SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  3
Télécharger pour lire hors ligne
DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA
Artur Azevedo


O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-
se na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros.


Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na
Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes - um, já
de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e
elegante.


O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador
e o segundo o amant de coeur.


O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não
enganava a ninguém; as suas visitas eram mais demoradas, duravam às
vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a
rua sem primeiro examinar se não passava alguém.


Ora, aconteceu que certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de
um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá
estava.


A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo
ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto.


- Já me conhecia? De onde? - perguntou este muito intrigado.


- Da Rua São Francisco Xavier. .


- Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa! Eu tenho família, sou
casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul.


- Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.
- Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não
sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.


- Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo;
mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal
tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos encontravam-se à porta.
Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana.


- O senhor disse "o outro". Que outro?


- O dono.


- Como o dono? O dono sou eu!


- Quero dizer: o "marchante".


- Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela
mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane?


- Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do
senhor... um sujeito barrigudo... careca...


O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde.


- Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho
aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por
aquele diabo. A ocasião e excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim
a esta reunião... minha mulher está distraída... Até logo!


O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro.


O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau
costume de intrometer-se na vida alheia.


O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.
- Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em
ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre
daquela péla!


- Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o
senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro,
com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres,
devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!

Contenu connexe

Tendances

Ainda existe um lugar ia (1)
Ainda existe um lugar ia (1)Ainda existe um lugar ia (1)
Ainda existe um lugar ia (1)Senhas Sites
 
Ainda existe um lugar 1
Ainda existe um lugar 1Ainda existe um lugar 1
Ainda existe um lugar 1Luiz Silva
 
O fato novo_do_sultao
O fato novo_do_sultaoO fato novo_do_sultao
O fato novo_do_sultaoBE/CRE
 
Victoria santa cruz
Victoria santa cruzVictoria santa cruz
Victoria santa cruzkarlla16
 

Tendances (6)

Ainda existe um lugar ia (1)
Ainda existe um lugar ia (1)Ainda existe um lugar ia (1)
Ainda existe um lugar ia (1)
 
Ainda existe um lugar 1
Ainda existe um lugar 1Ainda existe um lugar 1
Ainda existe um lugar 1
 
Conto
ContoConto
Conto
 
O fato novo_do_sultao
O fato novo_do_sultaoO fato novo_do_sultao
O fato novo_do_sultao
 
Trabalho de ayla.
Trabalho de ayla.Trabalho de ayla.
Trabalho de ayla.
 
Victoria santa cruz
Victoria santa cruzVictoria santa cruz
Victoria santa cruz
 

En vedette

Teleconferência 4 t12
Teleconferência 4 t12 Teleconferência 4 t12
Teleconferência 4 t12 Cteep
 
Apresentação 1 ano 2015
Apresentação 1 ano 2015Apresentação 1 ano 2015
Apresentação 1 ano 2015Márcia Silva
 
Presentación
PresentaciónPresentación
Presentacióntraza
 
Diapositivas vacaciones
Diapositivas vacacionesDiapositivas vacaciones
Diapositivas vacacionesdavinsonvr
 
Vida Amorosa - Ecologia
Vida Amorosa - EcologiaVida Amorosa - Ecologia
Vida Amorosa - EcologiaFura Bolha
 
Trend watching - 2012
Trend watching - 2012Trend watching - 2012
Trend watching - 2012Belle Maluf
 
Concurs de microrrelats2
Concurs de microrrelats2Concurs de microrrelats2
Concurs de microrrelats2Lourdes Sáez
 
Canales de Distribución
Canales de DistribuciónCanales de Distribución
Canales de DistribuciónESPOCH
 
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoses
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitosesUso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoses
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoseshenriquetabosa
 

En vedette (20)

Palacio de Catalina
Palacio de CatalinaPalacio de Catalina
Palacio de Catalina
 
Teleconferência 4 t12
Teleconferência 4 t12 Teleconferência 4 t12
Teleconferência 4 t12
 
Apresentação 1 ano 2015
Apresentação 1 ano 2015Apresentação 1 ano 2015
Apresentação 1 ano 2015
 
Presentación
PresentaciónPresentación
Presentación
 
Cnidários
CnidáriosCnidários
Cnidários
 
Set 12
Set 12Set 12
Set 12
 
Jul 12
Jul 12Jul 12
Jul 12
 
Diapositivas vacaciones
Diapositivas vacacionesDiapositivas vacaciones
Diapositivas vacaciones
 
Vida Amorosa - Ecologia
Vida Amorosa - EcologiaVida Amorosa - Ecologia
Vida Amorosa - Ecologia
 
Contaminación
ContaminaciónContaminación
Contaminación
 
Portfolio
PortfolioPortfolio
Portfolio
 
Juancar
JuancarJuancar
Juancar
 
Trend watching - 2012
Trend watching - 2012Trend watching - 2012
Trend watching - 2012
 
Big6
Big6Big6
Big6
 
Picasso1 (1)
Picasso1 (1)Picasso1 (1)
Picasso1 (1)
 
Ecuaciones
EcuacionesEcuaciones
Ecuaciones
 
Albaida
AlbaidaAlbaida
Albaida
 
Concurs de microrrelats2
Concurs de microrrelats2Concurs de microrrelats2
Concurs de microrrelats2
 
Canales de Distribución
Canales de DistribuciónCanales de Distribución
Canales de Distribución
 
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoses
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitosesUso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoses
Uso de plantas na etnomedicina humana e veterinária no tratamento de parasitoses
 

Similaire à Denúncia Involuntária Exposta

Similaire à Denúncia Involuntária Exposta (20)

Artur azevedo como o diabo as arma
Artur azevedo   como o diabo as armaArtur azevedo   como o diabo as arma
Artur azevedo como o diabo as arma
 
TARADOS - Livro erotico
TARADOS - Livro eroticoTARADOS - Livro erotico
TARADOS - Livro erotico
 
Phroybido
PhroybidoPhroybido
Phroybido
 
A ama seca
A ama secaA ama seca
A ama seca
 
Memorial de aires
Memorial de airesMemorial de aires
Memorial de aires
 
00419#MeuPDF Agatha Christie - A CIGANA (CONTO).pdf
00419#MeuPDF Agatha Christie - A CIGANA (CONTO).pdf00419#MeuPDF Agatha Christie - A CIGANA (CONTO).pdf
00419#MeuPDF Agatha Christie - A CIGANA (CONTO).pdf
 
A dívida
A dívidaA dívida
A dívida
 
Machado de assis memorial de aires
Machado de assis   memorial de airesMachado de assis   memorial de aires
Machado de assis memorial de aires
 
Artur azevedo a ama seca
Artur azevedo   a ama secaArtur azevedo   a ama seca
Artur azevedo a ama seca
 
112
112112
112
 
Massacre em labeta cap 1
Massacre em labeta cap 1Massacre em labeta cap 1
Massacre em labeta cap 1
 
Artur azevedo joão silva
Artur azevedo   joão silvaArtur azevedo   joão silva
Artur azevedo joão silva
 
20
2020
20
 
A Esfinge sem Segredo
A Esfinge sem SegredoA Esfinge sem Segredo
A Esfinge sem Segredo
 
A esfinge sem segredos
A esfinge sem segredosA esfinge sem segredos
A esfinge sem segredos
 
Massacre em labeta cap 1
Massacre em labeta cap 1Massacre em labeta cap 1
Massacre em labeta cap 1
 
Machado de Assis
Machado de AssisMachado de Assis
Machado de Assis
 
Coração, cabeça e estômago análise
Coração, cabeça e estômago   análiseCoração, cabeça e estômago   análise
Coração, cabeça e estômago análise
 
O DETETIVE CEGO - Livro erótico
O DETETIVE CEGO - Livro eróticoO DETETIVE CEGO - Livro erótico
O DETETIVE CEGO - Livro erótico
 
O Conto Da Baratinha
O Conto Da BaratinhaO Conto Da Baratinha
O Conto Da Baratinha
 

Plus de Tulipa Zoá

MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLES
MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLESMATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLES
MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLESTulipa Zoá
 
Artur azevedo o chapéu
Artur azevedo   o chapéuArtur azevedo   o chapéu
Artur azevedo o chapéuTulipa Zoá
 
Artur azevedo o califa da rua sabão
Artur azevedo   o califa da rua sabãoArtur azevedo   o califa da rua sabão
Artur azevedo o califa da rua sabãoTulipa Zoá
 
Artur azevedo o barão de pitiaçu
Artur azevedo   o barão de pitiaçuArtur azevedo   o barão de pitiaçu
Artur azevedo o barão de pitiaçuTulipa Zoá
 
Artur azevedo o badejo
Artur azevedo   o badejoArtur azevedo   o badejo
Artur azevedo o badejoTulipa Zoá
 
Artur azevedo o asa-negra
Artur azevedo   o asa-negraArtur azevedo   o asa-negra
Artur azevedo o asa-negraTulipa Zoá
 
Artur azevedo o 15 e o 17
Artur azevedo   o 15 e o 17Artur azevedo   o 15 e o 17
Artur azevedo o 15 e o 17Tulipa Zoá
 
Artur azevedo nova viagem a lua
Artur azevedo   nova viagem a luaArtur azevedo   nova viagem a lua
Artur azevedo nova viagem a luaTulipa Zoá
 
Artur azevedo na horta
Artur azevedo   na hortaArtur azevedo   na horta
Artur azevedo na hortaTulipa Zoá
 
Artur azevedo na exposição
Artur azevedo   na exposiçãoArtur azevedo   na exposição
Artur azevedo na exposiçãoTulipa Zoá
 
Artur azevedo morta que mata
Artur azevedo   morta que mataArtur azevedo   morta que mata
Artur azevedo morta que mataTulipa Zoá
 
Artur azevedo ingenuidade
Artur azevedo   ingenuidadeArtur azevedo   ingenuidade
Artur azevedo ingenuidadeTulipa Zoá
 
Artur azevedo in extremis
Artur azevedo   in extremisArtur azevedo   in extremis
Artur azevedo in extremisTulipa Zoá
 
Artur azevedo história vulgar
Artur azevedo   história vulgarArtur azevedo   história vulgar
Artur azevedo história vulgarTulipa Zoá
 
Artur azevedo história de um soneto
Artur azevedo   história de um sonetoArtur azevedo   história de um soneto
Artur azevedo história de um sonetoTulipa Zoá
 
Artur azevedo história de um dominó
Artur azevedo   história de um dominóArtur azevedo   história de um dominó
Artur azevedo história de um dominóTulipa Zoá
 
Artur azevedo herói a força
Artur azevedo   herói a forçaArtur azevedo   herói a força
Artur azevedo herói a forçaTulipa Zoá
 
Artur azevedo fritzmac
Artur azevedo   fritzmacArtur azevedo   fritzmac
Artur azevedo fritzmacTulipa Zoá
 
Artur azevedo fatalidade
Artur azevedo   fatalidadeArtur azevedo   fatalidade
Artur azevedo fatalidadeTulipa Zoá
 
Artur azevedo epaminondas
Artur azevedo   epaminondasArtur azevedo   epaminondas
Artur azevedo epaminondasTulipa Zoá
 

Plus de Tulipa Zoá (20)

MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLES
MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLESMATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLES
MATEMÁTICA FINANCEIRA - REGRA DE TRÊS SIMPLES / JUROS SIMPLES
 
Artur azevedo o chapéu
Artur azevedo   o chapéuArtur azevedo   o chapéu
Artur azevedo o chapéu
 
Artur azevedo o califa da rua sabão
Artur azevedo   o califa da rua sabãoArtur azevedo   o califa da rua sabão
Artur azevedo o califa da rua sabão
 
Artur azevedo o barão de pitiaçu
Artur azevedo   o barão de pitiaçuArtur azevedo   o barão de pitiaçu
Artur azevedo o barão de pitiaçu
 
Artur azevedo o badejo
Artur azevedo   o badejoArtur azevedo   o badejo
Artur azevedo o badejo
 
Artur azevedo o asa-negra
Artur azevedo   o asa-negraArtur azevedo   o asa-negra
Artur azevedo o asa-negra
 
Artur azevedo o 15 e o 17
Artur azevedo   o 15 e o 17Artur azevedo   o 15 e o 17
Artur azevedo o 15 e o 17
 
Artur azevedo nova viagem a lua
Artur azevedo   nova viagem a luaArtur azevedo   nova viagem a lua
Artur azevedo nova viagem a lua
 
Artur azevedo na horta
Artur azevedo   na hortaArtur azevedo   na horta
Artur azevedo na horta
 
Artur azevedo na exposição
Artur azevedo   na exposiçãoArtur azevedo   na exposição
Artur azevedo na exposição
 
Artur azevedo morta que mata
Artur azevedo   morta que mataArtur azevedo   morta que mata
Artur azevedo morta que mata
 
Artur azevedo ingenuidade
Artur azevedo   ingenuidadeArtur azevedo   ingenuidade
Artur azevedo ingenuidade
 
Artur azevedo in extremis
Artur azevedo   in extremisArtur azevedo   in extremis
Artur azevedo in extremis
 
Artur azevedo história vulgar
Artur azevedo   história vulgarArtur azevedo   história vulgar
Artur azevedo história vulgar
 
Artur azevedo história de um soneto
Artur azevedo   história de um sonetoArtur azevedo   história de um soneto
Artur azevedo história de um soneto
 
Artur azevedo história de um dominó
Artur azevedo   história de um dominóArtur azevedo   história de um dominó
Artur azevedo história de um dominó
 
Artur azevedo herói a força
Artur azevedo   herói a forçaArtur azevedo   herói a força
Artur azevedo herói a força
 
Artur azevedo fritzmac
Artur azevedo   fritzmacArtur azevedo   fritzmac
Artur azevedo fritzmac
 
Artur azevedo fatalidade
Artur azevedo   fatalidadeArtur azevedo   fatalidade
Artur azevedo fatalidade
 
Artur azevedo epaminondas
Artur azevedo   epaminondasArtur azevedo   epaminondas
Artur azevedo epaminondas
 

Denúncia Involuntária Exposta

  • 1. DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA Artur Azevedo O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer- se na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros. Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes - um, já de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante. O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o amant de coeur. O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava a ninguém; as suas visitas eram mais demoradas, duravam às vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua sem primeiro examinar se não passava alguém. Ora, aconteceu que certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá estava. A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto. - Já me conhecia? De onde? - perguntou este muito intrigado. - Da Rua São Francisco Xavier. . - Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa! Eu tenho família, sou casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul. - Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.
  • 2. - Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se. - Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos encontravam-se à porta. Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana. - O senhor disse "o outro". Que outro? - O dono. - Como o dono? O dono sou eu! - Quero dizer: o "marchante". - Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane? - Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor... um sujeito barrigudo... careca... O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde. - Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião e excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião... minha mulher está distraída... Até logo! O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro. O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia. O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.
  • 3. - Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela péla! - Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!