Deriva cigana um estudo etnográfico sobre os ciganos
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Daniel Seabra Lopes o discurso em quatro capítulos, cada um
deriva ciGana: um estudo centrado na descrição daquilo a que chama
etnoGrÁfico sobre os ciGanos “impressões etnográficas”; para cada uma
de lisboa destas propostas interpretativas apresenta
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, e discute pequenos excertos da vida quo-
2008, 410 páginas. tidiana de algumas famílias ciganas com
as quais o investigador manteve relações
Ruy Llera Blanes ao longo de quinze meses de visitas regu-
os aleluias: ciGanos lares ao terreno. No primeiro capítulo,
evanGÉlicos e mÚsica “Um passo atrás no tempo”, discutem-se
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, conceitos como os de anacronismo, não-
2008, 260 páginas. -simultaneidade, desfasamento e extempo-
raneidade, aos quais os ciganos estariam
associados por razões de “inserção histórica
As duas recém-publicadas monografias no universo camponês católico” (p. 114); a
em consideração são o resultado do traba- “Introversão” do segundo capítulo sugere
lho de investigação de dois antropólogos que o mundo dos ciganos seja lido como
portugueses, Daniel Seabra Lopes e Ruy “claramente delimitado, enconchado, cer-
Llera Blanes, cada uma dedicada à pesquisa rado e, como tal, pouco permeável a certas
no âmbito de projectos de doutoramento. influências inovadoras que o circundam”
A razão pela qual os dois volumes estão a (p. 117), assumindo-a como fenómeno
ser apresentados em conjunto não depende performativo; em “Lassidão, desagregação
somente da simultaneidade da sua saída e vazio” o autor pretende esclarecer como
no mercado editorial, mas sobretudo da estas impressões não são necessariamente
suposta pertença a uma área específica “falhas” ou “faltas” do sistema social
do domínio científico antropológico, rela- cigano, mas a assunção por parte deste de
tiva aos estudos das comunidades ciganas. uma “posição oblíqua” em relação ao meio
Todavia, os textos distanciam-se notavel- social envolvente (pp. 278-280), com vista
mente um do outro, quer pelos objectos à preservação da autonomia. Finalmente, o
e sujeitos do estudo, quer pela postura quarto capítulo, “As derivas”, analisa criti-
metodológica e epistemológica adoptada camente a relação entre a acção “normali-
pelos dois autores para tematizar, discutir zadora” das instituições locais e as tácticas
e desenvolver as pesquisas – diferenças que adaptativas dos ciganos.
sobressaem e que se revelam estimuladoras Vale a pena sublinhar que o diálogo com
de análise crítica. uma ampla literatura antropológica actual
Deriva Cigana de Daniel Seabra Lopes (trabalhos de Paloma Gay y Blasco, Judith
apresenta-se como uma monografia etno- Okely, Caterina Pasqualino, Leonardo
gráfica de matriz clássica, se considerar- Piasere, Teresa San Román, Michael Stewart,
mos, para além da declaração de intentos Patrick Williams) é assertivo e constante,
do autor, o estilo organizativo e argumen- embora o teor argumentativo se revele
tativo holista proposto ao longo do texto, frequentemente próximo de uma análise
que denota a vontade de abordar de sociológica – curiosamente, este livro surge
forma abrangente quase todos os aspectos na colecção de sociologia. Talvez decorrente
“culturais” característicos de uma espe- do estilo da escrita, o texto apresenta uma
cífica comunidade cigana residente num estruturação recorrente, na qual relatos do
bairro social de Lisboa. O autor estrutura quotidiano, deduzidos da observação no
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terreno, servem de justificação à discussão construção de conhecimento etnográfico.
teórica que, por sua vez, aponta para eixos Aliás, esta perspectiva é ambiguamente
temáticos tópicos de uma antropologia que definida pelo autor (pp. 35-36), deixando
se serve de conceitos construídos fora da frequentemente desnorteado o leitor rela-
comunidade: o patriarcado, o machismo, tivamente à discussão sobre certo tipo de
a virgindade das mulheres, a violência, a conceitos ou inferências problemáticas,
tradição e o atraso (cf. David Lagunas, Los entre outras a questão do anacronismo e da
Tres Cromosomas: Modernidade, Identidad y não-simultaneidade temporal dos ciganos
Parentesco entre los Gitanos Catalanes, 2005). (pp. 44-45).
De resto, o autor está consciente de que o Sublinhe-se, entretanto, que o autor
terreno epistemológico no qual se desen- demonstra evidente honestidade intelec-
volve a análise é escorregadio; na introdu- tual ao pôr o seu percurso interpretativo
ção e na conclusão é evidente a necessidade constantemente em diálogo com outras
de tornar claras algumas afirmações ambí- etnografias sobre comunidades ciganas,
guas e que parecem querer desafiar a ideia mas, ao fazê-lo, sugere também uma leitura
de que, necessariamente, o antropólogo oscilante e ambígua de um ponto de vista
deva experimentar empatia, ou pelo menos teórico e interpretativo. Se, por um lado, se
o tente, com os seus interlocutores. distancia de abordagens em que os sujeitos
Esta experiência etnográfica revela, são folclorizados, cristalizados, essencializa-
talvez de uma forma mais evidente, as dos culturalmente, ao mesmo tempo parece
dificuldades de imersão no contexto e de demorar-se a detectar eventuais “traços” –
incorporação do processo de conhecimento ainda que explicite não serem necessaria-
(cf. Judith Okely, The Travellers-Gypsies, mente negativos ou não ter ambições de
1983; Leonardo Piasere, Un Mondo di Mondi, generalização mas sim de comparabilidade
1999; Patrick Williams, Nous, on n’en parle – e a “fixar” e “forçar” dentro de categorias
pas, 1993). Não é este o lugar para deba- “éticas” pouco flexíveis, e que precisariam
termos sobre etnografias bem-sucedidas ou então ser mais discutidas, os ciganos do
fracassadas, embora a antropologia esteja bairro estudado e de Lisboa, pelo que a cria-
carente de textos em que os próprios antro- tividade da comunidade parece desaparecer.
pólogos reflictam sobre o eventual insucesso De um outro modo, a abordagem teó-
das pesquisas de terreno (cf. Piasere, acima rica, o objecto de estudo e a metodologia
referido). Contudo é cientificamente dese- utilizada pelo autor do livro Os Aleluias,
jável que uma monografia etnográfica pro- Ruy Llera Blanes, assume outras direcções.
duza um conhecimento que nos aproxime Tendo como enfoque específico o fenó-
das visões do mundo do grupo estudado meno do movimento evangélico cigano na
e que nos ofereça uma análise qualitativa Península Ibérica – nomeadamente a Igreja
sobre as categorias, estruturas sociais, inter- Evangélica de Filadélfia –, a monografia
pretações, cosmologias e teorias “émicas”, investiga os contextos em que música,
que se confronte com a construção interna religião, identidades e memória histórica
dos significados e não tanto com uma pro- se entrelaçam e onde as práticas musicais
cura, por parte do antropólogo, de uma assumem relevância singular e explicativa
coerência entre o seu discurso teórico e enquanto promotoras “de sentidos de espaço
as “impressões” pessoais dispersas e logo e tempo, de momento e lugar” dentro de
costuradas. De facto, reflexividade e sub- um contexto de “identidades diaspóricas”
jectividade são processos distintos da pro- (p. 59). Embora o conceito de diáspora,
posta de aproximação “impressionista” na associado a “terrenos ciganos”, tivesse
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talvez necessitado de uma análise mais crí- tecostal cigano colocam aos comentadores
tica, do ponto de vista histórico e identitá- ou aos investigadores; de facto, o fenómeno
rio, dada a complexidade problemática da obriga a ampliar o olhar explicativo para mol-
discussão teórica sobre diáspora como “prá- dar leituras fechadas, dirigidas, por exemplo,
tica social” – cf., entre outros, Rogers Bru- à análise de uma eventual crise que a socie-
baker, “The ‘diaspora’ diaspora”, Ethnic and dade cigana estaria a enfrentar e que justifi-
Racial Studies, 28 (1), pp. 1-19, 2005; Mar- caria o sucesso do movimento (p. 133).
tin Sökefeld, “Mobilizing in transnational Com efeito, o autor do presente livro
space: a social movement approach to the oferece uma leitura que lida com as trans-
formation of diaspora”, Global Networks, formações estruturais que, ao longo do
6 (3), pp. 265-284, 2006; Kachig Tölölyan, século XX, os ciganos da Península Ibérica
“Rethinking diaspora(s): stateless power in experienciaram, passando “de um noma-
the transnational moment”, Diaspora, 5, pp. dismo rural a uma vida nos subúrbios mul-
3-36, 1996 –, o autor propõe uma interpre- ticulturais das principais urbes” (p. 18)
tação interessante ao enfatizar a dimensão – um argumento entre outros possíveis.
musical, no seio do contexto evangélico, O conceito da “marginalidade” social que
como “agente de ciganidade” (p. 61). Final- perpassa os capítulos do livro, explícita ou
mente, não é por acaso que neste trabalho implicitamente, é explorado de tal forma
o antropólogo adoptou uma metodologia que, embora permanecendo “na sua essên-
bissituada, de modo a tornar evidente a cia o mesmo” (p. 32), se reconfigura a partir
necessidade da complementaridade entre o de um novo contexto histórico, social, cul-
terreno de investigação português (Lisboa) tural, experiencial. A proposta é de inter-
e o terreno espanhol (Madrid). pretá-lo como uma “estratégia” relacional
Trata-se de uma pesquisa que se insere na e identitária, no sentido da reinvenção de
linha de intersecção entre as abordagens teó- uma nova “ciganidade” através do uso da
ricas da antropologia de comunidades ciga- própria marginalidade, a qual se tornaria
nas e da antropologia das religiões, embora um instrumento que inverte a polaridade
a argumentação seja definitivamente mais entre a vitimização do sujeito e a reivindi-
centrada na análise dos cultos religiosos. De cação étnica activa.
resto, os conteúdos dos últimos três capítu- “O ‘Senhor’ tem substituído os ‘Gadjé’”,
los demonstram a centralidade da “vertente dizia Patrick Williams (no artigo referido,
experiencial, performativa e participativa” p. 135, tradução minha) para colocar o pro-
(p. 137) do culto, descrita através de práti- cesso de “transformação”, vindo da adesão
cas e ideologias que se destacam por coloca- ao movimento pentecostal, na análise do
rem o acento em questões fundamentais às cruzamento entre as dimensões relacionais
quais o autor procura dar resposta ao longo internas e externas aos próprios grupos ciga-
do texto – entre elas, as da marginalidade, nos; isto é, perguntamo-nos se as dinâmicas
da mobilidade / diáspora, da modernidade do evangelismo cigano se colocam nas rela-
cigana, da reivindicação identitária, do ções entre ciganos ou naquelas entre ciga-
reconhecimento político e social. nos e não-ciganos, ou eventualmente nas
Patrick Williams, num artigo de 1995 duas, e com que características, inclusive
(“Quesiti per lo studio del movimento pen- a reivindicação, ou não, de visibilidade e
tecostale tra gli Zingari”, La Ricerca Folklorica, “emergência” social, religiosa e até política.
31, pp. 133-138), interrogava-se relativa- Talvez seja neste ponto que a proposta
mente aos “quesitos” que o nascimento e etnográfica de Os Aleluias resulte, de certa
o crescimento do próprio movimento pen- forma, carenciada de uma análise mais
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dialéctica, que seja capaz de actualizar se o advento e a adesão consistente dos
o diálogo relacional, justamente entre as manouches ao movimento pentecostal não
famílias ciganas com as quais o antropó- terá intervindo na relação “silenciosa” entre
logo trabalhou e os espaços experienciais manouches, oferece um ponto de vista inte-
por elas vivenciados e construídos na con- ressante para a exploração de aspectos que
tínua “negociação” social e cultural com o talvez tenham sido menos aprofundados
“mundo” dos não-ciganos. Embora relativa por Ruy Llera Blanes, como o da construção
a um contexto histórico e cultural especí- social do movimento religioso da Igreja de
fico, o das famílias francesas manouches, a Filadélfia, que nos indica quão constitutivas
etnografia Nous, on n’en parle pas, de Patrick do mesmo são as redes ciganas de pertença
Williams (Ministère de la Culture et de e sociabilidade familiar e parental.
la Francophonie / Maison des sciences de
l’homme, 1993), ao analisar a dimensão do Micol Brazzabeni
“silêncio” e do “rumor”, e ao perguntar-se CRIA, bolseira FCT
Benoît de l’Estoile aborda-se problemas mais amplos: o sen-
le Goût des autres: tido dos “museus dos Outros” no mundo
de l’exposition coloniale pós-colonial; o museu enquanto catalisador
aux arts premiers de uma antropologia do “goût des Autres”
Paris, Flammarion, 2007, 454 páginas. (alusão a um filme de Agnès Jaoui centrado
nas difíceis relações, no quotidiano, entre
adeptos de gostos estéticos diferentes),
Nos últimos vinte anos, a situação dos das “nossas concepções da alteridade e das
grandes museus etnográficos franceses ali- suas transformações” (p. 20). É de notar
mentou acesos debates. O livro de Benoît que, como o autor aliás admite, a dicoto-
de l’Estoile foi publicado um ano após a mia museu dos Outros / museu de Nós é
inauguração, em Junho de 2006, do Musée demasiado esquemática, como se vê com o
du Quai Branly, constituído a partir das Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.
colecções etnográficas exóticas do Musée Procurando um distanciamento, a análise
de l’Homme. Numa língua sempre clara, procede por historicização e comparação.
integrando referências bibliográficas cos- A primeira parte mostra como, entre as duas
mopolitas, estas 454 páginas notavelmente guerras mundiais, três tipos de discursos
documentadas incluem úteis índices de pes- (evolucionista, diferencialista, primitivista)
soas, de temas, de museus e exposições – se entrelaçam, nomeadamente na Exposi-
uma prática que ainda não é geral na edição tion Coloniale de 1931, resultando num
francesa de ciências sociais; deplora-se, em universalismo plural consagrado em 1937
contrapartida, a ausência de uma bibliogra- pela inauguração do Musée de l’Homme e o
fia recapitulativa. A partir das questões sus- “triunfo da etnologia” enquanto detentora
citadas pela elaboração do Musée du Quay da autoridade científica sobre os objectos dos
Branly (nome ocultando a polémica desig- Outros. O projecto colonialista combina-se
nação inicial de Musée des Arts Premiers), com um reconhecimento da diversidade