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N.º 6 NOVEMBRO 2012				   FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO
Contar
 pelos d
 encont
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   2
os dias
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     3
leitu ras do mês
A grande fusão editorial                                 O boom latino-americano
no Brasil                                                meio século depois
    Durante alguns dias, a imprensa especializada           O livro que permitiu discursos, ensaios, de-
e os sites e blogs dedicados à edição e ao mercado       bates e polémicas sobre o boom literário latino-
livreiro não falaram de outra coisa: empresa edi-        -americano não foi um romance, uma novela, um
torial alemã Bertelsmann, proprietária da Ran-           poemário. Foi um livro de entrevistas feitas por
dom House, e a editora britânica Pearson, que            Luis Harss, um académico da área da literatura,
detém a mítica Penguin, passaram a ser uma só            e publicado em 1966, que inaugurou o boom que
entidade. Aparentemente, a notícia não seria re-         deu ao futuro as premissas de um cânone que
levante para a edição em língua portuguesa, mas          continua sólido e coerente e que garantiu matéria
com a globalização do mercado do livro e com as          para reflexão sobre um momento e uma geografia
relações entre grandes empresas multinacionais e         que se tornaram um marco na literatura do século
pequenas editoras locais cada vez mais estreitas,        XX. No El País, Amelia Castilla assina um texto
a criação da Penguin Random House é uma novi-            sobre esse livro de Luis Harss, Los Nuestros, reedi-
dade que pode alterar tudo. No blog A Biblioteca         tado pela Alfaguara quase cinquenta anos depois
de Raquel, associado ao jornal Folha de S. Paulo,        da sua primeira publicação, e conta com declara-
a jornalista Raquel Cozer regista algumas notas          ções do autor sobre o seu trabalho, uma espécie de
sobre esta fusão, procurando analisar os cenários        balanço sobre o impacto que o livro teve no pano-
possíveis para a edição brasileira na sequência do       rama literário e universitário da época e sobre a
surgimento do novo grupo editorial: “A Penguin já        herança que permanece desse cânone que reunia
marca presença aqui desde a aquisição de 45% da          Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Juan Rulfo,
Companhia das Letras, no ano passado. Tempos             Miguel Ángel Asturias, Juan Carlos Onetti, Júlio
atrás, o grupo Bertelsmann inaugurou um escri-           Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa,
tório em São Paulo, e representantes da Random           Gabriel García Márquez e João Guimarães Rosa.
House andaram conversando com editores brasi-
leiros para avaliar opções de compra. Não saberia        http://cultura.elpais.com/cultu-
dizer se a fusão com a Penguin interromperia es-         ra/2012/10/31/actualidad/1351696675_845653.
sas conversas, considerando que a nova empresa           html
já detém parte de uma editora no Brasil, ou se ou-
tras negociações continuam. Editores brasileiros
com quem conversei creem que, após a situação
se regularizar, a Penguin Random continuará
com outras conversas.”

http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.
com.br/2012/10/29/random-penguin-
companhia/




                                                     4
Manuel Rivas
As Voces Baixas
Edicións Xerais
    Autor prolífico e com registos que andam
pelos territórios da literatura e do jornalismo,
Manuel Rivas tem construído o seu trabalho fic-
cional numa sólida ligação com a geografia ga-
lega, fazendo do mapa um território emocional
a que não são alheias as memórias, o patrimó-
nio ou os lugares de encontro. As Voces Baixas,
romance publicado recentemente na Galiza,
confirma essa ligação umbilical entre geografia
e narrativa, um diálogo contínuo que suspende
fronteiras entre factos e ficção para melhor al-
cançar o espaço de uma certa herança comum.
De certo modo, era o que acontecia já nos con-
tos que compunham o livro Un Millón de Vacas,
mas agora essa herança é abordada de um modo
mais consistente.
    Fragmentário e estruturado como se de uma
compilação de pequenas crónicas se tratasse, o
texto ganha unidade à medida que se avança na
leitura, percebendo-se os episódios da infância        da morte, pequenas paragens que são a matéria
do narrador como um mosaico de lembranças              de uma vida e que são igualmente a única he-
dispersas que, unidas pele exercício da memó-          rança possível, a hipótese, mesmo que remota,
ria enquanto modo de dar sentido ao presente,          de aquilo que fica não ser apenas um nome nos
dão à narrativa o fôlego romanesco anuncia-            documentos
do. Das pequenas descobertas dentro de casa
aos primeiros tesouros conquistados à terra
dura do monte do Faro, na Coruña, ao lado dos
companheiros de aventura, a voz que narra As
Voces Baixas percorre os locais da sua infân-
cia enquanto com eles constrói um mapa, não
um mapa saudosista e voltado para uma ideia
paradisíaca de meninez, mas uma topografia
identitária onde os elementos, os lugares e as
aprendizagens quotidianas são linhas que mar-
cam um caminho. Esse caminho andará pelos
lugares da coragem e do medo, da respiração e

                                                   5
6
7
SARAMAGO 90 ANOS


                O das barbas é Deus,
                  o outro é o Diabo
                                          Harold Bloom
                                  Tradução de Myriam Zaluar




J
                           Ilustrações de André Car r ilho e Cr istina Sampaio



                       osé Saramago publi-                de reconciliação de Pastor e que não manifesta
                       cou O Evangelho Segun-             amor nem compaixão por Jesus ou por qualquer
                       do Jesus Cristo em 1991, ao        outro ser humano.
                       aproximar-se do seu septua-            Isto deve fazer o livro parecer sublimemente
                       gésimo aniversário. Como           ultrajante, mas não é o caso, e penso que só um
                       admirador crítico e feroz de       sectário ou um tonto julgariam blasfemo o Evan-
                       Saramago, tenho alguma             gelho de Saramago. O Deus de Saramago tan-
                       relutância em escolher este        to pode ser astuto como doce e é dotado de um
                       em detrimento dos seus ou-         sentido de humor selvagem. Ninguém vai amar
                       tros romances, mas trata-se        este deus, mas ele também não pede nem espera
                       de um trabalho espantoso,          amor. Adoração e obediência são os seus requi-
                       imaginativamente superior          sitos e a violência sagrada é o seu recurso infini-
                       a qualquer outra versão da         to. Baruch Spinoza insistia que devíamos amar
                       vida de Jesus, incluindo os        Deus sem nunca esperar que Deus nos amasse
quatro evangelhos canónicos.                              de volta. Ninguém poderia amar o Deus de Sa-
    Alguns dos laivos de ironia perdem-se na ex-          ramago, a não ser que o amante estivesse tão
celente tradução de Giovanni Pontiero mas mais            profundamente envolvido em sado-masoquismo
do que os suficientes sobrevivem ainda para sa-           que se visse sem defesa perante a sua conduta.
tisfazer o leitor consciente.                                 Deus diz-nos no Evangelho que está insatisfei-
    A audácia de Saramago é triunfante no seu             to com a pouca consistência que lhe é dada pelo
Evangelho (diminutivo do título que usarei daqui          seu povo eleito, os Judeus:
para a frente). Deus, no Evangelho de Saramago,
tem algumas afinidades com o Yahweh de J Wri-             Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo
ters e também com o Nobodaddy de Blake, mas               deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa
é importante notar que Saramago resiste a dar-            e complicada, mas com quem, feito um balanço
-nos o Ialdaboth gnóstico. No seu Post-Scriptum           das nossas relações, não me tenho dado mal, uma
Final Não-Científico, Kierkegaard observa ironi-          vez que me tomam a sério e assim se irão manter
camente que “dar ao pensamento supremacia so-             até tão longe quanto a minha visão do futuro pode
bre tudo o resto é gnosticismo”. Contudo o Deus           alcançar, Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus,
de Saramago escandaliza-nos de formas que                 Estou e não estou, ou melhor, estaria não fosse
transcendem o intelecto, já que um Deus que é si-         este inquieto coração meu que todos os dias me diz
multaneamente verdade e tempo é a pior notícia            Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de
possível. O diabo de Saramago, deliciosamente             quatro mil anos de trabalho e preocupações, que
chamado Pastor, é a suavidade em pessoa com-              os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e
parado com o seu Deus, que recusa a tentativa             variados que sejam, jamais pagarão, continuas a
                                                      8
9
SARAMAGO 90 ANOS




ser o deus de um povo pequeníssimo                          depois para dentro de um forno e finalmente de-
que vive numa parte diminuta do mundo que                   capitado. O gusto do Deus de Saramago recorda o
criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu,              de Edward Gibbon no Capítulo XVI da História
meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta,         do Declínio e Queda do Império Romano, excetuan-
por assim dizer, vexatória evidência todos os               do que Gibbon, mantendo o decoro, evita deta-
dias diante dos olhos, Não criei nenhum mundo,              lhar as numerosas variedades de martírio pela
não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes           tortura. Mas Gibbon antecipa de novo Saramago
avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, A                 observando que os Cristãos “infligiram cruelda-
alargar a minha influência, a ser deus de muito             des bem maiores uns aos outros do que as que
mais gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu             tinham experimentado do zelo dos infiéis”. O
papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano,        Deus de Saramago, com a sua voz algo cansa-
estou certíssimo de que em pouco mais de meia               da, fala da Inquisição como um mal necessário,
dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu,           e defende a queima de milhares porque a causa
com muitas contrariedades, passarei de deus dos             de Jesus assim o exige. Uma olhadela à sobrecapa
hebreus a deus dos que chamaremos católicos,                da edição americana do Evangelho de Saramago
à grega, E qual foi o papel que me destinaste               assegura-nos que desafiar a autoridade de Deus
no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima,          o Pai “continua a não ser a sua renegação”.
que é o que de melhor há para fazer espalhar uma                Embora seja necessariamente um persona-
crença e afervorar uma fé. As duas palavras,                gem secundário quando comparado com o Jesus
mártir, vítima, saíram da boca de Deus como se              de Saramago, Deus pede para ser escrutinado
a língua que dentro tinha fosse de leite e mel, mas         para além dos seus aspetos ameaçadoramente
um súbito gelo arrepiou os membros de Jesus, tal            cómicos. Em primeiro lugar, o Deus do Evange-
qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele,            lho é tempo, e não verdade, o outro atributo que
ao mesmo tempo que o Diabo o olhava com uma                 afirma. Saramago, um marxista (excêntrico) e
expressão enigmática, misto de interesse científico         não um cristão, subverte Santo Agostinho na
e involuntária piedade.                                     teodiceia do tempo. Se o tempo é Deus, então a
                                                            Deus nada pode ser perdoado, e, seja como for,
    Deus está impaciente e não quer ser desmo-              quem haveria de querer perdoar-lhe? Mas então,
ralizado; estes são os seus motivos para vitimar            o Deus do Evangelho não está minimamente in-
Jesus, e, consequentemente, para torturar até à             teressado em perdão: ele não perdoa ninguém,
morte os milhões que morrerão como sacrifícios              nem mesmo Jesus, e recusa perdoar Pastor,
por Jesus, quer afirmem ou reneguem este últi-              quando o diabo faz uma proposta honesta de
mo. Este Deus é o maior dos comediantes, como               obediência. O poder é o único interesse de Deus,
ficamos a saber a partir do seu canto dos márti-            e o sacrifício de Jesus usa a perspetiva do perdão
res: uma “ladainha, por ordem alfabética para               dos nossos pecados apenas como aviso. Deus dei-
evitar melindres de precedências”. A ladainha é             xa claro que somos todos culpados e que prefere
absolutamente maravilhosa, desde Adalberto de               manter as coisas assim. Jesus não é expiação: a
Praga, executado com um espontão de sete pon-               sua crucificação é apenas um mecanismo através
tas, a Wilgeforte, ou Liberata, ou Eutrópia, vir-           do qual Deus deixa de ser judeu e passa a ser ca-
gem, barbuda, crucificada”. Ao longo de quatro              tólico, um convertido em vez de um marrano.
páginas de comprimento, o catálogo da violência                 Isto é de uma ironia soberba, e Saramago faz
sagrada tem delícias como Blandina de Lião, per-            dela uma forma de arte superior, embora reduzi-
furada por um touro bravo, e o desafortunado                -la criticamente a tal seja um convite a um ataque
Januário de Nápoles, primeiro atirado às feras,             católico. De todas as representações fictícias de
                                                       10
SARAMAGO 90 ANOS




Deus desde a dos jeovistas, voto pela de Sarama-          do Livro de Jó, que anda de um lado para o ou-
go. Ela é ao mesmo tempo a mais engraçada e a             tro, e para cima e para baixo na Terra. E contu-
mais empolgante, no género dos heróis-vilões de           do o Satanás de Jó era um acusador; Pastor não.
Shakespeare: Ricardo III, Iago, Edmundo no Rei            Por que permanece Jesus quatro dias com Pas-
Lear.                                                     tor, como aprendiz? O anjo, que chega atrasado
                                                          para dizer a Maria que Jesus é filho de Deus diz-
   Pastor, ou o diabo, tem o seu próprio charme,          -nos que “o Diabo é o espírito que se nega”, o que
ao encarnar uma representação muito original              é extravagantemente ambíguo, e poderia querer
de Satanás. Um homem gigante, com uma ca-                 dizer que o Pastor resiste a desempenhar o papel
beça enorme, Pastor permite a Jesus tornar-se o           que Deus lhe atribuiu. O anjo de Maria, depois
seu assistente pastor para um grande rebanho              de nos dizer que o Pastor foi seu colega de escola,
de ovelhas e cabras. Em resposta à piedosa ex-            diz que Pastor prospera porque “Assim o exige
clamação de Jesus – “Só o Senhor é Deus – o não           a boa ordem do Mundo”. Há então uma relação
judeu Pastor responde com grande pungência:               secreta entre Pastor e Deus, que alarma os discí-
                                                          pulos de Jesus. Quando Deus, vestido como um
Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor,          judeu rico, aparece a Jesus no barco, Saramago
mas era melhor que fossem dois, assim haveria um          imagina uma magnífica reentrada para Pastor:
deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para
o que morre e outro para o que mata, um deus para         A barca oscilou com o impulso, a cabeça ascendeu
o condenado, um deus para o carrasco                      da água, o tronco veio atrás escorrendo qual
                                                          catarata, as pernas depois, era o leviatã surgindo
    Este sensato dualismo não é exatamente satâ-          das últimas profundidades, era, como se viu,
nico, e Pastor mantém-se mais amável que Deus             passados todos estes anos, o pastor, que dizia Cá
ao longo do romance. Nos diálogos entre o diabo           estou eu também, enquanto se ia instalando na
e o jovem Jesus, o papel do diabo prevalece cla-          borda do barco, exatamente a meia distância entre
ramente, embora honradamente, à diferença do              Jesus e Deus, porém, caso singular, a embarcação
domínio de Deus sobre Jesus da primeira vez que           desta vez não se inclinou para o seu lado, como
pai e filho se encontram no deserto. Deus exige           se Pastor tivesse decidido aliviar-se do seu
como sacrifício uma ovelha querida para Jesus             próprio peso ou levitasse parecendo estar sentado.
e este acede relutantemente. Pastor, ao saber do          Cá estou, repetiu, espero ter chegado ainda a
facto, abandona Jesus: “Não aprendeste nada,              tempo de assistir à conversa, Já íamos bastante
vai”. E Pastor, até aqui, está certo: a aprendiza-        avançados nela, mas não tínhamos entrado no
gem de Jesus sobre a natureza de Deus só será             essencial, disse Deus, e, dirigindo-se a Jesus,
completada na cruz.                                       Este é o Diabo, de quem falávamos há pouco.
    Que devemos então fazer de Pastor? O diabo            Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que,
de Saramago é humano, no entanto é apenas um              tirando as barbas de Deus, eram como gémeos,
cético: ele sabe demasiado sobre Deus. Se o Deus          é certo que o Diabo parecia mais novo, menos
de Saramago é um convertido português, então o            enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um
diabo de Saramago nunca foi judeu, e, parece es-          engano por ele induzido. Disse Jesus, Sei quem
tranhamente desconexo tanto com Deus quanto               é, vivi quatro anos na sua companhia, quando
com Jesus Cristo. Por que está Pastor no livro?           se chamava Pastor, e Deus respondeu, Tinhas
Evidentemente, apenas como testemunha, é o                de viver com alguém, comigo não era possível,
que penso que se deve concluir. Saramago parece           com a tua família não querias, só restava o
querer levar-nos de volta ao Satanás não-caído            Diabo, Foi ele que me foi buscar, ou tu que me
                                                     11
SARAMAGO 90 ANOS




enviaste a ele, Em rigor, nem uma coisa nem                dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são,
outra, digamos que estivemos de acordo em que              verdades de mim, porém nunca sei até que ponto
essa era a melhor solução para o teu caso, Por             são as verdades dos outros mentiras deles.
isso ele sabia o que dizia quando, pela boca do
possesso gadareno, me chamou teu filho, Tal                   Saramago chama secamente a isto uma “ti-
qual, Quer dizer, fui enganado por ambos, Como             rada labiríntica”, mas ele quer dizer que ela acu-
sempre sucede aos homens, Tinhas dito que não              sa claramente Deus, cujas verdades são efeti-
sou um homem, E confirmo-o, poderemos é dizer              vamente as suas mentiras. A causa do Deus da
que, qual é a palavra técnica, podemos dizer que           Igreja Católica que será fundada sobre Jesus só
encarnaste, E agora, que quereis de mim, Quem              é verdadeira na medida em que é historicamente
quer sou eu, não ele, Estais aqui os dois, bem vi          horrível, e o entusiasmo que Deus manifesta ao
que o aparecimento dele não foi surpresa para ti,          enumerar os mártires e ao resumir a Inquisição
portanto esperava-lo, Não precisamente, embora,            tem inconfundíveis laivos de sadismo. De uma
por princípio, se deva contar sempre com o Diabo,          forma alarmante, Deus (um bom agostinhano,
Mas se a questão que temos que tratar, tu e eu,            antes de Agostinho) desaprova todas as alegrias
apenas nos diz respeito a nós, por que veio ele cá,        humanas como sendo falsas, uma vez que todas
por que não o mandas embora, Pode‑se despedir              elas emanam do pecado original:
a arraia-miúda que o Diabo tem ao seu serviço,             “a luxúria e o medo, são as armas com que o
no caso de ela começar a tornar-se inconveniente           Demónio atormenta as pobres vidas dos homens”
por atos ou palavras, mas o Diabo, propriamente
dito, não, Portanto, veio porque esta conversa é              Quando Jesus pergunta a Pastor se isto é ver-
também com ele, Meu filho, não esqueças o que te           dade, a resposta do diabo é eloquentemente es-
vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessa         clarecedora:
ao Diabo
                                                           Mais ou menos, respondeu ele, limitei-me a tomar
    Como Deus e o Diabo são gémeos (já o tínha-            para mim aquilo que Deus não quis, a carne, com a
mos suspeitado), é uma delícia dizerem-nos que             sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice,
não podemos viver com Deus, e que portanto te-             a frescura e a podridão, mas não é verdade que o
mos de escolher entre a nossa família e o diabo.           medo seja uma arma minha, não me lembro de ter
Deus fala do seu desejo de ser Deus dos Católi-            sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e o
cos, mas esta sua ambição já se vislumbrou, e o            medo que neles há sempre
que quero aqui perguntar é: por que está Pastor
no barco? A sua expressão é um misto de “de in-               Tendemos a acreditar nisto quando Deus
teresse científico e involuntária piedade”, mas            exclama em resposta: “Cala-te, …, o pecado e o
ele está ali porque, como Jesus argutamente su-            Diabo são os dois nomes duma mesma coisa”. É
põe, ampliar o domínio de Deus é também am-                preciso Deus dizer isto? O Cardeal-arcebispo de
pliar o do diabo. E no entanto o pobre Pastor tem          Lisboa não diria o mesmo? A resposta de Sara-
as suas perplexidades:                                     mago é misteriosa. Deus descreve as Cruzadas
                                                           por travar contra o não-nomeado Alá, que Pastor
Fico, disse Pastor, era a sua primeira palavra             repudia criar:
desde que se tinha anunciado, Fico, repetiu, e
depois, Posso, eu próprio, ver algumas coisas do           Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o
futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir          Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus,
se é verdade ou mentira o que julgo ver, quer              se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro
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desceu uma voz que disse, Talvez
este Deus e o que há de vir não sejam
mais do que heterónimos, De quem,
de quê, perguntou, curiosa,
outra voz, De Pessoa, foi o que
se percebeu, mas também podia
ter sido, Da Pessoa. Jesus, Deus e
o Diabo começaram por fazer de conta
que não tinham ouvido, mas logo a seguir
entreolharam-se com susto, o medo comum é
assim, une facilmente as diferenças.

   Só aqui, no Evangelho de Saramago, ouvi-
mos uma voz para além da de Deus. De quem é?
Quem poderia proclamar o que Deus não deseja
dizer, isto é que ele e Alá são um só? Como um
Deus tão manhoso e pouco amável como o de Sa-
ramago, tanto nós quanto Saramago ansiamos
por um Deus para além de Deus, talvez o Alien
ou o Deus Estranho dos Gnósticos. Mas, quem
quer que seja este Deus, ele não voltará a falar
neste romance. Muito habilmente, Saramago
acabou de nos dizer explicitamente aquilo que
vinha dizendo implicitamente ao longo da obra:
Deus e Jesus pragmaticamente são inimigos, ain-
da que Pastor seja involuntariamente inimigo de
ambos. Porém, em que consiste tal inimizade?
Em reação à descrição que Deus faz da Inquisi-
ção, Pastor comenta:

É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue

   O grande momento de Pastor – e é uma de
entre a mão-cheia de passagens-chave no livro
– chega com a sua vã tentativa de reconciliação
com Deus:

Pastor fez um silêncio, como se procurasse as
melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande
atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora
já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e
umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões
fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente
morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me,

                                                        13
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                                                              A glória do
uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma
coisa aproveita da morte, e mesmo mais do que
tu, pois não precisa de demonstração que o inferno
sempre será mais povoado do que o céu, Então de que
te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas
                                                              Evangelho de
depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu
sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo
                                                              Saramago é o Jesus
também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele,
Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito
                                                              de Saramago, que
e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos
da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois
                                                              me parece humana
que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu
que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar no            e esteticamente
mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me
no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no          mais admirável do
futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a
minha obediência, como nos tempos felizes em que fui          que qualquer outra
                                                              versão de Jesus na
um dos teus anjos prediletos, Lúcifer me chamavas, o
que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual
a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra
a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-
te e perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se
                                                              literatura do século
usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que
no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à
                                                              que ora acaba.
direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não
precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta               Não é suficiente louvar a originalidade de Sa-
terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido              ramago em pintar o seu diabo de forma totalmente
e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo,            não-diabólica. Temos de ir mais longe. O enigmá-
por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na           tico Pastor é o único diabo que poderia ser esté-
última e humilde fila dos anjos que te permaneceram           tica e intelectualmente apropriado na conclusão
fiéis, mais fiel então do que todos, porque                   do Segundo Milénio. Excetuando o facto de não
arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo               poder ser crucificado, este anjo caído tem de lon-
terminará como se não tivesse sido, tudo começará a           ge mais em comum com o Jesus de Saramago do
ser como se dessa maneira devesse ser sempre                  que com o Deus de Saramago. São ambos vítimas
                                                              de Deus, sofrendo da tirania do tempo, que Deus
    A ironia do humano Pastor e do desumano                   chama verdade. Pastor é resignado, e menos re-
Deus não poderia ser mais bem justaposta. Deus                belde que Jesus, mas é porque Pastor sabe tudo o
deixa claro que preferiria um diabo ainda pior,               que há para saber. Como leitores, permanecemos
se tal fosse possível, e que sem o diabo, Deus não            mais próximos do estranho diabo de Saramago do
pode ser Deus. Pastor, que foi persuasivamente                que ao seu malévolo e irónico Deus.
sincero, encolhe os ombros e vai-se embora, após
recuperar de Jesus a velha tigela negra de Nazaré                A glória do Evangelho de Saramago é o Jesus
para dentro da qual o sangue de Jesus escorrerá               de Saramago, que me parece humana e esteti-
nas palavras finais do romance.                               camente mais admirável do que qualquer outra
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versão de Jesus na literatura do século que ora            importante. O Jesus de Saramago é um ironista,
acaba. Talvez o de O Homem que Morreu, de D.H.             um espantosamente suave ironista, se conside-
Lawrence, seja um concorrente à altura, mas o              rarmos a sua vitimação por Deus. Antes de en-
Jesus de Lawrence é um grande vitalista lawren-            contrar João Baptista, é dito a Jesus que João é
ciano, mais do que um ser humano possível. O               mais alto, mais pesado, mais barbudo, andrajoso
Jesus de Saramago é paradoxalmente o mais ca-              e que sobrevive de gafanhotos e de mel selvagem.
loroso e memorável personagem de todos os seus
livros. W. H. Auden, crítico de poesia cristão, en-        “Parece bem mais o Messias do que eu”, disse Jesus,
controu estranhamente no Falstaff de Shakespe-             e levantou-se da roda
are um tipo de Cristo. Cito um parágrafo de Au-
den para enfatizar o quão distantes tanto o Deus              O romance de Saramago começa e termina
quanto o Jesus de Saramago se encontram até                com a Crucificação, apresentada no princípio
de um generoso e não-dogmático ponto de vista              com uma ironia considerável, mas no final com
cristão:                                                   um pathos terrível:

O Deus cristão não é um ser autossuficiente como           Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida,
o da Primeira Causa de Aristóteles, mas um Deus            quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se
que cria um mundo que continua a amar ainda                abre de par em par e Deus aparece, vestido como
que este se recuse a amá-lo de volta. Aparece neste        estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a
mundo, não como Apolo ou Afrodite poderiam                 terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado,
aparecer, disfarçado de homem para que nenhum              em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus
humano possa reconhecer-lhe a divindade, mas               compreendeu que viera trazido ao engano como se
como um verdadeiro homem que abertamente                   leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora
proclama ser Deus. E a consequência é inevitável.          traçada para morrer assim desde o princípio dos
As mais altas autoridades religiosas e temporais           princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue
condenam-No como um blasfemo e um Senhor do                e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar
Desgoverno, como um mau Companheiro para                   toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus
a humanidade. Inevitável porque, como disse                sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o
Richelieu “A salvação do Estado está neste mundo”          que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho,
e a História ainda não nos forneceu qualquer               estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo
prova de que o Príncipe deste mundo tenha                  os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te
mudado de carácter                                         todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as
                                                           respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando
    O Deus de Saramago, como referi, não ama o             sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre
mundo nem espera que o mundo o ame de vol-                 lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu
ta. Ele deseja poder, tão extenso quanto possível.         por um homem que se afastava com um balde e uma
E o Jesus de Saramago não passa da aparência               cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a
de um Deus “disfarçado de homem”, embora o                 tigela negra para onde o seu sangue gotejava.
seu Jesus tenha sido sequestrado por Deus, para
servir os propósitos de poder de Deus. Quanto a               “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe
Satanás, “o Príncipe deste mundo”, sabemos que             o que fez” testemunha tanto da doçura de Jesus
Saramago mudou o seu carácter.                             quanto da fúria esteticamente controlada de Sa-
    O título do romance é O Evangelho Segundo Je-          ramago. Nem um leitor desinteressado, livre de
sus Cristo, sendo que “segundo” é o termo mais             ideologias e de credos, irá perdoar o Deus de
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Saramago pelo homicídio de Jesus e pelas con-              livro, tal como se concedem anacronismos sem
sequentes torrentes de sangue humano que dele              fim a Shakespeare. Porém, a culpa não é uma
resultarão. Stephen de Joyce fala do “Deus car-            preocupação do Jesus apenas tradicional que
rasco”, como alguns italianos ainda o chamam,              me move, o Jesus do Evangelho de Tomás. Em-
e este é precisamente o Deus de Saramago. Isto             bora eu seja um Gnóstico Judeu a explicar um
por si só seria suficientemente aterrador mas é            belo livro escrito por um português que não é
ainda ampliado pelo longo e amoroso retrato que            um católico, não mais do que Fernando Pessoa o
Saramago faz de Jesus.                                     era. Neste preciso ponto da narrativa, Saramago
    A história deste Jesus principia e termina             junta Jesus e Pastor, e aquela curiosa estadia que
com uma tigela de cerâmica, que começa por ser             examinei previamente.
oferecida a Maria, a mãe de Jesus, por um pedin-               E contudo a principal ligação de Jesus na sua
te, um anjo aparente. A tigela transborda de terra         vida, como Saramago a vê e conta, não é nem com
luminosa, presumivelmente por cair; no final ela           os seus pais, nem com o diabo, nem com Maria a
recolhe o sangue de Jesus moribundo. O pedinte             sua mãe, mas com a prostituta Maria Madalena.
é Deus, e não Pastor, e aparece de novo a Maria            De todos os esplendores do Evangelho de Sara-
num sonho-visão que é também um encontro                   mago, o amor entre Jesus e a Madalena é o mais
amoroso. Quando Jesus nasce, Deus manifesta-               grandioso, e o seu encontro e união é para mim o
-se de novo como o terceiro dos pastores que pas-          auge da obra de Saramago, até à data. Ecoando o
sam, trazendo pão de um tipo oculto. Supõe-se              Cântico dos Cânticos, Saramago é um grande ar-
que se trata de uma analogia subtil à semente de           tista quando entrelaça uma réplica a Pastor com
Deus que resulta na carne de Jesus, mas Sarama-            o despertar de Jesus para a vida sexual:
go é de tal forma matizado que a suposição tem
por vezes de ser evitada, neste livro misterioso.          Jesus respirava precipitadamente, mas houve um
    Aos treze anos de idade, Jesus sai de casa por-        momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando
que os Romanos crucificaram o seu pai José, uma            as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a
invenção totalmente da autoria de Saramago, tal            direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta
como a cumplicidade parcial de José no massa-              carícia, na direção uma da outra, ambas atraídas
cre dos inocentes por Herodes é também uma                 ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas,
sugestão bastante surpreendente de Saramago, e             não se detiveram mais do que um instante, para
é também outro tormento para Jesus que o leva              regressarem com a mesma lentidão ao ponto de
mais adiante no seu caminho.                               partida, donde recomeçaram o movimento. Não
    Mas por que altera tanto a história Saramago?          aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá
Talvez esta seja de todas a versão mais humana             quisesse dizer que ele não aprendera a defender a
de um Jesus que tem de sofrer a escuridão de dois          vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe
pais, o amoroso, desafortunado e culpado José, e o
sem-amor, afortunado e ainda mais culpado Deus.                Podemos anular o “quiçá” e Maria de Mag-
    Quando o menino Jesus se disputa com os                dala é a melhor professora de Jesus, eclipsando
doutores da Lei no Templo, lembro-me outra vez             José, Deus, Pastor e Maria a mãe. No momento
de como o agostiniano Saramago fez Deus e a Lei.           que deve ser o mais irónico do livro ela ensina-
Ninguém discute com este anacronismo, porque               -lhe a liberdade, que Deus não permite a nenhum
o Deus de Saramago está ele próprio ansioso por            homem, e particularmente não permite ao único
abandonar o judaísmo (por assim dizer) pelo ca-            filho de Deus.
tolicismo. E além disso, podemos conceder a Sa-                Eu próprio acabei de fazer setenta anos e
ramago os seus anacronismos neste maravilhoso              pergunto com mais urgência que antes: onde
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pode ser encontrada a sabedoria? A sabedoria                  génio narrativo tão audacioso inspira audácia ao
do Evangelho de Saramago é muito dura: só per-                seu crítico. Ninguém será crucificado nos mas-
doando Deus podemos emular Jesus, mas não                     tros da Ilha Desconhecida, e os pesadelos deste
acreditamos, com Jesus, que Deus não sabe o que               Jesus não se realizarão. O conto feliz de Sarama-
Deus fez.                                                     go é um antídoto momentâneo à mais trágica das
    Encontro o epílogo para o Evangelho, não na               suas obras. Cuidado com um Deus que é ao mes-
Cegueira, uma parábola tão obscura como qual-                 mo tempo verdade e tempo, avisa-nos Saramago,
quer outra, mas no encantador Conto da Ilha Des-              e abandone-se um tal Deus para navegar em bus-
conhecida, uma breve fábula composta em 1998,                 ca de si mesmo.
o ano do prémio Nobel, e traduzida um ano mais
tarde por Margaret Jull Costa. Na maravilhosa
veia cómica de O Cerco de Lisboa, o conto de Sa-              Obras citadas
ramago começa com um homem pedindo a um                       Auden, W.H. “The Prince’s Dog.” The Dyer’s
rei um barco para navegar em busca da ilha des-               Hand and Other Essays. New York: Random
conhecida. Conseguido o barco, o homem deixa                  House, 1962. 182–208.
o porto, seguido pela mulher da limpeza do rei,               Gibbon, Edward. The History of the Decline
que irá constituir o resto da tripulação.                     and fall of the Roman Empire. Vol. 1. New York
    A mulher da limpeza, com um soberbo de-                   Heritage Press, 1946.
sassombro, faz o voto que ela e o homem sejam                 Kierkegaard, Søren. Concluding Unscientific
suficientes para levar a caravela até à ilha desco-           Postscript to Philosophical Fragments. Vol. l. Ed.
nhecida, animando assim o homem, cuja vonta-                  and trans. Howard V. Hong and Edna H. Hong.
de não se equipara à dela. Deitam-se em beliches              Princeton: Princeton UP, 1992.
separados, bombordo e estibordo, mas ele tem                  Saramago, José. The Gospel According to Jesus
pesadelos, até que encontra a sombra dela ao                  Christ, Trans. Giovanni Pontiero. New York:
lado da sombra dele:                                          Harcourt Brace, 1994.
                                                              ———. The Tale of the Unknown Island. Trans.
Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele,            Margaret Jull Costa. New York: Harcourt Brace,
confundidos os corpos, confundidos os beliches, que           1999.
não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo.
                                                              NdT: a passagem a negrito não consta do texto em inglês.
Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a               Suponho que o tradutor do Evangelho não tenha conseguido
mulher foram pintar na proa do barco, de um lado              passar para o inglês o jogo de palavras sobre Pessoa e os hete-
e do outro, em letras brancas, o nome que ainda               rónimos, tendo optado por saltar a referência e por traduzir
                                                              “não sejam mais do que heterónimos” por “sejam o mesmo
faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com            Deus”.
a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à
procura de si mesma.

   Saramago não nomeia ninguém: sou critica-
mente ultrajante o suficiente para me aventurar
com algumas nomeações experimentais, como
antítese ao Evangelho de Saramago. Chamemos
ao homem Jesus Cristo, experimentemos a mu-
lher da limpeza como Maria Madalena e o rei,
que existe para receber favores, será Deus. Sem
dúvida, Saramago abanaria a cabeça, mas um
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                           A Coragem
                       de José Saramago
                                            Mario Benedetti
                                          16 de outubrode 1988




A
                                          Ilustração de João Fazenda


                              ou torga ç ã o do                 mais adequados para a literatura. À parte O Ano
                              Nobel a José Saramago,            da Morte de Ricardo Reis, essa obra-prima que lhe
                              para alegria dos seus             deu fama, os seus dois últimos romances, Ensaio
                              fiéis leitores e raiva do          sobre a Cegueira e Todos os Nomes, perscrutam, não
                              Vaticano, honra, é cla-           nas aparências mas sim nas essências do ser hu-
                              ro, o escritor português          mano. Estas obras fora de série são duas grandes
                              mas, e sobretudo, pres-           metáforas, duas insólitas ficções, mas uma vez
                              tigia a Academia Sue-             instalado nelas, o autor guia-as com a naturali-
                              ca e revela a sua atual           dade com que conduziria relatos de costumes. O
                              independência, já que             leitor descobre que o extravagante se torna quo-
                              premiar neste globaliza-          tidiano, que o paradoxal se torna corrente, e isso
                              do fim de século um es-           é o que mais perturba porque, entre outras coi-
                              critor confessadamente            sas, o leitor torna-se cego com todos os cegos e
comunista não me parece que a benquiste com                     recupera a visão ao mesmo tempo que eles.
os turiferários do poder. Poucos dias depois de o                   No entanto, o verdadeiro complemento desta
Papa ter beatificado uma personagem croata que                  obra esplêndida é José Saramago como pessoa.
colaborou abertamente com o fascismo, a hipó-                   Confesso que admiro essa pessoa tanto como ad-
crita indignação do Vaticano face ao último Nobel               miro a sua obra. Tive a sorte de conhecê-lo em
mereceu esta resposta de Saramago: «O Vaticano                  1987. Tínhamos assistido a um Encontro de Es-
escandaliza-se facilmente pelos outros e não pelos seus         critores em Berlim e estivemos cinco horas no
próprios escândalos. Gostaria que o Vaticano me ex-             aeroporto de Roma, à espera da ligação com um
plicasse o que é isso de ser um comunista recalcitrante.        voo que nos trouxesse a Madrid. Ele estava com a
Talvez queiram dizer coerente. Eu só digo ao Vaticano           sua mulher, Pilar del Río, uma simpática andalu-
que continue com as suas orações e deixe os outros em           za, que com o passar dos anos se converteu tam-
paz. Tenho um profundo respeito pelos crentes, mas              bém na sua melhor tradutora. Cinco horas são
não pela instituição da Igreja. O cristianismo ensi-            suficientes para falar de todos os temas do Uni-
nou-nos a amar-nos uns aos outros. Eu não tenho a               verso e arredores. Não nos tínhamos lido um ao
intenção de amar toda a gente, mas sim a de respeitar           outro, pelo que, a pedido de Pilar, começámos a
toda a gente».                                                  «contar» os nossos livros. O melhor foi que des-
A verdade é que o comunismo militante de Sa-                    se encontro nasceu uma boa e sólida amizade,
ramago nunca o assimilou ao chamado realismo                    que teve um belo auge quando, no dia seguinte
socialista. Os seus romances são de um nível e                  ao do anúncio do Nobel, Saramago me telefonou
de um rigor literários verdadeiramente exce-                    do avião que o levava de Frankfurt a Madrid (eu
cionais. Saramago não só é um narrador origi-                   estava ainda a convalescer de uma operação) e
nal, como também tem a coragem de se atrever                    pude assim dar-lhe o meu forte abraço aéreo.
a escrever sobre temas que não parecem ser os                   Uma coisa que muito admiro em Saramago é a sua
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«Quero que os                                                  do capital mundial. E concluiu: «Por isso é que este
                                                               mundo é uma merda.» Aplaudiram-no.

jovens saibam que                                              Que na globalização da hipocrisia em que vivemos,
                                                               quando a relação de Monika Lewinsky ocupa mais

nós, os velhos,
                                                               títulos de imprensa do que a crise israelo-palesti-
                                                               niana, a queda da bolsa nipónica ou a extensão da
                                                               SIDA, quando a globalização da frivolidade não só
estamos aqui para                                              engloba consumidores e consumidos mas também
                                                               políticos e intelectuais; que logo agora surja um es-
trabalhar». E ele                                              critor que não tem medo do compromisso e diz com
                                                               toda a claridade e simplicidade o seu decálogo de
trabalha. Romance                                              verdades, parece-me um acontecimento extraordi-
                                                               nário. Para muitos intelectuais que passeiam com o

após romance.                                                  seu pedestal às costas e transportam o seu silêncio
                                                               culpado para não se zangarem com o Big Brother,
                                                               a atitude normal e sem rebuços de Saramago vai
                                                               direita à consciência. Nunca o vimos fazer conces-
forte coerência e o seu valor para a manter. Recor-            sões para obter prémios ou privilégios, e quando
do que, em 1992, em plena Exposição de Sevilha,                no seu país deu de caras com a censura, preferiu
ele disse coisas como esta: «Existe a irresistível ten-        exilar-se com Pilar em Lanzarote, onde vivem
tação de nos perguntarmos se os gigantescos impérios           tranquilos com o seu cão Camões e onde os novos
industriais e financeiros de hoje não estão, como pode-         livros têm vindo a surgir. A partir dessa ilha singu-
res supranacionais que são, a reduzir a probabilidade          lar, viaja e ouve com ouvido faulkneriano o som e a
democrática, que se encontra conservada na sua for-            fúria do mundo. Com a sua melhor solidariedade,
ma mas, se não me engano, demasiado pervertida na              submerge-se em Chiapas. Tenta (para mal-estar da
sua essência.»                                                 Igreja) humanizar o próprio Jesus. Recorda aos jo-
Vários anos depois, quando se apresentou em                    vens que se tivesse morrido aos 60 anos, não teria
Madrid a versão espanhola de Ensaio sobre a Ce-                escrito nada, e aos 75 anos adiciona: «Quero que os
gueira, Saramago expressou a sua polémica opi-                 jovens saibam que nós, os velhos, estamos aqui para
nião sobre a democracia, e que era mais ou me-                 trabalhar». E ele trabalha. Romance após romance.
nos assim (não guardei a citação textual): É certo             Compromisso após compromisso. «Toda a minha
que, em democracia, os povos elegem os seus                    obra é uma meditação sobre o erro», disse em 1990.
deputados, por vezes o seu presidente, mas esses               Talvez por isso atravesse a história, a cegueira, a
governantes democraticamente eleitos são ime-                  rotina, a fé, como um esforço para desfazer agravos
diatamente pressionados, dirigidos, adminis-                   e também para a si mesmo se emendar os defeitos.
trados, manipulados e virtualmente suplanta-                       Com Nobel ou sem Nobel, José Saramago é
dos pelos grandes decisores supranacionais, tal                um dos criadores mais notáveis que nos deu este
como o Fundo Monetário Internacional, o Banco                  século que agora nos deixa, e não só da desaten-
Mundial ou a Trilateral. «E a estes», perguntou                dida língua portuguesa, mas também da univer-
Saramago, «quem os elege?»                                     sal língua do homem.
Há poucas horas, na concorridíssima conferên-
cia de imprensa que deu em Madrid após a ob-
tenção do Nobel, recordou que um grupo social
francamente minoritário é o dono da maior parte
                                                          20
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           Linguagem e História
          segundo José Saramago
                                         Manuel Gusmão




N
                         a circunstância –                  pode então comportar o confronto de pontos de
                         a da atribuição do Nobel           vista. Este modo de frasear produz efeitos rítmicos
                         –, vale a pena procurar            e prosódicos, percecionados por uma espécie de
                         na leitura da obra roma-           ouvido mental, e coopera com a construção de uma
                         nesca de José Saramago             imagem ou de um efeito do narrador oral, partici-
                         alguns dos traços da sua           pante ativo naquilo que conta. Entretanto, pela sua
                         singularidade. Sabendo             dimensão plurivocal, e sobretudo quando a liga-
                         que qualquer singulari-            mos a outros traços do universo romanesco que ela
                         dade se tece numa rede             ajuda a construir, esta forma de frase produz um
                         de relações e numa parti-          outro efeito particularmente importante; ela mos-
                         cular constelação de pro-          tra a radical socialidade da linguagem, de qualquer
                         cedimentos, proponho-              língua, e de qualquer ato de fala. Mostra aquilo que
                         -vos algumas notas em              em alguma teoria da linguagem se tematiza, quan-
torno de dois tópicos: o dos modos da escrita, e o          do se diz que nunca ninguém diz sozinho uma fra-
das configurações da historicidade.                          se – há sempre o outro que a ouve, o outro da com-
                                                            preensão, da resposta, ou da dissensão. Mesmo na
Linguagem...                                                câmara íntima de cada um, a frase que só dizemos
   A obra romanesca de José Saramago é marcada              mentalmente é dita a um desdobramento do eu.
por dois gestos verbais para cuja conexão gostaria          Por outro lado, falamos sempre com «as palavras
de chamar a atenção. Por um lado, trata-se de uma           dos outros», deformando-as um pouco, é certo; e
forma de frase e, designadamente, de uma pontu-             por aí passa a possibilidade da individuação e da
ação que aparece como característica, e, por outro,         singularidade. É nesse sentido, também, que o di-
daquilo que se pode descrever como uma apropria-            álogo é a forma básica da fala, e que numa só frase
ção ativa da herança literária, cruzada com a inven-        se podem ouvir várias vozes. A plurivocalidade é
ção e a imitação de formas da coloquialidade mais           também polifonia.
comum. A sua frase parece por vezes conter, entre               Esta assunção da socialidade da linguagem,
dois pontos finais, várias frases, ditas no mínimo          inserida como um dispositivo da narração, pode
por duas personagens e, frequentemente, por três            ainda ligar-se ao modo como insistentemente,
(sendo que uma dessas personagens pode ser a do             em alguns dos seus romances, se joga com esse
narrador). Essas frases, contidas numa, são sepa-           tipo particular de frases do idioma que são os
radas por vírgulas que podem estar a substituir             provérbios, frases supostamente indeformáveis
pontos de interrogação», são dados apenas pela              que conteriam, congelado, um sentido único,
maiúscula inicial de uma palavra que vem depois             uma sabedoria monológica.
de uma vírgula. Estamos perante uma frase pluri-                Saramago chega aqui de duas maneiras: por
vocal: é como se fossem vários a dizer uma frase,           um lado, pode usar o «mesmo» provérbio em
e essa frase, que é um acontecimento do diálogo,            contextos diferentes, de modo a mostrar que ele
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SARAMAGO 90 ANOS




pode significar coisas diversas e, no limite, inver-        história em Saramago. Talvez possamos dizer
sas; por outro lado, deforma e inventa provér-             que o processamento ficcional dos seus roman-
bios. Este modo de usar e construir provérbios             ces constitui uma forma singular de ficciona-
constitui uma marca do jogo verbal (o homo lo-             lização de matéria histórica. Antes de avançar,
quens é também um homo ludens) e um processo               gostaria de lembrar, até porque também nisso
do ironização (de «carnavalização») do saber, ou           joga Saramago, que usamos a palavra «história»
do «dialogismo» (vale a pena ler, a propósito, o           em pelo menos três sentidos; (a) a história que é
ensaio de José Mattoso sobre os provérbios por-            a existência dos humanos no tempo, a história
tugueses).                                                 que em dadas condições fazemos e vivemos; (b)
    Esta ostensão do uso das «palavras dos ou-             a história enquanto nome de uma disciplina, os
tros», de que acima falei, é o que podemos en-             escritos historiográficos; (c) e a atividade de con-
contrar num outro plano textual no regime ci-              tar «estórias» (histórias de vida, contos vários,
tacional de certos romances de Saramago (por               relatos, lendas, mitos, etc.). O que fazemos em
exemplo, em O Ano da Morte de Ricardo Reis) e,             (b) e (c) tem parte, ou é parte, tendencialmente
mais amplamente, no modo como ele se apropria              conflitual, do que fazemos em (a). Quando conta-
de registos discursivos e estilísticos da tradição         mos ou escrevemos história, não nos limitamos a
literária. Por aqui passa, agora, a dimensão tex-          conhecer ou imaginar um passado, inscrevemos
tual (escrita) da narração, que «corrige» a ima-           o nosso presente e estamos de alguma forma à
gem do narrador oral. A citação (assinalada ou             escuta do que aí vem (chamamos-lhe o futuro).
não), glosa e deformação de versos de Pessoa-              Em José Saramago, a lição de matéria históri-
-Ricardo Reis, a transformação de uma fórmula              ca (passada, atual, ou de um futuro inventado),
de Camões na primeira e na última frases desse             mesmo quando produz mundos possíveis, no
livro «sobre» Reis, as revisitações do barroco, a          limite alternativos ao mundo empírico tal como
imitação de ritmos sintáticos e construções re-            é socialmente construído pelo senso comum, re-
tóricas do padre António Vieira (que abrem, por            conhecido pela historiografia, ou reconstituído
exemplo, a Viagem a Portugal), os ecos de Garrett          pelas ciências da natureza, é uma ficção histórica
ou de Camilo, constituem mais do que um gesto              nos seus gestos, uma ficção que historiciza o vi-
de integração no cânone, mais do que homena-               ver. Giuseppe Tavani assinalou já como a última
gens aos antepassados. Cruzam-se com os gestos             frase do 1.° capítulo de Levantado do Chão indi-
de imitação da oralidade e das vozes populares             cia eficazmente aquilo que podemos tomar como
e são uma forma de apropriação autoconstituti-             uma persistente e variante estratégia narrativa.
va, um operador de historicização transtempo-                  «Levou séculos para chegar a isto, quem duvi-
ral. Por aí, a possibilidade de dissolução de uma          dara de que assim vai ficar até à consumação dos
identidade cultural nacional (e nisso reside um            séculos? E esta outra gente quem é, solta e miúda,
dos papéis propiciadores de Viagem a Portugal,             que veio com a terra, embora não registada na es-
observados por Maria Alzira Seixo), o romance              critura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria
responde, não pela rigidificação de uma suposta            de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e
identidade monológica, mas antes pela constru-             quem a há de trabalhar, crescei e multiplicai-me diz
ção de uma identidade dialógica, social e histori-         o latifúndio. Mas tudo isto pode ser contado de ou-
camente heterogénea.                                       tra maneira.»
                                                               Contar isto (a história da terra e do latifúndio)
…e história                                                de outra maneira significa voltar a contar algo
   Os leitores e a receção crítica têm insistente          que já foi contado. Trata-se de um outro modo de
e diversamente encontrado uma relação com a                contar e de outra matéria contável: aqueles que
                                                      22
SARAMAGO 90 ANOS




não têm registo na escritura – termo notarial e           temos como mundo real; podemos encontrar o
termo que designa uma escrita oficial ou canó-             nome de Saramago disseminado em textos seus,
nica, sancionada por uma lei, a dos senhores.             ou mesmo encontrar representações oblíquas
Mas vai tratar-se também de, neste outro con-             do autor; o Julião Mau-Tempo do Memorial é,
tar, ensaiar respostas à pergunta do parágrafo            necessariamente, na lógica da ficção, um ante-
anterior, que podia ser lida como uma «pergun-            passado dos Mau-Tempo do Levantado do Chão;
ta retórica», implicando uma resposta negativa.           um romance de Saramago pode citar ou aludir
O romance virá, entre outras coisas, a mudar a            a um outro romance seu. No processo de preen-
resposta a essa pergunta; virá dizer – que sim,           chimento da lacuna, da «correção» ou «emenda»
há quem tenha dúvidas quanto a qualquer ante-             do texto prévio, encontramos outros procedi-
cipação da consumação dos tempos, ou do «fim               mentos reiterados, na configuração do espaço
da história»; que não, talvez as coisas não fiquem         e tempo e das populações do mundo narrativo.
assim.                                                    Encontramos, por exemplo, acontecimentos fan-
    Vários dos romances posteriores de Sarama-            tásticos ou maravilhosos (os poderes de Blimun-
go procederão assim; supõem um texto ou textos            da, o voo da passarola, as conversas de Reis com
prévios, nos quais descobrem ou inventam uma              o espectro de Pessoa; a separação e a navegação
lacuna, textos que corrigem, ou que vão voltar            da Península lbérica); anacronismos e alucina-
uns contra os outros. Assim, em Memorial do               ções que sobrepõem, na simultaneidade, tem-
Convento – a historiografia oficial; em O Ano da           pos cronológica e historicamente afastados (por
Morte de Ricardo Reis – a ficção heteronímica de          exemplo, na História do Cerco de Lisboa); a mistu-
Pessoa; em A Jangada de Pedra – o texto político          ra de personagens ficcionais (Baltasar e Blimun-
dominante sobre a integração europeia; em His-            da), com personagens que a ficção constrói sobre
tória do Cerco de Lisboa – por um lado crónicas e         indivíduos historicamente atestados (D. João V,
historiografia, mas também a ficção de um texto            Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti, ou
historiográfico a que o protagonista impõe um              Pessoa), e com reficcionalizações de personagens
«não», o que o levará a passar de revisor a autor;        que já existiam como ficções (Ricardo Reis, por
em O Evangelho segundo Jesus Cristo – os evange-          exemplo).
lhos canónicos e apócrifos.
    O tipo de texto suposto e os modos da sua             Uma narrativa ético-política
presença – explícita ou implícita – na narrativa,             Vários destes procedimentos encontramo-
os procedimentos ficcionais de subversão desse            -los num tipo de ficção histórica que é emblemá-
texto, e as suas consequências na construção dos          tico da pós-modernidade; mas a singularidade
mundos narrativos variam de romance para ro-              de José Saramago está também no modo como
mance, mas mantém nessa variação a dimensão               a sua ficção oferece resistência a uma certa vul-
de ficcionalização irónica, rapsódica e polémica           gata pós-modernista enquanto aceitação de um
da história já escrita. Esta ficcionalização tende         suposto fim da História e das ideologias. No
a mostrar sempre, na enunciação narrativa, o              modo como o moderno, mais do que se esgotar
presente histórico em que se escreve, criando a           na pós-modernidade a integra como uma «fase»
unidade de uma contradição, pela qual o narra-            de uma modernidade longa. Talvez esteja justa-
dor se simula contemporâneo da ação passada               mente aqui uma das razões textuais da ampli-
que conta e, ao mesmo tempo, alude à contempo-            tude heterogénea dos seus leitores – no modo
raneidade do autor empírico. Vários traços coo-           como Saramago une desejo de ficção e desejo de
peram na produção de um efeito de obra, como              história, como sintoma de crise e gesto de crítica,
réplica ou simulacro do mundo de mundos que               como receio da barbárie e desejo de um outro fu-
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turo. Tais desejos e receios manifestam-se mais              «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.»
nitidamente nos últimos romances, Ensaio sobre               E é, também, um princípio de relativização e
a Cegueira e Todos os Nomes, onde adquire evidên-         deformação da perspetiva, que permite inscre-
cia uma forma de romance como alegoria (que               ver um partis pris pelas gentes que não vêm na
entretanto já está latente, pelo menos, em Janga-         escritura, e pela humanidade (ofendida) dos hu-
da de Pedra e em Evangelho segundo Jesus Cristo).         manos:
Esta alegoria, que começa por ser a narrativiza-             «Toda a gente se admirava com o tamanho des-
ção de uma metáfora, não se fecha entretanto na           medido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar mur-
irreversibilidade de um duplo sentido nem no              murou, olhando a basílica, Tão pequena.»
gesto de uma apologética. Nela, um ceticismo e
um pessimismo ativos não desistem entretanto
da compaixão, da ténue sombra de uma esperan-
ça. A de podermos ser outros. No Memorial, por
exemplo:
    «se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter
comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a
de ser outra coisa»
    Os traços dessa insistência do moderno estão
justamente na persistência de um ethos, que vem
de trás e é longa e variantemente sustentado.
Esse ethos é uma marca ético-política e inscre-
ve-se na articulação entre os gestos verbais e as
configurações da historicidade; desde a macro-
-estrutura textual até ao nível da frase. Mostra-
-se: no escrever a voz dos que não têm lugar na
escritura; nas apresentações dos construtores
do convento, na oratória e na ciência de Barto-
lomeu, e na arte de Scarlatti; nas listas de nomes
«próprios» de mortos anónimos e/ou históricos
que em vários romances aparecem; na compai-
xão irónica pelo aristocrata indiferente Ricardo
Reis, e na presença intermitente dos navios da
revolta dos marinheiros; na passagem do revi-
sor a autor, na reversibilidade entre quem cerca
e quem é cercado, e na homenagem ao rei-poeta,
D. Dinis; no «humano, demasiado humano» de
Cristo; na catástrofe da cegueira, na mulher do
médico e na fraternidade que sobrevive e faz so-
breviver.
    Esse ethos inscreve-se no gesto verbal da ci-
tação deformada, na entoação enunciativa, na
significação posicional e no sentido histórico e
transtemporal da última frase de O Ano da Morte
de Ricardo Reis:
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       A morte tira umas férias
                                             James Wood
                                       27 de outubro de 2008
                                Tradução de Ana Beatriz Manso




O
                                       I lustração de Javier Olivares



                            filósofo Bernard                     Tendo vivido, até estes dias de confusão, naquilo
                            Williams escreveu em             que haviam imaginado ser o melhor de todos os mun-
                            tempos um ensaio inti-           dos possíveis e prováveis, descobriam, deliciados, que
                            tulado «O Caso Makro-            o melhor, realmente o melhor, era agora que estava a
                            pulos», no qual defendia         acontecer, que já o tinham ali mesmo, à porta de casa,
                            que a vida eterna deve-          uma vida única, maravilhosa, sem o medo quotidia-
                            ria ser tão entediante           no da rangente tesoura da parca, a imortalidade na
                            que ninguém a suporta-           pátria que nos deu o ser, a salvo de incomodidades
                            ria. Segundo Williams,           metafísicas e grátis para toda a gente, sem uma carta
                            a constância que define          de prego para abrir à hora da morte, tu para o para-
                            um eu eterno implicaria          íso, tu para o purgatório, tu para o inferno, nesta en-
                            um infinito deserto de           cruzilhada se separavam em outros tempos, queridos
                            experiências repetitivas,        companheiros deste vale de lágrimas chamado terra,
para que o eu não fosse alterado a ponto de ser es-          os nossos destinos no outro mundo.
vaziado de qualquer definição. É por esse motivo
                        ^                                        Mas as «incomodidades» – metafísicas, polí-
que, na peça de Karel Capek a que Williams vai               ticas, pragmáticas – não tardam a fazer a sua re-
buscar o seu título, a personagem Elina Makro-               entrada. A Igreja Católica é a primeira instituição
pulos, com trezentos e quarenta e dois anos, tendo           a pressentir o perigo. O Cardeal telefona ao pri-
ingerido o elixir da vida eterna desde os quarenta           meiro-ministro para realçar que «se se acabasse
e dois anos de idade, decide descontinuar o regi-            a morte não poderia haver ressurreição, e que se
me e morre. A vida precisa da morte para cons-               não houvesse ressurreição, então não teria sentido
tituir o seu significado; a morte é o período negro          haver igreja». Para o Cardeal, a vida sem a morte
que comanda a sintaxe da vida.                               é equivalente a Deus decidir o Seu próprio fim. A
    Em As Intermitências da Morte, José Saramago,            vida sem a morte abole a alma. Numa assembleia
um autor cujas frases longas e ininterruptas são             onde está reunido um grupo de filósofos e cléri-
relativamente estranhas ao período, escreveu um              gos, ambos os lados concordam que a religião pre-
romance que funciona como uma experiência de
                            ^                                cisa tanto da morte «como do pão para a boca». A
pensamento no campo Capek/Williams. (O seu                   vida sem a morte é como a vida sem Deus, diz um
romance não faz qualquer alusão explícita a ne-              dos sacerdotes, porque «se os seres humanos não
nhum dos dois.) À meia-noite de uma véspera de               morressem tudo passaria a ser permitido». (Esta é
Ano Novo, num país sem nome do interior com                  uma versão do medo dostoiesvskiano de que, sem
cerca de dez milhões de habitantes, a Morte decla-           Deus, tudo é permitido.) Um dos filósofos, num
ra tréguas à Humanidade, uma interrupção vo-                 tom semelhante ao do astuciosamente secular
luntária, de modo a dar às pessoas a ideia de como           Saramago, sugere que, uma vez que a morte era
seria viver para sempre. De início, as pessoas fi-           «notoriamente, o único instrumento de lavoura
cam evidentemente eufóricas:                                 de que deus parecia dispor na terra para lavrar os
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caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, a              ses de Saramago, nas quais um narrador ou gru-
conclusão óbvia e irrebatível é de que toda a histó-        po de narradores tem sempre uma forte presença,
ria santa termina inevitavelmente num beco sem              constituem uma espécie de comunidade própria:
saída.»                                                     são altamente povoadas.
    Um país onde ninguém morre transforma-se                    Alguma da escrita mais significativa dos úl-
inevitavelmente num zoológico malthusiano. Os               timos trinta anos tem-se deliciado com as frases
velhos que estavam à beira da morte na véspera              longas e sem regras – pensemos em Thomas Ber-
de Ano Novo mantêm-se simplesmente à beira,                 nhard, Bohumil Hrabal, W. G. Sebald, Roberto
inertes na sua dessuetude. Os cangalheiros, os              Bolaño – mas ninguém apresenta propriamente
vendedores de seguros de vida e os diretores de             o mesmo tom de Saramago. Ele possui uma ca-
hospitais e lares de idosos veem-se, por diversas           pacidade de parecer sábio e ignorante ao mesmo
razões, ameaçados pelo desemprego ou pela hipe-             tempo, como se não estivesse realmente a narrar
ratividade. Não tardará a que o estado deixe de ser         as histórias que narra. Muitas vezes, usa aqui-
capaz de pagar a manutenção dos seus cidadãos.              lo que se poderia chamar de estilo livre indireto
E, embora esta súbita utopia possa ser agora o              não identificado – as suas ficções dão a sensação
melhor de todos os mundos possíveis, podemos                de não estarem a ser contadas por um autor, mas
sempre confiar nos humanos para destruírem                  sim por, digamos assim, um grupo de idosos sá-
utopias. As famílias com membros envelhecidos e             bios e algo gárrulos, sentados no cais em Lisboa,
enfermos apercebem-se de que precisam da mor-               a fumar um cigarro, sendo um deles o próprio
te para os salvar de uma eternidade de cuidados             escritor. Esta comunidade aprecia truísmos, pro-
à cabeceira da cama. Uma vez que a morte não                vérbios, lugares-comuns. «Está escrito que não se
foi suspensa nos países vizinhos, a solução óbvia           pode ter tudo na vida», diz-nos o narrador de As
é transportar o Avôzinho adoentado para lá da               Intermitências da Morte, e acrescenta: «É assim a
fronteira, onde a morte fará o seu trabalho. Uma            vida, vai dando com uma mão até que chega o dia
organização semelhante à Máfia assume o contro-             em que tira tudo com a outra.» O narrador de um
lo destas fugas para a morte, uma operação com a            romance anterior anuncia: «A fama, ai de nós, é
secreta conivência do governo, visto que nenhum             uma aragem que tanto vai como vem, é um cata-
estado tem dinheiro para pagar uma expansão in-             -vento que tanto vira a norte como a sul.» E num
finita. Tal como o primeiro-ministro alerta o Rei,          outro: «Diz-se, desde os tempos clássicos, que a
«se não voltarmos a morrer não temos futuro».               fortuna protege os audaciosos.» Estas trivialida-
    As Intermitências da Morte é uma pequena e              des nunca são propriamente validadas nem refu-
mordaz adição à obra de um grande romancista.               tadas; são ironizadas pela óbvia lacuna que existe
Com eficácia, coloca em movimento o seu hipoté-             entre o conhecedor escritor pós-moderno laurea-
tico caso de teste e gera rapidamente um conjunto           do com um Nobel enquanto produz as suas ficções
de pertinentes questões teológicas e metafísicas            e a pessoa ou pessoas que aparentemente narram
relativas à desejabilidade da utopia, à possibilida-        essas ficções.
de do Paraíso e aos verdadeiros alicerces da reli-              O estilo contínuo é uma parte importante des-
gião. O trabalho recente de Saramago inclinou-se            sa ironia: a falta de fôlego empresta uma sensa-
mais para o vagamente metafórico, com atores                ção de desregramento loquaz, como se diferentes
anónimos e universais no lugar de personagens               pessoas interviessem para dar a sua opinião. Uma
individuais. Estes livros seriam assumidamente              única frase longa parece muitas vezes ter sido es-
ensaísticos se não fossem as extraordinárias fra-           crita por diferentes vozes, e o tumulto sem pon-
ses de Saramago e a subtileza das suas narrativas.          tuação permite astutas voltas e reviravoltas, como
Na ausência de pessoas ficcionais vívidas, as fra-          quando um lugar-comum se apanha a si próprio
                                                       26
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no ato de ser um lugar-comum e se retrata: «Um             restabelecimento, fica agradada: «As preces ha-
homem desses, salvo pouquíssimas excepções                 viam demorado quase oito meses a chegar ao céu,
sem lugar nesta história, nunca passará de um              mas há que pensar que só para atingir o planeta
pobre diabo, é curioso que se diga sempre pobre            marte precisamos de seis, e o céu, como é fácil de
diabo e nunca se diga pobre deus.» Na frase acer-          imaginar, deverá estar muito mais para lá, treze mil
ca da euforia inicial das pessoas quando a morte é         milhões de anos-luz de distância da terra, números
suspensa, repare-se que uma imagem poética do              redondos.» Essa voz incitadora, com a sua parciali-
Ceifeiro («rangente tesoura da parca») dá lugar a          dade antiteológica, tem reminiscências não apenas
uma imagem mais comum («carta de prego para                de Luciano mas também do luciânico Leon Battista
abrir à hora da morte ») e depois a um total lugar-        Alberti, cuja sátira quatrocentista Momus imagina
-comum já gasto («este vale de lágrimas chamado            o caos que poderia instalar-se no Céu caso todos
terra»), e que esta progressão permite a presença          pedissem ao mesmo tempo a Deus que atendesse
simultânea do escritor, que tem as suas imagens,           a uma prece.
e das pessoas sobre as quais está a escrever, que              O curto romance de Saramago dá azo a ques-
têm as delas. E aí ocorre um intercâmbio mágico:           tões semelhantes. Se a vida eterna não poderia de
quando chegamos ao final dessa frase acerca da             modo nenhum funcionar na Terra, porque será a
morte, a elegante imagem mítica parece de algu-            eternidade etérea tão ardentemente desejada? Tal-
ma maneira muito menos poderosa do que a ima-              vez seja pela nossa esperança desesperada de que
gem mais banal.                                            o Céu seja o mesmo que a Terra mas também mui-
    Deste modo, a prosa de Saramago dá-nos uma             to diferente, uma vez que o Homem arruína Para-
sensação simultaneamente moderna e antiga. O es-           ísos. Para Saramago, como para Bernard Willia-
critor está a trabalhar de modo consciente, atrain-        ms, o problema não é apenas o facto de os homens
do constantemente a atenção para a narração, mas           serem assassinos natos de utopias; é o de que a
a narração parece mergulhar facilmente num pro-            própria eternidade – a vida para sempre ininter-
blema da mochila universal, fazer florescer as suas        rupta – parece insustentável. E, neste romance,
verdades franzinas e sábias. É esta abordagem              Saramago faz mais do que provocar Dostoiévski.
astuciosamente modesta que permite a Saramago              Pois, se o desaparecimento de Deus significa que
escrever as suas ficções especulativas e fantásti-         «tudo é permitido», e o desaparecimento da morte
cas como se se tratassem dos acontecimentos mais           significa que tudo é permitido, então, pelo tácito
prováveis e dar-lhes uma sólida literalidade – um          catecismo do romancista, Deus deve ser a morte
país sem nome atacado por uma epidemia de ce-              e a morte deve ser Deus. Não é de admirar que a
gueira, a Península Ibérica separada do continente         religião precise da morte: a morte é o único Deus
europeu e transformada numa enorme ilha flutu-             em que podemos acreditar.
ante, um homem que caminha pelas ruas de Lisboa                Saramago é atraído para estas inversões gnós-
e que é ao mesmo tempo inegavelmente real e um             ticas. Naquele que é possivelmente o seu melhor
fantasma literário. Em certos aspetos, a sua obra          livro, O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), o ro-
está mais próxima da de um satirista como Lucia-           mancista conta de forma distintiva a história da
no, cujos esquissos imaginam pessoas a viajar para         vida e morte de Jesus sem alterar nenhum dos fac-
a Lua ou para o Hades, ou os deuses a altercarem           tos famosos, ao mesmo tempo que vira do avesso
entre eles, do que da de qualquer romancista con-          a teologia dos Evangelhos. Certo dia, José, o pai de
temporâneo. Quando, no novo romance de Sara-               Jesus, ouve acidentalmente alguns soldados a co-
mago, a Morte decide finalmente pôr fim à sua «in-         mentarem as ordens de Herodes para que sejam
terrupção» e deixar a mortalidade seguir de novo           mortas todas as crianças com menos de três anos
o seu caminho, a Igreja, que andara a rezar por tal        de idade. Corre para casa para esconder a sua mu-
                                                      28
SARAMAGO 90 ANOS




lher e o filho recém-nascido, mas esquece-se de
avisar o resto da aldeia. Pelo seu pecado, anuncia          As Intermitências
mais tarde um anjo a Maria, José irá sofrer. E o
meu filho?, pergunta ela ao anjo. «Disse o anjo, So-        da Morte gera
                                                            rapidamente
bre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa
dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a
fronte do teu filho», escreve Saramago. A seu tem-
po, José é capturado por soldados romanos que
abafam uma rebelião e é crucificado juntamente
                                                            um conjunto
com outros trinta e nove judeus. Por seu turno, Je-
sus torna-se obcecado por uma sensação de culpa
                                                            de pertinentes
herdada e pela ideia de que, tal como ele diz, «O
meu pai matou os meninos de Belém». Na força
                                                            questões teológicas
de um relâmpago pelo dedo do blasfemo contador
da história, Saramago transforma um dilema teo-
                                                            e metafísicas
lógico que lhe é familiar – o Deus «bom» que traz
Jesus ao mundo é também o Deus «mau» que per-               relativas à
mite o massacre de bebés inocentes – num pro-
fundo imbróglio. De repente, Jesus é amaldiçoado            desejabilidade
por uma forma de pecado original, e o seu sacrifí-
cio na Cruz torna-se não uma expiação do pecado             da utopia, à
                                                            possibilidade
do Homem mas sim um legado do mesmo: segue
as pegadas do pai, amaldiçoado pela linhagem pa-
ternal. «Deus não perdoa os pecados que manda
cometer», assim coloca a questão o narrador. Na
Cruz, ouvindo o seu Pai celestial a declamar a par-
                                                            do Paraíso e
tir das nuvens «Tu és o meu Filho muito amado,
em ti pus toda a minha complacência», Jesus bra-
                                                            aos verdadeiros
da: «Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o
que fez.» É a derradeira e mais perversa inversão
                                                            alicerces da
do romance.
    O Evangelho Segundo Jesus Cristo causou enor-
                                                            religião.
me controvérsia no Portugal católico (Jesus dor-
me e vive com Maria Madalena), mas este é o mais
pio dos livros blasfemos. Por detrás das suas fe-           nós através dos seus óculos de armação escura
rozes ironias, Saramago parece não fazer mais do            e do tamanho de uma televisão. De certa manei-
que encarar a Encarnação com a maior seriedade              ra, ele é o menos fanático dos romancistas, por
possível: se Jesus nasceu homem, parece ele di-             insistir de modo tão implacável nas suas hipóte-
zer, então herdará tudo aquilo a que um homem               ses ficcionais, seguindo-as através de grandes e
está sujeito, incluindo o pecado, que, seja como            humanas conclusões. O seu novo romance vai-
for, provém de Deus. A fasquia está muito alta,             -se tornando gradualmente menos conceptual
mas o temperamento autoral é ameno, inquiridor,             e crescentemente tocante, sem nunca se tornar
amadurecido. E se Deus fosse o Diabo?, parece               realista em nenhum sentido convencional, nem
perguntar o autor, espreitando docilmente para              sequer plausível.
                                                       29
SARAMAGO 90 ANOS




    Ele representa-nos a Morte como uma ausên-            no novo romance, o funcionário seleciona uma
cia feminina encarnada, um esqueleto num lençol           cidadã das fileiras dos mortos e vivos e, de forma
que vive numa sala subterrânea gélida, apenas             gradual, sem nunca a nomear (também o violon-
acompanhada pela sua muito utilizada gadanha.             celista permanece sem nome), dota-a de uma par-
(Ele também lhe nega um «M» maiúsculo.) Pas-              ticularidade metafísica.
sados os seus sete meses de interrupção voluntá-              É também isto que faz o romancista: pega num
ria, esta deusa sombria envia uma carta para uma          nome, numa personagem, numa pessoa, e salva-a
estação de televisão a anunciar que vai pôr fim à         do esquecimento silencioso através da irradiação
sua experiência porque os humanos agiram de               de palavras. Mas também pode matá-la sempre
modo tão «deplorável». As pessoas morrerão de             que assim o deseje: todos os romances são «inter-
novo ao ritmo antigo, que é de cerca de trezentas         rompidos» simplesmente porque chegam ao fim.
por dia. De acordo com as novas regras, aos ci-           Falamos de poder autoral omnisciente porque os
dadãos cujo tempo terminou será dado um aviso             escritores têm o poder de decidir a vida e a morte
com uma semana de antecedência: cada um deles             dos seus «nomes». O auxiliar de escrita de Todos
receberá uma carta de cor violeta, um aviso de            os Nomes, que é conhecido simplesmente como
término vindo da própria Morte. Esta concessão            Sr. José, partilha o mesmo nome próprio com o
aparentemente humana – o nomeado passa a ter              romancista. No seu novo romance, Saramago tor-
tempo para pedir a sua licença, pôr a sua proprie-        na a pedir-nos que reflitamos acerca dos poderes
dade em ordem, e por aí em diante – é insuporta-          divinos do contador de histórias. Quando a carta
velmente cruel, claro está, uma vez que a maioria         da Morte é publicada nos jornais, consulta-se um
das pessoas preferiria ser surpreendida pela mor-         gramático, que toma nota da sua «sintaxe caótica,
te do que condenada a ela. Um desses nomeados,            da ausência de pontos finais, do não uso de parên-
um violoncelista de cinquenta anos, desnorteia a          tesis absolutamente necessários, da eliminação
deusa. A Morte escolheu-o para o término, mas a           obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos salti-
carta de cor violeta é repetidamente devolvida ao         nhos (…)». A Morte escreve como José Saramago.
remetente; o violoncelista parece recusar as suas         Enquanto a Morte observa o violoncelista a be-
ordens. Numa série de cenas inesperadamente               ber, Saramago escreve que ela olhou para a água
belas, a Morte, bastante perplexa, insinua-se no          e «fez um esforço para imaginar o que seria ter
apartamento do violoncelista e senta-se em silên-         sede, mas não o conseguiu». O leitor indaga-se:
cio a observá-lo enquanto ele dorme; vê o modo            se a Morte não consegue imaginar a sede, conse-
como se levanta de noite para beber um copo de            guirá porventura imaginar a morte? E o roman-
água e deixar o cão ir à rua, vê uma suite de Bach        cista? Uma resposta que Saramago oferece – é a
(a n.º 6) na sua cadeira, e por aí em diante. Está        ampla verdade antiga e universal na direção da
na hora de o violoncelista morrer – extinguiu-se          qual a sua ficção complexa tem vindo a viajar – é
«o tempo que lhe havia sido prescrito ao nascer» –        a de que, se não nos escudarmos da morte nem
mas a Morte parece não ter nenhum poder sobre             ansiarmos religiosamente por vencê-la, mas, pelo
este «homem qualquer, nem feio nem bonito».               contrário, aceitarmos a antiga realidade de que
    Em Todos os Nomes, um romance anterior com            no seio da vida estamos na morte, então a morte
o qual este novo faz uma óbvia parceria, um mo-           rodeia-nos como a vida, e imaginar a morte é, na
desto auxiliar de escrita torna-se obcecado por           verdade, imaginar a vida.
uma cidadã perfeitamente comum, uma mulher
cujo nome na certidão de nascimento o apanha
de surpresa certa tarde no seu local de trabalho,
a Conservatória Geral do Registo Civil. Tal como
                                                     30
SARAMAGO 90 ANOS



      Um estilo como ideologia
                                  Luciana Stegagno Picchio


                                         Ilustração Luis Graneña




C
                        om Jorge Amado e                        É claro que quem isto escreve, por formação e
                        pouquíssimos mais, Sara-            ideologia, não pode falar senão dos modos, isto é,
                        mago é um dos raros lu-             das formas. Os fins são arcanos e parecem trans-
                        sofalantes que conseguiu            cender-se uns aos outros. Deixo-os, pois, para a
                        sair do círculo linguístico         análise de um filósofo, quiçá um existencialista,
                        português, que já escrito-          enquanto entro no terreno em que se desenvolve
                        res como Machado de Assis           a minha atividade.
                        consideravam uma prisão,                Ocupar-me-ei, portanto, apenas daquela orali-
                        e impor-se como escritor            dade que parece ter-se convertido na característi-
                        supranacional,     primeiro         ca que singulariza a escrita de Saramago, a partir
                        ibérico e depois, simples-          de um romance como Levantado do Chão, que em
                        mente, escritor pertencente         1980 marcou uma «passagem» criativa do nosso
                        ao mundo.                           autor. Uma passagem de toda a sua escrita, tanto
    A profunda relação com a realidade e a atua-            no sentido temporal como estilístico e de género,
lidade que a obra literária de José Saramago es-            mas também de êxito.
tabelece (seja a narrativa, seja a poesia, a crónica            Com efeito, o estilo oral, se queremos definir des-
ou o teatro), a sua componente de denúncia de               te modo o estilo narrativo mais recente de Saramago,
uma história cujas estruturas aparentes são des-            parece ter nascido nesta obra poética, juntamente
montadas e remontadas, seguindo de cada vez                 com tantas outras coisas, depois daquele 25 de abril
um desenho diferente, em busca de significados              de 1974, que, para a geração de Saramago e a minha,
sempre novos, fez com que, mesmo nestes dias                dividiu em dois, não só a História de Portugal (uma
tão ricos em invenções interpretativas, as formas           História com H grande) mas também a própria his-
tenham levado a pior ao enfrentar os conteúdos.             tória individual e política (aqui com minúscula) de
No entanto, penso que não é possível separar as             cada um dos seus membros. É então quando, depois
duas coisas e continuo a utilizar categorias como           da chamada Revolução dos Cravos, o escritor por-
as propostas por Hjelmslev: forma do conteúdo               tuguês José Saramago, que em todos esses anos de
e forma da expressão. Continuo a acreditar num              espera, mais além também do mito populista do self
estruturalismo que se obstina e decai; continuo a           made man, não tinha feito mais do que escrever, flo-
afirmar que numa obra tudo significa e que for-             resce, como por milagre, revelando-se como escritor
mas e conteúdos participam juntos na criação de             de primeiro plano não só na sua pátria mas também,
um sentido, do sentido concebido ao mesmo tem-              e sobretudo, no exterior. E floresce como portador
po como sentido atribuído pelo narrador e sentido           não apenas de uma nova forma de sentir e contar a
percebido pelo recetor, nessa obra determinada e            história, mas também como inventor de uma nova e
nessa determinada circunstância. Eis aqui a razão           muito peculiar escrita literária.
que justifica o título destas linhas: Um estilo como            A oralidade de Saramago é muito diferente,
ideologia.                                                  por exemplo, da dos escritores iberoamericanos
                                                       31
SARAMAGO 90 ANOS




                                                           pontos nem vírgulas: «Leiam-me em voz alta.»
A [linguagem]                                              É, por assim dizer, uma oralidade mentalizada,
                                                           evocada dentro do narrador omnisciente. Chega
de Saramago é                                              como uma música interior, re-elaborada pelo in-
                                                           consciente coletivo a que prefiro chamar social em
uma oralidade                                              vez de regional; e isto, mesmo quando o «oral» se
                                                           apresenta como a voz dos trabalhadores de uma

teorizada pelo                                             determinada região de Portugal, como o Alente-
                                                           jo. Os resultados gráficos desta «gravação» fóni-

próprio quando diz                                         ca são essas páginas compactas, aparentemente
                                                           sem pausas nem brancos (o silence alentour do li-

aos seus críticos                                          teratíssimo e gutenbergo-dependente Mallarmé),
                                                           sem marcas de pontuação nem grafemas conven-

e ao seu público                                           cionais, como as aspas para indicar o começo e o
                                                           final de uma réplica de diálogo. Saramago inventa

perplexo diante da
                                                           as suas próprias regras gráficas e em seguida res-
                                                           peita-as escrupulosamente (por isso nós, os seus
                                                           críticos, nos aborrecemos tanto quando os edito-
página compacta,                                           res, conhecedores de outras normas gráficas ge-
                                                           neralizadas, intervêm nas traduções, nivelando-
aparentemente sem                                          -as e, por conseguinte, trivializando-as com base
                                                           nessas normas). Quando Saramago introduz uma
fôlego, sem pontos                                         vírgula e uma maiúscula, estamos noutra frase,
                                                           na réplica de outro interlocutor, o qual, por outro

nem vírgulas:                                              lado, não fala diretamente com a sua voz, percebi-
                                                           da pelo narrador como distanciação teatral, dra-

«Leiam-me em voz                                           mático, brechtiano, mas sim que fala através da
                                                           «gravação», saboreando o autor cada palavra sua,

alta.»                                                     cada frase (o provérbio, o dito, a expressão polis-
                                                           sémica). E é a interpretação do autor o que chega
                                                           ao público. Por isso falo de sentido criado conjun-
                                                           tamente pela forma e pelo conteúdo. E por isso
                                                           continuo a falar de estilo como ideologia.
do nosso século, a começar por Jorge Amado e                   O estilo oral de Saramago, constituído por
Guimarães Rosa. Este último, ainda dentro de um            entoações, por traços supersegmentais, por su-
expressionismo cheio de alusões e implicações              blinhados, por mudanças de voz e de tom, pres-
cultas e universais, tenta reproduzir uma deter-           supõe uma execução coletiva, multivocal, em que
minada linguagem regional cujos pontos fortes              cada voz se distingue pela individualidade do
são as estruturas sintáticas e morfológicas, mas           timbre, mas que ao mesmo tempo está sujeita às
sobre todo o léxico, ainda que reinterpretado e al-        regras rigorosas de uma partitura, obedecendo a
terado. A de Saramago, em compensação, é uma               leis rítmicas, cromáticas, de appoggiatura e de ca-
oralidade teorizada pelo próprio quando diz aos            dência. Uma literatura para os ouvidos, além de
seus críticos e ao seu público perplexo diante da          para os olhos. Daí que Saramago insista sempre
página compacta, aparentemente sem fôlego, sem             nos condicionamentos tímbricos e melódicos que
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  • 2. Contar pelos d encont mão ch 2
  • 3. os dias dedos e trar a heia... 3
  • 4. leitu ras do mês A grande fusão editorial O boom latino-americano no Brasil meio século depois Durante alguns dias, a imprensa especializada O livro que permitiu discursos, ensaios, de- e os sites e blogs dedicados à edição e ao mercado bates e polémicas sobre o boom literário latino- livreiro não falaram de outra coisa: empresa edi- -americano não foi um romance, uma novela, um torial alemã Bertelsmann, proprietária da Ran- poemário. Foi um livro de entrevistas feitas por dom House, e a editora britânica Pearson, que Luis Harss, um académico da área da literatura, detém a mítica Penguin, passaram a ser uma só e publicado em 1966, que inaugurou o boom que entidade. Aparentemente, a notícia não seria re- deu ao futuro as premissas de um cânone que levante para a edição em língua portuguesa, mas continua sólido e coerente e que garantiu matéria com a globalização do mercado do livro e com as para reflexão sobre um momento e uma geografia relações entre grandes empresas multinacionais e que se tornaram um marco na literatura do século pequenas editoras locais cada vez mais estreitas, XX. No El País, Amelia Castilla assina um texto a criação da Penguin Random House é uma novi- sobre esse livro de Luis Harss, Los Nuestros, reedi- dade que pode alterar tudo. No blog A Biblioteca tado pela Alfaguara quase cinquenta anos depois de Raquel, associado ao jornal Folha de S. Paulo, da sua primeira publicação, e conta com declara- a jornalista Raquel Cozer regista algumas notas ções do autor sobre o seu trabalho, uma espécie de sobre esta fusão, procurando analisar os cenários balanço sobre o impacto que o livro teve no pano- possíveis para a edição brasileira na sequência do rama literário e universitário da época e sobre a surgimento do novo grupo editorial: “A Penguin já herança que permanece desse cânone que reunia marca presença aqui desde a aquisição de 45% da Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier, Juan Rulfo, Companhia das Letras, no ano passado. Tempos Miguel Ángel Asturias, Juan Carlos Onetti, Júlio atrás, o grupo Bertelsmann inaugurou um escri- Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa, tório em São Paulo, e representantes da Random Gabriel García Márquez e João Guimarães Rosa. House andaram conversando com editores brasi- leiros para avaliar opções de compra. Não saberia http://cultura.elpais.com/cultu- dizer se a fusão com a Penguin interromperia es- ra/2012/10/31/actualidad/1351696675_845653. sas conversas, considerando que a nova empresa html já detém parte de uma editora no Brasil, ou se ou- tras negociações continuam. Editores brasileiros com quem conversei creem que, após a situação se regularizar, a Penguin Random continuará com outras conversas.” http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol. com.br/2012/10/29/random-penguin- companhia/ 4
  • 5. Manuel Rivas As Voces Baixas Edicións Xerais Autor prolífico e com registos que andam pelos territórios da literatura e do jornalismo, Manuel Rivas tem construído o seu trabalho fic- cional numa sólida ligação com a geografia ga- lega, fazendo do mapa um território emocional a que não são alheias as memórias, o patrimó- nio ou os lugares de encontro. As Voces Baixas, romance publicado recentemente na Galiza, confirma essa ligação umbilical entre geografia e narrativa, um diálogo contínuo que suspende fronteiras entre factos e ficção para melhor al- cançar o espaço de uma certa herança comum. De certo modo, era o que acontecia já nos con- tos que compunham o livro Un Millón de Vacas, mas agora essa herança é abordada de um modo mais consistente. Fragmentário e estruturado como se de uma compilação de pequenas crónicas se tratasse, o texto ganha unidade à medida que se avança na leitura, percebendo-se os episódios da infância da morte, pequenas paragens que são a matéria do narrador como um mosaico de lembranças de uma vida e que são igualmente a única he- dispersas que, unidas pele exercício da memó- rança possível, a hipótese, mesmo que remota, ria enquanto modo de dar sentido ao presente, de aquilo que fica não ser apenas um nome nos dão à narrativa o fôlego romanesco anuncia- documentos do. Das pequenas descobertas dentro de casa aos primeiros tesouros conquistados à terra dura do monte do Faro, na Coruña, ao lado dos companheiros de aventura, a voz que narra As Voces Baixas percorre os locais da sua infân- cia enquanto com eles constrói um mapa, não um mapa saudosista e voltado para uma ideia paradisíaca de meninez, mas uma topografia identitária onde os elementos, os lugares e as aprendizagens quotidianas são linhas que mar- cam um caminho. Esse caminho andará pelos lugares da coragem e do medo, da respiração e 5
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  • 8. SARAMAGO 90 ANOS O das barbas é Deus, o outro é o Diabo Harold Bloom Tradução de Myriam Zaluar J Ilustrações de André Car r ilho e Cr istina Sampaio osé Saramago publi- de reconciliação de Pastor e que não manifesta cou O Evangelho Segun- amor nem compaixão por Jesus ou por qualquer do Jesus Cristo em 1991, ao outro ser humano. aproximar-se do seu septua- Isto deve fazer o livro parecer sublimemente gésimo aniversário. Como ultrajante, mas não é o caso, e penso que só um admirador crítico e feroz de sectário ou um tonto julgariam blasfemo o Evan- Saramago, tenho alguma gelho de Saramago. O Deus de Saramago tan- relutância em escolher este to pode ser astuto como doce e é dotado de um em detrimento dos seus ou- sentido de humor selvagem. Ninguém vai amar tros romances, mas trata-se este deus, mas ele também não pede nem espera de um trabalho espantoso, amor. Adoração e obediência são os seus requi- imaginativamente superior sitos e a violência sagrada é o seu recurso infini- a qualquer outra versão da to. Baruch Spinoza insistia que devíamos amar vida de Jesus, incluindo os Deus sem nunca esperar que Deus nos amasse quatro evangelhos canónicos. de volta. Ninguém poderia amar o Deus de Sa- Alguns dos laivos de ironia perdem-se na ex- ramago, a não ser que o amante estivesse tão celente tradução de Giovanni Pontiero mas mais profundamente envolvido em sado-masoquismo do que os suficientes sobrevivem ainda para sa- que se visse sem defesa perante a sua conduta. tisfazer o leitor consciente. Deus diz-nos no Evangelho que está insatisfei- A audácia de Saramago é triunfante no seu to com a pouca consistência que lhe é dada pelo Evangelho (diminutivo do título que usarei daqui seu povo eleito, os Judeus: para a frente). Deus, no Evangelho de Saramago, tem algumas afinidades com o Yahweh de J Wri- Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo ters e também com o Nobodaddy de Blake, mas deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa é importante notar que Saramago resiste a dar- e complicada, mas com quem, feito um balanço -nos o Ialdaboth gnóstico. No seu Post-Scriptum das nossas relações, não me tenho dado mal, uma Final Não-Científico, Kierkegaard observa ironi- vez que me tomam a sério e assim se irão manter camente que “dar ao pensamento supremacia so- até tão longe quanto a minha visão do futuro pode bre tudo o resto é gnosticismo”. Contudo o Deus alcançar, Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus, de Saramago escandaliza-nos de formas que Estou e não estou, ou melhor, estaria não fosse transcendem o intelecto, já que um Deus que é si- este inquieto coração meu que todos os dias me diz multaneamente verdade e tempo é a pior notícia Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de possível. O diabo de Saramago, deliciosamente quatro mil anos de trabalho e preocupações, que chamado Pastor, é a suavidade em pessoa com- os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e parado com o seu Deus, que recusa a tentativa variados que sejam, jamais pagarão, continuas a 8
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  • 10. SARAMAGO 90 ANOS ser o deus de um povo pequeníssimo depois para dentro de um forno e finalmente de- que vive numa parte diminuta do mundo que capitado. O gusto do Deus de Saramago recorda o criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu, de Edward Gibbon no Capítulo XVI da História meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta, do Declínio e Queda do Império Romano, excetuan- por assim dizer, vexatória evidência todos os do que Gibbon, mantendo o decoro, evita deta- dias diante dos olhos, Não criei nenhum mundo, lhar as numerosas variedades de martírio pela não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes tortura. Mas Gibbon antecipa de novo Saramago avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, A observando que os Cristãos “infligiram cruelda- alargar a minha influência, a ser deus de muito des bem maiores uns aos outros do que as que mais gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu tinham experimentado do zelo dos infiéis”. O papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, Deus de Saramago, com a sua voz algo cansa- estou certíssimo de que em pouco mais de meia da, fala da Inquisição como um mal necessário, dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, e defende a queima de milhares porque a causa com muitas contrariedades, passarei de deus dos de Jesus assim o exige. Uma olhadela à sobrecapa hebreus a deus dos que chamaremos católicos, da edição americana do Evangelho de Saramago à grega, E qual foi o papel que me destinaste assegura-nos que desafiar a autoridade de Deus no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, o Pai “continua a não ser a sua renegação”. que é o que de melhor há para fazer espalhar uma Embora seja necessariamente um persona- crença e afervorar uma fé. As duas palavras, gem secundário quando comparado com o Jesus mártir, vítima, saíram da boca de Deus como se de Saramago, Deus pede para ser escrutinado a língua que dentro tinha fosse de leite e mel, mas para além dos seus aspetos ameaçadoramente um súbito gelo arrepiou os membros de Jesus, tal cómicos. Em primeiro lugar, o Deus do Evange- qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele, lho é tempo, e não verdade, o outro atributo que ao mesmo tempo que o Diabo o olhava com uma afirma. Saramago, um marxista (excêntrico) e expressão enigmática, misto de interesse científico não um cristão, subverte Santo Agostinho na e involuntária piedade. teodiceia do tempo. Se o tempo é Deus, então a Deus nada pode ser perdoado, e, seja como for, Deus está impaciente e não quer ser desmo- quem haveria de querer perdoar-lhe? Mas então, ralizado; estes são os seus motivos para vitimar o Deus do Evangelho não está minimamente in- Jesus, e, consequentemente, para torturar até à teressado em perdão: ele não perdoa ninguém, morte os milhões que morrerão como sacrifícios nem mesmo Jesus, e recusa perdoar Pastor, por Jesus, quer afirmem ou reneguem este últi- quando o diabo faz uma proposta honesta de mo. Este Deus é o maior dos comediantes, como obediência. O poder é o único interesse de Deus, ficamos a saber a partir do seu canto dos márti- e o sacrifício de Jesus usa a perspetiva do perdão res: uma “ladainha, por ordem alfabética para dos nossos pecados apenas como aviso. Deus dei- evitar melindres de precedências”. A ladainha é xa claro que somos todos culpados e que prefere absolutamente maravilhosa, desde Adalberto de manter as coisas assim. Jesus não é expiação: a Praga, executado com um espontão de sete pon- sua crucificação é apenas um mecanismo através tas, a Wilgeforte, ou Liberata, ou Eutrópia, vir- do qual Deus deixa de ser judeu e passa a ser ca- gem, barbuda, crucificada”. Ao longo de quatro tólico, um convertido em vez de um marrano. páginas de comprimento, o catálogo da violência Isto é de uma ironia soberba, e Saramago faz sagrada tem delícias como Blandina de Lião, per- dela uma forma de arte superior, embora reduzi- furada por um touro bravo, e o desafortunado -la criticamente a tal seja um convite a um ataque Januário de Nápoles, primeiro atirado às feras, católico. De todas as representações fictícias de 10
  • 11. SARAMAGO 90 ANOS Deus desde a dos jeovistas, voto pela de Sarama- do Livro de Jó, que anda de um lado para o ou- go. Ela é ao mesmo tempo a mais engraçada e a tro, e para cima e para baixo na Terra. E contu- mais empolgante, no género dos heróis-vilões de do o Satanás de Jó era um acusador; Pastor não. Shakespeare: Ricardo III, Iago, Edmundo no Rei Por que permanece Jesus quatro dias com Pas- Lear. tor, como aprendiz? O anjo, que chega atrasado para dizer a Maria que Jesus é filho de Deus diz- Pastor, ou o diabo, tem o seu próprio charme, -nos que “o Diabo é o espírito que se nega”, o que ao encarnar uma representação muito original é extravagantemente ambíguo, e poderia querer de Satanás. Um homem gigante, com uma ca- dizer que o Pastor resiste a desempenhar o papel beça enorme, Pastor permite a Jesus tornar-se o que Deus lhe atribuiu. O anjo de Maria, depois seu assistente pastor para um grande rebanho de nos dizer que o Pastor foi seu colega de escola, de ovelhas e cabras. Em resposta à piedosa ex- diz que Pastor prospera porque “Assim o exige clamação de Jesus – “Só o Senhor é Deus – o não a boa ordem do Mundo”. Há então uma relação judeu Pastor responde com grande pungência: secreta entre Pastor e Deus, que alarma os discí- pulos de Jesus. Quando Deus, vestido como um Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, judeu rico, aparece a Jesus no barco, Saramago mas era melhor que fossem dois, assim haveria um imagina uma magnífica reentrada para Pastor: deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para A barca oscilou com o impulso, a cabeça ascendeu o condenado, um deus para o carrasco da água, o tronco veio atrás escorrendo qual catarata, as pernas depois, era o leviatã surgindo Este sensato dualismo não é exatamente satâ- das últimas profundidades, era, como se viu, nico, e Pastor mantém-se mais amável que Deus passados todos estes anos, o pastor, que dizia Cá ao longo do romance. Nos diálogos entre o diabo estou eu também, enquanto se ia instalando na e o jovem Jesus, o papel do diabo prevalece cla- borda do barco, exatamente a meia distância entre ramente, embora honradamente, à diferença do Jesus e Deus, porém, caso singular, a embarcação domínio de Deus sobre Jesus da primeira vez que desta vez não se inclinou para o seu lado, como pai e filho se encontram no deserto. Deus exige se Pastor tivesse decidido aliviar-se do seu como sacrifício uma ovelha querida para Jesus próprio peso ou levitasse parecendo estar sentado. e este acede relutantemente. Pastor, ao saber do Cá estou, repetiu, espero ter chegado ainda a facto, abandona Jesus: “Não aprendeste nada, tempo de assistir à conversa, Já íamos bastante vai”. E Pastor, até aqui, está certo: a aprendiza- avançados nela, mas não tínhamos entrado no gem de Jesus sobre a natureza de Deus só será essencial, disse Deus, e, dirigindo-se a Jesus, completada na cruz. Este é o Diabo, de quem falávamos há pouco. Que devemos então fazer de Pastor? O diabo Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que, de Saramago é humano, no entanto é apenas um tirando as barbas de Deus, eram como gémeos, cético: ele sabe demasiado sobre Deus. Se o Deus é certo que o Diabo parecia mais novo, menos de Saramago é um convertido português, então o enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um diabo de Saramago nunca foi judeu, e, parece es- engano por ele induzido. Disse Jesus, Sei quem tranhamente desconexo tanto com Deus quanto é, vivi quatro anos na sua companhia, quando com Jesus Cristo. Por que está Pastor no livro? se chamava Pastor, e Deus respondeu, Tinhas Evidentemente, apenas como testemunha, é o de viver com alguém, comigo não era possível, que penso que se deve concluir. Saramago parece com a tua família não querias, só restava o querer levar-nos de volta ao Satanás não-caído Diabo, Foi ele que me foi buscar, ou tu que me 11
  • 12. SARAMAGO 90 ANOS enviaste a ele, Em rigor, nem uma coisa nem dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são, outra, digamos que estivemos de acordo em que verdades de mim, porém nunca sei até que ponto essa era a melhor solução para o teu caso, Por são as verdades dos outros mentiras deles. isso ele sabia o que dizia quando, pela boca do possesso gadareno, me chamou teu filho, Tal Saramago chama secamente a isto uma “ti- qual, Quer dizer, fui enganado por ambos, Como rada labiríntica”, mas ele quer dizer que ela acu- sempre sucede aos homens, Tinhas dito que não sa claramente Deus, cujas verdades são efeti- sou um homem, E confirmo-o, poderemos é dizer vamente as suas mentiras. A causa do Deus da que, qual é a palavra técnica, podemos dizer que Igreja Católica que será fundada sobre Jesus só encarnaste, E agora, que quereis de mim, Quem é verdadeira na medida em que é historicamente quer sou eu, não ele, Estais aqui os dois, bem vi horrível, e o entusiasmo que Deus manifesta ao que o aparecimento dele não foi surpresa para ti, enumerar os mártires e ao resumir a Inquisição portanto esperava-lo, Não precisamente, embora, tem inconfundíveis laivos de sadismo. De uma por princípio, se deva contar sempre com o Diabo, forma alarmante, Deus (um bom agostinhano, Mas se a questão que temos que tratar, tu e eu, antes de Agostinho) desaprova todas as alegrias apenas nos diz respeito a nós, por que veio ele cá, humanas como sendo falsas, uma vez que todas por que não o mandas embora, Pode‑se despedir elas emanam do pecado original: a arraia-miúda que o Diabo tem ao seu serviço, “a luxúria e o medo, são as armas com que o no caso de ela começar a tornar-se inconveniente Demónio atormenta as pobres vidas dos homens” por atos ou palavras, mas o Diabo, propriamente dito, não, Portanto, veio porque esta conversa é Quando Jesus pergunta a Pastor se isto é ver- também com ele, Meu filho, não esqueças o que te dade, a resposta do diabo é eloquentemente es- vou dizer, tudo quanto interessa a Deus, interessa clarecedora: ao Diabo Mais ou menos, respondeu ele, limitei-me a tomar Como Deus e o Diabo são gémeos (já o tínha- para mim aquilo que Deus não quis, a carne, com a mos suspeitado), é uma delícia dizerem-nos que sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice, não podemos viver com Deus, e que portanto te- a frescura e a podridão, mas não é verdade que o mos de escolher entre a nossa família e o diabo. medo seja uma arma minha, não me lembro de ter Deus fala do seu desejo de ser Deus dos Católi- sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e o cos, mas esta sua ambição já se vislumbrou, e o medo que neles há sempre que quero aqui perguntar é: por que está Pastor no barco? A sua expressão é um misto de “de in- Tendemos a acreditar nisto quando Deus teresse científico e involuntária piedade”, mas exclama em resposta: “Cala-te, …, o pecado e o ele está ali porque, como Jesus argutamente su- Diabo são os dois nomes duma mesma coisa”. É põe, ampliar o domínio de Deus é também am- preciso Deus dizer isto? O Cardeal-arcebispo de pliar o do diabo. E no entanto o pobre Pastor tem Lisboa não diria o mesmo? A resposta de Sara- as suas perplexidades: mago é misteriosa. Deus descreve as Cruzadas por travar contra o não-nomeado Alá, que Pastor Fico, disse Pastor, era a sua primeira palavra repudia criar: desde que se tinha anunciado, Fico, repetiu, e depois, Posso, eu próprio, ver algumas coisas do Mas então, perguntou Pastor, quem vai criar o futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir Deus inimigo. Jesus não sabia responder, Deus, se é verdade ou mentira o que julgo ver, quer se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro 12
  • 13. SARAMAGO 90 ANOS desceu uma voz que disse, Talvez este Deus e o que há de vir não sejam mais do que heterónimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ter sido, Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o medo comum é assim, une facilmente as diferenças. Só aqui, no Evangelho de Saramago, ouvi- mos uma voz para além da de Deus. De quem é? Quem poderia proclamar o que Deus não deseja dizer, isto é que ele e Alá são um só? Como um Deus tão manhoso e pouco amável como o de Sa- ramago, tanto nós quanto Saramago ansiamos por um Deus para além de Deus, talvez o Alien ou o Deus Estranho dos Gnósticos. Mas, quem quer que seja este Deus, ele não voltará a falar neste romance. Muito habilmente, Saramago acabou de nos dizer explicitamente aquilo que vinha dizendo implicitamente ao longo da obra: Deus e Jesus pragmaticamente são inimigos, ain- da que Pastor seja involuntariamente inimigo de ambos. Porém, em que consiste tal inimizade? Em reação à descrição que Deus faz da Inquisi- ção, Pastor comenta: É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue O grande momento de Pastor – e é uma de entre a mão-cheia de passagens-chave no livro – chega com a sua vã tentativa de reconciliação com Deus: Pastor fez um silêncio, como se procurasse as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, 13
  • 14. SARAMAGO 90 ANOS A glória do uma vez que sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais do que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado do que o céu, Então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas Evangelho de depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que tu o sabe, que o Diabo Saramago é o Jesus também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, Quero hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito de Saramago, que e quero que o teu poder se alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e pois me parece humana que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal que eu sou e ando a governar no e esteticamente mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no mais admirável do futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui que qualquer outra versão de Jesus na um dos teus anjos prediletos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava, antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber- te e perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se literatura do século usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à que ora acaba. direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta Não é suficiente louvar a originalidade de Sa- terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido ramago em pintar o seu diabo de forma totalmente e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, não-diabólica. Temos de ir mais longe. O enigmá- por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na tico Pastor é o único diabo que poderia ser esté- última e humilde fila dos anjos que te permaneceram tica e intelectualmente apropriado na conclusão fiéis, mais fiel então do que todos, porque do Segundo Milénio. Excetuando o facto de não arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo poder ser crucificado, este anjo caído tem de lon- terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ge mais em comum com o Jesus de Saramago do ser como se dessa maneira devesse ser sempre que com o Deus de Saramago. São ambos vítimas de Deus, sofrendo da tirania do tempo, que Deus A ironia do humano Pastor e do desumano chama verdade. Pastor é resignado, e menos re- Deus não poderia ser mais bem justaposta. Deus belde que Jesus, mas é porque Pastor sabe tudo o deixa claro que preferiria um diabo ainda pior, que há para saber. Como leitores, permanecemos se tal fosse possível, e que sem o diabo, Deus não mais próximos do estranho diabo de Saramago do pode ser Deus. Pastor, que foi persuasivamente que ao seu malévolo e irónico Deus. sincero, encolhe os ombros e vai-se embora, após recuperar de Jesus a velha tigela negra de Nazaré A glória do Evangelho de Saramago é o Jesus para dentro da qual o sangue de Jesus escorrerá de Saramago, que me parece humana e esteti- nas palavras finais do romance. camente mais admirável do que qualquer outra 14
  • 15. SARAMAGO 90 ANOS versão de Jesus na literatura do século que ora importante. O Jesus de Saramago é um ironista, acaba. Talvez o de O Homem que Morreu, de D.H. um espantosamente suave ironista, se conside- Lawrence, seja um concorrente à altura, mas o rarmos a sua vitimação por Deus. Antes de en- Jesus de Lawrence é um grande vitalista lawren- contrar João Baptista, é dito a Jesus que João é ciano, mais do que um ser humano possível. O mais alto, mais pesado, mais barbudo, andrajoso Jesus de Saramago é paradoxalmente o mais ca- e que sobrevive de gafanhotos e de mel selvagem. loroso e memorável personagem de todos os seus livros. W. H. Auden, crítico de poesia cristão, en- “Parece bem mais o Messias do que eu”, disse Jesus, controu estranhamente no Falstaff de Shakespe- e levantou-se da roda are um tipo de Cristo. Cito um parágrafo de Au- den para enfatizar o quão distantes tanto o Deus O romance de Saramago começa e termina quanto o Jesus de Saramago se encontram até com a Crucificação, apresentada no princípio de um generoso e não-dogmático ponto de vista com uma ironia considerável, mas no final com cristão: um pathos terrível: O Deus cristão não é um ser autossuficiente como Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, o da Primeira Causa de Aristóteles, mas um Deus quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se que cria um mundo que continua a amar ainda abre de par em par e Deus aparece, vestido como que este se recuse a amá-lo de volta. Aparece neste estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a mundo, não como Apolo ou Afrodite poderiam terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, aparecer, disfarçado de homem para que nenhum em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus humano possa reconhecer-lhe a divindade, mas compreendeu que viera trazido ao engano como se como um verdadeiro homem que abertamente leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora proclama ser Deus. E a consequência é inevitável. traçada para morrer assim desde o princípio dos As mais altas autoridades religiosas e temporais princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue condenam-No como um blasfemo e um Senhor do e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar Desgoverno, como um mau Companheiro para toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus a humanidade. Inevitável porque, como disse sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o Richelieu “A salvação do Estado está neste mundo” que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, e a História ainda não nos forneceu qualquer estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo prova de que o Príncipe deste mundo tenha os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te mudado de carácter todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando O Deus de Saramago, como referi, não ama o sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre mundo nem espera que o mundo o ame de vol- lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu ta. Ele deseja poder, tão extenso quanto possível. por um homem que se afastava com um balde e uma E o Jesus de Saramago não passa da aparência cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a de um Deus “disfarçado de homem”, embora o tigela negra para onde o seu sangue gotejava. seu Jesus tenha sido sequestrado por Deus, para servir os propósitos de poder de Deus. Quanto a “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe Satanás, “o Príncipe deste mundo”, sabemos que o que fez” testemunha tanto da doçura de Jesus Saramago mudou o seu carácter. quanto da fúria esteticamente controlada de Sa- O título do romance é O Evangelho Segundo Je- ramago. Nem um leitor desinteressado, livre de sus Cristo, sendo que “segundo” é o termo mais ideologias e de credos, irá perdoar o Deus de 15
  • 16. SARAMAGO 90 ANOS Saramago pelo homicídio de Jesus e pelas con- livro, tal como se concedem anacronismos sem sequentes torrentes de sangue humano que dele fim a Shakespeare. Porém, a culpa não é uma resultarão. Stephen de Joyce fala do “Deus car- preocupação do Jesus apenas tradicional que rasco”, como alguns italianos ainda o chamam, me move, o Jesus do Evangelho de Tomás. Em- e este é precisamente o Deus de Saramago. Isto bora eu seja um Gnóstico Judeu a explicar um por si só seria suficientemente aterrador mas é belo livro escrito por um português que não é ainda ampliado pelo longo e amoroso retrato que um católico, não mais do que Fernando Pessoa o Saramago faz de Jesus. era. Neste preciso ponto da narrativa, Saramago A história deste Jesus principia e termina junta Jesus e Pastor, e aquela curiosa estadia que com uma tigela de cerâmica, que começa por ser examinei previamente. oferecida a Maria, a mãe de Jesus, por um pedin- E contudo a principal ligação de Jesus na sua te, um anjo aparente. A tigela transborda de terra vida, como Saramago a vê e conta, não é nem com luminosa, presumivelmente por cair; no final ela os seus pais, nem com o diabo, nem com Maria a recolhe o sangue de Jesus moribundo. O pedinte sua mãe, mas com a prostituta Maria Madalena. é Deus, e não Pastor, e aparece de novo a Maria De todos os esplendores do Evangelho de Sara- num sonho-visão que é também um encontro mago, o amor entre Jesus e a Madalena é o mais amoroso. Quando Jesus nasce, Deus manifesta- grandioso, e o seu encontro e união é para mim o -se de novo como o terceiro dos pastores que pas- auge da obra de Saramago, até à data. Ecoando o sam, trazendo pão de um tipo oculto. Supõe-se Cântico dos Cânticos, Saramago é um grande ar- que se trata de uma analogia subtil à semente de tista quando entrelaça uma réplica a Pastor com Deus que resulta na carne de Jesus, mas Sarama- o despertar de Jesus para a vida sexual: go é de tal forma matizado que a suposição tem por vezes de ser evitada, neste livro misterioso. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um Aos treze anos de idade, Jesus sai de casa por- momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando que os Romanos crucificaram o seu pai José, uma as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a invenção totalmente da autoria de Saramago, tal direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta como a cumplicidade parcial de José no massa- carícia, na direção uma da outra, ambas atraídas cre dos inocentes por Herodes é também uma ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, sugestão bastante surpreendente de Saramago, e não se detiveram mais do que um instante, para é também outro tormento para Jesus que o leva regressarem com a mesma lentidão ao ponto de mais adiante no seu caminho. partida, donde recomeçaram o movimento. Não Mas por que altera tanto a história Saramago? aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá Talvez esta seja de todas a versão mais humana quisesse dizer que ele não aprendera a defender a de um Jesus que tem de sofrer a escuridão de dois vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe pais, o amoroso, desafortunado e culpado José, e o sem-amor, afortunado e ainda mais culpado Deus. Podemos anular o “quiçá” e Maria de Mag- Quando o menino Jesus se disputa com os dala é a melhor professora de Jesus, eclipsando doutores da Lei no Templo, lembro-me outra vez José, Deus, Pastor e Maria a mãe. No momento de como o agostiniano Saramago fez Deus e a Lei. que deve ser o mais irónico do livro ela ensina- Ninguém discute com este anacronismo, porque -lhe a liberdade, que Deus não permite a nenhum o Deus de Saramago está ele próprio ansioso por homem, e particularmente não permite ao único abandonar o judaísmo (por assim dizer) pelo ca- filho de Deus. tolicismo. E além disso, podemos conceder a Sa- Eu próprio acabei de fazer setenta anos e ramago os seus anacronismos neste maravilhoso pergunto com mais urgência que antes: onde 16
  • 17. SARAMAGO 90 ANOS pode ser encontrada a sabedoria? A sabedoria génio narrativo tão audacioso inspira audácia ao do Evangelho de Saramago é muito dura: só per- seu crítico. Ninguém será crucificado nos mas- doando Deus podemos emular Jesus, mas não tros da Ilha Desconhecida, e os pesadelos deste acreditamos, com Jesus, que Deus não sabe o que Jesus não se realizarão. O conto feliz de Sarama- Deus fez. go é um antídoto momentâneo à mais trágica das Encontro o epílogo para o Evangelho, não na suas obras. Cuidado com um Deus que é ao mes- Cegueira, uma parábola tão obscura como qual- mo tempo verdade e tempo, avisa-nos Saramago, quer outra, mas no encantador Conto da Ilha Des- e abandone-se um tal Deus para navegar em bus- conhecida, uma breve fábula composta em 1998, ca de si mesmo. o ano do prémio Nobel, e traduzida um ano mais tarde por Margaret Jull Costa. Na maravilhosa veia cómica de O Cerco de Lisboa, o conto de Sa- Obras citadas ramago começa com um homem pedindo a um Auden, W.H. “The Prince’s Dog.” The Dyer’s rei um barco para navegar em busca da ilha des- Hand and Other Essays. New York: Random conhecida. Conseguido o barco, o homem deixa House, 1962. 182–208. o porto, seguido pela mulher da limpeza do rei, Gibbon, Edward. The History of the Decline que irá constituir o resto da tripulação. and fall of the Roman Empire. Vol. 1. New York A mulher da limpeza, com um soberbo de- Heritage Press, 1946. sassombro, faz o voto que ela e o homem sejam Kierkegaard, Søren. Concluding Unscientific suficientes para levar a caravela até à ilha desco- Postscript to Philosophical Fragments. Vol. l. Ed. nhecida, animando assim o homem, cuja vonta- and trans. Howard V. Hong and Edna H. Hong. de não se equipara à dela. Deitam-se em beliches Princeton: Princeton UP, 1992. separados, bombordo e estibordo, mas ele tem Saramago, José. The Gospel According to Jesus pesadelos, até que encontra a sombra dela ao Christ, Trans. Giovanni Pontiero. New York: lado da sombra dele: Harcourt Brace, 1994. ———. The Tale of the Unknown Island. Trans. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, Margaret Jull Costa. New York: Harcourt Brace, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que 1999. não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. NdT: a passagem a negrito não consta do texto em inglês. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a Suponho que o tradutor do Evangelho não tenha conseguido mulher foram pintar na proa do barco, de um lado passar para o inglês o jogo de palavras sobre Pessoa e os hete- e do outro, em letras brancas, o nome que ainda rónimos, tendo optado por saltar a referência e por traduzir “não sejam mais do que heterónimos” por “sejam o mesmo faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com Deus”. a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma. Saramago não nomeia ninguém: sou critica- mente ultrajante o suficiente para me aventurar com algumas nomeações experimentais, como antítese ao Evangelho de Saramago. Chamemos ao homem Jesus Cristo, experimentemos a mu- lher da limpeza como Maria Madalena e o rei, que existe para receber favores, será Deus. Sem dúvida, Saramago abanaria a cabeça, mas um 17
  • 18. SARAMAGO 90 ANOS A Coragem de José Saramago Mario Benedetti 16 de outubrode 1988 A Ilustração de João Fazenda ou torga ç ã o do mais adequados para a literatura. À parte O Ano Nobel a José Saramago, da Morte de Ricardo Reis, essa obra-prima que lhe para alegria dos seus deu fama, os seus dois últimos romances, Ensaio fiéis leitores e raiva do sobre a Cegueira e Todos os Nomes, perscrutam, não Vaticano, honra, é cla- nas aparências mas sim nas essências do ser hu- ro, o escritor português mano. Estas obras fora de série são duas grandes mas, e sobretudo, pres- metáforas, duas insólitas ficções, mas uma vez tigia a Academia Sue- instalado nelas, o autor guia-as com a naturali- ca e revela a sua atual dade com que conduziria relatos de costumes. O independência, já que leitor descobre que o extravagante se torna quo- premiar neste globaliza- tidiano, que o paradoxal se torna corrente, e isso do fim de século um es- é o que mais perturba porque, entre outras coi- critor confessadamente sas, o leitor torna-se cego com todos os cegos e comunista não me parece que a benquiste com recupera a visão ao mesmo tempo que eles. os turiferários do poder. Poucos dias depois de o No entanto, o verdadeiro complemento desta Papa ter beatificado uma personagem croata que obra esplêndida é José Saramago como pessoa. colaborou abertamente com o fascismo, a hipó- Confesso que admiro essa pessoa tanto como ad- crita indignação do Vaticano face ao último Nobel miro a sua obra. Tive a sorte de conhecê-lo em mereceu esta resposta de Saramago: «O Vaticano 1987. Tínhamos assistido a um Encontro de Es- escandaliza-se facilmente pelos outros e não pelos seus critores em Berlim e estivemos cinco horas no próprios escândalos. Gostaria que o Vaticano me ex- aeroporto de Roma, à espera da ligação com um plicasse o que é isso de ser um comunista recalcitrante. voo que nos trouxesse a Madrid. Ele estava com a Talvez queiram dizer coerente. Eu só digo ao Vaticano sua mulher, Pilar del Río, uma simpática andalu- que continue com as suas orações e deixe os outros em za, que com o passar dos anos se converteu tam- paz. Tenho um profundo respeito pelos crentes, mas bém na sua melhor tradutora. Cinco horas são não pela instituição da Igreja. O cristianismo ensi- suficientes para falar de todos os temas do Uni- nou-nos a amar-nos uns aos outros. Eu não tenho a verso e arredores. Não nos tínhamos lido um ao intenção de amar toda a gente, mas sim a de respeitar outro, pelo que, a pedido de Pilar, começámos a toda a gente». «contar» os nossos livros. O melhor foi que des- A verdade é que o comunismo militante de Sa- se encontro nasceu uma boa e sólida amizade, ramago nunca o assimilou ao chamado realismo que teve um belo auge quando, no dia seguinte socialista. Os seus romances são de um nível e ao do anúncio do Nobel, Saramago me telefonou de um rigor literários verdadeiramente exce- do avião que o levava de Frankfurt a Madrid (eu cionais. Saramago não só é um narrador origi- estava ainda a convalescer de uma operação) e nal, como também tem a coragem de se atrever pude assim dar-lhe o meu forte abraço aéreo. a escrever sobre temas que não parecem ser os Uma coisa que muito admiro em Saramago é a sua 18
  • 19. 19
  • 20. SARAMAGO 90 ANOS «Quero que os do capital mundial. E concluiu: «Por isso é que este mundo é uma merda.» Aplaudiram-no. jovens saibam que Que na globalização da hipocrisia em que vivemos, quando a relação de Monika Lewinsky ocupa mais nós, os velhos, títulos de imprensa do que a crise israelo-palesti- niana, a queda da bolsa nipónica ou a extensão da SIDA, quando a globalização da frivolidade não só estamos aqui para engloba consumidores e consumidos mas também políticos e intelectuais; que logo agora surja um es- trabalhar». E ele critor que não tem medo do compromisso e diz com toda a claridade e simplicidade o seu decálogo de trabalha. Romance verdades, parece-me um acontecimento extraordi- nário. Para muitos intelectuais que passeiam com o após romance. seu pedestal às costas e transportam o seu silêncio culpado para não se zangarem com o Big Brother, a atitude normal e sem rebuços de Saramago vai direita à consciência. Nunca o vimos fazer conces- forte coerência e o seu valor para a manter. Recor- sões para obter prémios ou privilégios, e quando do que, em 1992, em plena Exposição de Sevilha, no seu país deu de caras com a censura, preferiu ele disse coisas como esta: «Existe a irresistível ten- exilar-se com Pilar em Lanzarote, onde vivem tação de nos perguntarmos se os gigantescos impérios tranquilos com o seu cão Camões e onde os novos industriais e financeiros de hoje não estão, como pode- livros têm vindo a surgir. A partir dessa ilha singu- res supranacionais que são, a reduzir a probabilidade lar, viaja e ouve com ouvido faulkneriano o som e a democrática, que se encontra conservada na sua for- fúria do mundo. Com a sua melhor solidariedade, ma mas, se não me engano, demasiado pervertida na submerge-se em Chiapas. Tenta (para mal-estar da sua essência.» Igreja) humanizar o próprio Jesus. Recorda aos jo- Vários anos depois, quando se apresentou em vens que se tivesse morrido aos 60 anos, não teria Madrid a versão espanhola de Ensaio sobre a Ce- escrito nada, e aos 75 anos adiciona: «Quero que os gueira, Saramago expressou a sua polémica opi- jovens saibam que nós, os velhos, estamos aqui para nião sobre a democracia, e que era mais ou me- trabalhar». E ele trabalha. Romance após romance. nos assim (não guardei a citação textual): É certo Compromisso após compromisso. «Toda a minha que, em democracia, os povos elegem os seus obra é uma meditação sobre o erro», disse em 1990. deputados, por vezes o seu presidente, mas esses Talvez por isso atravesse a história, a cegueira, a governantes democraticamente eleitos são ime- rotina, a fé, como um esforço para desfazer agravos diatamente pressionados, dirigidos, adminis- e também para a si mesmo se emendar os defeitos. trados, manipulados e virtualmente suplanta- Com Nobel ou sem Nobel, José Saramago é dos pelos grandes decisores supranacionais, tal um dos criadores mais notáveis que nos deu este como o Fundo Monetário Internacional, o Banco século que agora nos deixa, e não só da desaten- Mundial ou a Trilateral. «E a estes», perguntou dida língua portuguesa, mas também da univer- Saramago, «quem os elege?» sal língua do homem. Há poucas horas, na concorridíssima conferên- cia de imprensa que deu em Madrid após a ob- tenção do Nobel, recordou que um grupo social francamente minoritário é o dono da maior parte 20
  • 21. SARAMAGO 90 ANOS Linguagem e História segundo José Saramago Manuel Gusmão N a circunstância – pode então comportar o confronto de pontos de a da atribuição do Nobel vista. Este modo de frasear produz efeitos rítmicos –, vale a pena procurar e prosódicos, percecionados por uma espécie de na leitura da obra roma- ouvido mental, e coopera com a construção de uma nesca de José Saramago imagem ou de um efeito do narrador oral, partici- alguns dos traços da sua pante ativo naquilo que conta. Entretanto, pela sua singularidade. Sabendo dimensão plurivocal, e sobretudo quando a liga- que qualquer singulari- mos a outros traços do universo romanesco que ela dade se tece numa rede ajuda a construir, esta forma de frase produz um de relações e numa parti- outro efeito particularmente importante; ela mos- cular constelação de pro- tra a radical socialidade da linguagem, de qualquer cedimentos, proponho- língua, e de qualquer ato de fala. Mostra aquilo que -vos algumas notas em em alguma teoria da linguagem se tematiza, quan- torno de dois tópicos: o dos modos da escrita, e o do se diz que nunca ninguém diz sozinho uma fra- das configurações da historicidade. se – há sempre o outro que a ouve, o outro da com- preensão, da resposta, ou da dissensão. Mesmo na Linguagem... câmara íntima de cada um, a frase que só dizemos A obra romanesca de José Saramago é marcada mentalmente é dita a um desdobramento do eu. por dois gestos verbais para cuja conexão gostaria Por outro lado, falamos sempre com «as palavras de chamar a atenção. Por um lado, trata-se de uma dos outros», deformando-as um pouco, é certo; e forma de frase e, designadamente, de uma pontu- por aí passa a possibilidade da individuação e da ação que aparece como característica, e, por outro, singularidade. É nesse sentido, também, que o di- daquilo que se pode descrever como uma apropria- álogo é a forma básica da fala, e que numa só frase ção ativa da herança literária, cruzada com a inven- se podem ouvir várias vozes. A plurivocalidade é ção e a imitação de formas da coloquialidade mais também polifonia. comum. A sua frase parece por vezes conter, entre Esta assunção da socialidade da linguagem, dois pontos finais, várias frases, ditas no mínimo inserida como um dispositivo da narração, pode por duas personagens e, frequentemente, por três ainda ligar-se ao modo como insistentemente, (sendo que uma dessas personagens pode ser a do em alguns dos seus romances, se joga com esse narrador). Essas frases, contidas numa, são sepa- tipo particular de frases do idioma que são os radas por vírgulas que podem estar a substituir provérbios, frases supostamente indeformáveis pontos de interrogação», são dados apenas pela que conteriam, congelado, um sentido único, maiúscula inicial de uma palavra que vem depois uma sabedoria monológica. de uma vírgula. Estamos perante uma frase pluri- Saramago chega aqui de duas maneiras: por vocal: é como se fossem vários a dizer uma frase, um lado, pode usar o «mesmo» provérbio em e essa frase, que é um acontecimento do diálogo, contextos diferentes, de modo a mostrar que ele 21
  • 22. SARAMAGO 90 ANOS pode significar coisas diversas e, no limite, inver- história em Saramago. Talvez possamos dizer sas; por outro lado, deforma e inventa provér- que o processamento ficcional dos seus roman- bios. Este modo de usar e construir provérbios ces constitui uma forma singular de ficciona- constitui uma marca do jogo verbal (o homo lo- lização de matéria histórica. Antes de avançar, quens é também um homo ludens) e um processo gostaria de lembrar, até porque também nisso do ironização (de «carnavalização») do saber, ou joga Saramago, que usamos a palavra «história» do «dialogismo» (vale a pena ler, a propósito, o em pelo menos três sentidos; (a) a história que é ensaio de José Mattoso sobre os provérbios por- a existência dos humanos no tempo, a história tugueses). que em dadas condições fazemos e vivemos; (b) Esta ostensão do uso das «palavras dos ou- a história enquanto nome de uma disciplina, os tros», de que acima falei, é o que podemos en- escritos historiográficos; (c) e a atividade de con- contrar num outro plano textual no regime ci- tar «estórias» (histórias de vida, contos vários, tacional de certos romances de Saramago (por relatos, lendas, mitos, etc.). O que fazemos em exemplo, em O Ano da Morte de Ricardo Reis) e, (b) e (c) tem parte, ou é parte, tendencialmente mais amplamente, no modo como ele se apropria conflitual, do que fazemos em (a). Quando conta- de registos discursivos e estilísticos da tradição mos ou escrevemos história, não nos limitamos a literária. Por aqui passa, agora, a dimensão tex- conhecer ou imaginar um passado, inscrevemos tual (escrita) da narração, que «corrige» a ima- o nosso presente e estamos de alguma forma à gem do narrador oral. A citação (assinalada ou escuta do que aí vem (chamamos-lhe o futuro). não), glosa e deformação de versos de Pessoa- Em José Saramago, a lição de matéria históri- -Ricardo Reis, a transformação de uma fórmula ca (passada, atual, ou de um futuro inventado), de Camões na primeira e na última frases desse mesmo quando produz mundos possíveis, no livro «sobre» Reis, as revisitações do barroco, a limite alternativos ao mundo empírico tal como imitação de ritmos sintáticos e construções re- é socialmente construído pelo senso comum, re- tóricas do padre António Vieira (que abrem, por conhecido pela historiografia, ou reconstituído exemplo, a Viagem a Portugal), os ecos de Garrett pelas ciências da natureza, é uma ficção histórica ou de Camilo, constituem mais do que um gesto nos seus gestos, uma ficção que historiciza o vi- de integração no cânone, mais do que homena- ver. Giuseppe Tavani assinalou já como a última gens aos antepassados. Cruzam-se com os gestos frase do 1.° capítulo de Levantado do Chão indi- de imitação da oralidade e das vozes populares cia eficazmente aquilo que podemos tomar como e são uma forma de apropriação autoconstituti- uma persistente e variante estratégia narrativa. va, um operador de historicização transtempo- «Levou séculos para chegar a isto, quem duvi- ral. Por aí, a possibilidade de dissolução de uma dara de que assim vai ficar até à consumação dos identidade cultural nacional (e nisso reside um séculos? E esta outra gente quem é, solta e miúda, dos papéis propiciadores de Viagem a Portugal, que veio com a terra, embora não registada na es- observados por Maria Alzira Seixo), o romance critura, almas mortas, ou ainda vivas? A sabedoria responde, não pela rigidificação de uma suposta de Deus, amados filhos, é infinita: aí está a terra e identidade monológica, mas antes pela constru- quem a há de trabalhar, crescei e multiplicai-me diz ção de uma identidade dialógica, social e histori- o latifúndio. Mas tudo isto pode ser contado de ou- camente heterogénea. tra maneira.» Contar isto (a história da terra e do latifúndio) …e história de outra maneira significa voltar a contar algo Os leitores e a receção crítica têm insistente que já foi contado. Trata-se de um outro modo de e diversamente encontrado uma relação com a contar e de outra matéria contável: aqueles que 22
  • 23. SARAMAGO 90 ANOS não têm registo na escritura – termo notarial e temos como mundo real; podemos encontrar o termo que designa uma escrita oficial ou canó- nome de Saramago disseminado em textos seus, nica, sancionada por uma lei, a dos senhores. ou mesmo encontrar representações oblíquas Mas vai tratar-se também de, neste outro con- do autor; o Julião Mau-Tempo do Memorial é, tar, ensaiar respostas à pergunta do parágrafo necessariamente, na lógica da ficção, um ante- anterior, que podia ser lida como uma «pergun- passado dos Mau-Tempo do Levantado do Chão; ta retórica», implicando uma resposta negativa. um romance de Saramago pode citar ou aludir O romance virá, entre outras coisas, a mudar a a um outro romance seu. No processo de preen- resposta a essa pergunta; virá dizer – que sim, chimento da lacuna, da «correção» ou «emenda» há quem tenha dúvidas quanto a qualquer ante- do texto prévio, encontramos outros procedi- cipação da consumação dos tempos, ou do «fim mentos reiterados, na configuração do espaço da história»; que não, talvez as coisas não fiquem e tempo e das populações do mundo narrativo. assim. Encontramos, por exemplo, acontecimentos fan- Vários dos romances posteriores de Sarama- tásticos ou maravilhosos (os poderes de Blimun- go procederão assim; supõem um texto ou textos da, o voo da passarola, as conversas de Reis com prévios, nos quais descobrem ou inventam uma o espectro de Pessoa; a separação e a navegação lacuna, textos que corrigem, ou que vão voltar da Península lbérica); anacronismos e alucina- uns contra os outros. Assim, em Memorial do ções que sobrepõem, na simultaneidade, tem- Convento – a historiografia oficial; em O Ano da pos cronológica e historicamente afastados (por Morte de Ricardo Reis – a ficção heteronímica de exemplo, na História do Cerco de Lisboa); a mistu- Pessoa; em A Jangada de Pedra – o texto político ra de personagens ficcionais (Baltasar e Blimun- dominante sobre a integração europeia; em His- da), com personagens que a ficção constrói sobre tória do Cerco de Lisboa – por um lado crónicas e indivíduos historicamente atestados (D. João V, historiografia, mas também a ficção de um texto Bartolomeu Lourenço e Domenico Scarlatti, ou historiográfico a que o protagonista impõe um Pessoa), e com reficcionalizações de personagens «não», o que o levará a passar de revisor a autor; que já existiam como ficções (Ricardo Reis, por em O Evangelho segundo Jesus Cristo – os evange- exemplo). lhos canónicos e apócrifos. O tipo de texto suposto e os modos da sua Uma narrativa ético-política presença – explícita ou implícita – na narrativa, Vários destes procedimentos encontramo- os procedimentos ficcionais de subversão desse -los num tipo de ficção histórica que é emblemá- texto, e as suas consequências na construção dos tico da pós-modernidade; mas a singularidade mundos narrativos variam de romance para ro- de José Saramago está também no modo como mance, mas mantém nessa variação a dimensão a sua ficção oferece resistência a uma certa vul- de ficcionalização irónica, rapsódica e polémica gata pós-modernista enquanto aceitação de um da história já escrita. Esta ficcionalização tende suposto fim da História e das ideologias. No a mostrar sempre, na enunciação narrativa, o modo como o moderno, mais do que se esgotar presente histórico em que se escreve, criando a na pós-modernidade a integra como uma «fase» unidade de uma contradição, pela qual o narra- de uma modernidade longa. Talvez esteja justa- dor se simula contemporâneo da ação passada mente aqui uma das razões textuais da ampli- que conta e, ao mesmo tempo, alude à contempo- tude heterogénea dos seus leitores – no modo raneidade do autor empírico. Vários traços coo- como Saramago une desejo de ficção e desejo de peram na produção de um efeito de obra, como história, como sintoma de crise e gesto de crítica, réplica ou simulacro do mundo de mundos que como receio da barbárie e desejo de um outro fu- 23
  • 24. SARAMAGO 90 ANOS turo. Tais desejos e receios manifestam-se mais «Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.» nitidamente nos últimos romances, Ensaio sobre E é, também, um princípio de relativização e a Cegueira e Todos os Nomes, onde adquire evidên- deformação da perspetiva, que permite inscre- cia uma forma de romance como alegoria (que ver um partis pris pelas gentes que não vêm na entretanto já está latente, pelo menos, em Janga- escritura, e pela humanidade (ofendida) dos hu- da de Pedra e em Evangelho segundo Jesus Cristo). manos: Esta alegoria, que começa por ser a narrativiza- «Toda a gente se admirava com o tamanho des- ção de uma metáfora, não se fecha entretanto na medido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar mur- irreversibilidade de um duplo sentido nem no murou, olhando a basílica, Tão pequena.» gesto de uma apologética. Nela, um ceticismo e um pessimismo ativos não desistem entretanto da compaixão, da ténue sombra de uma esperan- ça. A de podermos ser outros. No Memorial, por exemplo: «se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa» Os traços dessa insistência do moderno estão justamente na persistência de um ethos, que vem de trás e é longa e variantemente sustentado. Esse ethos é uma marca ético-política e inscre- ve-se na articulação entre os gestos verbais e as configurações da historicidade; desde a macro- -estrutura textual até ao nível da frase. Mostra- -se: no escrever a voz dos que não têm lugar na escritura; nas apresentações dos construtores do convento, na oratória e na ciência de Barto- lomeu, e na arte de Scarlatti; nas listas de nomes «próprios» de mortos anónimos e/ou históricos que em vários romances aparecem; na compai- xão irónica pelo aristocrata indiferente Ricardo Reis, e na presença intermitente dos navios da revolta dos marinheiros; na passagem do revi- sor a autor, na reversibilidade entre quem cerca e quem é cercado, e na homenagem ao rei-poeta, D. Dinis; no «humano, demasiado humano» de Cristo; na catástrofe da cegueira, na mulher do médico e na fraternidade que sobrevive e faz so- breviver. Esse ethos inscreve-se no gesto verbal da ci- tação deformada, na entoação enunciativa, na significação posicional e no sentido histórico e transtemporal da última frase de O Ano da Morte de Ricardo Reis: 24
  • 25. SARAMAGO 90 ANOS A morte tira umas férias James Wood 27 de outubro de 2008 Tradução de Ana Beatriz Manso O I lustração de Javier Olivares filósofo Bernard Tendo vivido, até estes dias de confusão, naquilo Williams escreveu em que haviam imaginado ser o melhor de todos os mun- tempos um ensaio inti- dos possíveis e prováveis, descobriam, deliciados, que tulado «O Caso Makro- o melhor, realmente o melhor, era agora que estava a pulos», no qual defendia acontecer, que já o tinham ali mesmo, à porta de casa, que a vida eterna deve- uma vida única, maravilhosa, sem o medo quotidia- ria ser tão entediante no da rangente tesoura da parca, a imortalidade na que ninguém a suporta- pátria que nos deu o ser, a salvo de incomodidades ria. Segundo Williams, metafísicas e grátis para toda a gente, sem uma carta a constância que define de prego para abrir à hora da morte, tu para o para- um eu eterno implicaria íso, tu para o purgatório, tu para o inferno, nesta en- um infinito deserto de cruzilhada se separavam em outros tempos, queridos experiências repetitivas, companheiros deste vale de lágrimas chamado terra, para que o eu não fosse alterado a ponto de ser es- os nossos destinos no outro mundo. vaziado de qualquer definição. É por esse motivo ^ Mas as «incomodidades» – metafísicas, polí- que, na peça de Karel Capek a que Williams vai ticas, pragmáticas – não tardam a fazer a sua re- buscar o seu título, a personagem Elina Makro- entrada. A Igreja Católica é a primeira instituição pulos, com trezentos e quarenta e dois anos, tendo a pressentir o perigo. O Cardeal telefona ao pri- ingerido o elixir da vida eterna desde os quarenta meiro-ministro para realçar que «se se acabasse e dois anos de idade, decide descontinuar o regi- a morte não poderia haver ressurreição, e que se me e morre. A vida precisa da morte para cons- não houvesse ressurreição, então não teria sentido tituir o seu significado; a morte é o período negro haver igreja». Para o Cardeal, a vida sem a morte que comanda a sintaxe da vida. é equivalente a Deus decidir o Seu próprio fim. A Em As Intermitências da Morte, José Saramago, vida sem a morte abole a alma. Numa assembleia um autor cujas frases longas e ininterruptas são onde está reunido um grupo de filósofos e cléri- relativamente estranhas ao período, escreveu um gos, ambos os lados concordam que a religião pre- romance que funciona como uma experiência de ^ cisa tanto da morte «como do pão para a boca». A pensamento no campo Capek/Williams. (O seu vida sem a morte é como a vida sem Deus, diz um romance não faz qualquer alusão explícita a ne- dos sacerdotes, porque «se os seres humanos não nhum dos dois.) À meia-noite de uma véspera de morressem tudo passaria a ser permitido». (Esta é Ano Novo, num país sem nome do interior com uma versão do medo dostoiesvskiano de que, sem cerca de dez milhões de habitantes, a Morte decla- Deus, tudo é permitido.) Um dos filósofos, num ra tréguas à Humanidade, uma interrupção vo- tom semelhante ao do astuciosamente secular luntária, de modo a dar às pessoas a ideia de como Saramago, sugere que, uma vez que a morte era seria viver para sempre. De início, as pessoas fi- «notoriamente, o único instrumento de lavoura cam evidentemente eufóricas: de que deus parecia dispor na terra para lavrar os 25
  • 26. SARAMAGO 90 ANOS caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, a ses de Saramago, nas quais um narrador ou gru- conclusão óbvia e irrebatível é de que toda a histó- po de narradores tem sempre uma forte presença, ria santa termina inevitavelmente num beco sem constituem uma espécie de comunidade própria: saída.» são altamente povoadas. Um país onde ninguém morre transforma-se Alguma da escrita mais significativa dos úl- inevitavelmente num zoológico malthusiano. Os timos trinta anos tem-se deliciado com as frases velhos que estavam à beira da morte na véspera longas e sem regras – pensemos em Thomas Ber- de Ano Novo mantêm-se simplesmente à beira, nhard, Bohumil Hrabal, W. G. Sebald, Roberto inertes na sua dessuetude. Os cangalheiros, os Bolaño – mas ninguém apresenta propriamente vendedores de seguros de vida e os diretores de o mesmo tom de Saramago. Ele possui uma ca- hospitais e lares de idosos veem-se, por diversas pacidade de parecer sábio e ignorante ao mesmo razões, ameaçados pelo desemprego ou pela hipe- tempo, como se não estivesse realmente a narrar ratividade. Não tardará a que o estado deixe de ser as histórias que narra. Muitas vezes, usa aqui- capaz de pagar a manutenção dos seus cidadãos. lo que se poderia chamar de estilo livre indireto E, embora esta súbita utopia possa ser agora o não identificado – as suas ficções dão a sensação melhor de todos os mundos possíveis, podemos de não estarem a ser contadas por um autor, mas sempre confiar nos humanos para destruírem sim por, digamos assim, um grupo de idosos sá- utopias. As famílias com membros envelhecidos e bios e algo gárrulos, sentados no cais em Lisboa, enfermos apercebem-se de que precisam da mor- a fumar um cigarro, sendo um deles o próprio te para os salvar de uma eternidade de cuidados escritor. Esta comunidade aprecia truísmos, pro- à cabeceira da cama. Uma vez que a morte não vérbios, lugares-comuns. «Está escrito que não se foi suspensa nos países vizinhos, a solução óbvia pode ter tudo na vida», diz-nos o narrador de As é transportar o Avôzinho adoentado para lá da Intermitências da Morte, e acrescenta: «É assim a fronteira, onde a morte fará o seu trabalho. Uma vida, vai dando com uma mão até que chega o dia organização semelhante à Máfia assume o contro- em que tira tudo com a outra.» O narrador de um lo destas fugas para a morte, uma operação com a romance anterior anuncia: «A fama, ai de nós, é secreta conivência do governo, visto que nenhum uma aragem que tanto vai como vem, é um cata- estado tem dinheiro para pagar uma expansão in- -vento que tanto vira a norte como a sul.» E num finita. Tal como o primeiro-ministro alerta o Rei, outro: «Diz-se, desde os tempos clássicos, que a «se não voltarmos a morrer não temos futuro». fortuna protege os audaciosos.» Estas trivialida- As Intermitências da Morte é uma pequena e des nunca são propriamente validadas nem refu- mordaz adição à obra de um grande romancista. tadas; são ironizadas pela óbvia lacuna que existe Com eficácia, coloca em movimento o seu hipoté- entre o conhecedor escritor pós-moderno laurea- tico caso de teste e gera rapidamente um conjunto do com um Nobel enquanto produz as suas ficções de pertinentes questões teológicas e metafísicas e a pessoa ou pessoas que aparentemente narram relativas à desejabilidade da utopia, à possibilida- essas ficções. de do Paraíso e aos verdadeiros alicerces da reli- O estilo contínuo é uma parte importante des- gião. O trabalho recente de Saramago inclinou-se sa ironia: a falta de fôlego empresta uma sensa- mais para o vagamente metafórico, com atores ção de desregramento loquaz, como se diferentes anónimos e universais no lugar de personagens pessoas interviessem para dar a sua opinião. Uma individuais. Estes livros seriam assumidamente única frase longa parece muitas vezes ter sido es- ensaísticos se não fossem as extraordinárias fra- crita por diferentes vozes, e o tumulto sem pon- ses de Saramago e a subtileza das suas narrativas. tuação permite astutas voltas e reviravoltas, como Na ausência de pessoas ficcionais vívidas, as fra- quando um lugar-comum se apanha a si próprio 26
  • 27. 27
  • 28. SARAMAGO 90 ANOS no ato de ser um lugar-comum e se retrata: «Um restabelecimento, fica agradada: «As preces ha- homem desses, salvo pouquíssimas excepções viam demorado quase oito meses a chegar ao céu, sem lugar nesta história, nunca passará de um mas há que pensar que só para atingir o planeta pobre diabo, é curioso que se diga sempre pobre marte precisamos de seis, e o céu, como é fácil de diabo e nunca se diga pobre deus.» Na frase acer- imaginar, deverá estar muito mais para lá, treze mil ca da euforia inicial das pessoas quando a morte é milhões de anos-luz de distância da terra, números suspensa, repare-se que uma imagem poética do redondos.» Essa voz incitadora, com a sua parciali- Ceifeiro («rangente tesoura da parca») dá lugar a dade antiteológica, tem reminiscências não apenas uma imagem mais comum («carta de prego para de Luciano mas também do luciânico Leon Battista abrir à hora da morte ») e depois a um total lugar- Alberti, cuja sátira quatrocentista Momus imagina -comum já gasto («este vale de lágrimas chamado o caos que poderia instalar-se no Céu caso todos terra»), e que esta progressão permite a presença pedissem ao mesmo tempo a Deus que atendesse simultânea do escritor, que tem as suas imagens, a uma prece. e das pessoas sobre as quais está a escrever, que O curto romance de Saramago dá azo a ques- têm as delas. E aí ocorre um intercâmbio mágico: tões semelhantes. Se a vida eterna não poderia de quando chegamos ao final dessa frase acerca da modo nenhum funcionar na Terra, porque será a morte, a elegante imagem mítica parece de algu- eternidade etérea tão ardentemente desejada? Tal- ma maneira muito menos poderosa do que a ima- vez seja pela nossa esperança desesperada de que gem mais banal. o Céu seja o mesmo que a Terra mas também mui- Deste modo, a prosa de Saramago dá-nos uma to diferente, uma vez que o Homem arruína Para- sensação simultaneamente moderna e antiga. O es- ísos. Para Saramago, como para Bernard Willia- critor está a trabalhar de modo consciente, atrain- ms, o problema não é apenas o facto de os homens do constantemente a atenção para a narração, mas serem assassinos natos de utopias; é o de que a a narração parece mergulhar facilmente num pro- própria eternidade – a vida para sempre ininter- blema da mochila universal, fazer florescer as suas rupta – parece insustentável. E, neste romance, verdades franzinas e sábias. É esta abordagem Saramago faz mais do que provocar Dostoiévski. astuciosamente modesta que permite a Saramago Pois, se o desaparecimento de Deus significa que escrever as suas ficções especulativas e fantásti- «tudo é permitido», e o desaparecimento da morte cas como se se tratassem dos acontecimentos mais significa que tudo é permitido, então, pelo tácito prováveis e dar-lhes uma sólida literalidade – um catecismo do romancista, Deus deve ser a morte país sem nome atacado por uma epidemia de ce- e a morte deve ser Deus. Não é de admirar que a gueira, a Península Ibérica separada do continente religião precise da morte: a morte é o único Deus europeu e transformada numa enorme ilha flutu- em que podemos acreditar. ante, um homem que caminha pelas ruas de Lisboa Saramago é atraído para estas inversões gnós- e que é ao mesmo tempo inegavelmente real e um ticas. Naquele que é possivelmente o seu melhor fantasma literário. Em certos aspetos, a sua obra livro, O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), o ro- está mais próxima da de um satirista como Lucia- mancista conta de forma distintiva a história da no, cujos esquissos imaginam pessoas a viajar para vida e morte de Jesus sem alterar nenhum dos fac- a Lua ou para o Hades, ou os deuses a altercarem tos famosos, ao mesmo tempo que vira do avesso entre eles, do que da de qualquer romancista con- a teologia dos Evangelhos. Certo dia, José, o pai de temporâneo. Quando, no novo romance de Sara- Jesus, ouve acidentalmente alguns soldados a co- mago, a Morte decide finalmente pôr fim à sua «in- mentarem as ordens de Herodes para que sejam terrupção» e deixar a mortalidade seguir de novo mortas todas as crianças com menos de três anos o seu caminho, a Igreja, que andara a rezar por tal de idade. Corre para casa para esconder a sua mu- 28
  • 29. SARAMAGO 90 ANOS lher e o filho recém-nascido, mas esquece-se de avisar o resto da aldeia. Pelo seu pecado, anuncia As Intermitências mais tarde um anjo a Maria, José irá sofrer. E o meu filho?, pergunta ela ao anjo. «Disse o anjo, So- da Morte gera rapidamente bre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho», escreve Saramago. A seu tem- po, José é capturado por soldados romanos que abafam uma rebelião e é crucificado juntamente um conjunto com outros trinta e nove judeus. Por seu turno, Je- sus torna-se obcecado por uma sensação de culpa de pertinentes herdada e pela ideia de que, tal como ele diz, «O meu pai matou os meninos de Belém». Na força questões teológicas de um relâmpago pelo dedo do blasfemo contador da história, Saramago transforma um dilema teo- e metafísicas lógico que lhe é familiar – o Deus «bom» que traz Jesus ao mundo é também o Deus «mau» que per- relativas à mite o massacre de bebés inocentes – num pro- fundo imbróglio. De repente, Jesus é amaldiçoado desejabilidade por uma forma de pecado original, e o seu sacrifí- cio na Cruz torna-se não uma expiação do pecado da utopia, à possibilidade do Homem mas sim um legado do mesmo: segue as pegadas do pai, amaldiçoado pela linhagem pa- ternal. «Deus não perdoa os pecados que manda cometer», assim coloca a questão o narrador. Na Cruz, ouvindo o seu Pai celestial a declamar a par- do Paraíso e tir das nuvens «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência», Jesus bra- aos verdadeiros da: «Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.» É a derradeira e mais perversa inversão alicerces da do romance. O Evangelho Segundo Jesus Cristo causou enor- religião. me controvérsia no Portugal católico (Jesus dor- me e vive com Maria Madalena), mas este é o mais pio dos livros blasfemos. Por detrás das suas fe- nós através dos seus óculos de armação escura rozes ironias, Saramago parece não fazer mais do e do tamanho de uma televisão. De certa manei- que encarar a Encarnação com a maior seriedade ra, ele é o menos fanático dos romancistas, por possível: se Jesus nasceu homem, parece ele di- insistir de modo tão implacável nas suas hipóte- zer, então herdará tudo aquilo a que um homem ses ficcionais, seguindo-as através de grandes e está sujeito, incluindo o pecado, que, seja como humanas conclusões. O seu novo romance vai- for, provém de Deus. A fasquia está muito alta, -se tornando gradualmente menos conceptual mas o temperamento autoral é ameno, inquiridor, e crescentemente tocante, sem nunca se tornar amadurecido. E se Deus fosse o Diabo?, parece realista em nenhum sentido convencional, nem perguntar o autor, espreitando docilmente para sequer plausível. 29
  • 30. SARAMAGO 90 ANOS Ele representa-nos a Morte como uma ausên- no novo romance, o funcionário seleciona uma cia feminina encarnada, um esqueleto num lençol cidadã das fileiras dos mortos e vivos e, de forma que vive numa sala subterrânea gélida, apenas gradual, sem nunca a nomear (também o violon- acompanhada pela sua muito utilizada gadanha. celista permanece sem nome), dota-a de uma par- (Ele também lhe nega um «M» maiúsculo.) Pas- ticularidade metafísica. sados os seus sete meses de interrupção voluntá- É também isto que faz o romancista: pega num ria, esta deusa sombria envia uma carta para uma nome, numa personagem, numa pessoa, e salva-a estação de televisão a anunciar que vai pôr fim à do esquecimento silencioso através da irradiação sua experiência porque os humanos agiram de de palavras. Mas também pode matá-la sempre modo tão «deplorável». As pessoas morrerão de que assim o deseje: todos os romances são «inter- novo ao ritmo antigo, que é de cerca de trezentas rompidos» simplesmente porque chegam ao fim. por dia. De acordo com as novas regras, aos ci- Falamos de poder autoral omnisciente porque os dadãos cujo tempo terminou será dado um aviso escritores têm o poder de decidir a vida e a morte com uma semana de antecedência: cada um deles dos seus «nomes». O auxiliar de escrita de Todos receberá uma carta de cor violeta, um aviso de os Nomes, que é conhecido simplesmente como término vindo da própria Morte. Esta concessão Sr. José, partilha o mesmo nome próprio com o aparentemente humana – o nomeado passa a ter romancista. No seu novo romance, Saramago tor- tempo para pedir a sua licença, pôr a sua proprie- na a pedir-nos que reflitamos acerca dos poderes dade em ordem, e por aí em diante – é insuporta- divinos do contador de histórias. Quando a carta velmente cruel, claro está, uma vez que a maioria da Morte é publicada nos jornais, consulta-se um das pessoas preferiria ser surpreendida pela mor- gramático, que toma nota da sua «sintaxe caótica, te do que condenada a ela. Um desses nomeados, da ausência de pontos finais, do não uso de parên- um violoncelista de cinquenta anos, desnorteia a tesis absolutamente necessários, da eliminação deusa. A Morte escolheu-o para o término, mas a obsessiva dos parágrafos, da virgulação aos salti- carta de cor violeta é repetidamente devolvida ao nhos (…)». A Morte escreve como José Saramago. remetente; o violoncelista parece recusar as suas Enquanto a Morte observa o violoncelista a be- ordens. Numa série de cenas inesperadamente ber, Saramago escreve que ela olhou para a água belas, a Morte, bastante perplexa, insinua-se no e «fez um esforço para imaginar o que seria ter apartamento do violoncelista e senta-se em silên- sede, mas não o conseguiu». O leitor indaga-se: cio a observá-lo enquanto ele dorme; vê o modo se a Morte não consegue imaginar a sede, conse- como se levanta de noite para beber um copo de guirá porventura imaginar a morte? E o roman- água e deixar o cão ir à rua, vê uma suite de Bach cista? Uma resposta que Saramago oferece – é a (a n.º 6) na sua cadeira, e por aí em diante. Está ampla verdade antiga e universal na direção da na hora de o violoncelista morrer – extinguiu-se qual a sua ficção complexa tem vindo a viajar – é «o tempo que lhe havia sido prescrito ao nascer» – a de que, se não nos escudarmos da morte nem mas a Morte parece não ter nenhum poder sobre ansiarmos religiosamente por vencê-la, mas, pelo este «homem qualquer, nem feio nem bonito». contrário, aceitarmos a antiga realidade de que Em Todos os Nomes, um romance anterior com no seio da vida estamos na morte, então a morte o qual este novo faz uma óbvia parceria, um mo- rodeia-nos como a vida, e imaginar a morte é, na desto auxiliar de escrita torna-se obcecado por verdade, imaginar a vida. uma cidadã perfeitamente comum, uma mulher cujo nome na certidão de nascimento o apanha de surpresa certa tarde no seu local de trabalho, a Conservatória Geral do Registo Civil. Tal como 30
  • 31. SARAMAGO 90 ANOS Um estilo como ideologia Luciana Stegagno Picchio Ilustração Luis Graneña C om Jorge Amado e É claro que quem isto escreve, por formação e pouquíssimos mais, Sara- ideologia, não pode falar senão dos modos, isto é, mago é um dos raros lu- das formas. Os fins são arcanos e parecem trans- sofalantes que conseguiu cender-se uns aos outros. Deixo-os, pois, para a sair do círculo linguístico análise de um filósofo, quiçá um existencialista, português, que já escrito- enquanto entro no terreno em que se desenvolve res como Machado de Assis a minha atividade. consideravam uma prisão, Ocupar-me-ei, portanto, apenas daquela orali- e impor-se como escritor dade que parece ter-se convertido na característi- supranacional, primeiro ca que singulariza a escrita de Saramago, a partir ibérico e depois, simples- de um romance como Levantado do Chão, que em mente, escritor pertencente 1980 marcou uma «passagem» criativa do nosso ao mundo. autor. Uma passagem de toda a sua escrita, tanto A profunda relação com a realidade e a atua- no sentido temporal como estilístico e de género, lidade que a obra literária de José Saramago es- mas também de êxito. tabelece (seja a narrativa, seja a poesia, a crónica Com efeito, o estilo oral, se queremos definir des- ou o teatro), a sua componente de denúncia de te modo o estilo narrativo mais recente de Saramago, uma história cujas estruturas aparentes são des- parece ter nascido nesta obra poética, juntamente montadas e remontadas, seguindo de cada vez com tantas outras coisas, depois daquele 25 de abril um desenho diferente, em busca de significados de 1974, que, para a geração de Saramago e a minha, sempre novos, fez com que, mesmo nestes dias dividiu em dois, não só a História de Portugal (uma tão ricos em invenções interpretativas, as formas História com H grande) mas também a própria his- tenham levado a pior ao enfrentar os conteúdos. tória individual e política (aqui com minúscula) de No entanto, penso que não é possível separar as cada um dos seus membros. É então quando, depois duas coisas e continuo a utilizar categorias como da chamada Revolução dos Cravos, o escritor por- as propostas por Hjelmslev: forma do conteúdo tuguês José Saramago, que em todos esses anos de e forma da expressão. Continuo a acreditar num espera, mais além também do mito populista do self estruturalismo que se obstina e decai; continuo a made man, não tinha feito mais do que escrever, flo- afirmar que numa obra tudo significa e que for- resce, como por milagre, revelando-se como escritor mas e conteúdos participam juntos na criação de de primeiro plano não só na sua pátria mas também, um sentido, do sentido concebido ao mesmo tem- e sobretudo, no exterior. E floresce como portador po como sentido atribuído pelo narrador e sentido não apenas de uma nova forma de sentir e contar a percebido pelo recetor, nessa obra determinada e história, mas também como inventor de uma nova e nessa determinada circunstância. Eis aqui a razão muito peculiar escrita literária. que justifica o título destas linhas: Um estilo como A oralidade de Saramago é muito diferente, ideologia. por exemplo, da dos escritores iberoamericanos 31
  • 32. SARAMAGO 90 ANOS pontos nem vírgulas: «Leiam-me em voz alta.» A [linguagem] É, por assim dizer, uma oralidade mentalizada, evocada dentro do narrador omnisciente. Chega de Saramago é como uma música interior, re-elaborada pelo in- consciente coletivo a que prefiro chamar social em uma oralidade vez de regional; e isto, mesmo quando o «oral» se apresenta como a voz dos trabalhadores de uma teorizada pelo determinada região de Portugal, como o Alente- jo. Os resultados gráficos desta «gravação» fóni- próprio quando diz ca são essas páginas compactas, aparentemente sem pausas nem brancos (o silence alentour do li- aos seus críticos teratíssimo e gutenbergo-dependente Mallarmé), sem marcas de pontuação nem grafemas conven- e ao seu público cionais, como as aspas para indicar o começo e o final de uma réplica de diálogo. Saramago inventa perplexo diante da as suas próprias regras gráficas e em seguida res- peita-as escrupulosamente (por isso nós, os seus críticos, nos aborrecemos tanto quando os edito- página compacta, res, conhecedores de outras normas gráficas ge- neralizadas, intervêm nas traduções, nivelando- aparentemente sem -as e, por conseguinte, trivializando-as com base nessas normas). Quando Saramago introduz uma fôlego, sem pontos vírgula e uma maiúscula, estamos noutra frase, na réplica de outro interlocutor, o qual, por outro nem vírgulas: lado, não fala diretamente com a sua voz, percebi- da pelo narrador como distanciação teatral, dra- «Leiam-me em voz mático, brechtiano, mas sim que fala através da «gravação», saboreando o autor cada palavra sua, alta.» cada frase (o provérbio, o dito, a expressão polis- sémica). E é a interpretação do autor o que chega ao público. Por isso falo de sentido criado conjun- tamente pela forma e pelo conteúdo. E por isso continuo a falar de estilo como ideologia. do nosso século, a começar por Jorge Amado e O estilo oral de Saramago, constituído por Guimarães Rosa. Este último, ainda dentro de um entoações, por traços supersegmentais, por su- expressionismo cheio de alusões e implicações blinhados, por mudanças de voz e de tom, pres- cultas e universais, tenta reproduzir uma deter- supõe uma execução coletiva, multivocal, em que minada linguagem regional cujos pontos fortes cada voz se distingue pela individualidade do são as estruturas sintáticas e morfológicas, mas timbre, mas que ao mesmo tempo está sujeita às sobre todo o léxico, ainda que reinterpretado e al- regras rigorosas de uma partitura, obedecendo a terado. A de Saramago, em compensação, é uma leis rítmicas, cromáticas, de appoggiatura e de ca- oralidade teorizada pelo próprio quando diz aos dência. Uma literatura para os ouvidos, além de seus críticos e ao seu público perplexo diante da para os olhos. Daí que Saramago insista sempre página compacta, aparentemente sem fôlego, sem nos condicionamentos tímbricos e melódicos que 32
  • 33. 33