até
morrer.
Em
inícios
de
1919,
suspende
a
colaboração
no
semanário
A.B.C.,
por
ter
a
revista
publicado
um
artigo
contra
a
raça
negra,
com
o
qual
não
concordava.
Põe
à
venda
o
romance
Vida
e
morte
de
M.
J.
Gonzaga
de
Sá,
por
ele
próprio
revisto
e
mandado
datilografar
pelo
editor,
Monteiro
Lobato,
tendo
sido
o
único
de
seus
livros
a
passar
por
tais
cuidados
normais
de
publicação,
e
pelo
qual
recebe
bom
pagamento
e
promoção,
além
do
aplauso
de
velhos
e
novos
expoentes
da
crítica,
como
João
Ribeiro
e
Alceu
Amoroso
Lima.
Nesse
clima,
candidata-‐se
em
segunda
vez
a
uma
vaga
na
Academia
de
Letras
–
desta
vez,
aceita
–,
não
conseguindo,
porém,
ser
eleito,
mas
tendo
o
voto
permanente
de
João
Ribeiro.
Sob
o
título
“As
mágoas
e
sonhos
do
povo”,
passa
a
publicar
semanalmente,
na
revista
Hoje,
crônicas
ditas
de
folclore
urbano,
reiniciando
a
colaboração
na
Careta,
em
segunda
fase,
só
interrompida
por
sua
morte.
Em
1919,
de
dezembro
a
janeiro
de
1920
é
internado
no
hospício,
devido
a
forte
crise
nervosa,
resultando
a
experiência
nas
anotações
dos
primeiros
capítulos
da
obra
O
cemitério
dos
vivos,
memórias
somente
publicadas
em
1953,
juntamente
com
as
do
Diário
íntimo,
num
mesmo
volume.
Em
dezembro
de
1920,
concorre
ao
prêmio
literário
da
Academia
Brasileira
de
Letras
para
o
melhor
livro
do
ano
anterior,
inscrevendo
o
Vida
e
morte
de
M.
J.
Gonzaga
de
Sá,
que
veio
a
receber
menção
honrosa.
No
mesmo
mês
é
posto
à
venda
nas
livrarias
o
volume
de
contos
Histórias
e
sonhos,
e
entrega
ao
editor
F.
Schettino,
seu
amigo,
os
originais
de
Marginália,
reunindo
artigos
e
crônicas
já
publicados
na
imprensa
periódica
e,
que
se
perderiam,
sendo
o
volume
editado
apenas
em
1953,
post
mortem.
O
Cemitério
dos
vivos
tem
um
trecho
publicado,
em
janeiro
de
1921,
na
Revista
Souza
Cruz,
sob
o
título
“As
origens:
memórias
manuscritas
não
completadas
pelo
autor”.
Em
abril,
faz
uma
viagem
à
pequena
cidade
de
Mirassol,
no
Estado
de
São
Paulo,
onde
um
médico
amigo
e
escritor,
Ranulfo
Prata,
tenta
a
regeneração
clínica
de
Lima
Barreto,
mas
em
vão.
Com
a
saúde
já
bastante
abalada,
a
doença
força
a
sua
reclusão
na
casa
modesta
de
Todos
os
Santos,
onde
os
amigos
vão
visitá-‐lo
e
sua
irmã
Evangelina
se
desvela
em
cuidados
por
ele.
Mas,
sempre
que
pode,
continua
a
sua
peregrinação
pela
cidade
que
ama,
reservando
a
leitura,
a
meditação
e
a
escrita
para
casa,
apesar
da
presença
constante
da
loucura
do
pai,
tornada
real
pelas
crises
cada
vez
mais
repetidas.
Em
julho
de
1921,
pela
terceira
vez,
candidata-‐se
à
vaga
na
Academia
de
Letras,
retirando,
porém,
a
mesma,
por
“motivos
inteiramente
particulares
e
íntimos”.
Entrega
ao
editor
os
originais
de
Bagatelas,
no
qual
reúne
a
sua
maior
produção
na
imprensa,
ou
seja,
a
que
vai
de
1918
a
1922,
em
que
evidencia
com
rara
visão
e
clareza
os
problemas
do
país
e
do
mundo
do
pós-‐guerra.
Bagatelas,
entretanto,
só
2
3. apareceria
em
1923.
Publica
na
Revista
Souza
Cruz
de
outubro-‐novembro
de
1921
a
conferência
“O
destino
da
literatura”,
que
não
chegara
a
pronunciar
na
cidade
de
Rio
Preto,
próximo
a
Mirassol.
Em
dezembro
inicia
a
segunda
versão
do
romance
Clara
dos
Anjos,
terminado
em
janeiro
seguinte.
Os
originais
de
Feiras
e
mafuás
são
entregues
para
publicação,
mas
somente
em
1953
seriam
editados.
Em
maio
de
1922,
a
revista
O
mundo
literário
publica
o
primeiro
capítulo
de
Clara
dos
Anjos,
“O
carteiro”.
Tendo
a
sua
saúde
declinada
mês
a
mês,
agravada
pelo
reumatismo,
pela
bebida
e
outros
padecimentos,
Lima
Barreto
morre
em
primeiro
de
novembro
de
1922,
vitimado
por
um
colapso
cardíaco.
Em
seus
braços,
é
encontrado
um
exemplar
da
Revue
des
deux
mondes,
sua
preferida
e
que
estivera
lendo.
Dois
dias
depois
é
a
vez
de
seu
pai.
Encontram-‐se
sepultados
no
cemitério
de
São
João
Batista,
onde
o
escritor
desejou
ser
enterrado.
Em
1953,
uma
editora
lançou
alguns
volumes
inéditos
de
sua
obra.
Porém,
somente
em
1956,
sob
a
direção
de
Francisco
de
Assis
Barbosa,
com
a
colaboração
de
Antônio
Houaiss
e
M.
Cavalcanti
Proença,
toda
a
sua
obra
em
17
volumes
foi
publicada,
compreendendo
todos
os
romances
citados
e
também
os
títulos
não
publicados
em
vida
do
autor,
e
que
são:
Os
bruzundangas,
Feiras
e
mafuás,
Impressões
de
leitura,
Vida
urbana,
Coisas
do
reino
de
Jambon,
Diário
íntimo,
Marginália,
Bagatelas,
O
cemitério
dos
vivos
e
mais
dois
volumes
que
contêm
toda
a
sua
correspondência,
ativa
e
passiva.
Nas
décadas
seguintes
Lima
Barreto
tem
sido
alvo
de
estudos,
tanto
no
Brasil
como
no
exterior.
Suas
obras,
romances
e
contos,
têm
sido
traduzidos
para
o
inglês,
francês,
russo,
espanhol,
tcheco,
japonês
e
alemão.
O
PRÉ-‐MODERNISMO
A
Proclamação
da
República,
em
1889,
não
representou
uma
mudança
muito
grande
no
cenário
econômico
brasileiro.
A
situação
das
famílias
que
viviam
no
campo,
dois
terços
da
população
do
país,
continuava
determinada
pelos
grandes
latifundiários,
que
controlavam
extensas
porções
de
terra
tanto
no
litoral
quanto
no
interior.
A
reforma
das
cidades
Com
a
República,
os
principais
centros
políticos
passaram
por
uma
transformação
do
espaço
urbano
que
desencadeou
um
processo
de
europeização
do
país.
Cidades
como
Rio
de
Janeiro,
Manaus,
São
Paulo
e
Belém
foram
as
mais
afetadas
pelo
chamado
bota
abaixo
–
abertura
de
largas
avenidas
e
a
imitação
de
prédios
europeus,
para
eliminar
os
traços
da
arquitetura
portuguesa
que
orientara
a
construção
dessas
cidades.
Uma
consequência
imediata
da
reforma
urbana
foi
o
deslocamento
de
milhares
de
famílias
pobres
das
áreas
centrais,
onde
moravam
em
cortiços,
para
locais
de
difícil
acesso.
Nasciam,
assim,
as
favelas,
como
um
desdobramento
negativo
da
tentativa
de
embelezar
o
país.
Se
a
reurbanização
sugeria
prosperidade,
ela
era
apenas
aparente.
Nos
centros
urbanos,
escravos
libertos
viviam
em
estado
de
quase
completo
abandono.
Não
tinham
acesso
à
educação
e
não
eram
mais
empregados
pelos
proprietários
rurais.
Essa
elite
preferia
importar
imigrantes
europeus.
Autores
em
busca
de
um
país
As
grandes
mudanças
políticas,
sociais
e
econômicas
não
deixavam
espaço
para
a
idealização.
Era
o
momento
de
buscar
um
conhecimento
mais
real
e
profundo
das
3
4. condições
de
vida
que
podiam
ser
observadas
em
um
país
tão
grande.
Por
isso,
o
foco
da
produção
literária
se
fragmenta
e
os
autores
escrevem
sobre
as
diferentes
regiões:
os
centros
urbanos,
os
funcionários
públicos,
os
sertanejos,
os
caboclos
e
os
imigrantes.
Tudo
era
motivo
de
interesse
para
escritores
como
Euclides
da
Cunha,
Monteiro
Lobato,
Lima
Barreto,
Graça
Aranha
e
Augusto
dos
Anjos.
O
Pré-‐Modernismo
é
considerado
por
grande
parte
dos
historiadores
da
literatura
como
uma
fase
de
transição
devido
à
mudança
do
enfoque
do
texto
literário
e
a
antecipação
de
alguns
temas
que
serão
desenvolvidos
pela
literatura
modernista,
a
saber:
o
nacionalismo
crítico,
a
linguagem
coloquial,
a
literatura
de
denúncia
social.
Historicamente,
considera-‐se
o
marco
inicial
do
Pré-‐Modernismo
a
publicação
de
Os
sertões,
de
Euclides
da
Cunha,
em
1902,
e
a
Semana
da
Arte
Moderna
–
de
1922
–
como
início
do
Modernismo.
O
projeto
literário
do
Pré-‐Modernismo
A
intenção
dos
escritores
desse
período
é
revelar
o
Brasil
profundo
para
os
brasileiros.
O
mesmo
desejo
que
motivou
românticos
a
escreverem
dezenas
de
romances
regionais
será
a
marca
característica
da
literatura
nos
primeiros
anos
do
século
XX:
olhar
para
o
Brasil
e
usar
a
literatura
como
meio
para
torná-‐lo
mais
conhecido
pelos
brasileiros.
Sob
este
aspecto,
pode
afirmar
que
se
trata
de
uma
literatura
basicamente
regional
e
social.
A
primeira
condição
para
realização
desse
projeto
era
desviar
o
olhar
das
classes
sociais
mais
privilegiadas
que,
até
aquele
momento,
ocupavam
boa
parte
dos
romances
escritos.
Personagem
que
ainda
não
haviam
aparecido
na
literatura,
como
o
pequeno
funcionário
público,
o
caboclo,
os
imigrantes,
são
elevados
à
condição
de
protagonistas
dos
romances
do
período.
Outros,
como
os
sertanejos,
que
já
tinham
sido
objeto
da
atenção
dos
romances
regionalistas
de
Alencar
e
Franklin
Távora,
recebem
um
novo
tratamento,
mais
objetivo
e
distanciado,
bem
diferente
da
idealização
característica
dos
textos
românticos.
Por
meio
dessa
galeria
de
personagens,
Norte,
Nordeste,
interior
e
cidade
passam
a
ser
apresentados
de
modo
mais
próximo
do
real.
A
linguagem
Como
consequência
natural
da
maior
aproximação
entre
literatura
e
realidade,
a
linguagem
utilizada
nos
textos
modifica-‐se,
torna-‐se
mais
direta,
mais
objetiva,
mais
próxima
da
linguagem
característica
do
texto
jornalístico.
Do
conjunto
de
romances
e
contos
publicados
pelos
autores
da
época,
emergem
as
tendências
que
dentro
de
duas
décadas
serão
agitadas
como
bandeiras
pelos
primeiros
modernistas
–
a
desmistificação
do
texto
literário,
a
utilização
de
um
português
mais
brasileiro,
a
crítica
à
realidade
social
e
econômica
contemporânea,
enfim,
a
constituição
de
uma
literatura
que
retrata
verdadeiramente
o
Brasil.
Lima
Barreto
e
o
Pré-‐Modernismo
O
sertão
da
obra
de
Euclides
da
Cunha
era
desconhecido
pela
maioria
dos
leitores
brasileiros,
que
se
concentravam
nos
centros
urbanos.
Lima
Barreto
será
responsável
por
compor
um
retrato
de
parte
dos
centros
urbanos
ignorados
pela
elite
cultural
do
país:
os
subúrbios
cariocas.
Era
lá
que
vivia
a
pequena
classe
média
composta
de
funcionários
públicos,
professores,
moças
à
espera
de
casamento
e
uma
variedade
de
4
5. outras
personagens
que
povoam
a
obra
do
autor.
Dá,
assim,
voz
a
uma
parcela
da
população
que
havia
sido
ignorada
até
então
pela
literatura
feita
no
Brasil.
Os
romances,
contos
e
crônicas
de
Lima
Barreto
compõem
um
painel
em
que
se
desenham
de
forma
mais
clara
os
verdadeiros
mecanismos
de
relacionamento
social
típicos
do
Brasil
do
início
do
século
XX.
APRESENTAÇÃO
Nas
palavras
do
professor
Alfredo
Bosi,
em
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
1909,
nos
primeiros
capítulos
predomina
o
caráter
autobiográfico
que
se
dilui
à
medida
que
o
romance
se
desenvolve.
Depois
do
micro-‐ensaio
memorialístico,
o
romance
passa
a
descrições
de
vários
tipos:
o
político,
o
jornalista,
o
burocrata
carioca
do
começo
do
século.1
Segundo
o
renomado
professor,
neste
roman
à
clef:2
Sustenta,
porém,
a
presença
de
Isaías
como
personagem
polarizadora
a
própria
frustração
do
autor,
que
nele
se
encarna,
tornando
especialmente
doídos
os
seus
encontros
com
os
preconceitos
de
cor
e
de
classe.
Uma
tristeza,
ora
de
rebelde
ora
de
vencido,
dá
o
tom
sentimental
dominante
a
essas
Recordações,
onde
alternam,
chegando
às
vezes
a
fundir-‐se,
a
representação
de
uma
sociedade
classista
e
o
seu
processo
instaurado
por
um
“humilhado
e
ofendido”.
assim,
o
convívio
de
objeto
e
sujeito,
de
observação
social
e
ressonância
afetiva,
define
com
propriedade
o
estilo
realista-‐
memorialista
de
Lima
Barreto.3
O
ENREDO
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
primeiro
romance
de
Lima
Barreto,
é
uma
forte
crítica
à
sociedade
hipócrita
e
preconceituosa
e
à
imprensa.
O
jovem
Isaías
Caminha,
menino
do
interior,
tomou
gosto
pelos
estudos
através
da
desigualdade
de
nível
mental
entre
o
seu
pai,
um
ilustrado
vigário,
e
sua
mãe.
Admirava
o
pai
que
lhe
contava
histórias
sobre
grandes
homens.
Esforçou-‐se
muito
nas
instruções
e
pouco
brincava.
Tinha
ambições
e
um
dia
finalmente
decide
ir
para
o
Rio
fazer-‐se
doutor:
Ah!
Seria
doutor!
Resgataria
o
pecado
original
do
meu
nascimento
humilde,
amaciaria
o
suplício
premente,
cruciante
e
omnímodo
de
minha
cor...
Nas
dobras
do
pergaminho
da
carta,
traria
presa
a
consideração
de
toda
a
gente.
Seguro
do
respeito
à
minha
majestade
de
homem,
andaria
com
ela
mais
firme
pela
vida
em
fora.
Não
titubearia,
não
hesitaria,
livremente
poderia
falar,
dizer
bem
alto
os
pensamentos
que
se
estorciam
no
meu
cérebro.
[...]
Quantas
prerrogativas,
quantos
direitos
especiais,
quantos
privilégios,
esse
título
dava!
Podia
ter
dois
1
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira, 319.
2
Roman à clef: O roman à clef é um sub-gênero romance no qual personagens certos ou todos estes representam mais ou menos
explicitamente, uma pessoa real. Sob o pretexto de ficção, o autor aborda, por escrito, na verdade, uma história verdadeira, muitas vezes
para evitar a calúnia, para fazer uma sátira, ou por razões autobiográficas. A chave para a história, que faz o leitor entender que esta é uma
história verdadeira, é geralmente reconhecido figura pública, especialmente um político ou uma pessoa que tem uma grande influência sobre
um grupo, Seja na política, negócios, show business, etc.
3
Idem.
5
6. e
mais
empregos
apesar
da
Constituição;
teria
direito
à
prisão
especial
e
não
precisava
saber
nada.
Bastava
o
diploma.
Pus-‐me
a
considerar
que
isso
devia
ser
antigo...
Newton,
César,
Platão
e
Miguel
Ângelo
deviam
ter
sido
doutores!
Aconselha-‐se
com
o
tio
Valentim.
Este
visita
o
Coronel
Belmiro,
chefe
eleitoral
local,
que
redige
uma
carta
recomendando
Isaías
para
o
Doutor
Castro,
deputado.
Segue
paro
o
Rio
com
algum
dinheiro
e
esta
carta.
Instala-‐se
no
Hotel
Jenikalé,
na
Praça
da
República
e
conhece
o
Senhor
Laje
da
Silva
que
diz
ser
padeiro
e
é
incrivelmente
afável
com
todos,
em
especial
com
os
jornalistas.
Através
dele
conhece
o
doutor
Ivã
Gregoróvitch
Rostóloff,
jornalista
de
O
globo,
romeno,
sentia-‐se
sem
pátria
e
falava
10
línguas.
Vai
assim
conhecendo
o
Rio
de
Janeiro.
Decide
procurar
o
Deputado
Castro
para
conseguir
seu
emprego
e
poder
cursar
Medicina.
Dirige-‐se
a
Câmera:
Subi
pensando
no
ofício
de
legislar
que
ia
ver
exercer
pela
primeira
vez,
em
plena
Câmera
dos
Senhores
Deputados
–
augustos
e
digníssimos
representantes
da
Nação
Brasileira.
Não
foi
sem
espanto
que
descobri
em
mim
um
grande
respeito
por
esse
alto
e
venerável
ofício
[...]
Foi
com
grande
surpresa
que
não
senti
naquele
doutor
Castro,
quanto
certa
vez
estive
junto
dele,
nada
que
denunciasse
tão
poderosa
faculdade.
Vi-‐o
durante
uma
hora
olhar
tudo
sem
interesse
e
só
houve
um
movimento
vivo
e
próprio,
profundo
e
diferencial,
na
sua
pessoa,
quando
passou
por
perto
uma
fornida
rapariga
de
grandes
ancas,
ofuscante
sensualidade.
Tenta
falar
com
o
doutor
Castro
mas
não
consegue.
Quando
finalmente
consegue,
visitando
a
sua
residência
particular
[casa
da
amante]
este
o
recebe
friamente
dizendo
que
era
muito
difícil
arranjar
empregos
e
manda
o
procurar
no
outro
dia.
Caminha
depois
descobre
que
o
deputado
estava
de
viagem
marcada
para
o
mesmo
dia
e
é
tomado
por
um
acesso
de
raiva:
Patife!
Patife!
A
minha
indignação
veio
encontrar
os
palestradores
no
máximo
de
entusiasmo.
O
meu
ódio,
brotando
naquele
meio
de
satisfação,
ganhou
mais
força
[...]
Gente
miserável
que
dá
sanção
aos
deputados,
que
os
respeita
e
prestigia!
Porque
não
lhes
examinam
as
ações,
o
que
fazem
e
para
que
servem?
Se
o
fizessem...
Ah!
Se
o
fizessem!
Com
o
dinheiro
no
fim,
sem
emprego,
recebe
uma
intimação
para
ir
à
delegacia.
O
hotel
havia
sido
roubado
e
prestavam-‐se
depoimentos.
Ao
ouvir
as
palavras
do
Capitão
Viveiros:
E
o
caso
do
Jenikalé?
Já
apareceu
o
tal
"mulatinho"?
Isaías
reflete:
Não
tenho
pejo
em
confessar
hoje
que
quando
me
ouvi
tratado
assim,
as
lágrimas
me
vieram
aos
olhos.
Eu
saíra
do
colégio,
vivera
sempre
num
ambiente
artificial
de
consideração,
de
respeito,
de
atenções
comigo
[...]
Hoje,
agora,
depois
não
sei
de
quantos
pontapés
destes
e
outros
mais
brutais,
sou
outro,
insensível
e
cínico,
mais
forte
talvez;
aos
meus
olhos,
porém,
muito
diminuído
de
mim
próprio,
do
meu
6
7. primitivo
ideal
[...].
Entretanto,
isso
tudo
é
uma
questão
de
semântica:
amanhã,
dentro
de
um
século,
não
terá
mais
significação
injuriosa.
Essa
reflexão,
porém,
não
me
confortava
naquele
tempo,
porque
sentia
na
baixeza
de
tratamento,
todo
o
desconhecimento
das
minhas
qualidades,
o
julgamento
anterior
da
minha
personalidade
que
não
queriam
ouvir,
sentir
e
examinar.
Levado
a
presença
do
delegado,
começa
o
interrogatório:
–
Qual
é
a
sua
profissão?
–
Estudante.
–
Estudante?!
–
Sim,
senhor,
estudante,
repeti
com
firmeza.
–
Qual
estudante,
qual
nada!
A
sua
surpresa
deixara-‐me
atônito.
Que
havia
nisso
de
extraordinário,
de
impossível?
Se
havia
tanta
gente
besta
e
bronca
que
o
era,
porque
não
o
podia
seu
eu?
Donde
lhe
vinha
a
admiração
duvidosa?
Quis-‐lhe
dar
uma
resposta
mas
as
interrogações
a
mim
mesmo
me
enleavam.
Ele
por
sua
vez,
tomou
o
meu
embaraço
como
prova
de
que
mentia.
Com
ar
de
escarninho
perguntou:
–
Então
você
é
estudante?
Dessa
vez
tinha-‐o
compreendido,
cheio
de
ódio,
cheio
de
um
santo
ódio
que
nunca
mais
vi
chegar
em
mim.
Era
mais
uma
variante
daquelas
tolas
humilhações
que
eu
já
sofrera;
era
o
sentimento
geral
da
minha
inferioridade,
decretada
a
priori,
que
eu
adivinhei
na
sua
pergunta.
O
delegado
continua
o
interrogatório
até
arrebatar
chamando
Caminha
de
malandro
e
gatuno,
que,
sentindo
num
segundo
todas
as
injustiças
que
vinha
sofrendo
chama
o
delegado
de
imbecil.
Foi
para
o
xadrez.
Passa
pouco
mais
de
3
horas
na
cela
e
é
chamado
ao
delegado.
Este
se
mostra
amável,
tratando-‐o
por
meu
filho,
dando-‐lhe
conselhos.
Após
o
incidente,
deixou
o
hotel,
procurando
abrigo
em
um
quartinho
de
fundos.
Lá
conheceu
o
poeta
revolucionário
Abelardo
Leiva,
que
se
dizia
socialista
e
era
secretário
do
Centro
de
Resistência
dos
Varredores
de
Rua.
O
poeta
vivia
pobremente,
mas
curtia
sua
miséria,
gabava-‐se
de
ter
participado
de
duas
greves
e
de
ter
conscientizado
o
operariado.
Através
dele
freqüentou
as
reuniões
do
apostolado
positivista
e
ouviu
as
prédicas
de
Teixeira
Mendes,
em
quem
Isaías
Caminha
reconhece
um
impostor.
É
também
através
dele
que
desvenda
o
mistério
da
cidade
que
o
acolheu
tão
friamente.
A
situação
do
protagonista
fica
cada
vez
pior.
Não
havia
mais
dinheiro
para
seu
sustento.
Confessa
ter-‐se
abandonado
à
miséria,
pois
mal
comia
ou
comia
mal
e
sua
sobrevivência
em
parte
era
devida
ao
conterrâneo
Agostinho
Marques.
7
8. Por
fim,
Isaías
reencontra
o
jornalista
Gregoróvitch,
a
quem
confessou
suas
agruras
e
os
sofrimentos
pelos
quais
estava
passando.
Gregoróvitch
lhe
arranja
um
lugar
como
contínuo
no
jornal
O
globo.
A
partir
desse
momento,
a
obra
praticamente
gira
em
torno
das
observações
que
o
personagem-‐narrador
faz
da
rotina
do
jornal.
Todas
as
características
dos
grandes
jornalistas,
desde
o
diretor
de
O
globo,
Ricardo
Loberant,
aos
demais
redatores
e
jornalistas
são
explicitadas
de
maneira
cruel
e
mordaz.
O
diretor
é
retratado
como
ditador,
temido
por
todos,
com
apetite
de
mulheres
e
prazer,
visando
somente
ao
aumento
das
vendas
do
seu
jornal.
São
apresentados,
então,
inúmeros
jornalistas
como
Aires
d’Ávila,
redator-‐chefe,
Leporace,
secretário,
Adelermo
Caxias,
Oliveira,
Menezes,
Gregoróvitch.
A
tônica
de
O
globo
era
a
crítica
acerba
ao
governo
e
seus
desmandos;
Loberant
se
considerava
o
moralizador
da
República.
Isaías
se
admira
com
a
falta
de
conhecimento
e
dificuldade
para
escrever
desses
homens
que
nas
ruas
eram
tratados
como
semi-‐deuses
e
defensores
do
povo.
Por
este
tempo,
Caminha
havia
perdido
suas
grandes
ambições
e
acostumava-‐se
com
o
trabalho
de
contínuo.
É
notável
o
que
se
diz
do
crítico
literário
Floc
[Frederico
Lourenço
do
Couto]
e
do
gramático
Lobo
–
os
dois
mais
altos
ápices
da
intelectualidade
de
O
globo.
Lobo
era
defensor
do
purismo,
de
um
código
tirânico,
de
uma
língua
sagrada.
Acaba
num
hospício,
sem
falar,
com
medo
de
que
o
falar
errado
o
tenha
impregnado
e
tapando
os
ouvidos
para
não
ouvir.
Floc
confundia
arte,
literatura,
pensamento
com
distrações
de
salão;
não
lhes
sentia
o
grande
fundo
natural,
o
que
pode
haver
de
grandioso
na
função
da
Arte.
Para
ele,
arte
era
recitar
versos
nas
salas,
requestar
atrizes
e
pintar
umas
aquarelas
lambidas,
falsamente
melancólicas.
[...]
as
suas
regras
estéticas
eram
as
suas
relações
com
o
autor,
as
recomendações
recebidas,
os
títulos
universitários,
o
nascimento
e
a
condição
social.
Certa
noite,
volta
entusiasmado
de
uma
apresentação
de
música
e
vai
escrever
a
crônica
para
o
dia
seguinte.
Após
algum
tempo,
o
paginador
o
apressa.
Ele
manda
esperar.
Floc
tenta
escrever
o
que
viu
e
ouvira,
mas
seu
poder
criativo
é
nulo,
sua
capacidade
é
fraca.
Ele
se
desespera.
O
que
escreve
rasga.
Após
novo
pedido
do
paginador,
ele
se
levanta,
dirige-‐se
a
um
compartimento
próximo
e
se
suicida
com
um
tiro
na
cabeça.
Estando
a
redação
praticamente
vazia,
o
redator
de
plantão
chama
Isaías
e
pede
para
que
ele
se
dirija
para
o
local
onde
Ricardo
Loberant
se
encontra
e
jurasse
que
nunca
diria
o
que
viu:
Isaías
vai
ao
local
indicado
e
surpreende
Loberant
e
Aires
d’Ávila
numa
sessão
de
orgia
e
os
chama
apressadamente
para
o
jornal.
Para
não
ser
desmoralizado,
o
dono
do
jornal
passa
a
protegê-‐lo
e,
pela
primeira
vez,
o
rapaz
tem
a
oportunidade
de
mostrar
seus
reais
dotes
jornalísticos.
Caminha
é
promovido,
passa
a
trabalhar
na
redação
e
tem
seu
ordenado
aumentado.
Entretanto,
alguns
repórteres
implicam
com
o
protagonista.
Eis
o
episódio:
No
quinto
dia
em
que
eu
fazia
reportagem,
um
outro
repórter
arrebatou-‐me
das
mãos
umas
notas
que
eu
copiava.
Incontinenti,
fui
ao
diretor
e
o
velho
funcionário
obrigou-‐o
a
restituir-‐mas.
Quando
o
fez,
gritou
na
portaria:
8
9. –Tome,
“seu”
moleque!
Você
saiu
da
cozinha
do
Loberant
para
fazer
reportagem.
A
alusão
à
origem
de
Caminha
transtorna-‐o.
Não
faz
nada
de
imediato,
mas
encontra
o
funcionário
na
rua
e
o
agride,
indo
parar
na
delegacia.
Pela
primeira
vez
na
vida,
tinha
consciência
de
que
não
havia
se
deixado
humilhar.
Loberant,
desse
dia
em
diante,
deu
mais
apoio
a
seu
tutelado.
Todos
da
redação
do
jornal
passaram
a
considerá-‐lo
e
a
respeitá-‐lo.
O
diretor
do
jornal,
como
que
movido
pelo
remorso
de
tê-‐lo
deixado
tanto
tempo
como
contínuo,
passou
a
cobrir-‐lhe
de
dinheiro
e
atenções,
levava-‐o
a
toda
a
parte
elogiando-‐lhe
o
talento,
a
inteligência
e
a
cultura.
O
protagonista
ganha
a
proteção
e
dinheiro
de
Ricardo
Loberant.
Depois
da
euforia
inicial,
Isaías
se
ressente.
Lembrava-‐me
de
que
deixara
toda
a
minha
vida
ao
acaso
e
que
a
não
pusera
ao
estudo
e
ao
trabalho
com
a
força
de
que
era
capaz.
Sentia-‐
me
repelente,
repelente
de
fraqueza,
de
falta
de
decisão
e
mais
amolecido
agora
com
o
álcool
e
com
os
prazeres...
Sentia-‐me
parasita,
adulando
o
diretor
para
obter
dinheiro...
Isaías
abandona
a
sua
vida
confortável
e
repleta
de
boas
relações
para
retornar
à
terra
natal
com
a
finalidade
de
encontrar
um
casamento
por
lá
e
viver
uma
vida
diferente
daquela
que
levava.
Já
casado,
mas
sem
filhos
porque
perdera
os
dois
que
tivera,
resolve
registrar
as
suas
recordações
em
uma
espécie
de
livro
de
memória,
de
onde
surgem
as
Recordações
do
Escrivão
Isaías
Caminha.
FOCO
NARRATIVO
No
prefácio
de
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
Lima
Barreto
afirma
ser
apenas
o
editor
da
obra.
O
autor,
e
também
narrador,
segundo
este,
é
Isaías
Caminha,
seu
amigo.
Caminha,
quando
decide
escrever
suas
recordações
está
tomado
por
uma
enorme
frustração:
sentia-‐me
desgostoso
por
não
ter
tirado
de
mim
nada
de
grande.
Nessa
época,
já
não
era
o
rapaz
pobre
e
ingênuo
recém-‐saído
de
uma
cidadezinha
do
interior.
Mas
também
não
era
alguém
reconhecido
por
grandes
obras,
não
era
doutor
[seu
objetivo
inicial].
Embora
já
se
sustentasse
pelos
próprios
méritos,
a
função
que
desempenhava
[a
de
escrivão
na
Coletoria
de
Caxambi]
era
modesta.
Quanto
à
fase
da
vida
que
encerra
a
sua
narração,
não
constitui
exatamente
um
modelo,
visto
que
passa
a
desempenhar
a
função
de
jornalista
de
O
globo
em
troca
do
sigilo
a
respeito
de
um
episódio
da
vida
pessoal
do
diretor
do
jornal,
e,
assumidamente,
ganha
dinheiro
adulando
seu
chefe.
Isaías
narra,
pois,
da
condição
de
excluído:
Crime
fora
de
minha
sociedade,
fora
do
agrupamento
a
que
tacitamente
eu
concedia
alguma
coisa
e
que
em
troca
me
dava
também
alguma
cousa.
E
vem
a
público
exteriorizar
sua
indignação
e
toda
uma
teoria
a
respeito
dos
fatos
alegados
no
artigo
a
que
desejava
se
contrapor.
Mas
é,
sem
dúvida,
um
excluído
diferenciado:
embora
pobre
e
mulato,
é
letrado
[sua
condição
combina,
portanto,
dois
mundos
antagônicos
para
a
época].
9
10. O
acesso
às
letras
lhe
vem
graças
a
sua
filiação
que,
se
por
um
lado
o
beneficia,
por
outro
lado
reforça
a
exclusão,
afinal,
é
bom
lembrar,
Isaías
é
filho
de
um
padre,
uma
filiação
que
ainda
hoje
não
é
nada
cômoda.
Toda
essa
situação
contribui
para
nosso
narrador
se
sentir
isolado,
visto
não
se
integrar
perfeitamente
nem
ao
grupo
em
que
teve
origem,
nem
ao
grupo
dos
letrados,
situação
confirmada
pela
contraposição
estabelecida
entre
a
Inteligência
do
pai
e
a
ignorância
da
mãe
ou,
mais
tarde,
a
estupidez
das
multidões
e
a
fábula
da
imprensa
e,
no
limite,
até
pela
condição
de
mulato.
Quando
escreve
o
prefácio,
o
narrador
já
não
faz
mais
parte
da
equipe
de
O
globo,
mas
continua
melancólico,
afinal,
os
planos
de
seu
pai
e
os
seus
próprios
sonhos
não
condiziam
com
o
cargo
de
escrivão
da
Coletoria
Federal
de
“Catumbi”.
Até
esse
momento
sua
solidão
só
se
ameniza
com
o
auxílio
daquele
que
lê
e
edita
a
sua
obra:
Lima
Barreto
o
qual
o
irá
“abandonar”,
por
sua
vez,
dez
anos
após
a
primeira
edição
do
romance
quando
Isaías
alcança
a
condição
de
representante
do
Espírito
Santo
na
Assembléia
Estadual
e
está
prestes
a
eleger-‐se
deputado
federal.
Rico,
segundo
nos
informa
seu
editor,
já
perdera
muito
da
sua
amargura
e
talvez
para
aquele
o
seu
aspecto
mais
interessante:
o
meu
amigo
perdeu
muito
da
sua
amargura,
tem
passeado
pelo
Rio
com
belas
fatiotas,
já
foi
ao
Municipal,
frequenta
as
casas
de
chá,
Esta
informação
nos
é
dada
não
sem
um
ar
de
lamentação:
Deus
escreve
certo
por
linhas
tortas,
dizem.
Será
mesmo
isso
ou
será
de
lamentar
que
a
felicidade
vulgar
tenha
afogado,
asfixiado
um
espírito
tão
singular?
Quem
sabe
lá?
A
LINGUAGEM
A
linguagem
utilizada
no
romance
é
pré-‐modernista,
pois
se
aproxima
daquela
da
imprensa
e
portanto,
mais
acessível
a
um
público
diversificado.
O
autor,
Lima
Barreto,
tem
a
preocupação
de
usar
um
registro
mais
próximo
do
cotidiano
das
pessoas,
além
do
fato
de
ele
trabalhar
com
uma
galeria
de
personagens
populares
o
que
o
fazia
adotar
a
sua
fala
recheada
de
expressões
extremamente
coloquiais.
A
sua
escrita
era,
antes
de
mais
nada,
uma
expressão
de
sua
consciência
crítica
na
representação
de
uma
realidade
social
até
então
quase
ignorada
pela
literatura
tradicional.
Lima
concorda
com
quase
todo
o
discurso
de
Isaías,
sua
necessidade
de
se
contrapor
ao
artigo,
sua
teoria
de
que
a
sociedade,
e
não
a
raça,
eram
responsáveis
pelo
fato
de
os
negros
não
confirmarem
ao
longo
da
vida
o
talento
muitas
vezes
demonstrado
nas
primeiras
idades...
A
única
objeção
posta
aos
seus
argumentos
diz
respeito
à
sua
preocupação
com
o
estilo.
Diz
Isaías:
Perdoem-‐me
os
leitores
a
pobreza
da
minha
narração.
Não
sou
propriamente
um
literato,
não
me
inscrevi
nos
registros
da
Livraria
Garnier,
do
Rio,
nunca
vesti
casaca
e
os
grandes
jornais
da
Capital
ainda
não
me
aclamaram
como
tal
–
o
que
de
sobra,
me
parece,
são
motivos
bastante
sérios,
para
desculparem
a
minha
falta
de
estilo
e
capacidade
literária.
Esta
preocupação
da
parte
do
“autor”
cria
uma
ótima
oportunidade
para
o
“editor”
expressar
sua
opinião
acerca
desta
quase
obsessão
reinante
na
nossa
literatura
do
período
e
se
contrapor
diretamente
aos
literatos
da
época:
Afora
as
cousas
da
‘Garnier’
e
da
‘casaca’,
e
dos
‘jornais’,
que
são
preconceitos
provincianos,
o
prefácio,
penso
eu,
consolida
a
obra
e
a
explica,
como
os
leitores
irão
ver.
É
importante
notar
que
10
11. o
adjetivo
“provinciano”
subverte
uma
relação
já
estabelecida
naquela
sociedade
em
que
ser
“moderno”
era
praticar
aqui
as
tendências
dominantes
na
Europa.
Para
Lima
Barreto,
parece
claro,
esse
comportamento
era
signo
de
atraso,
donde
se
conclui
que
atual,
positiva,
“de
vanguarda”
mesmo,
seria
a
“falta
de
estilo”
de
Isaías.
Nota-‐se
também,
com
a
leitura
do
romance,
que
a
promessa
feita
pelo
editor,
segundo
a
qual
o
prefácio
consolidaria
e
explicaria
a
obra,
essa
de
fato
é
cumprida,
afinal,
no
decorrer
de
todo
o
romance,
será
denunciado
o
artificialismo
lingüístico
então
predominante
nas
letras
brasileiras,
especialmente
através
do
personagem
Lobo,
o
revisor
do
jornal,
obcecado
por
regras
gramaticais:
A
gramática
do
velho
professor
era
de
miopia
exagerada.
Não
admitia
equivalências,
variantes;
era
um
código
tirânico,
uma
espécie
de
colete
de
força
em
que
vestira
as
suas
pobres
idéias
e
queria
vestir
as
dos
outros.
Para
este
personagem,
facilmente
associado
aos
puristas
da
época
–
para
quem
a
língua
no
Brasil
deveria
ser
idêntica
à
usada
em
Portugal
pelos
seus
melhores
escritores
–,
a
língua
falada
no
Brasil
não
passava
de
“vazadouro
de
imundícies”.
O
“colete
de
força”
ao
qual
se
refere
Isaías,
estava
óbvio,
era
mais
um
instrumento
de
opressão
e
desvalorização
da
população
menos
favorecida.
E
mais
uma
tentativa
de
impor
aqui
padrões
europeus
que
já
se
sobrepujavam
na
música,
nas
vestimentas,
no
comportamento.
No
fundo,
uma
atitude
equivalente
àquela
tomada
pelo
governo
que,
com
o
Bota-‐Abaixo
expulsara
os
pobres
do
centro
da
cidade.
A
oposição
entre
gramática
e
coisa
para
o
povo
fica
clara
na
passagem
em
que
o
personagem
Loberant
percebe
estar
o
excesso
de
preocupação
com
as
regras
gramaticais
tornando
O
globo
menos
aceito
pela
população
e,
portanto,
vendendo
menos
que
o
seu
rival,
o
Jornal
do
Brasil:
Não
quero
mais
gramática,
nem
literatura
aqui!...
Nada!
Nada!
De
lado
essas
porcarias
todas...
Coisa
para
o
povo
é,
é
que
eu
quero!
Ao
dar
destaque
a
esta
afirmação,
o
narrador
expressa
também
a
sua
indignação
frente
ao
uso
de
uma
língua
que
não
cumpria
a
sua
função
essencial,
a
comunicação,
e
servia
de
um
lado
para
a
satisfação
pessoal
de
alguns
que
procuravam
compensar
a
pouca
competência
e
criatividade
com
a
ostentação
de
um
saber
superficial
e,
de
outro
lado,
como
eficiente
instrumento
de
opressão
da
população
pobre
cada
vez
mais
excluída
dos
processos
de
decisão
a
respeito
dos
fatos
que
dominavam
o
país.
A
contraposição
ao
purismo
torna-‐se
ainda
mais
flagrante
com
o
enlouquecimento
do
personagem
Lobo,
uma
espécie
de
alegoria
indicadora
de
que
a
obsessão
em
torno
da
pureza
da
língua
era
um
indício
de
inadaptação
à
realidade
social.
Esse
processo
avança
até
o
ponto
em
que
outro
personagem
purista,
o
Floc,
se
suicida
e
termina
por
configurar
a
impossibilidade
de
conciliação
entre
realidade
brasileira
e
texto
escrito
de
acordo
com
os
moldes
da
Academia,
um
dos
pontos
centrais
do
romance.
A
utilização,
portanto,
de
uma
linguagem
mais
próxima
daquela
usada
pela
maioria
da
população
deixa
entrever
o
desejo,
em
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
de
se
alcançar
a
inclusão
social
das
camadas
populares
cuja
pequena
parcela
leitora
deveria,
no
mínimo,
entender
com
clareza
a
obra
e,
dessa
maneira,
poder
ver
sua
própria
realidade
com
olhar
mais
crítico.
Para
Caminha
e
também
para
Lima
Barreto
[a
julgar
por
esta
e
outras
obras
suas
como
Os
bruzundangas,
por
exemplo],
a
conciliação
entre
literatura
nos
moldes
europeus
e
realidade
local
não
parecia
ser
possível,
afinal,
segundo
aquele,
os
estrangeiros
tinham
pouco,
ou
quase
nada
para
11
12. nos
oferecer:
E
por
detrás
dela
[da
imprensa]
estão
os
estrangeiros,
senão
inimigos
nossos,
mas
quase
sempre
indiferentes
às
nossas
aspirações...
Lima,
portanto,
se
utiliza
da
forma
romance
para
se
contrapor
às
“regras
ditadas”
pela
metrópole.
Seu
modo
de
o
fazer
é
rompendo
com
a
estética
da
Academia
repleta
de
artifícios
verbais
e
fiel
à
língua
portuguesa
praticada
na
Europa,
símbolos
de
uma
sociedade
a
que
nosso
autor
desejava
ardentemente
se
contrapor.
UM
ROMAN
À
CLEF:
A
CRÍTICA
AO
JORNALISMO
DO
INÍCIO
DO
SÉCULO
XX
O
jornalismo,
no
caso
de
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha,
é
alvo
do
ranço
do
protagonista.
Ao
tematizá-‐lo,
Lima
Barreto
buscou
salientar
que,
na
prática
jornalística,
frequentemente,
a
informação
está
em
último
plano.
Ao
longo
da
trama,
Lima
Barreto
realiza
uma
verdadeira
cartografia
do
ambiente
jornalístico
de
O
globo
e
das
figuras
que
lá
atuam.
Aspectos
como
a
pseudo-‐erudição
dos
jornalistas,
o
despotismo
do
diretor
e,
sobretudo,
os
interesses
mercantis
e
políticos
que
se
impunham
sobre
a
informação
e
a
verdade
dos
fatos,
são
enfocados.
Na
trama,
Lima
Barreto
constrói
personagens
caricatos,
em
que
a
devassidão
e
a
arrogância,
a
falta
de
caráter
e
os
interesses
mercantis
são
amplamente
destacados,
como
é
o
caso
de
Ricardo
Loberant,
diretor
do
jornal.
O
jornal
onde
trabalhava
trazia
novidade:
além
de
desabrimento
de
linguagem
e
um
franco
ataque
aos
dominantes,
uma
afetação
de
absoluta
austeridade
e
independência
[...]
O
globo
levantou
a
crítica,
ergueu-‐a
aos
graúdos,
ao
presidente,
aos
ministros,
aos
capitalistas,
aos
juízes,
e
nunca
houve
tão
cínicos
e
tão
ladrões.
Outra
personagem
que
merece
destaque
é
Leporace,
o
arrogante
secretário
do
jornal,
sumidade
em
literatura
e
jornalismo,
árbitro
do
mérito,
distribuidor
de
gênios
e
talentos.
A
crítica
a
tais
figuras
é
carregada
de
ironia
e
acidez.
Lima
Barreto
fez
questão
de,
pela
“voz”
de
Isaías,
denunciar
os
valores
que,
na
sociedade,
definiam
o
que
seria
um
bom
literato.
Essa
foi
a
principal
razão
da
rejeição
que
experimentou,
ao
longo
de
sua
carreira.
Frederico
Lourenço
do
Couto,
o
crítico
literário
de
O
globo,
assinava
artigos
com
o
pseudônimo
de
Floc.
Era
tido
como
alguém
entendido
em
Literatura
e
assuntos
internacionais
e
por
isso
era
considerado
a
alta
intelectualidade
do
jornal.
Não
se
metia
em
polêmicas
ou
em
escândalos.
Isaías
comparava-‐o
a
uma
águia,
mas
detalhou,
e
forma
irônica,
os
“requisitos”
que,
para
Floc,
consagravam
um
grande
escritor.
Ivã
Gregoróvitch
Rostolóf,
jornalista
russo,
era
tido
como
a
artilharia
do
jornal.
Em
estilo
violento,
tecia
críticas
aos
adversários.
Em
algumas
passagens,
seu
caráter
agressivo
fica
evidenciado.
O
fato
de
Recordações
do
escrivão
Isaías
Caminha
ser
tido
como
uma
trama
satírica,
em
que
o
autor
busca
refletir
a
sociedade
na
qual
viveu,
leva
a
refletir
sobre
uma
questão
importante.
Seria
a
obra
o
que
se
denomina
roman
à
cléf,
no
qual
são
reproduzidos,
sobre
a
máscara
ficcional,
uma
situação
e
um
grupo
de
pessoas
reais?
Cabe,
nesse
contexto,
destacar
o
conceito
acima
tratado.
Um
romance
à
cléf
ou
roman
à
clé
é
uma
narrativa
que
descreve
eventos
da
vida
real
por
detrás
de
uma
fachada
de
ficção.
Tida
como
pastiche,
a
trama
não
pode
ser
contestada
e
o
autor
mantém-‐se
imune
a
possíveis
críticas
e
represálias.
Trata-‐se
de
um
subterfúgio
literário,
em
que
o
narrador
fala,
critica
e
denuncia
sem,
no
entanto,
comprometer
o
autor,
podendo
este
alegar
ser
apenas
“uma
história”,
tal
como
o
fez
Lima
Barreto.
A
chave,
não
contida
no
texto,
é
a
correspondência
entre
os
eventos
e
personagens
do
romance
e
os
12
13. acontecimentos
e
personalidades
da
vida
real.
O
motivo
que
leva
um
escritor
a
apelar
para
este
recurso
é,
justamente,
o
de
satirizar.
Tematizando,
coloca
na
berlinda
uma
situação
e
as
pessoas
envolvidas
nesta.
Portanto,
mesmo
que
a
obra
de
Lima
Barreto
não
seja
autobiográfica,
assim
mesmo
pode
ser
considerada
um
roman
à
cléf,
cuja
chave
é
a
crítica
que
ele,
metonimicamente,
empreende
à
sociedade
carioca
e
aos
literatos
‘da
moda’
do
idos
de
1905-‐1910.
CAMINHA,
UM
NARRADOR
ENGAJADO
Caminha
era
filho
de
um
padre,
assim
a
sua
existência
se
reveste
de
certa
aura
de
sacralidade,
embora,
marcada
pelo
tabu.
E
essa
origem
será
a
tônica
por
trás
do
seu
ideal
de
missão.
A
desigualdade
dentro
do
lar,
de
nível
mental,
agiu
sobre
ele
de
forma
curiosa,
deu-‐lhe
anseios
de
inteligência.
Da
mãe
recebe
a
cor,
a
mãe
que
vivia
na
sua
ignorância,
ela
que
era
o
seu
socorro
financeiro
na
viagem
ao
Rio
de
Janeiro.
Mas
é
do
pai,
aquele
homem
culto
e
santo
que
pecara
apenas
uma
vez,
que
herdará
a
sua
visão
de
mundo.
Visão
que
impunha
uma
missão,
não
se
calar.
O
velho
Isaías,
repensando
a
sua
juventude,
percebe
o
afastamento
da
sua
missão
e
a
contemporizarão
com
os
ideais
que
abominava.
Hoje,
agora,
depois
não
sei
de
quantos
pontapés
destes
e
outros
mais
brutais,
sou
outro,
insensível
e
cínico,
mais
forte
talvez;
aos
meus
olhos,
porém,
muito
diminuído
de
mim
próprio,
do
meu
primitivo
ideal,
caído
dos
meus
sonhos,
sujo,
imperfeito,
deformado,
mutilado
e
lodoso.
Nesse
sentido
a
obra
dialoga
com
a
base
por
trás
do
próprio
pai
de
Caminha,
ou
seja,
a
Escritura
aceita,
como
sagrada,
pela
instituição
que
o
fez
sacerdote,
a
Bíblia.
E
pelo
nome
e
características
do
personagem,
Isaías,
faz
ponte
com
o
Livro
do
profeta
Isaías,
embora
dialogue
com
outros
trechos
da
Escritura.
Assim
como
o
personagem
de
Lima
Barreto,
o
profeta
Isaías
se
levanta
contra
a
ignorância
auto-‐infligida
do
povo,
contra
os
costumes
aceitos
socialmente,
contra
a
injustiça,
contra
um
estado
que
produzia
leis
injustas:
O
boi
conhece
o
seu
possuidor,
e
o
jumento
a
manjedoura
do
seu
dono;
mas
Israel
não
tem
conhecimento,
o
meu
povo
não
entende.
Ai
da
nação
pecadora,
do
povo
carregado
de
iniquidade,
da
semente
de
malignos,
dos
filhos
corruptores:
deixaram
ao
Senhor,
blasfemaram
do
Santo
de
Israel,
voltaram
para
trás.
Isaías
Caminha,
a
semelhança
do
profeta,
entendia
que
se
havia
opressão
por
parte
dos
poderosos
o
povo,
pela
sua
indolência,
era
também
responsável
porque
aceitava,
o
meu
povo
não
entende:
Idiotas
que
vão
pela
vida
sem
examinar,
vivendo
quase
por
obrigação,
acorrentados
às
misérias
como
galerianos
à
calceta!
Gente
miserável
que
dá
sanção
aos
deputados,
que
os
respeita
e
prestigia!
Por
que
não
lhes
examinam
as
ações,
o
que
fazem
e
apara
que
servem?
Se
o
fizessem...
Ah!
Se
o
fizessem!
Que
surpresa!
Riem-‐se,
enquanto
do
suor,
da
resignação
de
vocês,
das
privações
de
todos
tiram
ócios
de
nababo
e
uma
vida
de
sultão...
13
14. De
acordo
com
Maria
Zilda
Ferreira
Cury,
o
nome
do
personagem
já
reflete
o
clima
de
denúncia
que
envolve
o
livro.
Isaías
é
o
nome
do
profeta
do
Velho
Testamento
que
pretendia
“desmascarar”
as
injustiças
sociais
da
sua
época.
Por
outro
lado,
Caminha,
o
escrivão
da
esquadra
de
Cabral,
é
aquele
que
anuncia
a
D.
Manuel
a
descoberta
de
uma
nova
terra.
A
situação
de
denúncia
ligada
ao
escrever
já
vem
desde
a
escolha
do
nome
do
personagem-‐narrador
Isaías
Caminha.
O
nome
de
um
profeta,
Isaías
[...]
e
da
primeira
pessoa
que
escreveu
sobre
o
Brasil,
o
também
escrivão,
Pero
Vaz
de
Caminha.
[...]
A
dimensão
social
da
justiça
está
muito
presente
na
boca
do
profeta
Isaías,
na
crítica
às
injustiças
praticadas
pelos
líderes
políticos
do
seu
tempo,
na
denúncia
de
seus
desmandos.
[...]
Com
relação
ao
nome
‘Caminha’
tem-‐se
dupla
analogia:
o
escrever
e
o
anunciar.
Ao
escrivão,
da
frota
de
Cabral,
coube
a
tarefa
de
anunciar,
numa
carta,
a
descoberta
de
uma
nova
terra.
O
par
Isaías
Caminha
aponta
para
o
“escrever”,
mas
não
um
escrever
qualquer,
mas
um
escrever
que
denuncia
a
injustiça,
a
opressão
e,
ao
mesmo
tempo,
anuncia
algo
novo.
Vê-‐se
aí
a
manutenção
de
uma
postura
de
oposição.
Assim,
já
no
nome
escolhido
para
o
personagem
pode-‐se
depreender
a
concepção
da
função
do
escritor,
daquilo
que
Lima
considera
como
sendo
uma
missão,
um
dever:
o
denunciar
as
injustiças
de
seu
tempo,
o
alinhar-‐se
com
os
marginalizados,
o
[reduto]
através
da
literatura.
Além
disso,
podemos
inferir
que
Pero
Vaz
de
Caminha
é
aquele
que
relata
pela
primeira
vez
a
entrada
do
Brasil
nos
quadros
da
história
do
ocidente,
enquanto
na
Primeira
República
Isaías
Caminha
contempla
na
sua
narrativa
a
inserção
do
Brasil
no
âmbito
da
fase
imperialista,
que
é
um
novo
patamar
do
capitalismo
mundial.
Portanto,
denúncia
social
de
Isaías
aliada
a
descrição
de
um
período
histórico
determinado,
ou
seja,
a
manifestação
da
nova
realidade
brasileira
que
se
implantou
com
a
Abolição
e
a
República.
É
significativo
entender
o
motivo
que
impulsionou
Isaías
a
escrever
o
livro,
ou
seja,
as
multiplicadas
considerações
desfavoráveis
à
natureza
das
pessoas
do
meu
nascimento,
que
ele
leu
numa
revista
nacional.
Podemos
notar
que
o
livro
estabelece
um
debate
–
opor
argumentos
a
argumentos
–
com
as
teorias
racistas
que
predominavam
no
meio
intelectual
brasileiro
desde
o
século
XIX
até
meados
do
atual.
Segundo
Emília
Viotti
da
Costa,
os
intelectuais
brasileiros
do
referido
período
receberam
a
influência
de
autores
como
Lapouge
e
Gobineau,
que
defendiam
a
tese
da
superioridade
da
raça
branca
em
relação
aos
povos
mestiços.
Contudo,
essas
teorias
não
foram
importadas
mecanicamente,
mas
adequaram-‐se
à
realidade
brasileira
de
uma
forma
peculiar.
Todavia,
a
aceitação
de
alguns
negros
e
mulatos
na
esfera
das
elites
se
dava
quase
sempre
por
intermédio
da
patronagem.
Ou
seja,
inseridos
no
interior
do
sistema
de
clientela,
homens
brancos
e
pobres,
mulatos
e
negros,
submetiam-‐se
à
elite
branca
através
da
prática
do
favor.
Nesse
sentido,
o
negro
e
o
mulato
não
competiam
em
igualdade
de
condições
no
mercado,
mas
ascendiam
socialmente,
o
que
era
raro,
sob
a
sombra
da
elite
branca.
Por
isso
mesmo,
era
a
referida
elite
que
controlava
os
mecanismos
de
ascensão
como
bem
lhe
aprouvesse.
Lima
Barreto,
ainda
no
14
15. “Prefácio”,
indica
o
caminho
que
norteará
o
seu
debate
com
as
teorias
racistas
e
com
a
vida
social
que
impedia
a
mobilidade
do
negro
ou
do
mulato.
A
análise
do
universo
familiar
de
Isaías
é
importante,
pois
ele
carrega
uma
oposição
que
marca
a
evolução
do
personagem
dentro
do
romance.
O
pai
de
Isaías
além
de
ser
branco
era
um
sacerdote,
enquanto
a
sua
mãe
era
negra.
Já
aí
existe
um
contraste:
o
pai
instruído
inculcava
no
pequeno
Isaías
a
idéia
de
ascensão
burguesa
através
da
instrução,
enquanto
a
mãe
representava
a
ignorância
do
mundo
dos
negros.
O
espetáculo
do
saber
de
meu
pai,
realçado
pela
ignorância
de
minha
mãe
e
de
outros
parentes
dela,
surgiu
aos
meus
olhos
de
criança
como
um
deslumbramento.
Pareceu-‐me
então
que
aquela
faculdade
de
explicar
tudo,
aquele
seu
desembaraço
de
linguagem,
a
sua
capacidade
de
ler
línguas
diversas
e
compreendê-‐las,
constituíam,
não
só
uma
razão
de
ser
de
felicidade,
de
abundância
e
riqueza,
mas
também
um
titulo
para
o
superior
respeito
dos
homens
e
para
a
superior
consideração
de
toda
a
gente.
Sabendo,
ficávamos
de
alguma
maneira
sagrados,
deificados...
se
minha
mãe
me
aparecia
triste
e
humilde
–
pensava
eu
naquele
tempo
–
era
porque
não
sabia,
como
meu
pai,
dizer
os
nomes
das
estrelas
do
céu
e
explicara
natureza
da
chuva...
Portanto,
um
elemento
essencial
irá
conduzir
Isaías
para
o
Distrito
Federal
em
busca
de
fama
e
notoriedade:
a
crença
de
que
o
título
de
doutor
iria
apagar
tanto
o
seu
nascimento
humilde
como
a
sua
cor,
fazendo-‐o
entrar
para
o
“mundo
dos
brancos”,
para
“outra
casta”.
Ah!
Seria
doutor!
Resgataria
o
pecado
original
do
meu
nascimento
humilde,
amaciaria
o
suplício
premente,
cruciante
e
onímodo4
de
minha
cor...
nas
dobras
do
pergaminho
da
carta,
traria
presa
a
consideração
de
toda
a
gente.
Seguro
do
respeito
à
minha
majestade
de
homem,
andaria
com
ela
mais
firme
pela
vida
afora.
Não
titubearia,
não
hesitaria,
livremente
poderia
falar,
dizer
bem
alto
os
pensamentos
que
se
estorciam
no
meu
cérebro.
E,
para
que
Isaías
pudesse
obter
o
tão
almejado
título,
duas
visões
de
mundo
o
influenciaram:
a
do
seu
tio
carteiro
Valentim,
também
mulato,
e
a
da
sua
professora
de
colégio
que
tinha
olhos
azuis
e
cabelos
castanhos.
Também
neste
ponto
existe
a
tensão
entre
o
universo
dos
brancos
e
dos
negros.
Valentim
havia
sido
cabo
eleitoral
do
Deputado
Castro
e,
por
isso,
vai
pedir
ao
chefe
político
local,
Coronel
Belmiro,
uma
carta
de
apresentação
para
que
o
citado
Deputado
obtivesse
um
emprego
para
Isaías
na
capital.
Portanto,
Valentim
personifica
o
sistema
de
clientela,
um
dos
únicos
meios
que
possibilita
tanto
a
ascensão
social
dos
pobres
quanto
o
controle
que
a
elite
exerce
sobre
eles,
ofuscando
a
luta
popular
pela
cidadania.
Em
oposição,
a
professora
branca
representa
o
mito
do
self-‐made
man.
Esta
professora
havia
presenteado
Isaías
com
um
livro
intitulado
O
poder
da
vontade,
que
trazia
estampadas
em
suas
páginas
as
biografias
heróicas
de
Palissy,
Watt,
Benjamin
Franklin,
etc.
Este
livro
influenciou
o
pequeno
Isaías
na
medida
em
que
lhe
transmitia
uma
concepção
–
muito
difundida
na
América
do
Norte
e
Europa
–
que
valorizava
a
4
Onímodo: que não se restringe, não tem limitações; ilimitado.
15