Luís Cardoso é considerado o primeiro autor timorense a escrever em português. O documento discute uma entrevista com Cardoso, onde ele responde perguntas sobre essa classificação e sua obra.
1. Luís Cardoso (considerado o primeiro autor timorense a
escrever em língua portuguesa ) entre pergunta e resposta
Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 30 de Março de 2012 | Ano II | N°24 | E-mail: r.literatas@gmail.com
Cartografia do
Imaginário: a voz
de Abdulai Sila
entre
Colonizadores e
Djambakus.
Por Sebastião Cardoso
Wole Soyinka
homenageado
na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura
2. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 2
Editori@l
Literatura Africana em Festa no Brasil
Por incrível que pareça, a primeira Bienal do Livro e de Leitura do Brasil vai homenagear a Lite-
ratura Africana, particularmente o primeiro escritor africano a receber o Prémio Nobel (1986), o
Nigeriano Wole Sonyika.
Estará acompanhado por escritores de Moçambique (Paulina Chiziane), Angola (Ondjaki),
Cabo Verde (Germano de Almeida), Guiné-Bissau (Abdulai Sila), Togo (Kangni Alem), e São
Tomé e Príncipe (Conceição Lima).
É mesmo, para dizer que a Literatura Africana estará em festa no país de Jorge Amado. Isenta das guerrilhas linguísti-
cas (Francofonia, Lusofonia, Anglo -saxónia), sendo estas, as mesmas que nos tornam muito distantes uns dos outros.
A título de Exemplo: quais são os nomes mais representativos da literatura zimbabweana?
Alguém de nós sabe que o Prémio Nobel de 1991, 2003, pertence aos nossos vizinhos, os escritores sul-africanos Nadine
Gordimer, e J.M.Cotzee?
Ao prosseguir na esteira deste encontro entre irmãos que pouco se conhecem, outros que não se conhecem, o mesmo
encontro que não se realiza na terra que os viu nascer, e que os vê crescer. É triste ser um dos olheiros desta realidade
irreal que nos circunda, logo a priori vêem a memória as delícias das gloriosas décadas 70 e 80; cá em Moçambique o
Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD) publicava uma colecção denominada Vozes de África onde desfilavam
eternos nomes da literatura africana, sem cair na ambiguidade das guerrilhas linguísticas, como Sembene Ousmane
(Senegal), B.B.Dadié (Costa do Marfim), Peter Abrahams (África do Sul), Ngugi Wa Thiong’o (Uganda), Achinua Achebe
(Nigéria), só para citar alguns. E, é a despeito disto que pergunto:
- O que é que as pífias da SADC, CPLP, CEDEAO, UA, fazem para o fortalecimento do diálogo intercultural?
Desde já, aproveitar o espaço para parabenizar ao Brasil pelo carinho e atenção para com a literatura africana, e para
rogar que este encontro seja um despertar de consciências adormecidas das grandes editoras deste país, que cingem
suas publicações à favor de meia dúzia de nomes, e as pequenas editoras para que possam ver uma oportunidade de
negócio, ao publicar escritores africanos uma vez que tem sido base de estudos nos cursos de literatura nas universida-
des e dos povos africanos.
O editor da infindável revista Dimensão, o homem das artes e letras, Guido Bilharinho relata-nos em primeira mão a
beleza do “projecto artístico-cinematográfico” da década 30, que ao seu ver é uma pura “transgressão do Real” reflecti-
da no filme “O Sangue do Poeta”.
Do Brasil voltamos ao nosso Africo epicentro, na canoa do Sebastião Marques a remar na “ Cartografia do Imaginário”
da Última Tragédia do escritor guineense Abdulai Sila.
De volta à casa Lucílio Manjate e Sangare Okapi deixaram na noite de ontem o seu terceiro testemunho, uma prova de
que eles nunca estiveram e não estão de passagem neste território da palavra; a literatura moçambicana ganha duas
grandes obras, que desde já tomam de assalto o seu prestigioso espólio. Será que existe?
E por último vamos a Timor-Leste ao encontro do escritor Luís Cardoso o considerado primeiro autor timorense a
escrever em língua portuguesa. O que é que ele diz ao Saraivaconteudos? Será que ele aceita esta catalogação?
Boa leitura
Amosse Mucavele
amossinho@hotmail.com
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Destaque
1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura
Escritores africanos principais convidados
Redacção Considerado a principal voz da literatura africana contemporânea, o
dramaturgo, poeta, romancista e crítico nigeriano Wole Soyinka
será o grande homenageado da 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura. Primeiro negro a
receber o Prémio Nobel de Literatura, em 1986, Soyinka vai à Brasil de visita inédita para
lançar The Lion and the Jewel, seu primeiro texto teatral, publicado originalmente em
1963. Além de Soyinka, outros dentre os mais importantes nomes do universo literário do
continente africano virão participar do seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖.
Durante dois dias, eles em Brasília, num encontro que se configura histórico.
Além de Soyinka, estão confirmadas as
Paulina Chiziane, escritora moçambicana
participações de Kangni Alem, premiado
autor togolês, Conceição Lima, considera-
da a maior poetisa viva de São Tomé e
Príncipe; Paulina Chiziane, de Moçambi-
que, com uma obra a favor dos direitos
humanos; Germano Almeida, cuja obra Wole Soyinka, escritor nigeriano
desmascara a hipocrisia da vida pública e
privada da sociedade de Cabo Verde; na Esplanada dos Ministérios, num espaço de cerca de 50 mil metros quadra-
Abdulai Silá, autor do que é considerado o dos, com área coberta para receber 158 estandes.
primeiro romance da Guiné-bissau; e o
angolano Ondjaki, radicado no Brasil e
vencedor do Prémio Jabuti na categoria SOYINKA
Juvenil com o romance Avó Dezanove e o Nascido em 1934, em Abeokuta, Nigéria,
Segredo do Soviético. Wole Soyinka participou activamente da
A participação de autores do continente
história política de seu país. Em 1967,
africano tem início no dia de abertura da
durante a guerra civil, foi preso acusado de
Bienal, com a homenagem a Wole Soyin-
conspiração a favor dos rebeldes. Ao longo
ka, no Museu Nacional. O autor fará uma palestra às 20h30. E no estande da editora Gera-
ção Editorial estará a ser lançado o The Lion and the Jewel. de sua carreira literária, publicou em torno
O seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖ acontece nos dias 15, às 18h, e 16 e de 20 obras.
17 de Abril, das 10h às 12h30, no Auditório Nelson Rodrigues, do pavilhão montado para
o evento na Esplanada dos Ministérios. No dia 15, estarão na mesa de debate Conceição KANGNI ALEM
Romancista e dramaturgo nascido na cida-
Lima e Germano Almeida, com mediação de Regina Vecchia, professora de Literatura Kangni Alem, escritor de Togo
de de Lomé, no Togo, é PhD em francês e
Africanas de Língua Portuguesa da USP. E no último dia do seminário, participações da literatura africana e francesa e diplomado em semiologia teatral. Já publicou
moçambicana Paulina Chiziane, do angolano Ondjaki, Abdulai Sila, da Guiné-bissau, com mais de 10 livros e é professor de teatro e literatura na Universidade de Lomé.
a mediação de Eduardo Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da UFMG.
PAULINA CHIZIANE
Primeira mulher moçambicana a publicar um romance, Paulina Chiziane lan-
PROGRAMAÇÃO çou o seu primeiro livro, A Balada de Amor ao Vento, em 1990. Ventos do
Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento (2000) e Niketche: Uma História de
Poligamia (2002) são outros romances da autora.
SÁBADO, DIA 14
20h30 – Homenagem e palestra GERMANO ALMEIDA
com Wole Soyinka – Museu Nascido na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945, estreou como contista no
Nacional
início da década de 80. Foi co-fundador e colaborador da revista cabo-
DOMINGO, DIA 15 verdiana Ponto & Vírgula. Apesar da importância de sua obra de ficção – que
Germano Almeida, escritor cabo veriano 18h – Abertura do Seminário A abriu caminho para uma nova etapa na rica história literária de Cabo Verde –,
Literatura Africana Contemporâ- o romance O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo é seu único
nea – Auditório. Nelson Rodrigues – Com Kangni Alem (República do Togo). Mediação: Zulu título publicado no Brasil.
Araújo (DF)
ABDULAI SILÁ
SEGUNDA, DIA 16 Um dos mais importantes autores da literatura de Guiné-Bissau, Silá deu iní-
10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues cio à chamada ―corrente ficcional original‖, ao escrever Eterna Paixão – con-
Com Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) e Germano Almeida (Cabo Verde). Mediação: Reja-
siderado o primeiro romance escrito naquele país.
ne Vecchia (SP)
TERÇA, DIA 17 CONCEIÇÃO LIMA
10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues Considerada a maior poeta viva de São Tomé, Conceição Lima tem seus tra-
Com Paulina Chiziane (Moçambique), Ondjaki (Angola) e Abdulai Sila (Guiné-Bissau). Media- balhos publicados há quase três décadas. Sua poesia tem servido de inspiração
ção: Eduardo Assis Duarte (MG) para teses literárias em Portugal e no Brasil, no entanto, foi apenas em 2004
que O Útero da Casa, seu primeiro livro, foi publicado. Publicou em 2006 A
Dolorosa Raiz do Micondó e em 2011 O País de Akindenguê.
A coordenação literária é do jornalista e escritor Luiz Fernando Emediato, coordenação geral de
Nilson Rodrigues e realização da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Educação do Governo
do Distrito Federal, em parceria com o ITS – Instituto Terceiro Setor. O projecto é inserido no
ONDJAKI Estudou em Luanda e fez sociologia em Lisboa. Em 2000, publi-
ca o primeiro livro, Actu Sanguíneu.
Plano do Livro e da Leitura do Distrito Federal – Brasília Capital da Leitura. O evento acontecerá
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Destaque Amosse Mucavele
Contador de Palavras e Mafonematográfico chegam ao mesmo tempo
M
inha mãe teve um filho de quem nunca falamos. Nasceu pelos pés.
O resultado foi que meu irmão, ainda criança, perdeu-se mal
começou a gatinhar. Crescia e nunca parava de andar. Todos os
dias perdia-se na vida. Dava à casa de vizinhos, parentes e amigos
da família por um milagre do acaso, obra do destino. Depois de andar doze anos
perdido, tiveram que o amarrar a um embondeiro. Foi o fim: tanto imaginou ruas e
avenidas, prédios e lojas, que começou a cumprimentar as pessoas, a conversar
com elas, a sorrir-lhes. A família reuniu e, na voz de meu pai, achou solução mais
acertada: chamaram um psiquiatra. Minha mãe, porém, sempre duvidou daquela
saída, aquele era assunto para o nhanga, dizia às cunhadas, na esperança de
encontrar alguma aliança, mas sua voz não ecoava, não fosse ela mulher. Levaram
então meu irmão numa camisa-de-forças. No hospital, acometeu-lhe uma claustro-
fobia que o levou ao suicídio, e os médicos registaram em papel que segundos antes
de se evadir gritou pelo meu nome.
Este é o excerto do conto A SINA da obra ―Contador de Palavras‖ de Lucílio
Manjate, lançado ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.
―Contador de Palavras‖ é a terceira obra do escritor moçambicano Lucílio Manjate.
Uma obra que não foge tanto da temática que tem o acompanhado no seu percurso
literário. Referimo-nos às vivências (sub)urbanas que são a marca identitária da
palavra que este escritor fabrica.
A despeito disto, Lucilio Manjate diz ―a questão do espaço não é o centro deste pro-
jecto. Mas estava preocupado com outras questões, talvez de cariz filosófico e exis-
tencialista.‖
―Uma das coisas que sempre acompanhou-me quando pensava neste livro é o facto
de que a palavra enquanto instrumento de trabalho como escritor, ela poder repre-
sentar sonhos desejos frustrações utopias. Ao olhar a palavra nesta perspectiva, ela
funciona como uma espécie de núcleo vital de toda obra. Um núcleo gravitacional.‖
O autor de ―Os Silêncios do Narrador‖ afirma que ao pensar na palavra, como a
alma do seu percurso naquela narrativa é porque as estórias que conta não são novas
e nem velhas, ―são as de sempre‖.
―De alguma forma, o que proponho é sobrepor as estórias que eventualmente cada Lucílio Manjate
um pudesse contar. Sobrepor as estórias o espectro da própria palavra. Digamos com
muita modéstia, o trabalho com a palavra, enquanto me preocupava com a questão
do labor, do esculpir, da própria palavra eu senti que esse exercício da escrita, no
caso a minha, aspirava a posição de poesia.‖ loucura, são histórias que, em algum momento, aspiram visitar a memória colecti-
Sendo assim, ―Contador de Palavras‖ que é uma colectânea de contos, histórias ins-
va nacional do pós-independência, mas também projectam, poeticamente, uma
piradas no ambiente social moçambicano, no que ele tem do dilema existencial até à
utopia que fica por descortinar a morfologia.
Entretanto, Lucílio Manjate vai mais longe na sua explanação sobre o livro que
Binga lançou ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.
―Creio que esta é a marca provavelmente fundamental, não se trata de uma prosa
poética, mas o texto, o conjunto de textos que, embora retratem como se diz a nar-
raro rativa, é o retrato da realidade objectiva‖ Concluiu.
seio LUCÍLIO Orlando MANJATE é membro efectivo da AEMO. Publicou
caro Manifesto (contos), 2006, Os Silêncios do Narrador (romance), 2010 e O
Contador de Palavras (contos), 2012.
anseio
passeio Outro livro publicado é a MAFONEMATOGRÁFICO TAMBÉM CÍRCULO
que receio ABSTRACTO de poeisa, cujo autor já pretence ao mundo dos escribas.
Trata-se de um livro de poesia de Sangare Okapi. ―Mas não para os desavisados,
ou mesmo para eles. A poesia que Sangare Okapi agora nos apresenta desafia pela
forma ousada como se insinua e se manifesta, e disso o título é já sintomático. Por
isso, uma das grandes questões que Sangare Okapi agora discute é a própria noção
de poesia, porquanto a Estética, aqui, é, digamos abalada, questionada até à exaus-
tão, até à loucura. Nesse sentido, é, este livro, uma espécie de apoteose, onde a
relatividade do Ser da Poesia é o núcleo central”.
CARDOSO Lindo CHONGO (SANGARE OKAPI) é membro efectivo da
AEMO. Publicou a seguinte obra poética: Inventário de Angústias ou Apoteose do
Nada, 2005, Mesmos barcos ou Poemas de Revisitação do corpo, 2007, e Mafone-
matográfico também Círculo Abstracto, 2012. Está antologiado na revista brasilei-
Sangare Okapi ra Poesia Sempre, 2007.
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Livros & Leitores
Ao nosso confrade e amigo, Calane da Silva
Gostaria, com a per- nha na lenha do mundo;
missão das excelsas É, por fim, no mundo do ensaio, nessa linguagem que obedece a outros códigos,
figuras aqui presentes, já como docente universitário, que Calane resolve enveredar pelos trabalhos
de, em jeito de introito, ensaísticos, ofertando-nos obras de grande gozo, como Gil Vicente, Folgazão
manifestar a minha ale- Racista? Estudos de Linguística sobre o português em Moçambique com ênfase
gria em estar aqui, na interferência das línguas bantu no português e do português no bantu; ou
como orador, na home- adentrando-se na obra poética do colega de letras, O Estiloso Craveirinha,
nagem que ora se presta impelindo-nos, nesse irrepreensível texto, a reter, na obra do poeta, a função
ao escritor Calane da estético-nacionalista dos lexemas bantu. Diz Calane: «os lexemas bantu e os
Silva. Digo alegria por- neologismos luso-rongas em Craveirinha se, de certa maneira e como analisá-
que o mundo literário é mos, desestruturam aquilo que seria uma linguagem poética em língua portu-
povoado de ambivalên- guesa, criando anomalias, por outro lado e também conforme verificámos, por-
cias, de jogos de luzes e que as tais anomalias fazem parte da poesia, eles criam a poeticidade, acabando
sombras, de ficção e por reestruturar uma nova linguagem poética marcando o seu estilo. No seu
realidade, de leituras todo, no seu conjunto acabam por criar uma estética que se liga, tal como o esti-
segundas. Mas aqui, lo, à cultura, à sociologia e a uma ideologia nacionalista moçambicana.»
com a ajuda desta luz Pergunto-me, com algum espanto, nesta diversidade de linguagens a que o
artificial, e sem nada na Calane se cometeu ao longo de uma vida não menos curta, onde ancorar a
manga, as minhas pala- minha homenagem? De que Calane devo falar?
vras querem-se livres de Do cidadão, claro, do homem simples que está para além dos títulos e cargos
outras leituras que não a que teve e têm. O Calane que eu conheço hoje não difere daquele que em Junho
de alegria em homena- de 1992, disse, em entrevista, a respeito da censura e quejandos, ao estudioso
gearmos o primeiro Michel Laban: «Aqui, havia uma censura oficial, no tempo colonial; depois da
escritor com o prémio carreira, prémio instituído pela Hidroeléctrica de Cabora independência houve uma espécie de auto censura ideológica. Havia colegas
Bassa e a Associação dos Escritores Moçambicanos. nossos que tinham medo de dizer as coisas, faziam uma autocensura, porque
Calane da Silva é das raras personalidades em cujo percurso a linguagem se tornou estavam convencidos que eram uns grandes marxistas-leninistas! Em nome de
o alfa e o ómega da sua condição de cidadão e intelectual. Foi a linguagem, na ver- um progresso, em nome de uma futura nação – sempre o futuro -, liquidavam o
tente jornalística, que ocupou um espaço privilegiado na sua carreira, catapultando presente! Não sabiam que era pondo a verdade que se podia discutir sobre ela e
-o à galeria de insignes jornalistas que marcaram, com a pena, distintos momentos depois avançar-se para esse futuro que eles queriam. Mas isto, quando um Esta-
na denúncia de actos iníquos antes e depois da independência; foi a linguagem, na do começa a ser mais policial, começa porque há resistência a esse Estado, as
vertente poética, que moldou a personalidade rebelde deste poeta qua cantou a pessoas começam a ficar também um bocado extremistas, ou calam-se um
nossa suburbana vida no epicentro da sua Malanga. bocado e vão escrevendo, tal como no tempo colonial, ou então aderem e dão
Quem não se recorda desse poema emblemático Dos Meninos da Malanga : panegíricos ao governo: «Viva isto e Viva aquilo». Sempre que houve necessi-
Mukhokweni/não é só lugar de cocos./ Mukhokweni tem história/ retida na íris/ dade de fazer uma coisa que estava bem, não tive problema nenhum em dizer
dos meninos da Malanga./ Vivíamos a monte/ entre coqueiros, pamas e piteiras/ e que estava bem e em fazer a reportagem. Sempre que havia algo que estava
tínhamos tudo!/ Crianças sempre esfarrapadas/mulheres grávidas todos os anos/ mal, também não me coibia de o dizer. Paguei um bocado, apanhei uns bofe-
xibalos-carregadores/ e magaízas endinheirados/ que os mabandido por vezes/ tões! Tive vários problemas de despedimento, de autodespedimento, empurrado
esfaqueavam./ A polícia também investia para metralhar corpos/ e efectuar pri- para fora dos jornais!»
sões/ mas em Mukhokweni/ sobretudo/ vivíamos entregues a nós mesmos./ Vinte e Este é o Calane que nós conhecemos na aurora da nossa existência literária.
quatro anos são passados/ sobre os coqueiros, pamas e piteiras/ de Mukhokweni Um Calane que entre outros escritores de nomeada, soube-nos transmitir que o
ora urbanizado./ Mas os gritos/ pragas e imagens continuaram/ doidamente con- valor supremo de um patriota é o saber dissentir, dizer não. A crítica, fazendo
densados/ nos nossos corações já amadurecidos./ Jacinto, Fernanda, Madala/ e tu minhas as palavras de um teórico, é mais do que um direito: é um acto de
Kadir?/Todos companheiros de infância/ que o regime implacável dividiu…1969; patriotismo, uma forma de patriotismo superior aos rituais familiares da adula-
Foi a linguagem, na vertente romanesca, que firmou Calane na galeria dos escrito- ção nacional. Em abstracto, celebramos a liberdade de expressão como parte da
res desta pátria com o romance Nyembete e o pendular livro de contos Xicandari- nossa liturgia patriótica, mas na prática poucos de nós fazemos da dissensão um
dever nacional.
Manuel Alegre regressa à poesia
Não iria terminar esta breve e tosca prelecção em volta desta figura que bem
mereceu o prémio carreira ora instituído, sem me ater aos imponderáveis poe-
mas que emergiram, muitos deles, nos anos 80, anos de verdadeira boémia nesta
com «Nada Está Escrito» cidade que se descaracteriza a cada dia que passa. Calane, devo dizer, preenchia
as nossas noites com poemas que só ele, naquele instante, como que apossado
por esse estado de hierofania, sabia evocar. Da lírica do Imponderável e outros
Poemas do Ser e do Estar, escolho a que se refere a sua cultura ronga:
Sobre o livro: «Manuel
Alegre volta, neste novo Maputo
livro, a confrontar a sua Terra de Maputsu pela história miscigenada/ suor nas estradas, nos prédios, nos
poesia com as grandes milheirais/ dos rongas sua língua e sua cultura ameaçada/ mas na escrita literá-
questões: o sentido da vida ria fortes vozes nacionais./ Na baía outrora farta desaguam três rios de fome/
e as incertezas, interroga- em três húmidos vales, ricos e mal aproveitados/ aqui deram nome à capital que
ções e angústias deste nosso já tinha seu nome / ka Mpfumu cidade de governantes e governados./ Com por-
tempo. Uma poesia, nas tos construídos para servir Transvaal/ terra assaz disputada entre Inglaterra e
palavras de Frederico Lou- Portugal/Maputo é hoje província e urbe de estranha gente./Os da terra olham
renço, que ―não esconde o os passos dos que vêm de fora/ os de fora os passos imprecisos da gente de ago-
sofrimento e a dor da exis- ra/ gente tão adversa, tão de medo, tão maldizente.
tência humana, mas que
Saravá, Calane.
nunca aceita a resignação
ou o pessimismo‖. Um E obrigado
novo poema de Manuel Ungulani Ba Ka Khosa
Alegre, diz Lourenço,
Nada Está Escrito, novo livro de poesia de ―afigura-se-nos sempre Texto apresentado na Homenagem ao escritor Calane da Silva, 23 deMarço
Manuel Alegre, será a lançado a 7 de Abril como um fenómeno incrível 2012
pelas Publicações Dom Quixote. de originalidade.‖»
6. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 6
O curandeiro
Croniconto contratado pelo
FICHA TÉCNICA meu edil
Dany Wambire - Beira
estrutura membros de partidos da Oposição ou da
danitoavelino@gmail.com Posição.
Entrementes, de imediato, o presidente quis atacar os
Os resultados das eleições já há muito eram problemas que encontrou, ordenar a destruição das
conhecidos. E não estavam longe das previsões, infra-estruturas desordenadas e as edificadas nas
Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa confirmando as sondagens. E o presidente tomou antigas valas de drenagem e que em tempos de
Direcção e Redacção posse ante os apoiantes eufóricos, muitos deles cheias os proprietários exigiam assistência humanitá-
Centro Cultural Brasil - Mocambique desejando de imediato recompensas do apoio de ria, curiosamente. De imediato, também, a ideia de
Av. 25 de Setembro, N°1728, que eles prestaram ao recém-eleito presidente da presidente venceu adversão dos vereadores, encas-
autarquia. Acotovelam-se no partido de que presi- quetando-lhe:
C. Postal: 1167, Maputo
dente fazia parte, uns dizendo que eram mais ― Não faça isso, sua excelência, se não perderás
membros que outros. Até uns chegavam a inter- muitos votos nas próximas eleições.
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 07 46 pelar o presidente apenas para maldizer dos O edil não desandou, a decisão manteve-se. E, logo
603 outros: que a decisão foi posta em voga pela mídia, as pes-
― Aqueles estão a aderir ao partido só para tirar soas e outras visadas desataram a maldizer em surdi-
Fax: +258 21 02 05 84
partidos. na: queremos ver, vão morrer, isto é Fim-de-Mundo,
E-mail: kuphaluxa@sapo.mz E diziam mais. Acusavam alguns que viram fula- que se coloquem a pau, vão avariar esses guindastes.
Blogue: literatas.blogs.sapo.mz nos metidos em conversa com sicranos do partido No seguido, os guindastes, essas máquinas de levan-
da posição ou oposição. Tristonho! Parece-me tamento de pesos, estavam no terreno a exercer o
que custa ser dirigente numa autarquia como a trabalho. Mas a dado momento, enquanto o trabalho
DIRECTOR GERAL
nossa, a de Fim-de-Mundo. Pois, para além de se exercia, desatou a jorrar sangue através do chão
Nelson Lineu satisfazer os interesses dos munícipes, deves da máquina. Vinha de onde? O combustível da máqui-
(nelsonlineu@gmail.com) recompensar com coisas imediatas aos seus par- na se convertera em sangue? Não. Soube-se instan-
Cel: +258 82 27 61 184 tidários. E caso não o faças conspiram-te, até de tes depois quando o proprietário do sangue, já enxuto,
te demitirem? Sei lá, respondam os que conhe- menos pesado que papagaio, não mais respirava.
EDITOR cem disciplina e indisciplina partidária. Estava morto, pés involuntariamente afundando os
Eduardo Quive Sei, sim, que quando o genro de meu avô, Genró- pedais.
(eduardoquive@gmail.com) nimo Comichão, entrou para a autarquia, a mes- O presidente e os criminalistas entenderam aquilo
Cel: +258 82 27 17 645 ma tinha muitos problemas. Havia desordenadas como normal, de hemorragia externa se tratava. E
construções de casas, construções sem as res- foram a conduzir a máquina de destruição tantos
CHEFE DA REDACÇÃO
Amosse Mucavele
pectivas licenças. Até em valas de drenagens outros maquinistas, num número de 20, tendo sido
(amosse1987@yahoo.com.br) havia gigantes obras, edificadas ante o olhar e todos acometidos pelo igual azar: tremendas hemor-
Cel: +258 82 57 03 750 ouvir impávidos das predecessoras autoridades ragias. Enquanto isso, as pessoas visadas festejavam
autárquicas. sem pompas, mas com circunstâncias.
REPRESENTANTES PROVINCIAIS No resto, os vereadores do anterior governo, os Foi, então, a partir deste momento que o edil decidiu
Dany Wambire—Sofala que demoniacamente engendraram e permitiram criar um gabinete, que responderia prontamente aos
Lino Sousa Mucuruza—Niassa a evolução dos supracitados problemas estavam problemas, o gabinete de assuntos tradicionais,
no rente governo autárquico, não de pedra e cal, depois passado para gabinete de Magia. Contratou os
incumprindo as respectivas funções. Só o novo respectivos recursos humanos, quatros famigerados
COLABORADORES FIXOS edil não os exonerou para uma boa imagem políti- curandeiros, e orçamento, como ordenavam as intesti-
Pedro Do Bois (Saranta Catarina-Brasil) ,
Victor Eustáquio (Lisboa — Portugal), ca. Pois, nos tempos que corriam soava bem para nais regras autárquicas, aprovado pela respectiva
Mauro Brito, Japone Arijuane. os doadores ouvir que um governo tem na sua Assembleia Municipal de Fim-de-Mundo (AMFM).
COLABORAM NESTA EDIÇÃO
Amosse Mucavele
ILUSÃO
Silas Correa Leite
Nina Rizzi amosse1987@yahoo.com.br
Sebastião Marques Cardoso
João Melo O espelho não reflecte os medos que encharcam o meu silêncio. Muito menos as alegrias que degolam o
Izidine Jaime
meu sorriso.
Vera Duarte
Guido Bilharinho As Vezes
Ungulani Ba Ka Khosa O espelho mente a dizer verdades na inocência das incertezas que se amotinam na vista alegre das minhas
angústias.
A tocar flautas. Ao som do triste olhar da lupa
COLUNISTA A atirar pedras. Para os olhos que se olham a procura da verdade das certezas pintadas a vermelho dos
Marcelo Soriano (Brasil)
semáforos.
FOTOGRAFIA Paragem! Miragem?
Arquivo — Kuphaluxa As 4 rodas roncam (a morte, a angústia, o silêncio, a memória) na abstracta estrada da ilusão, onde
F L O R E S
apodrecem no verão esburacado da objetiva da máquina fotográfica. Múltipla visão (ordem e caos, verda-
PARCEIROS
des e mentiras) de olhos bem abertos na fechadura da alma amedrontada pela doce aparição
Centro Cultural Brasil—Mocambique do labirinto.
As flores atravessam a primavera (que há muito clama por elas) com sapatos de neve (cuidado o Verão é
Portal Cronopios eterno) chutam o silêncio que habita a escuridão. e lá lá e lá .
www.cronopios.com.br
E lá do outro lado da margem, em pleno suar do inverno uma flor (esta) sem árvores nega de dar a voz as
Revista Blecaute pedras.
Insiste. Persiste em aprender a ética da memória das flores que se escondem na estação última do tempo (o
Revista Culturas & Afectos Lusofonos sono) com amarguras de alegrias e angústias. Deitadas no prato hasteado nas lágrimas da bandeira do
culturaseafectoslusofonos.blogspot.com futuro.
E no presente? Vejo a minha face multiplicada por 2 no quadro dos olhos deste Deus da Carnificina
chamado espelho.
7. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 7
Poesia EXERCÍCIO POÉTICO 5
Vera Duarte– Cabo Verde
A Ti
Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem-se os ares de
recendidos perfumes estivais. É o preço da liberdade. Palmeiras ao sol e longas
longas praias de areia molhada a manterem desperto o fervilhar anímico das
paixões. A voz da líbido. Em toda a sua violência incontrolável.
No entanto sublimar é palavra d’ordem. Sublimar aqui e agora o desejo da
presença, da intimidade, do isolamento a dois. Mutilar a alma, sacrificar as
paixões em nome das convenções que nos fazem civilização e grandeza.
Sinto em mim, contudo, imperioso e dolente, o desejo da terra molhada, dos
corpos belos, o prazer físico da presença desejada, do frémito incontido ao roçar
leve da tua mão na minha.
Em nome da cultura e da civilização sacrifico-me. A minha coroa de glória quem
ma dará? E pergunto-me dilacerada se será civilização e grandeza ou mesquinhos
arremedos que a miopia colectiva endeusou.
Morte desenraizada Não ouso afrontá-los contudo.
E dentro de mim, censuradas e sedutoras, sucedem-se as imagens proibidas e as
sensações interditas.
José Carlos – Guiné Bissau Sublimar é palavra d’ordem. O amor e a paixão, a líbido e o prazer. No altar dos
valores supremos. Sublimar aqui e agora e manter estóica e estupidamente
Sergui após a marca das tuas botas secretos os diálogos que comigo mantenho contigo.
Sobre as folhas mortas em terra húmida Convenho-me que a vida é feita de ironias.
Ignorava qual a fera terrivel que perseguias Quereria contudo abraçar-te em meio à multidão, correr ao encontro de ti pelas
achadas imensas e juntos nos afogarmos nas ondas deste oceano que é nosso.
Tal era o empenho e a atenção dos teus gestos Amanhã o dia será de glória.
E vi na tabanca queimada devastada
As mesmas botas calcar o sangue, o corpo
[ a morte inocente
De crianças da tua cor, do teu credo perdido
Sol No Muceque DANÇAR
E soube que na terra em pranto pela tua Pedro Du Bois - Brasil
[afronta João Melo - Angola
Tu terias uma morte desenraizada. Vejo: pés rápidos deslizam
Redonda lâmpada acesa passos convencionados.
a amarela luz alastrando-se O rosto preso no exemplo.
EU E OS MEUS VERSOS LIVRES por sobre o zinco das cubatas Mãos inertes ao contato.
Os fartos cabelos
Reflito a posição exigida
das mulembeiras
e lamento o acontecimento:
C. C. Cossa – Maputo Rapaigas cartando água
no chafariz dançar é esquecer o que vejo.
A primeira vez que ousei escrever um verso, era um dia en-
Meninos de barriga inchada
solarado de onde aos poucos era parido uma noite de estre- Ativar as mãos
brincando com bola ou
las de ventres de amor e saudade. Aprendia que o coração deslizar o rosto
tampas de garrafa
também sabe bater para além de estar vivo, para além do reinventar o som
seu derradeiro pulsar, para além da mais aparta-da existên- em movimento.
cia que a mente humana ousou alguma vez maquinar. Nesse
exacto momento, senti que ele, o verso, me segredava ver-
Idades
Patinho Feio
dades que nem a própria verdade acre-ditou que se tratasse Mauro Brito - Maputo
dela, a verdade. Dizia ele, o verso, todo ensopado numa es-
trofe, uma estrofe como uma estrofe qualquer, por ser um Desabotoam acidez da mente Silas Correa Leite - Brasil
conjunto de verso, porém como uma estrofe única por ser Há que descorar as blusas sem
uma estrofe que falava poesia: «Se não me vês como uma licença
obra-prima, como arte, tocando Malangatana ou Picasso,
Pouco amigas “-Solidão, cuida de mim...”
então não sou poesia. Não preciso que me empanturres de Feito um Patinho Feio a sonhar
Sem dizer que cospem venenos fluidos
rimas. Não preciso que me engravides de versos anapésti- Mergulhado em agulhas de tristices
Articulados com os corpos Ressentimentos, saudades, jogos de
cos, trocái-cos ou iâmbicos. Não preciso que me engrosse
até ao último balanço, ou me dar das bebidas de versos de-
E copos desses seios espelhos, azar
cassí-labos heróicos, ou sáficos. Bastam o ritmo, a conota-
Em autentica conformidade com
ção, e os recursos estilísticos, que já sou poesia. Que deixe- Maus “-Solidão, cuida de mim...”
mos os Camões saborearem o silêncio das sua tumbas poéti- Modos Porque ainda por cima, para piorar
cas na poeira de uma poesia que renasce das cinzas do seu Amorfo lógicos O Patinho Feio é poeta e quer voar!
labiríntico eu. Não só Pessoa tem o direito de fin-gir que é
dor.»
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Entrevista Fonte: www.saraivaconteudos.com.br
Luís Cardoso
Entre o ser
e não ser
o primeiro
Luís Cardoso nasceu no Timor-Leste. É autor de quatro romances:
Crónica de uma travessia (1997), Olhos de coruja olhos de gato bra-
vo (2002), A última morte do coronel Santiago (2003) e Requiem
para o navegador solitário (2007), seu primeiro livro publicado no
Brasil. O Timor-Leste, país marcado por sucessivas invasões
e conflitos intensos, é, como diz o próprio autor, “uma colcha de
retalhos etnolinguísticos”. Além disso, há neste país forte tradição
da cultura oral. Por isso, Luís Cardoso é considerado o primeiro
autor timorense a escrever em língua portuguesa. O autor, entreta
nto, rejeita o rótulo. Homem de gestos simples e delicados, Luís
Cardoso fala, nesta entrevista, de sua relação com a língua portu-
guesa e com o Brasil. E conta um pouco sobre os desafios de criar a
partir de uma voz feminina. Como fez com Catarina, a personagem
principal de Requiem para o navegador solitário.
N
o Timor Leste o Tetun é o idioma oficial. Diante de tantos dialectos existentes no Embora rejeite o título, você é tido como o primeiro escritor timorense. Como é a relação
Timor, por que você escolheu a língua portuguesa? E de onde surgiu seu interesse desses conflitos étnicos e políticos do Timor Leste com o seu trabalho?
por literatura?
Luís Cardoso -O primeiro livro que escrevi chama-se Crónicas de uma travessia. O personagem
Luís Cardoso - Por escrever em língua portuguesa desde a infância. Há um episódio muito interes- principal não está nomeado, muito gente diz que é uma autobiografia, posso citar como sendo, mas
sante. Eu vivia numa ilha chamada Taurus, uma ilha mais pequena que o Timor, onde havia um des- ao mesmo tempo podia ser a vida de qualquer outro timorense. O Timor é uma manta de retalhos
terrado político português - por oposição ao regime de [António de Oliveira] Salazar. Ele resolveu de vários grupos etnolinguísticos. Quase podemos afirmar que atravessamos de nação em nação
fazer uma padaria, o filho dele era meu colega. Meus pais não tinham dinheiro para comprar pão por- por todo o Timor. Tentei dizer mais ou menos em Crónicas de uma travessia, para as pessoas
que era um objecto de luxo. Os nativos, nós, os timorenses, comíamos batata-doce, mandioca... São conhecerem um pouco do Timor real, e não somente aquele que conhecem pelos jornais, pelo dra-
essas coisas que faziam parte do nosso pequeno-almoço. Quando havia as redacções, que se fazem ma da Resistência Timorense. Depois da minha estreia, procurei me adentrar no universo timorense
nas escolas primárias, eu fazia sempre duas versões: uma versão para mim e outra para ele. Ele que através do segundo livro, que se chama Olhos de coruja, olhos de gato bravo. Olhos, portanto, um
era filho de português, e eu timorense. E como recompensa ele me dava um pão com manteiga. Foi olhar interior sobre o povo timorense, sobre seus ritos e mitos. E, sobretudo, um olhar feminino.
assim, digamos, que passei a tomar o gosto de escrever em português. Como eu tinha que escrever Todo o universo timorense é dominado pelo olhar feminino. As mulheres que leram o livro disse-
duas versões, isso fez com que eu tivesse uma imaginação maior. Porque todas as vezes tinha que ram que é um texto mágico, mulheres timorenses e mulheres feministas portuguesas. Isso me deu
escrever uma versão para mim e outra para ele. Deu-me o gosto desde a infância. E depois, com o orgulho porque achei que eu tinha ganhado um desafio. O terceiro livro chama-se A última morte
tempo, fui me habituando, gostando de escrever em língua portuguesa. E foi assim que se iniciou a do coronel Santiago, um título que se relaciona com a América Latina. Depois da libertação do
minha relação afectiva com a língua portuguesa, mas só tive a oportunidade de escrever bem quando Timor, regressei ao Timor para acompanhar o Prémio Nobel de Literatura, José Saramago. Foi
finalmente fui para Portugal, em 1975. muito interessante descobrir que por trás do Prémio Nobel, do escritor, existe outra pessoa que
muita gente desconhece.
Você mora em Portugal até hoje...
Quem é essa pessoa?
Luís Cardoso -Estou lá até hoje. Quando estive em Portugal, começou a invasão do Timor pelos
indonésios. Nunca mais pude regressar ao Timor. Então, comecei a fazer parte da frente diplomática Luís Cardoso -É um grande contador de histórias, uma pessoa afável. O grande escritor, o escritor
da chamada Resistência Timorense. Como falava alguma coisa de inglês, os meus colegas decidiram que todos nós conhecemos, é diferente daquele que conheci nessa viagem ao Timor. Ele foi encan-
utilizar-me nessas andanças todas. Quase todo o resto da minha vida foi, precisamente, a fazer diplo- tador em Timor, atencioso com as pessoas... A última morte do coronel Santiago tem esse nome
macia pela Resistência Timorense. porque nessa ocasião, em que estive no Timor acompanhando José Saramago, um tio meu que foi
tenente da segunda linha do exército colonial português me perguntou: "Quando os portugueses
9. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 9
Entrevista www.saraivaconteudos.com.br
regressam ao Timor?" ―Bom, os portugueses não vão regressar ao Timor‖, eu respondi, ―neste
momento estão as Nações Unidas em Timor, que farão a transição e o Timor vai ficar independen- Catarina. Quem é essa personagem do livro Requiem para o navegador solitário? Seria
te. Portanto, os portugueses já não vêm ao Timor. Até podem vir, mas integrados com as Nações sua terra natal, o Timor?
Unidas.‖ Ele ficou magoado com minha resposta. Passado um tempo, ele voltou a perguntar:
"Quando os portugueses regressam ao Timor?" E só aí eu descobri o motivo da pergunta recorrente Luís Cardoso -Ah Catarina... [pausa] Depois desse livro ganhei uma afeição especial por
de meu tio: "Se os portugueses regressassem neste momento ao Timor, o meu posto seria coronel e escrever a partir do universo feminino. Há escritores que fazem isso de uma forma magnífica,
eu receberia os retroactivos todos." A resposta dele me fez lembrar um livro do Gabriel Garcia como é o caso de António Lobo Antunes, cujas personagens femininas são excelentes. Eu tam-
Márquez, Ninguém escreve ao Coronel, em que estão à espera do vencimento que nunca chegava. bém decidi aventurar-me por isso. Acho que falo melhor assim, não me travestindo como
Por isso decidi dar aquele título ao romance. mulher, mas julgo que através de uma voz de mulher consigo expressar-me melhor. Decidi
contar uma história sobre a Segunda Guerra Mundial em Timor através de uma personagem
Qual é a importância da língua portuguesa para os timorenses? feminina muito forte, que é a Catarina. Timor sempre foi um ponto de encontro de várias pes-
soas, desde aventureiros, negociantes, desterrados políticos do regime de Salazar... E também
Luís Cardoso -A língua portuguesa teve um papel muito importante durante o tempo da Resistên- uma terra marcada pelas invasões. Durante a Segunda Guerra Mundial, Timor teve duas inva-
cia. Porque os documentos que nós recebíamos do interior do Timor, que a Resistência fazia circu- sões. A primeira pelos Aliados e a segunda invasão pelos japoneses, que durou mais tempo.
lar, eram em língua portuguesa. O que significava que a língua oficial da Resistência era o portu- Sempre tive uma afeição muito grande pelos navegadores solitários, pelas pessoas solitárias, e
guês. Só que a maioria dos falantes de português foi morta durante a ocupação. Diante disso, por todos aqueles, alguns mais desesperados que outros, que passavam por Timor: viajantes.
depois da independência há a necessidade de fazer uma reintrodução da língua portuguesa em Há um viajante que passou por Timor, Alain Gerbault, um navegador solitário francês que fez
Timor. E, neste momento, há países que colaboram: professores portugueses, professores brasilei- uma viagem de circunavegação e escreveu um livro que se chama À la Porsuite du Soleil. E,
ros, angolanos, da Guiné... Portanto, a lusofonia. Mas isso levará algum tempo, porque as Nações por uma terrível coincidência, ele morre em Timor - que nós, os timorenses, chamamos de "a
Unidas, mesmo estando em Timor, não vêem com bons olhos, acham que é uma utopia a reintrodu- terra onde nasce o Sol". A partir desse fato desenvolvi toda a trama do livro Requiem para o
ção do português em Timor. Pensam que é mais fácil utilizar o inglês. Motivados por essa pressão navegador solitário. É a história de Catarina, uma pessoa que vai a procura do amor e, ao mes-
das Nações Unidas, muitas vezes parece que não temos vontade de acelerar o processo de reintro- mo tempo, tem reveses. São pessoas que perante reveses contornam as situações. E isso acon-
dução da língua portuguesa em Timor. Também por causa da instabilidade política em Timor, mui- teceu com Timor, teve um revés tremendo em toda sua história e deu a volta por cima. E hoje
tas das questões fundamentais são relegadas para um segundo plano. Acredito que uma vez politi- Timor é um país independente.
camente mais estável o Timor terá a possibilidade de fazer uma reintrodução mais rápida do portu-
guês. Você se considera um homem solitário?
No final dos anos 1980 você veio ao Brasil e se encontrou com o Lula. Actualmente você lança Luís Cardoso - Acho que nós todos somos solitários em algum momento de nossas vidas. Ser
Requiem para o navegador solitário (Língua Geral). Como é lançar seu livro no Brasil neste solitário implica estarmos sós, estarmos com o mundo. Quando estamos solitários o que nos
contexto político? vem à cabeça são os momentos que estamos com toda a gente, mas não estamos com ninguém.
O ato de estar solitário não é de desespero, mas o ato de estarmos também com os outros.
Luís Cardoso -É uma alegria. É bom que um país como o Brasil possa ler o livro de um autor lá do
fim do mundo. Muitos brasileiros não sabem onde fica o Timor. Espero que os brasileiros gostem Quando você pensa no Timor, qual a primeira imagem que aparece?
do livro, sei que têm bom gosto. Espero que seja bem aceito. É uma honra para o Timor. Fico mui-
to satisfeito. Qualquer dia a minha filha, que hoje tem seis meses, quando crescer vai poder dizer: Luís Cardoso -A infância. Fui muito feliz na infância em Timor. [silêncio]
"Meu pai foi editado no Brasil." É uma honra para mim também.
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Filosofonias
Colunistas Marcelo Soriano — Brasil
O passo certo m.m.soriano@gmail.com
no caminho errado
Nelson Lineu - Maputo
nelsonlineu@gmail.com
Comentário: Na Minha Agenda, Hoje, Escrevi
O país das desculpas - Amanhecer: regar flores que amanheceram murchas.
- Meia manhã: rabiscar excertos de amor.
segunda-feira, Abílio toma banho, veste-se, passa - Entardecer: mostrar a ela que flores e corações se regen-
É pelos olhos da mulher e dá volta para ela ver se o eram.
cinto passou em todas casas, além do seu salário essa
....................................................................
era a sua grande dor de cabeça. Sai sem pôr nada na boca Mini crônica: Tríade a Porto Alegre
porque não lhe cairia bem, não criaria efeito à causa. Como
ele podia beber naquele dia que se tem como sagrado? A
mulher não conseguia entender, não por causa da religião, Em um sebo da Rua Riachuelo, deparei-me com minha
segundo ela, era por um motivo mais sério, é que no dia obra favorita. - Que livro seria este? - Ora,
seguinte tinha que ir ao emprego, e ele sabia muito bem, o a minha velha e mal tratada Ópera Existencial.
que é viver desempregado. Acordou cedo porque tinha que *****
passar na dona Felismina, a sopeira, dedicava-se a venda de Dos meus fantasmas cotidianos, restaram os lenços, que,
sopa, que servia para matar babalaza, termo usado para sequer, conseguem flutuar em
significar ressaca. assombros de vento.
*****
Nesse país de desculpeiros, como ela dizia, por as descul- Gavetas tristes, estas, que não nos devolvem os alfarrábios
pas serem mais graves que os próprios erros, e cá por nós que ainda ontem as confiávamos.
como temos o hábito de sofisticar as coisas ou fazer uma ....................................................................
analogia chamamos por inquérito. Hoje elas também ser-
vem para negócios, por isso a Felismina vê na sopa a for-ma Poema: Das Minhas Gavetas
de se dar bem, e o mais difícil nessa pátria que ama mais do
que é amada, é igualmente estar a fazer um bem. ("Nenhum", em 14/11/2010)
Agora encontra-se no seu trabalho, é um bibliotecário. Ver Entre mortos e feridos
os estudantes empenhados a cultivar a ciência, embora haja ricos e falidos
tendência de afirmar que não somos produtivos, por esses lembrados e esquecidos
momentos, ele punha interrogações a esse dogmatismo, achados e perdidos
sentia-se bem, quando os slogans, propagandas, discursos tarados e traídos
não entravam na sua vida. De certeza os putos não seriam sobramos
como os actuais condutores do país. Pensava. Os que con-duzem ninguém
e fazem a regra desse trânsito mais parecem que se esforçam
....................................................................
para justificar do que para trabalharem propria-mente. Nunca
damos mão a palmatória, como se fossemos os únicos que
não sabem errar. Num dos miaquotidianos vivi que não
tínhamos que ter vergonha de não saber, o que tínhamos
recear é não ter a inquietação para tal. É assusta-dor como
ficamos confortáveis na sombra das desculpas, que acaba
sendo o mesmo que fugir a luz do conhecimento e o seu
consequente progresso. Todos dias testemunhando aquele
acto de amor aos livros, Abílio fazia-se crer que o cenário
actual tinha dias contados. Contados até ao minuto em que
um dos estudantes, sonecava claramente, ele o amparou
quando estava quase a cair. Amigavelmente cha-mou-lhe
por seiva da nação, o mesmo que juventude por aqui, disse-
lhe que ali não era local para dormir, sempre com sorriso no
rosto como as secretárias, ofereceu-lhe água para lavar cara,
se quisesse ele mesmo aquecia, e ain-da faria um café.
A seiva da nação foi respondendo aos berros, dizendo que
ele não estava a dormir, e o funcionariozinho não era nin-
guém para lhe dizer como estudar, porque cada um tinha
seus métodos.
11. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 11
O SANGUE DE UM POETA
A Transgressão do Real
Guido Bilharinho - Brasil
Em geral, tanto o leitor como o espectador querem usufruir de uma Todo o insólito e extravagante que consti-
estória, em livro, filme ou peça teatral. Não uma estória qualquer, tui o conteúdo da proposição é, pois, cons-
mas, a que se submeta, quanto à forma, à narração convencional e truído com o material existente, comum e prosaico, no caso, a estátua,
comportada e, no que tange ao conteúdo, à linearidade e superficiali- a parede, o espelho, a porta, a fechadura, o teto, o desenho.
dade que a recheiem com aspectos espetaculosos, intrigantes, super- Desse condicionamento, no entanto, não se pode nem se consegue
ficiais. fugir. A diferença, pois, é de se ter ou não liberdade, audácia e criati-
Todavia, é possível fazer-se filme de ficção que não contenha nenhu- vidade em seu uso, para, além da matéria, seus limites e convenções,
ma dessas características. abusar-se de suas propriedades e possibilidades.
É o que ocorre, por exemplo, com O Sangue de Um Poeta (Le Sang O uso é sempre convencional, comportado e acanhado. O abuso é
d’Un Poète, França, 1930), de Jean Cocteau (1889-1963). liberação, criação, invenção, quebra dos grilhões impostos pela con-
Seu tema concreto resume-se a ferimento acidental ocorrido na mão cretude do real.
de artista plástico. À evidência, que proposta desse jaez encerra riscos e exige, além de
Só isso, contudo, vincula a narrativa à realidade. A partir daí e do destemor, fundamentação teórica e conhecimento da natureza e da
próprio acidente desconecta-se a ação do contexto real para adentrar finalidade da arte, sem o que toda produção não passará de tentativa
o mundo maravilhoso e ilimitado da imaginação alógica e irracional. canhestra de fazer o diferente quando não se estará fazendo mais do
Nada mais prende ou enleia a personagem numa teia ordenada de que o despropositado.
relações, porque desde então está-se mergulhado no mundo do mito e Cocteau, em seu filme, domina e utiliza com conhecimento de causas
do imprevisível. e efeitos os fatores condicionais (a materialidade das coisas) e incon-
Não havendo restrição alguma ao poder do imaginário, tudo é possí- dicionais (a imaterialidade do pensamento e a imponderabilidade da
vel, todas as opções são válidas, repousando o valor do filme na utili- imaginação) para fundamentar e realizar bela aventura artística, pro-
zação consciente e estética de recursos cinemáticos e picturais. duto de razão, inventividade, arrojo e liberdade criativa. Um artista
No caso, uns e outros apresentam-se articulados em alto nível de sem medo de errar.
concretização formal e temática, facetas que se conjugam e intera- Conquanto o filme tecnicamente não seja mudo (com esparsas narra-
gem como síntese de projeto artístico-cinematográfico meditado e ções do próprio cineasta), é estruturado como se o fosse, com privile-
ousadamente elaborado, em que se aplicam os preceitos surrealistas, giamento e realce da postura e dos movimentos dos atores integrados
que não se conformam nem se atêm aos lindes da materialidade, em décors artisticamente elaborados, compondo imagens estetica-
extrapolando suas fronteiras, conquistando e incorporando novas mente construídas, dispensada a dialogação.
dimensões estruturais, criando outro universo, no qual acontece jus-
tamente o que é impraticável ou impossível ocorrer no mundo real. (do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em
2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)
O projeto surrealista, no entanto, não tem como dispensar os elemen- __________________________________
tos corpóreos e palpáveis que compõem a realidade. Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil, foi candidato ao Senado Federal e
editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e
história regional.
(Publicação autorizada pelo autor)
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Em Agosto de 2012
Maputo será a capital da Literatura
Festival Literário de Maputo
Saiba como participar em:
http://festivalliterariodemaputo.blogspot.com
festivalliterario.maputo@gmail.com
12. Nina Rizzi inundação
era noite de bafo quente.
a rigor, madrugada.
o calor batido fê-lo carne voar longe.
um estampido.
feito tiro, finalizando tudo:
o semáforo verdevermelho,
a rua de passantes apressados,
o coletivo cheio de curiosos.
uma batida quente e escura
inundou o asfalto de sangue e carne fraca
e fê-lo findar.
era noite de bafo quente
o dia que experimentou ser
livre.
sepia clouds: crepúsculo e antiplatonismo
na rua oliveira filho
N
ina Rizzi (São Paulo, 1983), é poeta,
abortei os hifens que me separam de você.
historiadora e arte-educadora. Vive para o afundamento agarro comigo as plantas mortas
em Fortaleza/ CE. Participa de saraus, sem cuidado, sem espinhos.
festivais de arte, eventos literários e
palestra sobre poesia, literatura, género e artes, não tenho créditos pra fazer uma ligação.
e é engajada em movimentos sociais como o MST minha vista é enferrujada do container de lixo.
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)
vão trocando seus títeres, se mudando títere. ao mesmo passo
e o Movimento Arrastão. à uma suave distância, pareço um sem-fim de verbetes
Publicou o livro de poesias tambores pra n’zinga
(Editora Multioco, 2012). Participa com poemas e 1. microfísica do confessionalismo
posfácio em Maria Clara: UniVersos femininos 2. egocêntrismo, atrevimento e invenção
(LivroPronto, 2010); Faz parte das Escritoras ... [entrementes]
Suicidas e de Dedo de moça - uma antologia das o claustro é tão real quanto a execução de kadafi
escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora, e os cem mil anônimos que morrem de fome a cada dia
2009). Tem textos, contos e poemas publicados o meu desejo de ser esfaqueada e lambida;
em diversas antologias, suplementos literários e estas súplicas escondidas na mandíbula
nas revistas VacaTussa (Recife/ Pe), La Papa têm a dimensão da tristeza dos que não se sabem
Ruchada (Argentina), Nova Águia (Portugal), do desespero do homem que costura minha carne a
lágrimas
Revista Germina Literatura, Garganta da
tudo o que viram nas máscaras do homem da tabacaria.
Serpente, Zunai Revista de poesia & debates e
Portal Cronópios. Edita os blogues Ellenismos agora me olha de novo. o pequeno mundo.
Diálogos com a Arte HTTP:// olha, até que se esgote todo o amor
sim, um rasgo, o peso do mundo.
ellenismos.blogspot.com], e seus textos literários
no quandos, [HTTP://ninaarizzi.blogspot.com].
13. SEXTA-FEIRA, 30 DE MARÇO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 13
Ensaio
Sebastião Marques Cardoso (UERN-Brasil)
Texto apresentado, com o título ―Dramas do Imaginário na literatura Bissau-Guineense‖, no XII Encontro Interna-
cional da ABRALIC (2011), Curitiba Brasil.
Cartografia do Imaginário: a voz de Abdulai Sila
entre Colonizadores e Djambakus
R
esumo: afirmar a
Iremos, neste artigo, abordar A última tragédia (1995), romance de Abdulai Sila, identidade dos
escritor de Guiné-Bissau. Nosso maior interesse será refletir sobre duas formações bissau-guineenses.
tensas do imaginário, que percorrem a narrativa do princípio ao fim. São elas: a Em contrapartida,
presença do sujeito local, negro e nativo, e a força estrangeira, representada pela o caráter engajado
inscrição do homem branco e de suas instituições. Avaliaremos, assim, como essa do livro acaba
relação dicotômica se estabelece na narrativa e como o conflito decorrente dessa polarização restringindo a
contribui para um desenlace trágico, que evidencia a crueza da empresa colonizadora sobre uma potencialidade do
população de diferentes matizes étnicos. Ao final, indagaremos se a forma narrativa empregada, o mesmo em muitos
romance, foi, para o escritor, o melhor caminho para a exposição do trauma da colonização e até aspectos. Toda a
que ponto a narrativa figura uma forma de testemunho válido e de signo para a ultrapassagem da vida social e
experiência vivida. cultural dos bissau
-guin een ses é
subval or izada.
Palavras-chave: Literatura Comparada, Literaturas de Língua Portuguesa, Pós- Sabemos que nas
ruas de Bissau, a
Colonialismo, Abdulai Sila. variedade de etnias
e de falas é
1 Introdução abundante, que
Faz-nos, a atmosfera narrativa de Abdulai Sila, tomar consciência de um mundo que pouco todo o povo
conhecemos. A nova literatura do ocidente desde fins do século XIX habitou-nos a reconhecê-la carr ega uma
dentro do contexto da ―vivência de choque‖ (BENJAMIN, 1997), resultado da ascensão da técnica e espiritualidade
da informação em detrimento do declínio da experiência e da narração. Inóspita na época da pujante, que as
modernidade, essa experiência foi, por outro lado, reproduzida artificialmente por um conjunto artes populares
significativo de escritores que se seguiram ao longo dos tempos. Marcel Proust, por exemplo, pelo (música, dança,
mecanismo da mémoire involontaire traz à nossa consciência uma lembrança que não foi expressa festas e costumes
ou que não foi empiricamente vivida. Seus personagens são densos psicologicamente, agem em diversos) são um
contraposição à ordem do mundo e ao tempo cronológico. dado orgânico,
Ora, não vemos isso em Sila. Seus principais personagens não se apresentam com profundidade em vivo e fervilhante
função de traumas vividos durante a colonização. Nesse sentido, o registro do romancista bissau- na vida dos
guineense recupera a literatura da ―vivência de choque‖ no contexto africano, o que o insere numa indivíduos. Na
tradição literária do ocidente, mas essa inscrição não se dá em oposição à tecnização propriamente– cidade de Bissau
como uma espécie de contraposição entre campo/cidade–, e sim em relação à cadeia formatada do ou mesmo em
imaginário técnico-místico do ocidente, num atrito entre culturas autóctones e assimétricas. Em outros sítios do
outras palavras, o conflito que se instaura no romance de Sila ocorre na difícil passagem entre a país a mescla
representação do mundo dos ―pretos‖, imaginário imaginado da cultura africana, e do mundo dos cultural é
―brancos‖, imaginário imaginado do ocidente. Logo, a ―vivência de choque‖ em Silá opera nas f l a g r a n t e .
fronteiras entre o legado do ocidente, carregado de seus ―orientalismos‖ (SAID, 1990), e o espaço Entretanto, essas
cultural do africano fraturado, carregado ainda de sua sabedoria simbólica acerca da realidade. marcas, em função
da intenção ideológica do autor, foram solapadas no romance. Sila limpa toda natureza
espontânea dos bissau-guineenses para se concentrar no ―choque‖ entre ―pretos‖ e ―brancos‖.
2 Fraturas da cultura e da recepção literária Com Sila, podemos dizer que existe uma literatura moderna bissau-guineense? O romance de
Duas forças centrífugas agem no romance: a experiência africana e a experiência ocidental. Esta Sila está inscrito no contexto das literaturas pós-coloniais, dialogando com Pepetela, Luandino
procura reduzir a primeira num evento doméstico; e a primeira entende o próprio conflito cultural Vieira, Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Lobo Antunes (exceção portuguesa) e outros.
como decorrente da perda inevitável, em seu meio, da proteção divina. A personagem Ndani é, em Todos esses autores tomam a literatura como arma contra o discurso da colonização,
face disso, extremamente emblemática. Marcada por sua condição cultural e social, ela age com reapropriam-se da língua portuguesa, projetando a cultura e as identidades africanas a partir de
cordialidade diante de situações de violência simbólica, buscando compulsoriamente um dentro, ou seja, a partir do interior da própria cultura e da centralidade que as define. Com isso,
envolvimento maior com a cultura dos colonizadores. Através de conselhos da madrasta, uma das Sila pode ser lido numa ―plataforma ibero-afro-americana‖ em vias de ascensão:
esposas de seu pai, que conviveu com brancos, Ndani procura assimilar o imaginário dos brancos Uma comunidade ibero-afro-americana assim imaginada em termos de
futuro /.../ não se voltaria para os símbolos do passado, mas permitiria
que viviam na Guiné Portuguesa (hoje, Guiné-Bissau):
reimaginar a nação, cada uma das nações, numa relação mais estreita e
/.../ ela começara a ver as coisas de uma maneira diferente, qualquer coisa
aberta. (JUNIOR ABDALA, 2002, p. 74).
estranha instigava-a a rejeitar a vida que levava na sua tabanca e movia-a
impetuosamente à procura do mundo dos brancos que, disso entretanto também Poderá haver, nessa comunidade, um público cada vez mais crescente de leitores e críticos
se convencera, era muito diferente daquele que tinham dito ser o seu. (SILA, interessados.
2006, p. 22). Se, por um lado, podemos imaginar uma recepção de Sila por brasileiros, portugueses e
O mundo imaginado do imaginário dos brancos é o mundo representado pelos portugueses. Estes, africanos de outras nacionalidades, fica difícil pensarmos a recepção da literatura do autor em
durante o processo de colonização, foram gradativamente ocupando os espaços da vida social na sua própria nação. Faltam, em Guiné-bissau, instituições nacionais que possam garantir o
cidade, constituindo-se numa comunidade fechada dentro de um território aberto, rico pelas várias acesso da literatura à comunidade, como bibliotecas bem aparelhadas, uma circulação social de
etnias presentes, com padrões culturais seculares e, em muitos casos, divergentes à cultura do livros mais intensa por meio de editoras e livrarias, instituições superiores de relevância na
ocidente. produção de conhecimento crítico e acadêmico nas áreas humanas. Falta, sobretudo, uma
Apesar de propor uma problemática de cunho mais social do que estritamente cultural, podemos política agressiva do Estado para promover e difundir a nascente literatura moderna nacional.
encontrar, na nascente literatura bissau-guineense, alguma correspondência com a literatura A vida cultural do país, em face das conturbações políticas e sociais, fica a cargo, muitas
brasileira. Os sertanejos de Euclides da Cunha, os mestiços de Lima Barreto e mesmo os miseráveis vezes, de órgãos internacionais e de embaixadas de nações amigas.
de Graciliano Ramos e os marginais de João Antonio trazem choques culturais intensos. Em Sila, Sem o público leitor de sua própria terra, essa literatura, desterritorializada, pois sua recepção
podemos perceber esses choques, apesar de um cenário bem diverso. Em Euclides da Cunha, o ocorre num contexto mais amplo, deixa de exercer sua força transformadora na consciência
fundamentalismo religioso– cultura local– é contraposição ao racionalismo– cultura da metrópole–, dos leitores autóctones. Ora, a ausência da comunicação convertida em temas e imagens de
sendo o trágico a completa liquidação do pensamento local perpetrado pela República; em Lima uma cultura que se reconhece nos faz rejeitar a idéia de que há, de fato, uma literatura
Barreto, a cultura de elite, diga-se ―branca‖, é elemento de pressão sobre indivíduos mestiços ou de estritamente nacional. Esse fenômeno pode ser comparado à literatura produzida no Brasil do
origem africana, tendo desenlaces moralmente condenáveis e trágicos; em Graciliano Ramos, a período colonial, considerada por Antonio Candido– crítico brasileiro– como ―manifestações
pressão social é tão contundente que somos levados a pensar que existe uma cultura que caracteriza literárias‖ (CANDIDO, 1997). Em outras palavras, notamos que há um conjunto de escritores
sujeitos analfabetos e miseráveis– os retirantes– paralelamente à cultura letrada, bem alimentada, empenhados na Guiné-Bissau, sugerindo novos temas e imagens literárias, mas essa ―nova
suplantada pelo latifúndio, que se beneficia do sistema instituído; e, por fim, João Antonio, cuja linguagem‖ auferida ainda não foi absorvida pelos leitores a ponto de produzir um ―efeito‖
literatura aponta para um gueto cultural que, para sobreviver, adaptou formas culturais impostas, crítico de reconhecível impacto na vida cultural e literária do país.
criando mecanismo de ação e um subsistema de identificação social. O que torna os brasileiros
próximos de Sila é, para além da dimensão trágica dos principais personagens, uma certa atitude
―anti-heróica‖ (CARDOSO, 2010) frente à vida. 3 Notas sobre a representação romanesca
No romance de Abdulai Sila, há dois enredos que correm em paralelo. O primeiro deles, que dá O que surpreende na leitura que fazemos de Sila é, na verdade, o ponto de vista adotado pelo
início ao livro, ocorre com Ndani, personagem já citada. O segundo, com o episódio do Régulo. autor, ao pôr-se no mesmo foco do narrador. Sila, além de inaugurar a forma romanesca no
Esses enredos estão unidos através da presença do Professor, que participa tanto do enredo do ainda recém liberto país natal, conta a história sob um olhar diverso e complexo. Sua visão
Régulo quanto do enredo de Ndani. Em síntese, percebemos que, antes de um romance, a narrativa A acerca do evento da colonização, embora parta da ótica dos colonizados, recupera sombras do
última tragédia, por recuperar um mosaico histórico da vida social, lembra uma crônica sobre a pensamento dos ―residentes‖ (burocratas, funcionários públicos, religiosos cristãos e militares
colonização portuguesa em Guiné-Bissau. O livro pode ser até comparado com Memórias de um engajados na campanha colonial). Seu ponto de vista se estabelece num entre-lugar do
sargento de milícias, romance de Manuel Antonio de Almeida. Contudo, num confronto com a obra discurso, num cruzamento de culturas onde a negociação é cara e arriscada. Logo, as
do brasileiro, inexiste o caráter despojado da escrita e, também, a variedade de cenários da vida inervações do romance expressarão igualmente essa fronteira que interpreta a história da
social. A crônica de Sila é séria, comprometida com o desejo de construir uma literatura de língua colonização.
portuguesa da áfrica ocidental e de (re)desenhar o mapa histórico do período colonial na tentativa de Isso posto, quando percorremos as linhas do livro, percebemos que o narrador nos recorda de