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O ROMEIRO, O
               VENTO E O SOL
  Consegue-se às boas, mansamente, o que se não
consegue a mal, à força, de repelão. A melodia de uma
flauta abre mais janelas do que uma trovoada.
   Vou exemplificar.
   O Senhor Vento e o Senhor Sol, lá do seu miradoiro,
observam o que se passa cá em baixo. Os dois dispensam
binóculos.
   Estavam eles entretidos, na sua quadrilhice de varanda,
quando viram um romeiro, daqueles que percorrem a pé os
caminhos que vão dar à Galega Compostela.
   Ia de chapeirão e larga capa, que o cobria até aos pés.
Nodoso cajado de ajudar às subidas, um saquitel ao ombro
e a cabeça à cintura, para o vinho que aquece, eis o quadro
completo do devoto de São Tiago, o Apóstolo, com
catedral famosa na cidade de Compostela.

                             1
– Aquele, ali, todo embiocado, que nem se percebe quem
será, se é velho, se é novo, se é loiro, se moreno, está a
irritar-me – disse o Senhor Vento, muito dado a caprichos.
   – Aposto que é novo e moreno – disse o Senhor Sol, por
desfastio.
   – Pois eu acho o contrário. O homem é velho e branco
de cabelo, que já foi loiro – apostou o Senhor Vento. Mas
já vamos ver isso. Eu sopro com toda a força e descubro-o.
   – Aposto que não resulta – contrapôs o Senhor Sol,
divertido com o passatempo.
   Levantou-se uma ventania de dobrar as árvores. O
romeiro fincou-se ao cajado, puxou o chapéu para a cara e
apertou a capa. Por mais que o Senhor Vento soprasse não
houve meio de derrotar o viandante.
   – Primeira aposta perdida – riu-se o Senhor Sol.
   Ele a rir e seus raios a brilharem com mais alegria e
calor. O Senhor Sol arredou umas nuvenzitas e concentrou
toda a sua atenção sobre o romeiro, que seguia estrada fora,
no passo firme de quem não pode faltar ao encontro.
Santiago esperava-o.
   O Senhor Sol não o largava.
   À beira de uma fonte, o caminheiro parou. Desfez-se do
chapeirão, que poisou com a capa e o cajado no rebordo do
fontanário, despiu a camisa e, de tronco nu, refrescou rosto
e corpo, na água que corria. Delicado.
   Era loiro e jovem.
   – Desta vez não ganhou ninguém – concluiu o Senhor
Vento.
   – Ganhou ele – disse o Senhor Sol, apontando o moço,
que passava um lenço a escorrer água pela cara e pelos
ombros. – E, embora tenha apostado que ele era moreno,

                             2
eu acho que também já ganhei o dia.
     E, com todos os seus costumados vagares, o Sol
começou a preparar as cores do entardecer.


  FIM




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  • 1. O ROMEIRO, O VENTO E O SOL Consegue-se às boas, mansamente, o que se não consegue a mal, à força, de repelão. A melodia de uma flauta abre mais janelas do que uma trovoada. Vou exemplificar. O Senhor Vento e o Senhor Sol, lá do seu miradoiro, observam o que se passa cá em baixo. Os dois dispensam binóculos. Estavam eles entretidos, na sua quadrilhice de varanda, quando viram um romeiro, daqueles que percorrem a pé os caminhos que vão dar à Galega Compostela. Ia de chapeirão e larga capa, que o cobria até aos pés. Nodoso cajado de ajudar às subidas, um saquitel ao ombro e a cabeça à cintura, para o vinho que aquece, eis o quadro completo do devoto de São Tiago, o Apóstolo, com catedral famosa na cidade de Compostela. 1
  • 2. – Aquele, ali, todo embiocado, que nem se percebe quem será, se é velho, se é novo, se é loiro, se moreno, está a irritar-me – disse o Senhor Vento, muito dado a caprichos. – Aposto que é novo e moreno – disse o Senhor Sol, por desfastio. – Pois eu acho o contrário. O homem é velho e branco de cabelo, que já foi loiro – apostou o Senhor Vento. Mas já vamos ver isso. Eu sopro com toda a força e descubro-o. – Aposto que não resulta – contrapôs o Senhor Sol, divertido com o passatempo. Levantou-se uma ventania de dobrar as árvores. O romeiro fincou-se ao cajado, puxou o chapéu para a cara e apertou a capa. Por mais que o Senhor Vento soprasse não houve meio de derrotar o viandante. – Primeira aposta perdida – riu-se o Senhor Sol. Ele a rir e seus raios a brilharem com mais alegria e calor. O Senhor Sol arredou umas nuvenzitas e concentrou toda a sua atenção sobre o romeiro, que seguia estrada fora, no passo firme de quem não pode faltar ao encontro. Santiago esperava-o. O Senhor Sol não o largava. À beira de uma fonte, o caminheiro parou. Desfez-se do chapeirão, que poisou com a capa e o cajado no rebordo do fontanário, despiu a camisa e, de tronco nu, refrescou rosto e corpo, na água que corria. Delicado. Era loiro e jovem. – Desta vez não ganhou ninguém – concluiu o Senhor Vento. – Ganhou ele – disse o Senhor Sol, apontando o moço, que passava um lenço a escorrer água pela cara e pelos ombros. – E, embora tenha apostado que ele era moreno, 2
  • 3. eu acho que também já ganhei o dia. E, com todos os seus costumados vagares, o Sol começou a preparar as cores do entardecer. FIM 3