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As
 heroínas
anônimas
da África
As mulheres são as responsáveis pelo clima de paz em
 Kakuma. Estão à frente de tudo: criaram uma revista
feminina, reduziram o índice de contaminação por HIV e
 ainda patrulham tradições como o casamento forçado .
Imagine uma área com 90 mil pessoas de dez países
diferentes fugindo de guerras civis.
Gente de línguas, culturas e deuses
diversos, sobrevivendo aos altos índices de miséria e de
doenças.
Um mundo cercado por arame farpado, onde ninguém
tem documento nem endereço.
A escola e o hospital são improvisados, os ônibus não
passam, as visitas não chegam.
Coloque esse campo de refugiados na África
Oriental, machista e fundamentalista (tanto muçulmana
como cristã) e facilmente você concluirá: é um dos
piores lugares para uma mulher viver.
Ainda assim, o campo de Kakuma, administrado pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, no
norte do Quênia, é um exemplo da força feminina.
"Mesmo tendo perdido maridos e filhos, as mulheres
encontram força física e psicológica para
recomeçar", afirma Caroline Cherwon, da Film Aid, ONG
que exibe filmes num telão instalado num caminhão.
"Sem elas, esse lugar seria um caos incontrolável."
A rapidez com que se recuperam dos horrores da guerra
está ligada à maternidade.
A tese é de Salome Munyendo, do Núcleo de Eqüidade de
Gênero e Direitos Humanos da Fundação Mundial
Luterana.
"Elas dão a volta por cima porque alguém tem que
preparar a comida, buscar água, lenha, cuidar dos
filhos. Não podem sentar e esperar o luto
passar", diz.
Por isso, as ONGs preferem emprestar dinheiro para as mulheres
abrirem negócios como salões de beleza, lojas e restaurantes. Há
muitos traços comuns na trajetória das refugiadas.
Quase todas viram suas casas serem destruídas, passaram fome e
sede e percorreram longas distâncias até encontrar o abrigo da
cidade de Kakuma, a 100 quilômetros da fronteira sudanesa.
Esquecido pela chuva, o lugar vive sob uma névoa de areia. O calor
derrete e o sol de inverno doura os telhados feitos de latas de
óleo.
Nesse cenário, as mulheres se destacam como verdadeiras
heroínas, já que aprendem novas habilidades para socorrer quem
tem menos que elas.
Escolhemos cinco personagens para traduzir o espírito da
africana.
São elas: Mary Bosco, 50 anos, do Sudão; Florence Odwar, 38, e
Angela Khassons, 40, de Uganda; Jenta Ahmed Gas, 32, da
Somália; e Ester Maiaribu, 46, do Burundi. Veja por que suas
histórias impressionam.
Mary
foi obrigada, ainda jovem, a se
casar com o cunhado porque a irmã
morrera. "Esse é o costume no
meu país", conta.
Criou três sobrinhos como filhos.
Em 1999, o cunhado-marido
desapareceu e ela acabou presa
por tropas do governo numa
reunião do conselho de igrejas.
Acusação: converter muçulmanas
ao cristianismo.
Foi estuprada e torturada.
Conseguiu fugir três semanas
depois, mas caiu nas mãos de
guerrilheiros rebeldes.
As cenas de estupro se repetiram
até Mary aceitar o casamento com
um oficial.
Fugiu de novo, pegou uma carona
num caminhão, que parou no
Quênia, pediu asilo e, dias depois,
entrava em Kakuma.
“Cheguei moral e fisicamente
destruída... Não sei como não
morri de depressão", lembra.
O que lhe garantiu energia foi o
reencontro com os sobrinhos. .
"Para mim, vê-los vivos foi como
um milagre."
Mary se recuperou e virou uma
ativista.
Sua causa? Lutar contra a
violência sexual.
 Ela denunciou inúmeros estupros e
coordena grupos que encorajam
mulheres a não se calar diante das
agressões.
Por causa do trabalho, ganhou a
confiança das sudanesas e, é
claro, a antipatia dos
homens, acostumados a um modelo
de sociedade onde a mulher vale
menos do que os bois que eles
criam.
Florence
também chegou de
caminhão, escapando da perseguição
política, no início dos anos 90.
Cruzou a fronteira deixando tudo para
trás, inclusive uma filha e o marido, que
lutava na guerra civil em Uganda.
"Ouvi dizer, depois, que ele
morreu", conta com certa passividade.
Por nove anos perambulou como nômade
até parar em Kakuma, onde
reencontrou a filha. Há três anos, se
tornou líder comunitária.
Foi assim: um ministro de Estado
visitava o campo quando Florence fez
um contundente discurso sobre a
condição das mulheres.
Para se expressar melhor aprendeu inglês.
 Também fez um curso de culinária industrial e montou um
grupo para preparar refeições em eventos organizados pelas
                 agências internacionais.
No início de 2005, entrou para o jornal comunitário e criou a
         Women's View, uma revista para mulheres.
    "É assim que ganhamos voz para denunciar nossos
     problemas", explica, com firmeza impressionante.
Angela
                                ainda tem feridas abertas na alma. Ela
                              saiu de Uganda em 2003, dois anos após
                                       o assassinato do marido. Estava
                                tentando superar o trauma - até abriu
                                 um restaurante -, mas não suportou a
                               pressão: caiu na estrada depois que um
                               dos quatro filhos teve o mesmo destino
                                    do marido. Ao chegar, estranhou a
                                     pequena cota de alimentos que as
                                                     famílias recebem.



“É difícil ser viúva aqui. Seu filho pede mais comida, você não
pode dar e não tem com quem dividir essa angústia." Angela
parou de chorar ao perceber que educar crianças num local como
Kakuma seria um desafio. "Elas não sabem o que é a paz, são
filhos da guerra", comenta a agora professora de religião e de
inglês numa das escolas improvisadas do campo. "Na sala de
aula, redescobri o amor pelos seres humanos."
Jenta
também se sentiu no dever de educar. É uma das raras somalis com
diploma da escola secundária e decidiu enfrentar a cultura
muçulmana defendendo o estudo para as meninas. "Se uma garota
falta muito, vou à casa dela, cobro dos pais que a mandem de
volta para as aulas", revela. Da alfabetização, partiu para a
crítica ao casamento precoce - muitas adolescentes ainda têm de
se submeter a ele.
A batalha de Jenta tem provocado mudanças. “Os homens estão
mais tolerantes, porque percebem a necessidade de educação
para as filhas e sabem que a lei aqui é a das Nações Unidas e
não a do seu país", explica.
"Espero que levem a nova
mentalidade ao voltarem para casa."
Ela não imaginava que desenvolveria
essa consciência até abandonar, em
1991, o Burundi, com sua casa em
chamas - o pai fora degolado e dois
irmãos acabaram capturados por
soldados de outra etnia.
Nos seis anos seguintes, enfrentou
mais separações, além de uma perda:
a mãe ficou doente e não resistiu, uma
irmã foi conduzida para o Canadá, a
outra para os Estados Unidos.
Jenta não conseguiu repatriação, se
casou, teve dois filhos e foi mandada
com a família para Kakuma.
Ester
se destaca no combate à Aids. Há dois anos, ela vive rodeada por
portadores de HIV. Ainda lidera grupos que batem de porta em
porta para explicar a importância da camisinha. A taxa de infecção
de HIV em Kakuma é de 2,5% - mais baixa do que a média da África
subsaariana, que chega a 7,4%.


                                Ester comemora o resultado, sabe que
                                        tem participação nele. Por seu
                              trabalho, ganha do International Rescue
                                  Committee (IRC) um incentivo de 30
                            dólares por mês, o que ajuda a sua família.
                              Eles dormiram ao ar livre por dez meses
                                 até arrumar um pedaço de chão para
                                                     erguer uma casa.
                             Para Ester, isso não é nada. Ela viveu por
                                 30 anos num campo de refugiados na
                                 Tanzânia. Ali conheceu o marido. Em
                                   1995, os dois voltaram, com quatro
                                               filhos,     ao Burundi.
Um mês depois, o marido foi preso na igreja onde era pastor. De
novo, tomaram a estrada poeirenta atrás de liberdade. Deixaram
um filho, de quem até hoje não têm notícias.
Quando um parente reaparece, Kakuma se acende e festeja.
Também tem festa em datas como o ano-novo.
Mary Bosco é quem gosta de lembrar que, ali, três verbos têm
muito valor: reunir, unir e compartilhar. As mulheres se juntam
para orar, resolver problemas - existem 350 grupos de ajuda - e
comemorar no momento em que alguém conquista asilo definitivo
em outro país. A pessoa vai embora, mas não esquecerá Kakuma
jamais.
As protagonistas de Kakuma são
muito intuitivas e aprendem rápido.
Mas também têm bons modelos.

Lucy
N'Ganga,32 anos, é um deles. A
enfermeira está ali por opção.
Embora converse por telefone todos
os dias com o marido, um capitão do
Exército, e as duas filhas, só pode
vê-los a cada dois meses, quando vai
para casa, em Nairóbi, capital do
Quênia (visitas são proibidas nos
campos).
Eles entenderam a importância que
ela dá à luta que escolheu.
"Nunca me imaginei levando uma vida
pacata, quero estar onde mais
precisam de mim.“
 Sua missão é coordenar campanhas de
prevenção à malária e à Aids.
"Me realizo ao perceber que
despertei uma mulher para a vida.
 Num mundo onde os rios são secos, o
trabalho dela é fundamental. Assim
como são imprescindíveis o otimismo de
Jenta, a coragem de Mary, a
solidariedade de Ester, a dedicação de
Angela e a garra de Florence.
Esses ingredientes fazem o sonho
continuar existindo nos corações de
Kakuma.
Reportagem de:
Ferdinando Casagrande e Priscila Ramalho
        Para a revista “Claudia”




           Formatação: Mima Badan
           mimabadan@hotmail.com
        Imagens: da mesma reportagem
           Música: We are the world
       (Repasse com os devidos créditos)

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As Heroínas Anônimas da África

  • 2. As mulheres são as responsáveis pelo clima de paz em Kakuma. Estão à frente de tudo: criaram uma revista feminina, reduziram o índice de contaminação por HIV e ainda patrulham tradições como o casamento forçado .
  • 3. Imagine uma área com 90 mil pessoas de dez países diferentes fugindo de guerras civis. Gente de línguas, culturas e deuses diversos, sobrevivendo aos altos índices de miséria e de doenças. Um mundo cercado por arame farpado, onde ninguém tem documento nem endereço. A escola e o hospital são improvisados, os ônibus não passam, as visitas não chegam. Coloque esse campo de refugiados na África Oriental, machista e fundamentalista (tanto muçulmana como cristã) e facilmente você concluirá: é um dos piores lugares para uma mulher viver. Ainda assim, o campo de Kakuma, administrado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, no norte do Quênia, é um exemplo da força feminina.
  • 4. "Mesmo tendo perdido maridos e filhos, as mulheres encontram força física e psicológica para recomeçar", afirma Caroline Cherwon, da Film Aid, ONG que exibe filmes num telão instalado num caminhão. "Sem elas, esse lugar seria um caos incontrolável." A rapidez com que se recuperam dos horrores da guerra está ligada à maternidade. A tese é de Salome Munyendo, do Núcleo de Eqüidade de Gênero e Direitos Humanos da Fundação Mundial Luterana. "Elas dão a volta por cima porque alguém tem que preparar a comida, buscar água, lenha, cuidar dos filhos. Não podem sentar e esperar o luto passar", diz.
  • 5. Por isso, as ONGs preferem emprestar dinheiro para as mulheres abrirem negócios como salões de beleza, lojas e restaurantes. Há muitos traços comuns na trajetória das refugiadas. Quase todas viram suas casas serem destruídas, passaram fome e sede e percorreram longas distâncias até encontrar o abrigo da cidade de Kakuma, a 100 quilômetros da fronteira sudanesa. Esquecido pela chuva, o lugar vive sob uma névoa de areia. O calor derrete e o sol de inverno doura os telhados feitos de latas de óleo. Nesse cenário, as mulheres se destacam como verdadeiras heroínas, já que aprendem novas habilidades para socorrer quem tem menos que elas. Escolhemos cinco personagens para traduzir o espírito da africana. São elas: Mary Bosco, 50 anos, do Sudão; Florence Odwar, 38, e Angela Khassons, 40, de Uganda; Jenta Ahmed Gas, 32, da Somália; e Ester Maiaribu, 46, do Burundi. Veja por que suas histórias impressionam.
  • 6. Mary foi obrigada, ainda jovem, a se casar com o cunhado porque a irmã morrera. "Esse é o costume no meu país", conta. Criou três sobrinhos como filhos. Em 1999, o cunhado-marido desapareceu e ela acabou presa por tropas do governo numa reunião do conselho de igrejas. Acusação: converter muçulmanas ao cristianismo. Foi estuprada e torturada. Conseguiu fugir três semanas depois, mas caiu nas mãos de guerrilheiros rebeldes.
  • 7. As cenas de estupro se repetiram até Mary aceitar o casamento com um oficial. Fugiu de novo, pegou uma carona num caminhão, que parou no Quênia, pediu asilo e, dias depois, entrava em Kakuma. “Cheguei moral e fisicamente destruída... Não sei como não morri de depressão", lembra. O que lhe garantiu energia foi o reencontro com os sobrinhos. .
  • 8. "Para mim, vê-los vivos foi como um milagre." Mary se recuperou e virou uma ativista. Sua causa? Lutar contra a violência sexual. Ela denunciou inúmeros estupros e coordena grupos que encorajam mulheres a não se calar diante das agressões. Por causa do trabalho, ganhou a confiança das sudanesas e, é claro, a antipatia dos homens, acostumados a um modelo de sociedade onde a mulher vale menos do que os bois que eles criam.
  • 9. Florence também chegou de caminhão, escapando da perseguição política, no início dos anos 90. Cruzou a fronteira deixando tudo para trás, inclusive uma filha e o marido, que lutava na guerra civil em Uganda. "Ouvi dizer, depois, que ele morreu", conta com certa passividade. Por nove anos perambulou como nômade até parar em Kakuma, onde reencontrou a filha. Há três anos, se tornou líder comunitária. Foi assim: um ministro de Estado visitava o campo quando Florence fez um contundente discurso sobre a condição das mulheres.
  • 10. Para se expressar melhor aprendeu inglês. Também fez um curso de culinária industrial e montou um grupo para preparar refeições em eventos organizados pelas agências internacionais. No início de 2005, entrou para o jornal comunitário e criou a Women's View, uma revista para mulheres. "É assim que ganhamos voz para denunciar nossos problemas", explica, com firmeza impressionante.
  • 11. Angela ainda tem feridas abertas na alma. Ela saiu de Uganda em 2003, dois anos após o assassinato do marido. Estava tentando superar o trauma - até abriu um restaurante -, mas não suportou a pressão: caiu na estrada depois que um dos quatro filhos teve o mesmo destino do marido. Ao chegar, estranhou a pequena cota de alimentos que as famílias recebem. “É difícil ser viúva aqui. Seu filho pede mais comida, você não pode dar e não tem com quem dividir essa angústia." Angela parou de chorar ao perceber que educar crianças num local como Kakuma seria um desafio. "Elas não sabem o que é a paz, são filhos da guerra", comenta a agora professora de religião e de inglês numa das escolas improvisadas do campo. "Na sala de aula, redescobri o amor pelos seres humanos."
  • 12. Jenta também se sentiu no dever de educar. É uma das raras somalis com diploma da escola secundária e decidiu enfrentar a cultura muçulmana defendendo o estudo para as meninas. "Se uma garota falta muito, vou à casa dela, cobro dos pais que a mandem de volta para as aulas", revela. Da alfabetização, partiu para a crítica ao casamento precoce - muitas adolescentes ainda têm de se submeter a ele. A batalha de Jenta tem provocado mudanças. “Os homens estão mais tolerantes, porque percebem a necessidade de educação para as filhas e sabem que a lei aqui é a das Nações Unidas e não a do seu país", explica.
  • 13. "Espero que levem a nova mentalidade ao voltarem para casa." Ela não imaginava que desenvolveria essa consciência até abandonar, em 1991, o Burundi, com sua casa em chamas - o pai fora degolado e dois irmãos acabaram capturados por soldados de outra etnia. Nos seis anos seguintes, enfrentou mais separações, além de uma perda: a mãe ficou doente e não resistiu, uma irmã foi conduzida para o Canadá, a outra para os Estados Unidos. Jenta não conseguiu repatriação, se casou, teve dois filhos e foi mandada com a família para Kakuma.
  • 14. Ester se destaca no combate à Aids. Há dois anos, ela vive rodeada por portadores de HIV. Ainda lidera grupos que batem de porta em porta para explicar a importância da camisinha. A taxa de infecção de HIV em Kakuma é de 2,5% - mais baixa do que a média da África subsaariana, que chega a 7,4%. Ester comemora o resultado, sabe que tem participação nele. Por seu trabalho, ganha do International Rescue Committee (IRC) um incentivo de 30 dólares por mês, o que ajuda a sua família. Eles dormiram ao ar livre por dez meses até arrumar um pedaço de chão para erguer uma casa. Para Ester, isso não é nada. Ela viveu por 30 anos num campo de refugiados na Tanzânia. Ali conheceu o marido. Em 1995, os dois voltaram, com quatro filhos, ao Burundi.
  • 15. Um mês depois, o marido foi preso na igreja onde era pastor. De novo, tomaram a estrada poeirenta atrás de liberdade. Deixaram um filho, de quem até hoje não têm notícias. Quando um parente reaparece, Kakuma se acende e festeja. Também tem festa em datas como o ano-novo. Mary Bosco é quem gosta de lembrar que, ali, três verbos têm muito valor: reunir, unir e compartilhar. As mulheres se juntam para orar, resolver problemas - existem 350 grupos de ajuda - e comemorar no momento em que alguém conquista asilo definitivo em outro país. A pessoa vai embora, mas não esquecerá Kakuma jamais.
  • 16. As protagonistas de Kakuma são muito intuitivas e aprendem rápido. Mas também têm bons modelos. Lucy N'Ganga,32 anos, é um deles. A enfermeira está ali por opção. Embora converse por telefone todos os dias com o marido, um capitão do Exército, e as duas filhas, só pode vê-los a cada dois meses, quando vai para casa, em Nairóbi, capital do Quênia (visitas são proibidas nos campos). Eles entenderam a importância que ela dá à luta que escolheu.
  • 17. "Nunca me imaginei levando uma vida pacata, quero estar onde mais precisam de mim.“ Sua missão é coordenar campanhas de prevenção à malária e à Aids. "Me realizo ao perceber que despertei uma mulher para a vida. Num mundo onde os rios são secos, o trabalho dela é fundamental. Assim como são imprescindíveis o otimismo de Jenta, a coragem de Mary, a solidariedade de Ester, a dedicação de Angela e a garra de Florence. Esses ingredientes fazem o sonho continuar existindo nos corações de Kakuma.
  • 18. Reportagem de: Ferdinando Casagrande e Priscila Ramalho Para a revista “Claudia” Formatação: Mima Badan mimabadan@hotmail.com Imagens: da mesma reportagem Música: We are the world (Repasse com os devidos créditos)