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SÃO FLORES
  Estava uma flor bordada num saco de guardanapo a
olhar para uma flor pintada numa jarra de porcelana. E
vice-versa.
  A flor bordada queria meter conversa com a flor pintada.
E vice-versa.
  Entretanto, a flor bordada pensava: "Sou mais bonita do
que ela." E vice-versa.
  Até que a flor bordada resolveu dizer precisamente o
contrário do que pensava:
  – Nunca vi flor mais bonita do que tu.
  A flor da jarra retorquiu, no mesmo tom:
  – Tu, sim, és a mais bonita. Uma perfeita imitação.

                            1
Neste ponto, a conversa estragou-se.
   – Imitação? – estranhou a flor do saco de guardanapo. –
Imitação de quê?
   – Imitação de uma flor verdadeira – respondeu a flor
pintada na jarra.
   – Ora essa! Eu sou uma flor incomparável, uma flor
bordada, verdadeiramente bordada com toda a verdade da
arte.
   Agora, enfim, estava a dizer o que pensava. Não lhe
ficou atrás a outra flor:
   – Verdadeira obra de arte sou eu. Não há flor pintada
mais autêntica, pode crer.
   Argumentaram, discutiram, zangaram-se. Perderam a
elegância do trato. Passaram a dizer mais do que
pensavam:
   – Você é uma reles imitação – dizia a flor pintada.
   – E você é uma falsificação barata – dizia a flor
bordada.
   Nisto, mãos femininas vieram colocar uma flor na jarra,
até então vazia.
   – Qual é o tema da discussão? – quis saber a
recém-vinda, debruçada da jarra.
   Puseram-na a par da disputa e logo a nova flor, que era
dotada de um caule esguio, folhagem vaporosa e pétalas
gentis, rodopiou na jarra de porcelana, para dizer, num
risinho de superioridade:
   – Não sejam ridículas e olhem para mim. Haverá flor
mais encantadora e mais verdadeira do que eu?
   As duas outras calaram-se. Afinal, a flor de folhas
frágeis, que qualquer corrente de ar agitava, a flor de longa
haste, mergulhada na jarra, é que tinha razão.

                             2
Aqui para nós e em segredo, diremos que também não
tinha razão nenhuma. Pois se ela era apenas uma simples
flor de papel...

  FIM




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A discussão entre as flores bordada, pintada e de papel

  • 1. SÃO FLORES Estava uma flor bordada num saco de guardanapo a olhar para uma flor pintada numa jarra de porcelana. E vice-versa. A flor bordada queria meter conversa com a flor pintada. E vice-versa. Entretanto, a flor bordada pensava: "Sou mais bonita do que ela." E vice-versa. Até que a flor bordada resolveu dizer precisamente o contrário do que pensava: – Nunca vi flor mais bonita do que tu. A flor da jarra retorquiu, no mesmo tom: – Tu, sim, és a mais bonita. Uma perfeita imitação. 1
  • 2. Neste ponto, a conversa estragou-se. – Imitação? – estranhou a flor do saco de guardanapo. – Imitação de quê? – Imitação de uma flor verdadeira – respondeu a flor pintada na jarra. – Ora essa! Eu sou uma flor incomparável, uma flor bordada, verdadeiramente bordada com toda a verdade da arte. Agora, enfim, estava a dizer o que pensava. Não lhe ficou atrás a outra flor: – Verdadeira obra de arte sou eu. Não há flor pintada mais autêntica, pode crer. Argumentaram, discutiram, zangaram-se. Perderam a elegância do trato. Passaram a dizer mais do que pensavam: – Você é uma reles imitação – dizia a flor pintada. – E você é uma falsificação barata – dizia a flor bordada. Nisto, mãos femininas vieram colocar uma flor na jarra, até então vazia. – Qual é o tema da discussão? – quis saber a recém-vinda, debruçada da jarra. Puseram-na a par da disputa e logo a nova flor, que era dotada de um caule esguio, folhagem vaporosa e pétalas gentis, rodopiou na jarra de porcelana, para dizer, num risinho de superioridade: – Não sejam ridículas e olhem para mim. Haverá flor mais encantadora e mais verdadeira do que eu? As duas outras calaram-se. Afinal, a flor de folhas frágeis, que qualquer corrente de ar agitava, a flor de longa haste, mergulhada na jarra, é que tinha razão. 2
  • 3. Aqui para nós e em segredo, diremos que também não tinha razão nenhuma. Pois se ela era apenas uma simples flor de papel... FIM 3