O documento discute a importância do sono e as consequências da privação crônica do sono. Especialistas alertam que dormir menos de sete horas por noite aumenta riscos à saúde e bem-estar. A cultura portuguesa tende a desvalorizar o sono, com jornadas de trabalho longas e início tardio das aulas e atividades.
1. A48
Tiragem: 35048
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Pág: 20
Cores: Cor
Área: 25,70 x 28,69 cm²
Corte: 1 de 3ID: 67849136 20-01-2017
Em2007,AriannaHuffington,co-fun-
dadoradositedenotíciasTheHuffing-
tonPost, teve um colapso por falta de
sono. O seu dia-a-dia, na altura, era
passado como se o dia tivesse mais
de 24 horas. “O trabalho era muito
mais importante do que dormir”,
escreve no seu livro A Revolução do
Sono, que acaba de ser publicado
em português pela Matéria-Prima.
“É evidente que sou indispensável,
portanto tenho de trabalhar a noite
toda (...). Esta forma de trabalhar e
de viver parecia servir-me bem, até
deixar de o fazer”, conta.
O “momento eureka” que se seguiu
depois serviu-lhe para escrever dois
livros. Fundou uma plataforma so-
bre bem-estar, a Thrive Global, e hoje
luta por um mundo que passe mais
tempo a dormir. É um combate que
existe, porque, diz, a nossa relação
com o sono “está em crise”.
Com a apologia de uma revolução,
como o título indica, o livro aborda
como as contradições do nosso tem-
po se relacionam com a falta de sono:
hoje temos mais informação do que
nunca sobre o sono, devido às evo-
luções tecnológicas, mas são os apa-
relhos que prolongam o nosso dia de
trabalho e não nos deixam desligar...
nem dormir; a indústria do bem-es-
tar prolifera, mas passamos noites
em que dormimos quase nada.
“Evangelista do sono”, como se
chama a si própria, Arianna Hu-
ffington, 66 anos, tira o pulso às
consequências da falta de descanso
do cérebro e explica, citando várias
pesquisas, por que razão é um erro
vivermos “na ilusão de que consegui-
mos fazer o nosso trabalho tão bem
com quatro ou cinco horas de sono
como com sete ou oito”. A privação
de sono torna-nos mais vulneráveis
a doenças e, acrescenta, a incidência
de morte por qualquer causa sobe
em 15%, quando dormimos cinco ou
menos horas por noite.
Casos de privação do sono chegam cada vez mais aos
consultórios. O tema é desvalorizado, dizem os especialistas.
Há quem proponha que o trabalho e as aulas tenham início
mais tarde. Um livro que acaba de ser publicado em Portugal
apela à “revolução” e sugere salas de sesta nos empregos
Saúde
JoanaGorjãoHenriques
Por isso, quando os funcionários
de uma empresa estão cansados,
“seria melhor para o negócio” eles
chegarem mais tarde para ficarem
a dormir, em vez de faltarem por ra-
zões de saúde uns dias depois. Ou
então, prossegue ainda, devia ha-
ver um local no emprego onde pu-
dessem fazer sestas — um “remédio
de 30 minutos” que pode inverter
“o impacto hormonal de uma noite
mal dormida”. Os escritórios do The
Huffington Post têm salas de sesta.
Arianna Huffington defende tam-
bém que as empresas deveriam in-
troduzir mais flexibilidade e controlo
dos horários de trabalho, de modo
a que os seus funcionários tivessem
mais tempo para dormir. E que de-
viam estar mais disponíveis para
que quem quer trabalhar em casa
o possa fazer, ganhando tempo nas
deslocações.
A regra “três vezes 8h”
A questão é que quando se olha para
os exemplos vindos dos lugares de
topo não falta quem se vanglorie do
pouco que dorme e do muito que tra-
balha, comenta a autora sobre a re-
alidade americana. Em Portugal são
famosas as quatro horas de sono do
Presidente da República, Marcelo Re-
belo de Sousa. Os especialistas usam
um termo para quem dorme pouco,
como o Presidente: “short sleeper”.
Cerca de 20% dos portugueses têm
dificuldade em adormecer, diz um
estudo da Associação Portuguesa do
Sono (APS). Mais de 60% têm proble-
mas de sono, mostra um inquérito
de 2016 da Deco, feito a mais de 1100
pessoas — e uma em cada quatro ti-
nha tomado fármacos para a ajudar
a adormecer. Joaquim Moita, pneu-
mologista e presidente da APS, diz
que os portugueses dormem mal por
uma questão cultural. “O sono tende
a ser desvalorizado socialmente. Há
pessoas que voluntariamente dor-
mem pouco, acham um desperdício
de tempo dormir.” Misturamos dois
hábitos terríveis: começar o traba-
lho — e as aulas, nas escolas — muito
cedo com a prática de atrasar o fim
do dia laboral, o jantar e a ida para a
cama. E até o início das actividades
recreativas, como beber um copo,
são arrastadas para de madruga-
da. Tudo isto “resulta num número
de horas de sono reduzido”. O que
acontece tanto com adultos, como
com crianças — muitas começam a
acordar às seis da manhã e depois
nem sesta fazem na escola. Esta de-
via ser obrigatória até aos 6 anos,
defende o especialista.
Teresa Paiva, precursora na área e
fundadora de um centro do sono on-
de trabalham entre 20 a 30 pessoas,
anda a alertar há mais de dez anos
para a má relação dos portugueses
com o sono. A neurologista, que já
tratou de mais de cinco mil casos no
consultório, e de outros 10 mil
em hospitais, fala da “mania”
portuguesa de “que trabalhar
muito é bom e produtivo”.
Lembra as estatísticas da Or-
ganização para a Cooperação
e Desenvolvimento Económico,
que atestam que Portugal é um dos
países com mais horas de traba-
lho, sem que isso se traduza em
produtividade (aparece em 9.º
lugar, em 1.º está o México e em
último a Alemanha). “Nos paí-
ses do Norte as pessoas saem do
trabalho às 17h, aqui é pecado sair
antes das 20h.”
No consultório, quando lhe dizem
“não tenho horário”, já sabe o que
isso significa: trabalho a mais. As 40
horas semanais implicam que, por
dia, se trabalhe oito horas, se durma
oito horas e se passe as outras oito
horas em lazer. “Quando as pessoas
mudam o paradigma do ‘oito vezes
três’ estão, forçosamente, a reduzir
o tempo de sono e de descanso”,
afirma. “Os portugueses tendem a
trabalhar de forma desorganizada,
com interrupções. A ideia de fazer
multitasking é disparatada: a ener-
gia que o cérebro dispende é muito
maior do que se fizer uma tarefa de-
pois da outra.”
Um estudo que Teresa Paiva fez
com outra espe-
cialista em sono, Marta
Gonçalves, indica que, em mé-
dia, os portugueses dormem sete
horas por dia, mas que esta média
varia entre duas e 11 horas, ou seja,
há muita gente a dormir menos de
cinco. Isto significa um aumento de
riscos: do colesterol, de diabetes, de
doenças auto-imunes, de acidente,
de cancro, de depressão, de insónia
(e de um dia de baixa em breve).
Bancários, funcionários de multi-
nacionais e de grandes empresas de
advogados, jornalistas, profissionais
dos media são das profissões em que
há mais privação de sono, diz.
Dormir menos de cinco horas é
claramente insuficiente, defende
também Joaquim Moita. Aliás, todos
os especialistas contactados dizem
que menos do que sete em adultos
não é recomendável. Os efeitos da
sonolência podem manifestar-se de
múltiplas formas, acrescenta: défice
de memória, dificuldade de raciocí-
nio, ataques de sono (que acontece
muito nos condutores).
Autora de um estudo sobre os
efeitos da privação do sono nos
médicos, Inês
Sanches defende
que a privação cró-
nica do sono deveria
ser encarada como
uma doença — justa-
mente por causa dos
efeitos, como a an-
siedade e depressão.
Com os seus doentes
fala normalmente da
necessidade de dor-
mir, tenta conven-
cê-los a cumprir
nio, ataques de sono (que ac
muito nos condutores).
Autora de um estudo so
efeitos da privação do so
médicos
Sanches d
que a privaç
nica do sono d
ser encarada
uma doença
mente por ca
efeitos, com
siedade e dep
Com os seus d
fala normalm
necessidade
mir, tenta c
cê-los a cu
Muitotrabalhoepoucosono,
amisturaexplosiva
Página 48
2. Tiragem: 35048
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Pág: 21
Cores: Cor
Área: 25,70 x 31,00 cm²
Corte: 2 de 3ID: 67849136 20-01-2017
as horas de sono mínimas. “Ao não
dormir parece que vou estar a pou-
par tempo para trabalhar, mas no
fundo vou ser menos rentável.”
Quanto ao número de horas de
repouso que recomenda, varia. Há
quem precise de oito, há quem preci-
se de um pouco mais ou menos. São
as pessoas que têm de ter a noção do
seu perfil. “Quem dorme mais ao fim-
de-semana é porque anda a dormir
menos do que o necessário durante
a semana.” É um bom teste.
Especialista em cronobiologia,
ciência que estuda os ritmos circa-
diários, Cátia Reis diz que os efeitos
de dormir menos de cinco horas por
noite são vários, porque “há hormo-
nas que só são produzidas durante
a noite: a testosterona, a leptina, a
hormona da saciedade (e por isso é
que existem tantos casos de obesi-
dade)”, por exemplo. É possível ter
uma vida normal dormindo quatro
horas? “Não”, garante. “Existem mui-
to poucas pessoas” que ficam bem
dormindo quatro horas. “No geral,
menos do que cinco ou mais do que
dez, é patológico.”
Casos de quem dorme pouco são
cada vez mais comuns nos consul-
tórios. “As pessoas acabam por ter
imensas actividades e não desligam.
Algumas vão para o ginásio à noite o
que é um problema: é suposto a tem-
peratura corporal descer à noite.”
jgh@publico.pt
Por que é que precisamos, afinal,
de dedicar uma parte tão grande da
nossa vida a dormir? Diogo Pimentel
integra uma equipa de investigado-
res da Universidade de Oxford, em
Inglaterra, que fez um estudo sobre
o sono, e responde ao PÚBLICO: con-
tinua a ser “um mistério”. Já os efei-
tos negativos da falta de sono estão
“bem documentados”.
Explica: a dopamina consegue
interromper o sono. Certas drogas
psicoestimulantes (cocaína ou an-
fetaminas) aumentam os níveis de
dopamina no cérebro, diminuindo
a necessidade de dormir. “Parece-
me que o stress, as preocupações,
instabilidades, o excesso de trabalho
e os prazos apertados que, muitas ve-
zes, temos de cumprir podem fazer
algo semelhante através do aumento
de hormonas ou activando sistemas
(dopamina e não só) que tenham um
efeito supressor do sono.”
Cátia Reis, especialista em cro-
nobiologia, trabalha com doentes
com “atraso de fase”, os chamados
“mochos”, e que muitas vezes têm
privação de sono crónica por cau-
sa dos seus compromissos sociais.
Dormir para quê? Os casos de António e Maria
ções”. Como é que esta privação do
sono a afecta? “Sou das pessoas mais
maldispostas de manhã”, conta. “Só
me apetece deitar o despertador pela
janela.” Tem noção das implicações
do cansaço no seu dia-a-dia. Entu-
siasma-se, quer fazer muita coisa ao
mesmo tempo. Mas sente que está
“a chegar ao limite”: “Sempre dormi
bem e tive a capacidade de desligar.
Agora não. E tenho mais dores de
cabeça, mais dores de estômago, dei-
xei de comer algumas coisas, porque
não me caíam bem.” Por isso, está
a pensar em diminuir o volume de
trabalho no seu emprego oficial.
Como se altera esta cultura? Com
medidas concretas, respondem os
especialistas. Em França instaurou-
se recentemente uma norma de “di-
reito a desligar” — consagrou-se o
direito do trabalhador não respon-
der a emails ou telefonemas depois
do horário de expediente (o assunto
está em discussão em Portugal).
“Seria um bom começo”, diz a
neurologista Teresa Paiva. Mudar
o início de horários escolares e de
horários de começo de trabalho se-
ria outra boa ideia. Joaquim Moita,
presidente da Associação Portugue-
sa do Sono, sugere as 9h30 para o
ensino básico e as 9h para as uni-
versidades.
Teresa Paiva defende que deveria
haver uma discussão pública sobre
as políticas do trabalho, do descanso
e do sono. “Se não se fizer nada, ca-
minhamos para uma sociedade com
mais risco de obesidade, depressão,
doenças auto-imunes, cancro.”
A questão é convencer uma so-
ciedade inteira de que o sono é tão
importante quanto o resto. Vamos,
pelo menos, dormir sobre o assun-
to? J.G.H.
É o caso de António (nome fictício),
que precisa de dormir dez horas por
dia. “As pessoas não levam a sério a
questão do sono”, queixa-se. Há 15
anos, sentiu problemas e pediu aju-
da. Primeiro tentou o apoio do Ser-
viço Nacional de Saúde, mas quan-
do percebeu que tinha de esperar
três anos para uma consulta foi ao
privado. Decidiu também “respei-
tar” o seu corpo, ir viver para fora
de Lisboa e ter uma vida saudável.
Professor universitário, conseguiu
passar a dar aulas apenas no período
da tarde, depois de “negociações”
com a direcção.
Já Maria Almeida, 27 anos, traba-
lha na área de marketing da Beta-i,
uma organização que apoia start-
ups. Normalmente, chega por volta
das 9h e sai pelas 20h, altura em que
quase começa um “outro dia de tra-
balho” com os seus três part-time: o
cão, o site Startupship e o podcast
É Apenas Fumaça. Dorme mais ou
menos cinco horas por noite, por-
que se desdobra nestas “mil coisas”.
O ritmo intensificou-se nos últimos
seis meses, ao fim-de-semana tenta
recuperar, “mas há sempre interrup-
Sempre dormi bem
e tive a capacidade
de desligar.
Agora não
MariaAlmeida
Profissional de marketing
ILUSTRAÇÃO: MARIANA SOARES
Página 49