Este documento apresenta um resumo do trabalho acadêmico "Relato de uma vida: encantamentos da memória e fendas da história" escrito por Teodoro Gonçalves Silva. O trabalho é uma narrativa autobiográfica que descreve a jornada do autor rumo ao sacerdócio católico, desde a infância até a ordenação como padre. O documento contém quatro capítulos que abordam as incompletudes da história e memória, lembranças da infância do autor, sua busca por estudos religiosos e final
1. 1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, GEOGRAFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
Teodoro Gonçalves Silva
RELATO DE UMA VIDA:
ENCANTAMENTOS DA MEMÓRIA E FENDAS DA HISTÓRIA
GOIÂNIA
2012
TEODORO GONÇALVES SILVA
2. 2
RELATO DE UMA VIDA:
ENCANTAMENTOS DA MEMÓRIA E FENDAS DA HISTÓRIA
Monografia apresentada ao Departamento
de História Geografia e Ciência Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
como requisito parcial para obtenção da
Licenciatura em História, sob a orientação
do Profº. Ms. Antonio Luiz de Souza.
GOIÂNIA
2012
TEODORO GONÇALVES SILVA
3. 3
RELATO DE UMA VIDA:
ENCANTAMENTOS DA MEMÓRIA E FENDAS DA HISTÓRIA
Goiânia, Goiás, _____ de dezembro de 2012.
__________________________________ __________
Profº. Ms. Antônio Luiz Souza Nota
Orientador
__________________________________ __________
Profª. Ms. Suely Molina Nota
__________________________________ __________
Profª. Ms. Lázara Alzira Freitas Nota
GOIÂNIA
2012
4. 4
Dedico este trabalho a todos que, de uma
forma ou de outra, me ajudaram a chegar
ao final. Aos colegas que participei com
eles de muitas aulas, como portador de
diploma não tive uma turma definida. Ao
Pe. Sebastião Martiniano França, pelas
muitas conversas para a realização deste
e, ao meu irmão José Borges de Oliveira,
pelas muitas informações de quando eu
era pequeno; senão, o trabalho não teria
acontecido.
AGRADECIMENTO
5. 5
“(...): a vós graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo!
(...) Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós, e sempre em
todas as minhas súplicas oro por todos vós com alegria, pela vossa participação no
evangelho desde o primeiro dia até agora, e tenho certeza de que aquele que
começou em vós a boa obra há de levá-la à perfeição até o dia de Cristo Jesus” (Fl
1,2-6).
O apóstolo Paulo, demonstrava paixão em tudo o que fazia. A comunidade de
Filipos, recebeu dele carinho especial em muitas situações. No decorrer de toda a
carta, ele se refere àquela comunidade, filipense, com carinho, cheio de apreço e
sempre agradecido por tudo. Há uma passagem desta mesma carta em que ele se
dirige à comunidade e chama-a: “minha joia, minha coroa”. Também, aqui, em
primeiro lugar, quero agradecer a Deus Pai, por tudo o que Ele me dá: a vida, o
gosto pelas coisas boas, capacidade para superar as dificuldades, etc. Agradeço
também, pelas amizades e coleguismos que foram alimentados e mantidos no
decorrer do curso. Agradeço aos professores, sobretudo, àqueles que não se
colocaram nem acima e nem abaixo dos alunos em sala de aulas; mas, se
colocando lado a lado com os alunos, “fazendo parcerias”, usando uma expressão
de Paulo Freire, para que o gosto pelo conhecimento fosse fisgado pelos alunos. À
professora Lazara Alzira, pela grande contribuição para que o trabalho se tornasse
realidade. À professora Suely Molina, por ter aceitado prontamente a tarefa de arguir
o trabalho. Ao professor Antonio Luiz, pela generosidade, paciência e prontidão em
me orientar, tirar as dúvidas e, dar suporte para que o trabalho se organizasse,
crescesse e se tornasse real. Foi muito bom! Agradeço aos colaboradores Maristela
das Graças Ribeiro e Maria Aparecida da Silva; a W. S. G Júnior, psicólogo, pelas
contribuições na digitação do trabalho, ao Edivar Bispo de Jesus, pela correção do
português e pela amizade. Meu colega no ministério presbiteral até pouco tempo, e
também psicólogo. In Memoriam a Caio César Mesquita, falecido dia 26/08/2012,
que tanto queria ler este trabalho, mas, infelizmente não teve tempo! Foi ele quem
digitou o resumo e a introdução. Segundo Tereza de Ávila, “tudo é graça”. Por isso,
agradeço ao Pai criador, a graça de, aos Sessenta e Três anos de vida, ainda estar
freqüentando a academia. Nem todos podem, infelizmente! Obrigado, meu Deus, por
tudo! Tua presença em nossa vida é a Graça maior.
RESUMO
6. 6
Este trabalho acadêmico é uma narrativa da trajetória de vida do autor e uma
reflexão sobre o binômio História e Memória. A narrativa transforma-se em
depoimento, sendo escrita na primeira pessoa, alcançando a infância, a formação
educacional e vocacional. Os objetivos do trabalho alcançam a questão acadêmica e
a literatura de testemunho, uma vez que a vocação do autor era ser ordenado padre
da Igreja Católica.
Palavras-chaves: História, narrativa, memória.
ABSTRACT
7. 7
This academic work is a narrative of the author and a reflection on the binomial
History and Memory. The narrative becomes testimony, being written in first person,
achieving childhood, educational and vocational formation. The objectives reach the
issue of academic literature and testimony, since the author's vocation was to be
ordained a priest of the Catholic Church.
Key-words: History, narrative, memory.
SUMÁRIO
8. 8
INTRODUÇÃO............................................................................................................09
CAPÍTULO I - INCOMPLETUDES DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA..........................13
CAPÍTULO II - CADÊ O PASSADO QUE ESTAVA ALI? ESTILHAÇOS DISTANTES..25
CAPÍTULO III - EM BUSCA DO TEMPO VIVIDO NA TERRA DISTANTE................39
CAPÍTULO IV - FARIA TUDO DE NOVO OU REINVENTARIA O PASSADO E A MEMÓRIA? 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................67
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................69
9. 9
INTRODUÇÃO
Sempre vinha à minha cabeça a vontade, o desejo de escrever algo sobre a
minha vida, minha luta, busca e trajetória até chegar ao sacerdócio. Mas isso vinha e
ficava sufocado, achando que não seria capaz de colocar tudo no papel, pelo fato de
ser trabalhoso e cansativo e iria depender de muito tempo.
Mas, às portas de chegar aos 63 anos (ou 64), que mal teria ocupar-me com
essa tarefa?
Arturo Paoli, um teólogo italiano que viveu na América Latina e atualmente
está na Itália, em seu livro Caminhando se Abre Caminho, defende essa idéia: só
se sabe a extensão e comprimento do caminho percorrendo-o. Se isso nunca se
fizer, nunca se saberá. Então, por que não começar?
No curso de Monografia I, destinado ao projeto da monografia, para poder
concluir o curso de História, alguns temas foram sugeridos: Canudos, o primeiro a
ser cogitado. Depois, veio a idéia de se trabalhar algo com um viés psicológico,
surgindo assim a possibilidade de trabalhar algo sobre Pedro Ludovico Teixeira.
Também, por duas vezes, o orientador falou da possibilidade de se fazer algo sobre
Padre Pereira – o que seria muito interessante - mas, nada disso me animou, me
despertou para o assunto. Não me sentia trabalhando o assunto.
Então, surgiu a ideia de fazer algo no sentido autobiográfico. E, conversando
com a professora Lázara Alzira, esta achou a ideia boa, pertinente e, se tratando da
questão vocacional, disse: “no futuro poderá ajudar alguém a decidir” dar sentido ou
rumo àquilo que possivelmente venha a almejar vocacionalmente falando, isto é, ser
padre. E, possivelmente, será para mim uma alegria futura, poder olhar para a minha
busca, conquista e vivência ministerial e poder ver retratado no papel aquilo que eu
sempre pensei em fazer, mas, nunca me dispus de fato.
Santo Agostinho, em seu livro As Confissões, (1981: 5), bem no início, diz:
“criastes-nos para vós Senhor; e o nosso coração permanece inquieto enquanto não
10. 10
repousa em vós”.
Seguindo a ideia agostiniana, Deus é aquele que é capaz de satisfazer,
preencher, saciar plenamente toda sede humana: sede de justiça, verdade, saber,
plenificando o homem, enchendo-o de paz.
Sendo assim, também as realizações humanas, as conquistas, tarefas
realizadas, tanto materiais, intelectuais, espirituais procedem dessa saciedade que
vem de Deus e que realiza o homem plenamente.
Sigmund Freud (1996), em sua obra O Mal Estar na Civilização, quando fala
do cuidado e da sutileza que o psicanalista deverá ter para investigar a alma
humana, suas dores e angústias, diz que o artista quando está esculpindo uma obra
de arte, primeiro concebe a escultura na sua mente e, à medida que vai esculpindo a
estátua, aquilo que fora concebido antes, vai sendo colocado para fora.
Esse trabalho que se está fazendo, acredita-se, tem muito a ver com a
afirmação freudiana. Então, quem sabe, a estátua aparecerá no final. E só
aguardando para poder se ver. Antes, porém, fica a expectativa, ansiedade e a
angústia, aguardando que a conclusão, isto é, a concretização do trabalho chegue
logo.
Ou ainda, no dizer de Cortázar, (1974, p. 147-173), falando do conto, de sua
importância e leveza, ele diz:
É preciso chegar à ideia viva do que é o conto, e isso é sempre difícil na
medida em que as ideias tendem ao abstrato, a desvirtualizar seu
conteúdo, ao passo que a vida rejeita angustiada o laço que a conceituação
quer lhe colocar para fixá-la e categorizá-la. Mais, se não possuirmos uma
ideia viva do que é o conto, teremos perdido nosso tempo, pois um conto,
em ultima instancia, se coloca no plano humano em que a vida e a
expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal se me permitem
o termo; e o resultado dessa batalha e o próprio conto, uma síntese viva e
ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como tremor de água dentro
de um cristal a fugacidade numa permanência.
Belíssima a ideia de Cortázar! Chega a emocionar a gente. Falando do conto,
ele coloca como esse algo fugaz, presente/ausente, como o borbulhar da água
dentro de um recipiente de cristal! ... É lindo!
E a vida, não é isso? Diria que a mesma, parafraseando Cortázar, é
semelhante a vários canhões de luz, cada um de uma cor: vermelho, amarelo,
azul...; e todos focalizando o mesmo ponto. E cada um que olhar esse ponto
focalizado pelas luzes de diferentes cores, o verá de um modo próprio seu. E,
11. 11
evidentemente, cada um terá e dará um significado próprio a isso. Portanto, a vida e
a história de cada um será vista na perspectiva de cada um; diga-se, ainda, que
aquele que traçou o próprio caminho terá e dará um significado à luz de tudo aquilo
que foi e é vivenciado.
O trabalho que hora se apresenta trata da autobiografia, ou relato ego-histórico
do autor, para poder chegar à vida sacerdotal. Fala da sua luta, busca,
tentativas, decepções, e finalmente a ordenação presbiteral, em dezembro de 1988.
Contém o trabalho, quatro capítulos, onde o mesmo fala da sua vida, acertos
e desacertos.
No capítulo primeiro, faz-se o embasamento teórico baseando-se em duas
figuras fora de suspeita para referendar o assunto, reforçando teoricamente a
questão da ego-história: Hobsbawm e Nora.
No capítulo segundo é relatado seu contexto familiar, social, sua meninice,
adolescência e a juventude; o despertar da vocação e, as tentativas na sua diocese
de origem, para encaminhar os estudos; os incentivos dos amigos e os
desestímulos.
O terceiro capítulo narra a saída do seu contexto social, deixando para trás
sua gente, amigos e partindo para tentar encaminhar os estudos e trabalho em São
Paulo, capital. São mostradas suas buscas em São Paulo, convivência na casa da
tia adotiva, trabalhos, amizades; esforço para alimentar a vida espiritual, sua relação
com o Mosteiro de São Bento, centro de São Paulo e, finalmente, a ida para o
interior, a cidade de Itaporanga, o tempo que lá permaneceu e, chegando à
conclusão que em Itaporanga não teria como encaminhar os estudos, vindo,
finalmente, a deixar o Mosteiro no final do ano de 1976. Volta para São Paulo,
permanece aí até o início do ano de 1977.
O quarto capítulo fala da sua ida para Ribeirão Preto, (SP); onde morou de
janeiro de 1977 até 1984, quando foi dispensado da diocese de Franca, do
encaminhamento dos estudos, primeiro e segundo graus supletivo, do curso de
filosofia e a teologia, contato e vinda para Goiânia em 1985. Aqui concluiu o curso
teológico e foi ordenado diácono a seis de abril de 1988, anti-véspera do aniversário
natalício e, a ordenação sacerdotal, afinal, a 22 de dezembro do mesmo ano, em
Pintadas, (BA), sua terra natal. E, foi o primeiro da sua cidade a ser ordenado padre.
Depois dele, outros cinco já foram ordenados também (filhos da cidade).
12. 12
Nélida Piñon, em seu livro, Coração Andarilho – memórias, fala da
necessidade, importância e risco de falar da história pessoal.
Hobsbawm, na introdução do seu livro, A era dos Impérios, fala que, entre a
história e a memória, há uma “zona de penumbra”, para falar da dificuldade e risco
que há em se falar de si; isto é, o trabalho daquele que conta a sua autobiografia,
deve ser muito criterioso e sutil.
E Nora, prefaciando o livro, Ensaios de Ego-história, fala do medo, da
insegurança e da inibição que os historiadores tiveram no decorrer da história para
falar de suas vidas. Se escondiam atrás de suas escrivaninhas, contentando-se
apenas em falar de si nas conclusões dos ensaios que escreviam.
É Nélida quem afirma: “falar de si é não ter vergonha de se expor”.
Lendo estes e outros historiadores, citados no trabalho, foi se convencendo,
no decorrer do mesmo, que valia e, estava valendo a pena, escrever o relato sobre a
sua vida (o autor).
Esse trabalho, que hora se está concluindo, teve como objetivo, narrar a
história do autor. Daí o nome, Relato de uma Vida. Como se falou na introdução, era
algo que se queria, pensava vez ou outra, mas, nunca se imaginou que fosse
exatamente acontecer na monografia encerrando o curso de história.
Para mim foi um voltar atrás em minha caminhada, um olhar à minha história
pelo retrovisor do carro da vida, e vivenciar, ou pelo menos, recordar, muitos
momentos que tive de enfrentar: barreiras, montanhas que tive de atravessar,
espinhos que doeram no mais profundo da alma, e, rosas que colhi. Amizades que
encontrei, muitos amigos já mortos e que me ajudaram tanto.
Mas, nesses dias, 21/10/2012, postei no facebook algo mais ou menos
dizendo assim: enfrentar a vida com as dificuldades que a mesma apresenta em
diversas circunstâncias; pois, se assim não fosse, com as dificuldades, como seria o
viver humano, quais experiências e crescimento se teriam?
Viver, portanto, ainda é a melhor opção! Viva a vida, com tudo que a ela diz
respeito! E, olhar para trás e perceber que alguma semente foi jogada no caminho,
vale a pena. Não deixa bater aquele vazio de não ter feito nada.
13. 13
CAPÍTULO I
INCOMPLETUDES DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA
"A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste sentido,
ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento."
Pierre Nora.
Hobsbawm (2011, p. 11), em sua obra, A Era dos Impérios, que trata das
transformações ocorridas no mundo, no período que vai de 1875 – 1914, sobretudo
na Europa, afirma no prefácio desta obra que:
entender e explicar um mundo em processo de transformação
revolucionária, localizar as raízes de nosso presente no solo do passado e,
talvez sobretudo, ver o passado como um todo coerente (...) como uma
montagem de tópicos isolados: (...). Desde que comecei a me interessar por
história, sempre quis saber como se articulam todos esses aspectos da vida
passada (ou presente) e por quê.
Ninguém, mais do que Hobsbawm, está fora de suspeita para fazer esta
reflexão; pois, a tendência a retratar da história, é se preenchê-la ou envolvê-la de
preconceitos e “valores ideológicos.” Sobretudo, quando se trata da autobiografia de
alguém; pois, refletir, fazer uma autoanálise, apontar os pontos em nós que devem
ser mudados, questionados é muito difícil. Mas, quando se trata de elevar a pessoa,
o indivíduo, o risco é muito grande de colocar-se “qualidades” que, na maioria do
nosso agir, ser e vivenciar, não são no sujeito identificados, não fazem parte do seu
ser.
Os leitores de uma autobiografia, ainda seguindo a ideia de Hobsbawm,
devem procurar ter o cuidado de lê-la com olhos abertos e procurar afastar de si o
espírito dogmático; e, nas entrelinhas procurar verdadeiramente onde se encontra
de verdade aquilo que foi, é e continuará sendo verdadeiro.
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Quem conta a própria história, corre o risco de pender muito para a direita ou
para a esquerda; isto quer dizer, se o indivíduo se coloca como uma figura
impecável, um “Santo”, ou então, se omite, não fala de si com verdade, por uma
série de razões como pudor exagerado, receio de se expor e assim, não fala do si
real, mas do si imaginário, que desejaria ser e não do que ele é verdadeiramente.
Falar de si, corre-se o risco de dizer muito ou então não dizer nada, a
tentação de multiplicar palavras é muito grande. Mas, apesar desses riscos, procurar
ser verdadeiro vale a pena.
Piñon será mencionada à frente, fala numa entrevista ao jornalista Rogério
Borges, na coluna Magazine do jornal O Popular, de 25 de março de 2009, que ela
não tem vergonha de se expor. E assim, essa deve ser a atitude de todo aquele ou
aquela que pretende falar da sua vida.
Não falar de si, ter vergonha de falar de sua vida, não seria negar o seu
existir? Falar de sua vida, pode significar também gosto pelo que é, o que fez, pode
significar ter prazer em ser o que é. Se o indivíduo não se valorizar, quem o fará
isso?
Isso pode até parecer narcisismo; mas que mal há em escrever sobre os
espaços e lugares onde se nasceu, de onde veio e falar dos seus propósitos, ideais,
gostos etc? E reconhecer sua história?
Já disse Pascal, “É justo conhecermo-nos a nós próprios; mesmo se isso não
bastasse para encontrarmos a verdade, seria útil, ao menos para regularmos a vida,
e nada há de mais justo.” (frases. netsaber.com. br)
Talvez, até para não cometer os erros que seus familiares e parentes
cometeram no passado. Conhecer-se também, pode ser uma forma de trazer o
passado para o presente, presentificá-lo e assim, pelo menos imaginativamente,
poder saborear aquilo que é “seu”.
Conhecer-se a si mesmo, já disse Sócrates, nos Séculos V e IV a.C, é a
maior das virtudes e o exercício maior que o homem pode fazer, pois trata-se de
uma verdadeira arte e tarefa árdua; pois não é conhecer por conhecer apenas! Mas,
conhecer para crescer e consequentemente, viver com mais qualidade; ou talvez,
não.
Hobsbawm, citando Nora, apud NORA (2011, p. 13) afirma que:
memória é vida. Seus portadores sempre são grupos de pessoas vivas, e
por isso a memória está em permanente evolução. Ela está sujeita à
dialética da lembrança e do esquecimento, inadvertida de suas deformações
15. 15
sucessivas e aberta a qualquer tipo de uso e manifestação. Às vezes fica
latente por longos períodos, depois desperta subitamente. A história é a
sempre incompleta e problemática reconstrução do que não existe. A
memória sempre pertence à nossa época, está intimamente ligada ao
eterno presente; a história é uma representação do passado.
De acordo com a afirmativa acima, não se deve ter receio de dizer que a
história “é morta”; ela apenas nos faz tomar conhecimento de algo que aconteceu no
passado. Ao passo que a memória e a criatividade, elas não se prendem nem ao
passado e nem tem como ser futuras, elas acontecem agora, nesse instante e, no
entanto, se reportam ao passado para não deixar a história desfalecer, apagar-se.
Assim, tanto a memória como a criatividade são como que uma faca de dois
gumes, ou como o fiel da balança: além do princípio da fidelidade, que nestas
circunstâncias é muito fluída, também semelhantes ao existir do conto, que na
afirmação de Cortázar, existe enquanto é, e requer o cuidado para recorrer às fontes
escritas, orais, fotográficas etc, para não se fantasiar muito, embora a fantasia é
semelhante ao sonho: tenha também sua importância neste contexto, sem dúvida.
Pois, a fantasia é semelhante ao sonho: quem não sonha não projeta, não almeja,
não vai à frente. Fica olhando para os pés e não é capaz de olhar à distância, para o
horizonte, para o futuro, portanto.
Ainda de acordo com Hobsbawm (2011, p. 15), “há uma zona de penumbra,
entre a história e a memória.” Isso é sempre árduo para o historiador, não há como
abarcar completamente o sentido dessa “terra de ninguém” (idem, p.16).
Essa “zona de penumbra”, ela é por demais complexa, até mesmo para
aqueles que pertencem a uma tal família, grupo, contexto social e para aqueles que
narram sua própria história. Isto, porque o sentido que se dá a algo acontecido há
muitos anos antes, é diferente do sentido que se dá à mesma realidade muitos anos
depois. Os contextos, os sentimentos, interpretações e ressignificações são, em
muitas circunstâncias, até opostos. É desafiador, sem dúvida. Terá que se ter em
vista também que os destinos públicos e privados são inseparáveis e se determinam
mutuamente.
Dessa forma, pode-se afirmar que o passado está fortemente presente no
momento atual e o presente encontra suas raízes firmemente fincadas no passado.
Assim, nesse sentido, passado e presente estão entremeados, emaranhados numa
intersecção viva e atual, na vida de cada indivíduo e na sua história.
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O termo penumbra, aqui, o autor emprega, quero crer, no sentido de que nem
tudo é compreendido; e além disso, muita coisa fica perdida, se jogando no campo
da psicanálise fica na zona perdida do inconsciente do indivíduo, e que no vem e
vai, aparece e desaparece no seu agir, fazer e dizer que nem ele nem os seus se
dão conta. Porque está na zona do “escondido”, zona do não dito, mas existente.
E isso, de acordo com Hobsbawm, não está presente só nos indivíduos, mas
também é aplicado às sociedades. E isto é por demais compreensível, pois as
sociedades são compostas de indivíduos. Assim, não são apenas os indivíduos que
sofrem e também se beneficiam dos prazeres existentes no mundo, mas as
sociedades também. Não seria por causa disso que o mundo já enfrentou duas
grandes guerras e por que os homens não vivem em paz? Por que os homens não
se entendem e não vivem em harmonia? Por que conflitos pipocam em todo mundo?
É bom ouvir Hobsbawm (2011, p. 18). Ali onde os historiadores tentam se
defrontar com um período para o qual existem testemunhas oculares vivas, dois
conceitos de história bem diferentes se chocam ou, no melhor dos casos,
completam-se mutuamente:
a acadêmica e a existencial, o arquivo e a memória pessoal. Pois todo
mundo é historiador de sua própria vida passada consciente, na medida em
que elabora uma visão pessoal dela: um historiador nada confiável, sob a
maioria dos pontos de vista, como bem sabem todos os que se aventuram
pela ‘história oral’, mas um historiador cuja contribuição é essencial.
Ora, depois dessa afirmativa de Hobsbawm, não se tem muito mais o que
argumentar; a diferença entre história acadêmica e existencial é muito grande: o
autor não pende nem para um lado e nem para o outro, mas essa constatação de
uma autoridade no assunto, figura respeitadíssima, do calibre de Eric Hobsbawm, o
que mais se poderia dizer?
Embora o autor, nesta obra, A Era dos Impérios, esteja falando de um
determinado período específico (1875 – 1914), é importante se perceber esses
conflitos, contradições e desencontros que Hobsbawm quer nos fazer perceber que
existem em todos os campos históricos, tanto da alçada social, como individual,
evidentemente. Essa colocação dele é genial! Aqui, vê-se, não há espaço para
sentimentalismo e dramaticidade, no sentido pejorativo; mas, há de se perceber, que
o homem/mulher é gente em todos os momentos históricos. Não tem como se falar
17. 17
de história, esquecendo do homem, das suas qualidades e desvirtudes. Crer-se que
é essa a perspectiva do outro.
Agora, poderia se colocar um questionamento, qual o sentido e a importância
do sujeito escrever sobre si mesmo, tratar de sua biografia?
Nora (1987, p. 9) afirma:
a ego-história, um gênero novo, para uma nova idade da consciência
histórica, que nasce do cruzamento de dois grandes movimentos: por um
lado, o abalo das referências clássicas da objetividade histórica, por outro, a
investigação do presente pelo olhar do historiador.
De acordo com o pensamento e colocação de Nora, depreende-se que ele
coloca a necessidade do historiador conhecer a sua história, sua vida, e não
somente isso, mas procurar conhecer o presente, através de um olhar voltado para o
passado.
Vê-se, assim, que conhecer o presente pelo presente, se torna por demais
imediatista; o passado está presente em nós, assim como nós estamos ligados ao
passado. Se assim não fosse, ficar-se-ia sem referencial algum.
É, ainda, Nora (1987, p. 9) que diz:
Toda uma tradição científica levou os historiadores, desde há um século, a
apegarem-se perante o seu trabalho, a dissimularem a personalidade por
detrás do conhecimento, barricaram-se por detrás de suas fichas, a
evadirem-se para uma outra época, a não se exprimirem senão por
intermédio de outros, permitindo-se fazer na dedicatória da tese, no prefácio
do ensaio, uma confidência furtiva. A experiência da historiografia pôs em
evidência, há uma vintena de anos, os falsos aspectos desta personalidade
e o caráter precário da sua garantia.
É a sensação de ausência que se tem, e até um vazio, que dói na alma da
gente, essa exigência de que o sujeito que está escrevendo não pode isso, não
pode aquilo, não pode dizer quase nada próprio, só deve trabalhar com outros
autores e se embasar neles. É muito chato e se tem uma sensação de
aniquilamento daquele que escreve.
Trata-se, evidentemente, do exagero do cientificismo, assim se pode dizer. E
o prazer, a alegria e a presença daquele que escreve? Tem-se a sensação de que é
uma “entidade” que escreve, mas, não um indivíduo de carne e osso, com
sentimentos, opiniões, ideias, etc.
Ainda, Nora, (1987, p. 9):
18. 18
(...) A conquista do seu próprio século e mesmo do presente por parte do
historiador constituiu um dos avanços da disciplina no decurso das últimas
décadas. Ela mostrou que os obstáculos considerados redibitores eram
ultrapassáveis e que uma inteligência histórica do presente era não só
possível, mas também necessária.
Genial a afirmação do autor! Diria até, não só em relação à história. Este
excesso de ciência e tecnologia demasiada impedem os avanços no campo da
própria ciência. Seria a ciência, impedindo a si mesma, a possibilidade de avanço,
crescimento no campo do conhecimento.
O autor deixa claro a necessidade de mentes e posturas abertas, para que a
história não venha a ser prejudicada, com excesso de ciência. Essa visão tecnocrata
tira todo prazer e leveza da produção literária, da arte de escrever. O tecnicismo
engana a ciência, sobretudo quando se trata da inspiração e liberdade para fluir
livremente, deslizando pelas páginas da história da imaginação. Escrever requer
leveza, desenvoltura e capacidade de ultrapassar os limites que nos impedem de
avançar. Engessados pelos rigores do tecnicismo, é difícil alçar voo. O espírito
humano, para ser ele mesmo e produzir frutos, não pode e não deve ser engaiolado.
Se isto ocorrer, não haverá produção e nem crescimento científicos.
Ainda, Nora (1987, p. 11):
o exercício consiste em esclarecer a sua própria história como se fizesse a
história. Como se fizesse história de outro, em tentar aplicar a si próprio,
cada um no seu estilo e com os métodos que lhe são caros, o olhar frio
englobante, explicativo que tantas vezes se aplicou sobre os outros. De
explicitar, como historiador, o elo entre a história que se fez e a história que
vos fez.
Vê-se, assim, de acordo com a colocação de Nora, que a disciplina e a
seriedade devem estar presentes, não a secura e a rigidez, mas a seriedade e o
espírito histórico devem estar na narrativa da história, da mesma maneira que
deverão estar presentes na narrativa e reflexões da história dos outros, da história
como tal.
E isto sendo feito, ou havendo esta preocupação ética com a narrativa da
história pessoal, o indivíduo acabará se descobrindo e descobrindo a sua
importância no universo em que ele vive. E ainda mais, verá como ele está, ou se
ligará à história passada, através do presente, e que o presente tem suas raízes e
deve isso muito ao passado. O homem não é só, não é único no mundo. Se assim o
19. 19
fosse, já não se falaria mais em humanos. E o sujeito, descobrindo como o passado
está muito próximo a ele, pode fazer o ato de fé de não negá-lo. O passado está no
indivíduo e este, está fortemente ligado ao passado. Os dois são inseparáveis,
assim como a morte e a vida são realidades antagônicas, mas uma não existe sem a
outra. É, o indivíduo se descobre entre as contradições.
Foi-me proposto pelo orientador, que trabalhasse o cap. 3 da 2ª carta de
Paulo aos Coríntios. Fiquei preocupado e sem saber por onde começar. Como fazer
essa reflexão, ligando, fazendo a ponte com o trabalho que estou desenvolvendo?
Pois, literalmente, ele colocou assim: “Gostaria que o cap. 3 e o espírito
inteiro do texto, sejam motes do capítulo; e ego-história, missão e experiência serão
os conceitos”.
Como se trata de uma narrativa e reflexão autobiográfica ver-se-á que não é
fácil, pois ou exalta-se em demasia a si mesmo, ou em nome de uma falsa modéstia,
pode-se não dizer quase nada.
Isso ficou me martelando, e eu, sem saber por onde começar, liguei para o
meu amigo Pe. Sebastião, em São Paulo e comecei trocar ideias com ele, como
deveria trabalhar com isto. Aí, na conversa com ele, me lembrei de duas coisas
importantes que não aparecerão na parte autobiográfica:
a) Uma carta de Pe. João
b) Conversa com Pe. Alcídes.
A carta do Pe. João Farias, trata-se de uma resposta a uma carta que enviei à
ele. Quando cheguei em São Paulo capital, os conflitos não foram poucos (isto
aparecerá na autobiografia). E as pessoas a quem eu recorria antes de me
encontrar com D. Bernardo no mosteiro de São Bento, eram Pe. João e Pe. Alcides.
Mas, nenhum deles respondia às minhas cartas. Eu lamentava, jogava para fora as
minhas angústias, incertezas, fragilidades, faltas de perspectiva.
Enfim, escrevia a eles para desabafar. Telefonar, naquelas circunstâncias,
nem pensar. Não tinha telefone nas casas paroquiais de Mairi e Ipirá (BA). Nesse
sentido, falando de telefone, não teria como haver comunicação. Então, era carta
mesmo. E como escrevi! Coitados, não sei como eles davam conta de ler, pois além
de eu escrever muita coisa errada, não tinha conhecimento nenhum, culturalmente
falando, naquela época; e, ainda, a minha letra é horrível. Ainda hoje é. E o Pe.
20. 20
Alcides não tinha visão boa, manifestando-se o glaucoma; nos óculos dele, as lentes
pareciam-se com um fundo de garrafa.
Mas, entre tantas cartas que iam para os dois, sem ter nenhuma resposta, um
certo dia, chegou uma: era o Pe. João que respondia. Era uma carta pequenininha,
minúscula, escrita numa folha daquelas de cadernos pequenos, que normalmente
eram usados para fazer anotações em padarias, bazares etc. Aqueles cadernos que
o tamanho seria a metade do tamanho de um caderno universitário de espiral.
A carta era muito pequena, mas trouxe-me uma alegria muito grande e força
também. Imaginem, você está longe dos seus, e receber um telefonema, carta,
bilhete, ou, atualmente um e-mail.
Essa carta do padre me trouxe um novo vigor! Criei ânimo! Quisera eu que
ele estivesse vivo, para poder dizer isso a ele pessoalmente!... Escrevo isso e os
meus olhos se enchem de lágrimas! No final, ele terminou a carta com essa frase:
“teus passos não serão em vão”. Tenho a mesma guardada nos meus papéis até
hoje. É um bem que não vale só pela carta. Ela tem o seu valor, sim, mas o que a
carta me lembra e representa, vale muito mais. É uma relíquia! Essa frase é um
paralelo bíblico; 1Cor 15,58 diz algo bem semelhante: “Assim, irmãos bem amados,
sede firmes, inabaláveis, fazei incessantes progressos na obra do Senhor, cientes
de que a vossa fadiga não é vã no Senhor.”
O apóstolo, com esta carta, estava alertando e advertindo a Comunidade de
Corinto, para que não se deixassem levar, nem seguir caminhos contrários à fé no
Ressuscitado. E os exortava, a viverem produzindo boas obras, diante do
Senhor; e assim, o cansaço, a fadiga não seriam em vão. Quem planta colhe, diz um
outro trecho bíblico. E essa afirmação caiu no gosto popular, pois as pessoas
normalmente dizem isso.
Essa carta, então, levantou-me, no sentido de me ajudar a enfrentar as
adversidades. Quando as coisas se complicavam, eu pegava a carta, lia, ou me
lembrava da mesma. Ainda hoje, isso acontece...
Quanto ao Pe. Alcides, ele nunca respondeu nenhuma carta. Não tinha como,
também. Naquela época já rezava a missa com bastante dificuldade. Os olhos não
ajudavam. Mas mesmo assim, quando ele estava na casa paroquial, a gente
encontrava-o sempre com um livro nas mãos. Era um homem de leitura, bastante
informado. Normalmente, ouvia “A Voz do Brasil”. Naquele contexto, era um forte
veículo, ou meio de informação, comunicação.
21. 21
Ele não respondia às cartas que eu o enviava, e nunca me disse porquê, não
dava explicações. Mas, numa das férias que fui à Bahia, estando na casa paroquial,
a gente estava almoçando e ele disse-me: - “Teté (é meu apelido na minha cidade)
você, semelhantemente ao apóstolo Paulo, é uma pessoa muito comunicativa. As
suas cartas revelam o dom, as características que o aproximam do estilo dele. Você
comunica as suas preocupações, partilha suas aspirações, angústias e anseios.
Coloca-nos a par das suas expectativas.”
Recordo-me disso, dessa fala dele e da carta do Pe. João, na conversa com o
Pe. Sebastião. Foi uma conversa muito proveitosa. A gente se conhece há mais de
30 anos, desde os tempos do Mosteiro de Itaporanga e posteriormente, bem depois,
os dois já sendo padres, na Diocese de São José do Rio Preto/SP. O conheço um
pouco e ele também a mim. À medida que a conversa fluía, ele foi me fazendo
compreender muita coisa que se vivenciou no mosteiro, depois na Diocese de Rio
Preto e clareou bem mais a fala do Pe. João e também trocou-se algumas ideias
sobre a segunda carta de Paulo aos Coríntios, capítulo terceiro.
A fala do Pe. João, “teus passos não serão em vão”, é uma frase bíblica,
naturalmente, se aproxima do texto bíblico da primeira carta de Paulo aos Coríntios,
capítulo 15, versículo 58, já mencionado a cima. O Apóstolo, depois de uma série de
exortações à comunidade de Corinto, diz: “Assim irmãos (...), cientes que a vossa
fadiga não é vã no Senhor” (1Cor 15, 58b).
A explicação literal é: “Este versículo liga a explanação antecedente ao
versículo 14, início da instrução. A certeza da vitória dá ao fiel a força para progredir.
Para Paulo, não pode haver fé sem vida em progresso.” (explicação da letra h do
texto bíblico).
“Teus passos não serão em vão”, pode ser interpretado aqui como a certeza
de que eu iria conseguir, foi um modo do Padre me incentivar e desejar que eu
fizesse progresso, atingisse meus objetivos etc. Que eu crescesse, atingisse e
desse passos na direção para a qual eu queria seguir.
Coloquei tudo isso, para poder chegar à 2ª Coríntios, capítulo terceiro.
Existem pessoas que cativam a gente, nos seduzem, mesmo sem a gente
conhecê-las e tendo, entre a gente e elas, anos e anos que nos separam. São
figuras apaixonantes/cativantes da história; só para citar algumas: umas mais
distantes, como a figura de Abrão, como se verá, ao ser convocado por Javé, para
conquistar uma nova terra, deixou tudo e partiu. A sua coragem, confiança no Deus
22. 22
da vida, deve ser, para todos nós, estímulo e fonte de inspiração. S. Freud, que ao
descobrir que a repressão sexual nas mulheres era a grande causadora da histeria,
uma doença psíquica ou psicossocial, que deveria ser tratada, cuidada
psicanaliticamente, com isso, demonstrou-se uma pessoa muito corajosa. Foi
criticado por muitos, desacreditado, até mesmo alguns de seus discípulos o
abandonaram.
João XXIII, que teve a coragem de dizer ao mundo em pleno século XX, que a
Igreja teria que abrir-se para a nova realidade que estava à sua frente: o mundo do
trabalho, dos novos desafios científicos, tecnológicos, novos valores e assim por
diante. Disse que a Igreja teria que abrir suas portas e janelas, para entrar novos
ares, deixar se envolver pela nova realidade que despontava. E teve a coragem de
convocar um novo concílio na História da Igreja: o Concílio Vaticano II. Não se pode
esquecer de seu sucessor, o saudoso Paulo VI, que enfrentou o concílio e as suas
consequências, de cabeça erguida e confiante. Aqueles anos da década de 1960,
todos sabemos que foi a década da inquietação, das buscas, não se sabia muito o
quê, enfim, os desafios que se apresentavam. E o Papa continuou firme. Foi
durissimamente criticado pelas correntes conservadoras; tanto da Igreja, como da
sociedade. E pensadores do cacife de K. Marx e muitos outros...
E Paulo de Tarso é uma dessas grandes figuras. A gente, lendo qualquer uma
das suas cartas, não tem como não se envolver com o seu espírito inquieto, falante,
intrépido e questionador. Figura que, tanto no judaísmo, defendeu sua religião “com
unhas e dentes”, como no cristianismo, se entregou totalmente à causa do
Evangelho, ao ponto de entregar a vida pela causa do Ressuscitado. Grande figura!
No novo Testamento, o maior número de livros é dele; escreveu 14 cartas. Todas as
comunidades, por ele criadas, tiveram o privilégio de ter cartas dele, a elas dirigidas.
Romanos, Hebreus, Efésios, só para citar algumas.
Paulo era uma pessoa apaixonada, fazia as coisas com o coração, com
inteligência e era uma figura destemida. Nas suas cartas, quando ele tinha que
elogiar uma comunidade, ele fazia, como vê-se na Carta aos Filipenses, quando ele
chama a comunidade de minha joia, minha coroa. Era uma comunidade que tudo faz
crer, o apóstolo a amava, devido a seriedade da mesma, em relação às coisas da fé;
como é o caso de Filipenses 4,1: “ Assim, irmãos amados e queridos, minha alegria
e coroa, permanecei firmes no Senhor, ó amados.”
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Quando tinha que advertir a comunidade, cobrando dela responsabilidade, ele
fazia também, como é o caso da carta a Tito 2,1-7; “Quanto a ti, fala do que pertence
à sã doutrina. Que os velhos sejam sóbrios, respeitáveis, sensatos, fortes na fé, na
caridade, na esperança. As mulheres idosas, igualmente, devem proceder como
convém a pessoas santas: não sejam caluniadoras, nem escravas da bebida
excessiva; mas sejam capazes de bons conselhos, de sorte que as recém-casadas
aprendam com elas a amar os maridos e filhos, a ser ajuizadas, fiéis e submissas a
seus esposos, boas donas-de-casa, amáveis, a fim de que a palavra de Deus não
seja difamada. Exorta igualmente os jovens, para que em tudo sejam criteriosos. Sê
tu mesmo modelo de belas obras” (...).
Em todos os seus escritos, vê-se essa franqueza e firmeza: advertindo,
estimulando, encorajando a comunidade a viver a seriedade da fé. Era uma figura
fantástica. Era um apaixonado pelas coisas que fazia e ensinava.
Em 2Cor 3, o capítulo inteiro, não é diferente, onde a ego-história do
Apóstolo, sua missão e experiência estão presentes. Isto é, o apóstolo coloca a sua
história, sua experiência e sua missão, como aquilo que legitima e dá credibilidade
ao seu ser / fazer.
Nos versículos 1 e 2, o apóstolo questiona as cartas de recomendações e
afirma que a verdadeira carta de recomendação, são as comunidades, às quais ele
prestou o serviço de evangelização. A coerência, a seriedade na missão e a sua
experiência pastoral são a verdadeira carta de recomendação.
Na troca de ideias com o Pe. Sebastião, ele me dizia sobre este texto de
Paulo: “não adianta alguém dizer de alguém que este é um bom sapateiro e ele não
sabe sequer utilizar o pé-de-ferro, moldar o couro, criar um sapato. Alguém vai
provar isto, fazendo o sapato,” são palavras dele.
A qualidade e coerência da experiência missionária de Paulo advinha do seu
próprio trabalho às comunidades. E ele fala de boca e coração cheios disso.
Segundo uma nota explicativa do texto, letra f, diz o seguinte:
Havia quem censurasse Paulo por tecer seu próprio elogio (...), ao passo
que os outros pregadores apresentavam cartas de recomendação das
comunidades (...), Paulo responde que o fruto do seu apostolado, as
comunidades que ele fundou, obras do Espírito, são recomendações vivas
que tornam as cartas inúteis.
24. 24
No espírito do texto, e a força moral que Paulo tinha, advinda do seu trabalho,
a carta se tornava insignificante... O papel se rasga, a tinta se apaga, mas, aquilo
que foi escrito com suor, lágrima e sangue, isto não se apaga. É letra escrita na
pedra da vida, é a vivência daquele que deu tudo pela causa do Evangelho.
A ego-história paulina, aqui, é contada, é dita, a partir de sua própria
experiência. É o olhar para trás, e o trazer ao presente, tudo aquilo que foi escrito,
anteriormente, com a própria vida.
No versículo 3, o apóstolo fala da verdadeira carta, ele e as comunidades que
seguem sua orientação, pois uma carta de Cristo não é escrita com tinta, mas com o
Espírito de Deus; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne no coração.
Com essa afirmação, o apóstolo está mostrando aos seus críticos que a carta
escrita em papel, em tábua, representa a lei mosaica, mas que a carta escrita na
tábua de carne do coração na vida, no sangue, representa o novo, aquilo que liberta,
que quebra as algemas e faz o homem se tornar livre. É, Paulo é fantástico. Figura
extraordinária!
25. 25
CAPÍTULO II
CADÊ O PASSADO QUE ESTAVA ALI? ESTILHAÇOS DISTANTES
"Em história tem-se a impressão de que tudo se renova de um período a
outro".
Maurice Halbwachs
“Vamos ser criticados, porque escrever sobre a vida de alguém é mais
adequado à outra pessoa fazer e, não ela própria”, dizia-me o orientador enquanto
se trocava ideia sobre o trabalho. Mas, apesar disso, há a possibilidade do próprio
indivíduo escrever sobre sua vida. É a chamada autobiografia.
E o ato de escrever é sempre delicado ainda mais quando se trata da pessoa
mesma, pois corre-se o risco de dizer muito sobre si mesma ou então não dizer
nada.
Neto (2005) trabalha muito bem isto, quando trata do endeusamento que o
historiador pode fazer daquela pessoa que está sendo contemplada. Quando se
trata de autobiografia então, esse endeusamento poderá ser supervalorizado, ou
pode ocorrer uma falsa modéstia, não dizendo nada de si. A autora ainda coloca a
ideia de Bourdieu, quando ele fala das possibilidades perdidas:
utilizar-se do eu para libertar os excessos de carências e dos discursos
históricos, para interrogar não somente sobre o que foi e o que é produzido,
mas também sobre as incertezas do passado e as possibilidades perdidas,
(NETO, 2005, p. 1534).
Isto pode ocorrer no discurso do historiador sobre alguém, mas, poderá ser
mais usual quando se trata do indivíduo falando de si mesmo. E se esse discurso
for mesclado de uma ideia religiosa – como é o caso aqui - poderá ser muito mais
sutil e com aparência de humildade.
26. 26
Ainda continuando nesse raciocínio:
a biografia é um gênero crucial, mas difícil. Até uma biografia inadequada é
sempre útil... Há algo de vital em cada leitor autêntico de literatura que
responde ao grito de batalha de Emérson, ‘não existe história: só biografia’.
Para, além disso, há uma percepção mais profunda: não existe literatura, só
autobiografia. (HAROLD BLOOM, p. 1531)
A autora explora aqui um pensamento de Harold Bloom, quando ele fala da
biografia, se referindo à questão literária e o autor afirma: “não existe literatura só
existe autobiografia” (NETO, 2005, p. 1531). Assim, tomando como referência a
afirmação de Bloom, história, literatura biografia e autobiografia, trilham rumos
diferentes, porém, andando pelo mesmo caminho.
PIÑON (2009, p. 9) afirma: “a memória começa onde se nasceu”.
A autora afirma isto, falando da sua memória pessoal. Tendo também em
vista que o sujeito não é fruto e resultado do acaso; quando ele nasce, traz consigo
introjetada toda uma herança que passa de geração para geração, de pai para filho
etc, ninguém é só um e único no mundo. Um pensador inglês, da corrente filosófica
empirista, (HUME, 1968, p. 139), afirmava que “o universo é um contínuo aparecer e
desaparecer sensível das consciências, por sua vez feixes de impressões
subjetivas”.
Neste ponto, concorda-se com ele, retomando aqui o que foi dito acima, que
ninguém é só no mundo, pode-se dizer que o homem é o resultado da junção de
todas as heranças recebidas de seus antepassados.
Depois das reflexões acima, creio que posso agora, começar a dizer algo
sobre meu surgimento nesse espaço chamado mundo, em que se vive.
Nasci quase na metade do século XX, 1949 (1948), quatro anos após o
término da segunda Grande Guerra Mundial (já imaginou que recordação?!), depois,
mais à frente, será explicado (1948); o local do meu nascimento foi um sitio
chamado “José Bernardo”, bem perto da Vila Pintadas, hoje cidade, mas na época
pertencia à Comarca de Ipirá. Fica distante de Salvador, mais ou menos 300 e
poucos km.
A casa onde nasci não existe mais; não conheci nem os torrões da mesma.
Ficava junto à estrada, chegando em Pintadas, no estado da Bahia, mais ou menos
1 km e pouco. Conheci a casa maior que dava nome ao sítio, ficava ao fundo. A
nossa, na beira da estrada, tinha uma árvore bem grande ao lado. Desse local, só
27. 27
sei contar isso, pois o meu irmão mais velho de todos os irmãos vivos me colocou a
par. Nessa casa, morava a minha madrinha de batismo.
Aos 5 meses de idade saí do convívio dos meus pais e irmãos e fui adotado
por uma família que não teve filhos e meus pais me deram a eles para eu ficar uns
dias por lá, pois minha mãe biológica estava grávida e tinha outro irmão meu
começando a andar e, assim, minha mãe poderia ter um pouco mais de tempo para
se preparar para o parto que estava chegando e cuidar do outro irmão pequeno. O
fato é que não voltei mais para a casa dos meus pais. Coisas da Bahia.
Assim, pode se ver, que meu convívio com o lar biológico foi muito pouco, 5
meses mais ou menos.
A outra família, com quem fui criado, morava no mesmo município de Ipirá,
também na circunscrição de Vila Pintadas, e morava no sítio chamado “Bonita”,
distante do “Zé Bernardo” mais ou menos uns 8 ou 10 Km. Embora não sendo tão
longe, estando na mesma circunscrição territorial, não me recordo de ter ido
nenhuma vez a casa dos meus pais para ver meus irmãos, mãe e pai. Nem eles
também iam a casa dos meus pais adotivos para me ver. Só mais tarde, depois que
eles mudaram para o município de Mundo Novo/BA, terra de minha mãe biológica,
aí sim, vez ou outra, a cada 3 ou 4 anos, ou mais, meu pai vinha a Pintadas para ver
a mãe dele, irmãos e parentes próximos. Da família da minha mãe biológica não
conheci ninguém, nem avós nem tios...
Mas, ainda falando da mudança deles para Mundo Novo, segundo meu irmão
José, isso ocorreu em 1952, eu tinha 3 anos, portanto. E me lembro de que era um
dia chuvoso. Aí eles passaram na casa dos meus pais adotivos para me ver. Tenho
a recordação da minha mãe montada em um cavalo, com uma sombrinha aberta, e
o meu irmão no cabeçote (parte dianteira da cela) como se estivesse no colo dela.
Tenho essa imagem vivíssima na minha cabeça até hoje. Não me recordo se chorei
nem que ninguém deles chorasse; tinha só 3 anos de vida. Porque essa imagem é
muito viva na minha memória não sei; só sei que tenho a sensação de ter sido bem
mais recente, e não em 1952.
Fora isso, só fui ver a minha mãe em 1969, quando eu mesmo, já com 20
anos, a fui visitar... foi um momento sublime! Pois, vivia sempre imaginando como
ela era. Era uma figura bonita! Uma mulher bem baixa em estatura, talvez um metro
e cinquenta centímetros. Nessa visita fiquei com eles 15 dias, foi ótimo, conheci
meus irmãos todos. Depois disso os visitei mais frequentemente.
28. 28
Creio que não conseguirei relatar exatamente as coisas como
aconteceram de fato, e de acordo com (BOURDIEU, 1984, p. 208, citando Robbe-
Grillet):
o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta
descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem
razão todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque
surgem de modo incessantemente imprevisto fora do propósito, aleatório.
De acordo com o pensamento acima, se já é difícil narrar, descrever e
apresentar uma biografia, entra aqui a questão da empatia entre relator e relatado,
muito mais difícil e perigoso se torna narrar a própria história; falar da autobiografia.
Há o risco do indivíduo se inibir, achar que não há muita coisa para dizer ou que isto
ou aquilo não é importante, como também, pode fantasiar.
Terá, portanto, que ser uma apresentação muito criteriosa. Assim, precisa
haver o cuidado para colher os ovos no ninho do pássaro sem, contudo, fazer muito
barulho para não espantá-lo.
Ainda, segundo o autor, criar um novo modo de se exprimir literalmente,
possibilita o surgimento do contrário e do arbitrário. Significa, de certa forma, romper
com aquilo que está aceito pacificamente, já é aceito por toda uma tradição. Em
outras palavras, escrever uma autobiografia é estar disposto a “dar a cara a tapa”. É
transgredir para poder ir além. Se não correr esse risco, também não criará algo de
novo.
Guimarães Rosa (1978, p. 16), afirma que “viver é muito perigoso” O mestre
da literatura mineira, brasileira e mundial, tinha razão. Sem se arriscar, nada será
feito. Mas, se arriscando é perigoso, porque corre o risco de ser incompreendido,
criticado, caluniado e assim por diante.
Ainda reportando à citação de Bourdier, se referindo Robbe-Grillet,
Tudo isso é o real, isto é, o fragmentário, o fugaz, o inútil, tão acidental
mesmo e tão particular que todo acontecimento ali aparece, a todo instante,
como gratuito, e toda existência, afinal, como privada da menor significação
unificadora (ROBBE-GRILLET, 1984, p.185).
Há na psicologia gestáltica um princípio de figura e fundo. Ora, aquilo que é
fundo, se torna mais evidente, sobressai, se tornando assim a figura principal. Ora, o
que está em evidência, se torna fundo, tornando-se assim, naquele momento,
menos importante. A chamada psicologia das formas. Existe até uma figura bastante
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conhecida: quando se olha rapidamente, ela aparenta um vaso; quando se olha mais
atentamente, percebe-se que se apresentam duas faces frente a frente de perfil.
Depende da maneira como se olha e da intensidade do olhar.
A história pode ter esse movimento: de um local, uma pessoa... E, quando se
trata de autobiografia, isto pode se tornar bem mais acentuado.
Mas, voltando à narrativa, com 5 meses deixei o convívio do meu lar
biológico, passando assim a ser integrante do lar adotivo.
Meus pais, residentes no sítio “Bonita”, não tiveram filhos. A primeira filha da
minha mãe nasceu morta. Teve outra gravidez, mas não chegou a gerar, ocorrendo
um aborto espontâneo, na Bahia, no nosso meio rural, chamado “perca”.
Fui o único filho homem adotado; outras adoções foram feitas, mas todas
meninas; uma inclusive antes de mim, mais velha, hoje ela deve estar uma senhora
com seus 68 ou 70 anos. As outras duas, moram, uma em Pintadas, na zona rural,
está casada e não teve filhos, a outra em São Paulo, interior, (esta é filha de uma
sobrinha de minha mãe adotiva), e tem um filho homem e esse está rapaz, talvez
esteja casado.
Minha infância não teve nada de extraordinário: vida no campo, trabalho no
sítio, não fui explorado, tendo que trabalhar forçado, tínhamos criação de porcos,
cabritos e ovelhas. Tudo era criado solto no campo; quando era necessário, vendia
para suprir as necessidades, também para suprir as necessidades da casa. Isso
tudo praticamente acabou quando, em 1960, um ano muito chuvoso, morávamos
numa casa e os animais estavam num outro sítio e o Rio do Imbé ficou cheio por um
mês ou mais, ninguém conseguia passar e assim, com tanta chuva, ninguém
conseguia cuidar dos animais; praticamente o, criatório, sobretudo de cabras, foi
dizimado. Me lembro que assim, com esse acontecimento, as coisas ficaram
dificílimas!
O trabalho com a lavoura, no nosso contexto, era comum, nos períodos de
plantação: novembro, dezembro, janeiro e final de abril, maio e junho, plantio de
milho, feijão. Mas, o retorno disso era muito incerto. Em alguns períodos, tinha-se a
colheita suficiente para a manutenção da casa. Mas, quando não chovia no tempo
certo para ganhar a “safra”, aí era terrível.
Minha região é a de Feira de Santana, BA. Região agreste, semiárida. Vi
muitas lavouras perderem por falta da chuva e muitos animais morrerem por falta de
comida. Quando isto acontece, o povo sofre, e sofre muito!...
30. 30
Tive uma vida infantil como todo garoto do sítio: vez ou outra ia à vila com
meus pais para fazer feira para manutenção da casa, ia à missa, orações na igreja
local, mais à frente falarei dessa parte com mais detalhes.
Ia à casa dos vizinhos com meus pais, quando alguém estava doente, nas
visitas de final de semana, feriados e nos chamados “dias santos”. E, às vezes, à
noitinha para uma mão de prosa. Nas festas, meu pai tocava viola, às vezes era
convidado para animar a festa e a gente, na maioria das vezes, ia também.
Minha mãe gostava muito das coisas religiosas; muitas vezes era convidada
para “puxar” as orações, novenas, terços, muito comum no nosso contexto. Nos
momentos de estiagem longa, 4, 5, 8, 10 meses ou mais sem chover, faziam-se as
orações pedindo chuva. Colocava-se a imagem de um Santo na casa de um vizinho
para que quando chovesse, trouxesse o Santo em “acompanhamento” (seria uma
procissão), pagando a promessa.
Escola, não tive. Até os 14 ou 15 anos, não sabia ler nem escrever nada.
Na Vila havia a escola primária, atual “Escola Santo Antônio”; naquela época
só até a 5ª série. E a professora Antonina Fernandes Leite, (? – 1960), tinha sido
professora da minha mãe adotiva, sempre falava para minha mãe: “Lúcia, precisa
colocar esse menino na escola; não pode deixar esse menino sem estudos, não. Ele
é muito esperto”. Ela até se prontificou para eu morar com ela na vila, a casa da
professora era na própria escola. Ela criava uma moça, cuidava da mãe dela, de
idade e cega. Ela ajudava as pessoas que queriam estudar, mas moravam longe no
sítio, ficavam na casa com ela. Mas, minha mãe nunca aceitou a ideia. Para ir todo
dia para a escola e voltar era longe. Uma hora e meia para ir e hora e meia para
voltar. Logo, meus estudos não existiram.
Quando foi para eu fazer a minha 1ª Comunhão, já devia ter meus 14 anos,
minha mãe conversou com o irmão dela, tio Norberto, pessoa muito ligada à igreja
local, ele conversou com o padre, meu saudoso Vigário Cônego Alcides Cardoso e
ele aceitou eu fazer a 1ª Comunhão sem precisar fazer a catequese. Foi ótimo. Foi
um dia de muita chuva. O rio que passa perto da cidade, o “Rio do Peixe”,
amanheceu cheio: a água da vazante veio perto da vila.
O uniforme de 1ª Comunhão foi uma calça cor verde/azeitona e uma camisa
branca manga comprida. Fiquei lindo. Detestava aquelas calças curtas com
suspensório, eram horríveis. Felizmente, a da minha 1ª Comunhão não foi.
31. 31
Mas, antes foi a minha Crisma, 1957/58, tinha 8 ou 9 anos. Mas, antes de
falar do crisma, queria falar da escolha do padrinho. Naquela época, crismava com 7
anos, a chamada “idade da razão”.
Como eu não conheci o meu padrinho de batismo, mais tarde conheci a
madrinha, era uma mulher linda! Quando foi para crismar, eu bati o pé e disse: Já
que não conheci meu padrinho de batismo, eu vou escolher o padrinho de crisma. E
fiz. Eu fui sempre assim: quando queria uma coisa, batia o pé e corria atrás. Escolhi
o padrinho, falou-se com ele e o mesmo aceitou. Era o meu padrinho Sinfrônio. Já
faleceu há muito tempo. Saudades!
No dia do crisma, eram as “Santas Missões” lá na Vila. Os frades
Capuchinhos de Feira de Santana, do Convento Santo Antônio, tinham um trabalho
nesse sentido, naquela região toda. Fomos cedo para a Vila; chovia muito.
Passando no rio, o famoso “Rio do Peixe”, estava cheio, a correnteza quase me
levou. Sorte que meu pai percebeu logo. Que susto danado!...
Logo após o meio-dia, torrei a paciência da minha mãe para vestir logo a
roupa que eu ia ser crismado. Era uma roupa bonita. Meu pai tinha comprado. Era
uma camisa de listra e uma calça cor cáqui, curta, porém, que eu detestava; mas,
enfim, a roupa era bonita. Não tinha suspensório, era um cinto azul. Me lembro disso
tudo. Minha mãe me deu a roupa, vesti-a e fiquei feliz da vida. E fui para a Igreja,
brincar com a meninada. Havia, junto à Igreja, a construção de uma casa; era tempo
chuvoso, buracos de esteios tinham sido cavados, porém tudo encoberto de mato.
Nesse meio tempo caí num desses buracos. Eu, com 8 anos, a água suja quase me
encobriu, indo até o pescoço. Me sujei todo. Aí tive que tirar a roupa, minha mãe
lavou-a e a secou no ferro a brasa, pois, lá pelas 17h, tinha que estar pronto, pois
era a hora da celebração do Crisma. Ainda bem que aquela tarde foi de sol, em um
dia do mês de março de 1957.
Na hora da celebração do Crisma, o frade Capuchinho passou realizando a
cerimônia; quando chegou a minha vez, aquele homem grande com a barba branca
quase chegando à cintura, chegou perto de mim para passar o óleo do Crisma na
minha testa, olhei para a cara do homem, fixei os olhos e dei um grito, que chamou a
atenção de todos os participantes. Ah, que coisa horrorosa! Chorei como um louco...
Me assustei.
Já que estou falando de igreja, padrinho e cerimônia, registro aqui que a
minha mãe adotiva era muito religiosa; meu pai também; mas, ia à Igreja vez ou
32. 32
outra. Não tinha o hábito de ir sempre. Minha mãe, sim, eu e as meninas que eles
criaram, a gente ia sempre.
Naquela época, não tinha padre residente lá. Era o padre de Ipirá, naquele
momento, era o Pe. Alcides, que ficou 44 anos na cidade, como vigário. Havia missa
a cada dois meses, dois meses e pouco. E eu adorava aquele movimento de igreja.
Achava lindo o padre entrar para celebrar a missa. Ainda hoje acho; mas, não tinha
nenhuma intenção, naquele momento, de ser padre. Nem era concebível para nós,
ser padre ou outra profissão qualquer que necessitasse estudar. Como? Nem
passava pela cabeça da gente.
Mas quando não havia missa, o pessoal fazia as orações, as novenas, a festa
da Padroeira Imaculada Conceição, que, aliás, é uma imagem linda, toda de
madeira; mede mais de um metro de altura.
Meus pais não me mandaram para a vila para ficar na casa da professora
para estudar. Mas minha mãe queria que eu aprendesse a ler com ela, o “abc”, a
cartilha etc. Aí, quem não quis fui eu. Já que não me deixaram morar na casa da
professora, também aprender a ler em casa eu não quis.
Até aqui, falei de infância, vida no sítio, a vila onde íamos fazer feira, a Igreja
etc.
Na adolescência, a vida não mudou praticamente nada. Cresci no mesmo
contexto, fazendo as mesmas atividades, e assim por diante.
Os problemas da adolescência, não tinha com quem partilhá-los, a não ser
em nível de brincadeira e gozações com a molecada. Muita coisa foi se resolvendo
com o tempo. De acordo com a psicologia, adolescer é enfrentar as diferenças que
vão surgindo em nós, mudanças no corpo, na maneira que a gente vai se formando.
Isso é algo que não é muito fácil. No meu contexto essas coisas eram encaradas,
em muitas situações, como pecado. Imagina só: eu me transformando, enfrentando
as mudanças que a natureza me proporcionava e ainda me aceitar pecador... Mas,
naquele contexto era assim. Hoje, o contexto rural já mudou muito.
De uma coisa me recordo com muita clareza: nunca fui conformado com
aquilo tudo. Eu queria fazer algo diferente, mudar. Mas, o quê? Essa era a chave da
questão.
Lembro-me que um dia à noite, já aos 15 ou 16 anos, eu tomei a seguinte
decisão: vou aprender a ler. Procurei o danado do “abc”, pedi, à noite mesmo, para
minha mãe me ensinar as letras e iniciei. Com uns 02 meses e pouco, já havia
33. 33
aprendido o “abc”, passei para a cartilha e com uns 3 ou 4 meses já estava sabendo
ler alguma coisa, já descobria palavras num texto escrito. Vinha jornal de feira que
embrulhava barra de sabão, eu pegava aquilo e lia. Até que logo comecei escrever
bilhete, carta e outros. Não foi fácil! Ia também para a casa da irmã do meu pai, tia
Aída, e ela, com toda paciência, me ensinava as coisas: ler, fazer cartas, tinha um
livro chamado “paleógrafo”, que ensinava fazer a letra bonita. Mas não aprendi; a
minha continua horrível. Ela tirava trechos desse livro e me dava para eu copiar,
treinar a escrita, saudades!...
Essa conquista, a professora Antonina não presenciou, a mesma faleceu em
1960. Foi fazer um mingau para a mãe cega, num vasilhame cheio de álcool, então
veio a derramar o álcool em chamas sobre a mesma, vindo a falecer. Aquilo que a
mesma tanto desejou ver, não viu, eu sabendo ler. Mas, ficou a semente jogada na
minha consciência. Nada acontece por acaso. Não aprendi ler imediatamente, como
ela tanto queria, mas a instigação dela me fez despertar posteriormente, já
rapazinho. E a vida continuou, morando no sítio, fazendo os trabalhos que todos nós
em casa e naquele contexto fazíamos.
Passamos momentos difíceis; a sobrevivência não foi fácil, depois que se
perdeu o criatório de cabras com as enchentes de 1960, já relatado acima. Assim,
meu pai teve que ir para São Paulo, interior, procurar trabalho, como muitos da
nossa região faziam. Ele foi três anos seguidos; trabalhou no corte de cana na Usina
de Açúcar em Iracemápolis (SP), na região de Ribeirão Preto. Ficou minha mãe e
nós, cuidando das coisas do sítio. Foram momentos difíceis.
Queria muito conhecer minha mãe, meus irmãos, mas era muito difícil a
locomoção de uma cidade para outra. Embora, de Pintadas para Mundo Novo não
seja tão longe, 60 ou 80 km, mas naquela época teria que ir a pé, ou a cavalo.
Automóvel, naquele contexto, era quase impossível.
Também, tinha muita vontade de conhecer minha madrinha e padrinho.
Quando me batizaram era apenas namorados e não se casaram. Minha madrinha
casou-se com outro e morava em Feira de Santana. Fui vê-la, nas viagens de
romaria para Candeias, uma cidade no Recôncavo Baiano, perto de Salvador. Existe
a devoção à Nossa Senhora das Candeias (Nossa Senhora da Candelária), festa dia
02 de fevereiro. Nessas idas para Candeias, por duas vezes consegui vê-la. Minha
madrinha chamava-se (chama?) Terezinha. Não sei se a mesma sobrevive. Era
34. 34
linda minha madrinha; muito bonita; uma mulher loira! Tenho a imagem dela na
minha memória. E a memória raramente morre!...
A essas alturas, já estava com meus 17 anos; fase de pleno Regime Militar.
Foi ano de eleição para prefeitos e vereadores (Governo de Estado e Presidente da
República era proibido se escolher naquele momento. Período das chamadas
eleições indiretas). Aí eu quis votar, mas não tinha nenhum documento: certidão de
nascimento, identidade ou reservista. Fui, então, encaminhar o processo para tirar o
título de eleitor. Como primeiro tinha que fazer a certidão de nascimento e como não
tinha contato naquele momento com meus pais biológicos, usei os nomes dos meus
pais adotivos; e a data de nascimento também ficou errada. Em vez da idade de
1949, dei a data de nascimento 1948. Fiquei um ano mais velho. Se tivesse usado
os nomes dos pais biológicos, eu seria: Teodoro Borges de Oliveira. A vida tem
essas coisas.
Nessa altura do campeonato, começaram os questionamentos existenciais: o
que eu seria na vida, qual seria o meu futuro? O que fazer da vida? Nesse momento,
já estava amando ler e escrever... E a vida continuava... Certo dia, conversando à
noite com meus pais, depois da gente ter comido alguma coisa, surgiu a ideia: eu
vou estudar. Mas, como e fazer o que, naquela realidade?
Foi aqui que surgiu a ideia de ser padre; quase como uma brincadeira, sonho
de um rapazinho de 17/18 anos, começando a viver, oriundo de uma região muito
simples. Na nossa família até aquele momento ninguém tinha estudado nada, como
é que me veio essa ideia doida, era muito alto, uma realidade quase inatingível!
Ainda mais para ser padre, que tinha que estudar muito. Fazer filosofia, teologia e eu
não tinha nem o primário!... Coisa de doido. Falei isso no dia de minha ordenação
sacerdotal na minha cidade, dia 22 de dezembro de 1988. Dizia eu: lutei, corri atrás
do que queria; ou eu tinha muita fé ou era doido mesmo. Mais à frente falarei melhor
sobre isso.
Assim, começou toda a história da caminhada ao sacerdócio.
Tudo começou de maneira muito simples, era muito ingênuo ainda; não tinha
noção da dimensão das dificuldades que iria enfrentar. Embora percebesse que as
mesmas viriam.
Aqui é bom lembrar que a dificuldade maior que encontrei, não foi tanto a
questão da idade, mas o problema dos estudos. Não tinha nem o primário pronto.
35. 35
É necessário ressaltar, que aqui, se estava vivenciando o despontar do
Concílio Vaticano II, começado em 1962 e concluído em 1965.
Muitos seminários menores foram fechados (casas para formação de
estudantes que querem ser padre, fazendo ginásio e 2º grau, hoje fundamental e
médio).
Fui conversar com o Pe. da Paróquia, na época, Cônego Alcides Cardoso,
grande figura, uma inteligência extraordinária; homem culto, via-se o mesmo sempre
com um livro nas mãos, quando estava na casa paroquial. Ele deu-me apoio moral,
incentivou-me, mas, como e aonde estudar?
Depois de tanto correr atrás, bater em várias portas, aqui já tinha se passado
3 ou 4 anos, fui conversar com Pe. João Farias, uma outra figura de quem me
recordo com muita saudade! Era uma pessoa humana fabulosa (no dia do
sepultamento dele, preferi não chegar perto do caixão, para poder me recordar dele
vivo, sorrindo, brincando)! Morreu novo, 50 e poucos anos.
Aí Pe. João me colocou para falar com o bispo da Diocese, aliás, minha
Diocese de origem, Rui Barbosa (BA). O bispo funcionou como um balde de água
fria. Me disse o mesmo: “para mandar um rapaz para o seminário, eu tenho que
gastar por mês em torno de 20 cruzeiros; onde se vai achar esse dinheiro?” Na
minha cabeça, surgiu o questionamento: eu quero é ser padre, não estou
preocupado com dinheiro, não. Mas, não argumentei com o bispo. Não vou citar o
nome, mas era uma figura que não era de agradável conversa. O obstáculo, posso
dizer, veio do bispo. Também pessoas do meu convívio, muitas diziam-me: “que eu
não iria conseguir, que eu não tinha dinheiro, para que correr atrás disso?”. Mas,
outros, porém, incentivavam e encorajavam-me. Até minha mãe biológica, mais
tarde, me disse: “meu filho isso é muito difícil, tem que estudar muito, procura fazer
outra coisa”. Coitada; na simplicidade dela, pensava assim.
Foucault, em sua obra Microfísica do Poder (2008), defende a ideia de que,
ao lado do poder do Estado, existe, na base das pequenas coisas, o preconceito de
pequenez; ou seja, cria-se uma mentalidade de fracasso, de impotência; isto é:
quem não pode, não pode. Mentalidade do aniquilamento do indivíduo. Isto é, esta
mentalidade ou esse poder vai se formando nas pequenas coisas, onde se acredita
que tudo é simples, que não há interferência de forças externas ao meio em que se
vive. Foucault afirma, na contracapa da obra, que
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O método genealógico desenvolvido por Foucault evidencia a existência de
formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas e
indispensáveis à sustentação e atuação eficaz. E na medida em que o
poder não está localizado exclusivamente no aparelho do Estado, diz
Foucault: ‘nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que
funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos do Estado a um nível muito
mais elementar, cotidiano, não forem modificados’.
Mas, o Pe. João continuou me apoiando. Já que o bispo saiu com aquilo, ele
me propôs um acompanhamento por um período de tempo, para a gente conversar,
trocar ideia, visando assim, um crescimento. Esse acompanhamento, portanto,
durou um ano. Donde eu morava, para a cidade de Mairi (BA), onde ele era o
vigário, era em torno de 5 léguas (35km). E topei. Isso era final do 2º semestre de
1968; e, no início de 1969, todo mês eu ia para Mairi.
Ele me passava lições de português, matemática, ciências etc., para eu fazer
em casa; estudar, procurar ampliar os conhecimentos. Isso durou um ano. Ia todo
mês, a pé ou a cavalo. Mas, fazia isto brincando; 18/19 anos, toda energia juvenil!
Hoje faria tudo de novo!
Mas, havia o cansaço, desânimo, todo mês tinha que fazer isso. Mas, não
perdia a esperança. Nessas idas e vindas, eu cantava um canto que se cantava
muito na Igreja de minha Vila, na época:
1 – Quero ouvir teu apelo Senhor;
ao teu chamado de amor responder.
Na alegria te quero servir,
e anunciar o teu reino de amor!
Refrão:
E pelo mundo eu vou,
Cantando o teu amor.
Pois disponível estou.
Para servir-te Senhor.
2 – Dia a dia tua graça me dás;
Nela se apóia o meu caminhar.
Se estás ao meu lado Senhor,
que poderei então eu temer?
Era muito idealista. E ainda o sou.
Antes do contato com Pe. João Farias, já ajudava na Igreja da Vila; combinei
com o Padre e fazia celebrações na minha casa aos domingos, no sítio, na casa dos
vizinhos, e, assim, foi tomando corpo minha busca de ideal. Morei na Casa Paroquial
por um ano, 1967, ajudava o padre nas celebrações de missas aos domingos, na
37. 37
semana, nas celebrações que ele fazia nos sítios, eu ia junto. Foi uma experiência
muito rica.
Também nesta Paróquia de Ipirá, naquele momento estava o Pe. Moisés
Rodrigues. Era vigário Paroquial. Mas, foi uma figura que não contribuiu muito para
a minha formação, não. Os questionamentos que o mesmo me fazia, não tinham –
me parece – o objetivo de me fazer crescer. Pelo menos era essa a leitura e
significação que eu os dava. Não deixou saudades! Mas, nada é por acaso.
Voltando ao Pe. João Farias, no final de 1969, ele me propôs ir para
Jequitibá, fazer um curso técnico e, com esse curso, eu concluiria o primário. Num
primeiro momento, a proposta não era para ser padre. Lá é uma comunidade
religiosa contemplativa e, assim, eu poderia me tornar um religioso depois do curso
técnico. Assim fiz.
Em 1970, início do ano, rumei para Jequitibá, que está distante de Mundo
Novo (BA) cerca de 20 km, no mesmo município.
É uma comunidade de monges cistercienses, oriundos da Áustria, chegaram
ao Brasil no período do pós 2ª Guerra Mundial, ou durante a guerra.
É uma fundação, a Fazenda foi doada aos padres, com essa finalidade:
ajudar na formação de jovens daquela região. É uma região rica. Chove mais
frequentemente do que a região de Ipirá. É uma região montanhosa, muito bonita.
Comecei um curso de marceneiro; na parte da manhã, tinha-se aulas
normais, também a parte teórica do curso e, na parte da tarde, aulas práticas na
oficina. Na época funcionavam os cursos de mecânica, marcenaria (era o meu) e
pecuária. Não me satisfazia o curso de marceneiro; levei a frente para poder, assim,
melhorar a parte dos meus estudos. E melhorou bem. Mas, não era isso que eu
queria.
No final de 1970, fiz a petição para ingressar na comunidade religiosa e fui
aceito. E, em 1971, iniciei o noviciado em Jequitibá. Embora sabendo que não
estava sendo uma formação direta para ser padre, já me animava por estar
envolvido com a vida religiosa e alimentava a esperança de que no final do
noviciado, surgiria uma oportunidade para encaminhar de fato os estudos para ser
padre. Mas, infelizmente, não foi assim que ocorreu.
Até aquele ano, 1971, havia a “Escola Divina Pastora”, a que eu fui aluno, e
havia também, o curso ginasial para os rapazes que queriam ser padre e já
38. 38
possuíam o curso primário. No final de 1971, esse curso ginasial acabou por falta de
candidatos para ser padre.
A partir do meio do ano, 1971, os padres começaram a querer me convencer
para eu continuar apenas como religioso e não insistir com a idéia de estudar para
padre. Imaginei: eu querendo uma coisa e eles querendo colocar outra em minha
cabeça.
Chamaram-me muitas vezes para conversar, querendo me fazer entender
que como religioso eu me realizaria e seria feliz.
Porém, não cedi às tentativas de convencimento dos padres. Também o
padre Gabriel, que foi o mestre de noviços, me apoiou muito, me dizendo que eu
devia continuar lutando pelo que eu queria e não deixar que os outros decidissem
por mim. O resultado foi que no final de 1971, deixei Jequitibá.
Assim, na minha Diocese de origem, na minha região, não tinha mais nada
que fazer. Mas, mesmo assim, no 1º semestre de 1972, continuei tentando alguns
seminários da região... Mas, nada...
Mediante essa realidade, comecei pensar na possibilidade de ir pra São
Paulo, lutar pelo que eu queria.
A minha tia, irmã do meu pai adotivo, aquela que me dava lições do livro de
paleógrafo, nessas alturas, já morava em São Paulo/SP, com a família. Mudara para
lá na década de 1960. Já estavam instalados por lá, já trabalhavam e assim por
diante.
Assim, resolvi ir para São Paulo. Até aqui “correu muita água por baixo da
ponte”. Procurei nessa primeira parte, relatar aquilo que é da maior relevância;
aqueles fatos mais detalhistas, deixei-os. Também é impossível me lembrar de
todos. Até porque, como problematizei acima, trabalhar com a Memória é saber que
há muita fenda e esquecimentos. Não tenho a ilusão da biografia individual e sei que
a Memória, mesmo individual, é perpassada pela Memória Social.
39. 39
CAPÍTULO III
EM BUSCA DO TEMPO VIVIDO NA TERRA DISTANTE
Iaweh disse à Abraão: sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te
abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma benção! Abençoarei os que te
abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos
todos os clãs da terra.
Bíblia de Jerusalém (Gn12,1-3).
Quando se dispõe a fazer algo, sobretudo aquilo que diz respeito às
conquistas humanas, não se tem respostas e nem certezas antecipadas. Tem-se a
vontade, o desejo de fazer e disposição para ir atrás.
O texto bíblico de Gêneses, acima, mostra muito bem isso: Iaweh, Deus,
promete a Abraão uma terra, um grande povo, uma grande nação. Mas, não diz
aonde e nem como conquistar. Se fosse assim, seria muito fácil! Deus promete a
bênção, um nome grande, mas não diz também como será a grandeza desse nome!
Isto porque é o homem que, à luz da fé, da esperança e confiança, vai descobrir o
meio e o modo como chegar à terra e como conquistar a grande nação!
Para isto se tornar realidade, precisa o homem se deixar conduzir pela fé. É o
que nos diz o apóstolo Paulo, na carta aos Hebreus, capítulo 11 inteiro. E Hb11,1: “A
fé é a garantia antecipada do que se espera, a prova de realidades que não se
vêem”.
Claro que o grande apóstolo, aqui, não está falando apenas de realidades
terrenas, de conquistas pessoais de cada um – fala também dessas coisas – mas,
ele fala de realidades futuras, escatológicas, da parusia, e da realização plena do
homem, no encontro único e definitivo com Deus.
Mas, também, as conquistas e anseios individuais, os sonhos humanos e
buscas de realizações, aqui se fazem presentes. A felicidade do homem, não exclui
40. 40
o estar próximo de Deus. Viu-se o que Sto. Agostinho afirma: que o homem só é
feliz, quando seu coração repousa, descansa em Deus. Afinal, Deus é a razão do
viver humano.
Depois de tanto correr atrás, para conquistar e concretizar meus sonhos, não
tive outra saída senão ir para São Paulo (SP). Como muitos conterrâneos meus, tive
também que deixar meu povo, minha terra e partir. Só que, com uma diferença:
muitos deles foram para a capital paulista ou para o interior, com o objetivo de
ganhar dinheiro, inclusive meu pai adotivo, já citei acima, para poder melhorar a
situação financeira, cuidar da família etc. Este não era o meu objetivo.
Estava disposto a trabalhar; meu objetivo, porém, era outro: através disso,
encontrar uma forma de começar os estudos.
Era o ano de 1972, mais precisamente, 22 de agosto. Contava com meus 23
anos de idade, Era uma segunda-feira, dia que o pessoal daquela região ia a Vila
para fazer as compras.
Cedo, saí de casa, pedi a bênção para minha mãe, esta ficou em prantos.
Eu? Com um nó salgado na garganta! Despedida é terrível!
À tarde, quando tive que tomar a condução para ir para Ipirá, para lá passar a
noite na casa do padre, e no outro dia cedo ir à Feira de Santana para tomar o
ônibus para o Rio de Janeiro, fui pedir a bênção ao meu pai, a voz dele não saiu do
peito, nem um sussurro! Novamente o nó salgado me tomou a garganta. Ah, que
tristeza! Passei o resto da tarde com aquela angústia no peito, mas partiu-se. Fui
com um colega que ia pelo Rio de Janeiro, para ver um irmão dele que lá estava
trabalhando.
Na terça-feira, dia 23 de agosto, pegamos o ônibus em Feira de Santana
rumo ao Rio de Janeiro e depois São Paulo. Meu peito parecia que estava sufocado
com muito peso em cima. Quem passa ou passou por situações de separação de
sua gente, sabe como isto é crucial. Saindo da rodoviária em Feira de Santana, era
um ônibus da Empresa Itapemirim, tinha serviços de som a bordo e colocaram uma
música do Roberto Carlos, que na época estava nas paradas de sucesso, “Um dia a
areia branca, seus pés irão tocar; e vai molhar seus cabelos, a água azul do mar”.
Nesse momento, felizmente, consegui chorar!... O choro, a saudade, o nó
salgado que estava preso na garganta, naquele momento, vieram à tona. Foi um
alívio para o peito!
41. 41
Chegando ao Rio de Janeiro, ficou-se por lá um dia e uma noite. O
companheiro que fui com ele, encontrou com o irmão dele (aliás, ficou-se na casa do
mesmo). Depois partiu-se para a capital paulista.
Saiu-se do Rio de Janeiro às 0h e mais ou menos 05h 30min ou 06h estava
em São Paulo. Chegou-se na antiga rodoviária, junto à Estação da Luz (lá hoje é um
museu). Estava um frio terrível! Eu com uma camisa de manga curta. Da estação
rodoviária até o Largo São Francisco, onde tomamos o ônibus para a casa da minha
tia (irmã do meu pai adotivo), quase morri de frio. Nunca tinha sentido tanto frio. Na
Bahia, nessa época, já está quente. Foi uma loucura! Essas coisas marcam a
gente!...
Nos anos 1960, tinha uma música que dizia: “Recordar é viver” (Vitor
Espadinha). Recordar é, também, fazer memória; olhar para o caminho que se
percorreu e atualizar ou ressignificar uma história que se viveu, ou fizeram a gente
viver. Se a noite fosse uma linha reta, quem sabe as coisas seriam mais fáceis. No
entanto, no viver humano, não há lá muita horizontalidade, não. Há altos, baixos,
tropeços, erros e, também, acertos. Também, não há muita previsibilidade; se assim
fosse, quem sabe, o viver humano, talvez fosse menos difícil e, talvez, muitas dores
pudessem ser evitadas.
Naquele ano, também, estava sendo exibida a novela Selva de Pedra, com
Regina Duarte, Francisco Cuoco e Dina Sfat, pela Rede Globo.
E, eu, chegando em São Paulo, enfrentando a “selva” de prédios, arranha-céus
e uma cidade enorme. Para quem estava chegando do interior baiano, que
apenas tinha ido a Salvador apenas uma vez, foi um choque de cultura/costumes e
realidades totalmente alheias a mim. “Bota sofrer nisso”! Não foi mais difícil, pois
fiquei na casa de minha tia Aída, irmã do meu pai adotivo; tinha a companhia dela e
dos filhos que cresceram comigo lá no nosso contexto de “Bonita”, onde fui criado,
como remontei no Capítulo Primeiro.
Mas, tinha que correr atrás de um emprego: não tinha mão de obra
qualificada, isto é, não tinha uma profissão, experiência profissional nenhuma, e
precisava trabalhar para poder sobreviver, ajudar um pouco nas despesas da casa e
adquirir experiência. Mas, só em outubro daquele ano, surgiu o primeiro emprego:
trabalhar de guarda, vigilante. Tinha que assumir, não podia mais ficar parado. Além
da saudade dos meus na Bahia, não conhecia nada em São Paulo e ainda sem
trabalhar, não tinha como permanecer assim. Nesse emprego, permaneci mais ou
42. 42
menos 10 ou 11 meses. Entrava 7h e saía às 19h; quando o colega não chegava
para ficar no meu lugar, tinha que dobrar, fazer 24 horas e sem jantar nem tomar
lanche. Não podia sair do posto. Se fosse pego fora do posto de serviço, seria
demitido por justa causa, na certa. Depois desse emprego, trabalhei numa fábrica de
televisão (Telefunken), fazendo serviços gerais. Fiquei poucos dias, um mês e
poucos dias. Depois, numa loja, na 25 de Março, Koraicho Mercantil, e meu último
emprego foi no Mosteiro de São Bento, Largo São Bento, bem no centro de São
Paulo (serviços gerais e portaria).
Antes de trabalhar no São Bento, já havia entrado em contato com D.
Bernardo Botelho Nunes, OSB, ia, vez ou outra, ao Mosteiro para a gente conversar,
falei da vocação, estudos, ser padre etc. Foi uma grande figura amiga, que cruzou
meu caminho. Foi graças a ele que consegui o emprego lá no Mosteiro. Me deu
muita força para enfrentar as adversidades e me deu suporte me encorajando para
não desanimar. Foram dias pesados!
Há uma passagem bíblica que diz: “Amigo fiel é poderoso refúgio, quem o
descobriu, descobriu um tesouro. Amigo fiel não tem preço, é incomparável o seu
valor. Amigo fiel é um bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão”
(Eclo.6,14-16).
D. Bernardo foi um amigo assim: amigo para a conversa, o desabafo,
partilhamento das preocupações; ia sempre conversar com ele, pedir orientação,
conselho; foi uma figura formidável para mim. Não posso me queixar: Deus colocou
muitas pessoas boas no meu caminho.
Mas, o mais difícil, em São Paulo, foi a solidão, a distância da terra natal, a
falta que as pessoas do meu convívio faziam! São Paulo é uma cidade maravilhosa,
mas no início eu não conhecia nada. Seria como enxergar a luz do sol e não saber
para onde estava o seu nascer e o seu se por.
Andava pela cidade com minhas primas, mas não me adaptei de imediato,
não; depois, com o tempo, as coisas foram melhorando.
Também, a distância para o trabalho foi cruel! Morava em Pedreira, na região
do Bairro Santo Amaro, zona sul da capital, e trabalhava em São Caetano do Sul.
Uma distância de mais ou menos 20km. Saía de casa 05h e 30min ou 6h, para
entrar no trabalho às 8h. Tomava dois ônibus: de Pedreira até o Parque Dom Pedro
e outro daí para São Caetano. Foi pesado!...
43. 43
Depois de um certo tempo, pedi transferência para um posto de serviço mais
perto. Me transferiram para o bairro de Pedreira mesmo, para uma usina da Light,
empresa de eletricidade. Mas, trabalhava a noite. E, durante o dia, não conseguia
dormir. Fiquei mais ou menos um mês, depois me transferiram para a Usina da
Traição, no Morumbi, no Rio Pinheiros, também Usina da Light. Lá trabalhava
durante o dia e conseguia dormir a noite. Naquela época, os rios da cidade de São
Paulo já eram poluídos; era um mal cheiro insuportável. Aí eu não comia, perdi o
apetite. Tive que tomar remédio para melhorar o apetite.
Ficava 12 horas numa guarita, sem ver nenhuma vivalma, fazia as refeições
ali mesmo. Ah, como era difícil.
Naquela época havia um programa na Rádio 9 de Julho (extinta no final dos
anos 1970, pelo regime militar). E havia um programa diário do Pe. José Fernandes,
o Pe. Zezinho, das 10h 30min às 11h 30min. Esse programa chamava-se “Tempo e
Contra Tempo”, começava com a música de Michael Jackson “Ben”, como fundo
musical; era um programa interativo. Ali, liam-se cartas, respondia a perguntas que
as pessoas faziam; tratava, enfim, de questões gerais. Esse programa era bom! E
tratei de arrumar um radinho para ouvir. Tinha que tomar muito cuidado, para o fiscal
não chegar ao posto de serviço e não encontrar a gente dormindo ou com o rádio
ligado. Além do programa ajudar a passar o tempo, as questões que as pessoas
queriam ter respostas, algumas tinham algo a ver comigo; e isso me ajudou muito a
encontrar respostas para as minhas também.
Depois desse emprego vieram os outros três já mencionados.
Mas, estudar era o meu objetivo para poder encaminhar-me para ser padre.
Nessas alturas, ia já, vez ou outra, ao São Bento, conversar com D. Bernardo.
Foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar com eles. Isso foi lá pelo final de
1973, mês de outubro, ou novembro.
No São Bento, o serviço não era tão pesado, entrava às 08h e saía às 18h.
Tinha uma hora e meia para a refeição do meio-dia. Lá tomava café da manhã,
lanche às 10h, almoço e lanche às 15h 30min. Era outro ambiente... Mais tranquilo;
onde não era tratado como empregado. Tinham mais atenção pela gente. Foi bom!
Nessa época, eu ia à missa todo dia, antes de entrar no trabalho; me fez
muito bem!... Aquela Igreja que fica na Praça João Mendes, ao fundo da Catedral da
Sé, Igreja de Santo Inácio. A missa era às 06h 30min.; depois descia pela rua São
Bento ou pela rua 15 de Novembro, tomava café e, às 08h, entrava no trabalho. Na
44. 44
parte da manhã, fazia serviços gerais. E, à tarde, nos feriados e alguns domingos,
na portaria. Atendia as pessoas, telefonemas etc. Foi um período mais tranquilo.
Quando comecei trabalhar aí, já estava em andamento a construção da
Estação São Bento, do Metrô. O barulho era cruel. Mas, em dezembro ou janeiro de
1974, inauguraram-na. Aí, continuou a movimentação normal e não mais o barulho
das máquinas.
Mas, estudar, que era o meu objetivo, nada. E não estava conseguindo fazer
nada neste sentido. Além de ganhar pouco, meus horários eram complicados; não
me permitiam estudar. Ora trabalhava durante o dia, ora trabalhava durante a noite.
Não estava conseguindo conciliar estudos e trabalho. Aliás, nem tinha começado
estudar; o que me deixava mais angustiado.
A essas alturas, já contava com meus 24 anos de idade; a idade estava
chegando. Aí, comecei a me movimentar, entrar em contato com alguns seminários,
casas religiosas. A mesma questão se repetia: faltava fazer o 1º e 2º graus, ou
ginásio e colegial.
Assim, entrei em contato com o Mosteiro Cisterciense de Itaporanga (SP). A
mesma congregação religiosa que a de Jequitibá (BA), já citada. Era final de 1973,
ou início de 1974. Obtive resposta positiva. Já estava ganhando um pouco melhor, já
tinha comprado bastante roupa -- nunca escondi nem escondo meu gosto por vestir
bem. Sou vaidoso, não nego. Mas, logo que tive a resposta positiva dos padres de
Itaporanga, pedi demissão do emprego e, no início de março de 1974, rumei para
Itaporanga. Fica na região sul do Estado de São Paulo, quase na divisa com o
Estado do Paraná, próximo à Itapeva/SP e Itararé/SP. E, assim, fui. Morei na cidade
de São Paulo, portanto, de agosto de 1972 até início de março de 1974, quando o
governo Médici saia e iniciava a governo Geisel, anos difíceis politicamente no país.
Em Itaporanga, como em Jequitibá, não fui fazer nenhum estudo. Foi uma
experiência na vida religiosa. Em Jequitibá fiz a “escola técnica”, curso de
marceneiro, aqui não.
Logo chegando, depois de uns dias, comecei o aspirantado (espécie de
preparação para o noviciado). Isso durou um bom tempo; creio que foi de março de
1974, até novembro do mesmo ano. Isso mesmo: dia 30 de novembro, comecei o
noviciado, dia do apóstolo André. O noviciado, normalmente tem duração de um
ano. E, em fevereiro de 1976, dia 2, dia de Nossa Senhora da Candelária ou das
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Candeias, emiti os votos temporários, por um período de três anos. Mas, 10 meses
depois, eu saí, final de novembro de 1976.
A vida no mosteiro de Itaporanga, para mim não foi muito diferente de
Jequitibá. Já tinha conhecimento como as coisas andavam: horários para as orações
em comum, as refeições, as aulas de formação religiosa (o que me ajudou muito
para enfrentar a vida posteriormente, saindo de Itaporanga). Os horários de
recreação eram muito poucos; meia hora após o almoço e meia hora após o jantar.
Levantava-se muito cedo. Nos dias de semana, às 05h; às 05h 15min, oração. Na
época do frio era terrível! Me recordo que em julho de 1975, deu geada, nunca tinha
visto tanto frio na minha vida!... Quase morri. Aos domingos e feriados, levantava-se
às 05h 30min.
Havia os horários para as orações: manhã, 11h 15min; um momento de
oração logo após o almoço e às 17h, 19h 30min havia missa (essa na semana
inteira era nesse mesmo horário) e aos domingos também. Após o jantar que ocorria
às 18h 30min, havia o recreio, a missa já mencionada acima e, após a missa, a
oração da noite, chamada de completas, pois encerrava o dia. Após essa oração,
era obrigatório o silêncio. Este na vida religiosa é muito cultivado. O que sempre foi
para mim uma dificuldade enorme.
Também, cada um teria que assumir um trabalho; um ou dois dias por
semana, ia-se à horta, para fazer algum trabalho, mexer com a terra, aguar as
hortaliças etc.
Houve um período, também, que cuidei do refeitório, limpar o chão, encerar,
arrumar as mesas para o café da manhã, almoço e jantar. Era em torno de 40
pessoas, naquele momento, no convento. Também, nesse mesmo período, cuidei
da sacristia: arrumar as alfaias, os paramentos, preparar as coisas para a
celebração das missas. Cuidei por quase um ano, de um monge com problemas de
Alzheimer, tinha que cuidar, dar banho uma ou mais vezes por dia, pois com o
tempo ele perdeu a consciência totalmente. Foi muito triste. Ele morreu, logo que saí
do mosteiro: uma semana depois. Se soubesse, teria ficado e teria saído após a
morte dele.
Vida social no mosteiro, praticamente não existia – pelo menos para mim, não
– a vida dentro do convento é bastante reclusa, até que me saí muito bem. Mas, não
era mesmo ambiente para mim. Ia à cidade, vez ou outra, ao oculista, dentista, mas
sair, fazer amizades, visitar as famílias era praticamente inexistente. Havia uma
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família num bairro vizinho, Rio Verde, que morava naquelas redondezas, que fui
algumas vezes visitá-la, com um outro colega, o Rubens. Ele deixou a vida religiosa
e casou-se; fiquei sabendo, depois que saí de lá e já estava morando em Ribeirão
Preto.
Fiz em Itaporanga, no mosteiro, boas amizades; ainda hoje me correspondo
com alguns religiosos de lá. Naquela época, havia o irmão Adalberto, hoje, Pe.
Sebastião, está na Diocese de São José do Rio Preto/SP, com quem no mosteiro
partilhava algumas idéias e aspirações, e ainda hoje. A amizade ficou. Valeu a pena!
Vale a pena! Também o irmão Constâncio, cuidava na época da contabilidade do
mosteiro, e ainda cuida; também a amizade continua.
Esse período, de março de 1974 até novembro de 1976, que passei em
Itaporanga, teve bons momentos, a gente conseguiu concretizar algumas amizades,
mas não estava conseguindo dar encaminhamento ao que pretendia: estudar.
Então, comecei a questionar: Por que continuar aqui, se não estou atingindo meu
objetivo? Aí comecei a entrar em contato com alguns bispos, mas poucos deram-me
esperança. Só um, o arcebispo de Botucatu, respondeu positivamente, mas a carta
dele, não chegou às minhas mãos. O abade atravessou na frente, leu a carta, e não
me passou a mesma a tempo; tentei entrar em contato com o mesmo arcebispo,
posteriormente, mas não consegui mais falar com o mesmo e nem me comunicar
por telefone. Também o assunto morreu.
O Pe. Davi Kneuttinger, monge do mosteiro, um homem santo, conversei com
ele, coloquei-lhe as minhas aspirações e ele se propôs a me ajudar. Uma luz surgia
no fim do túnel! Pe. Davi, juntamente com Pe. Alcides, Pe. João Farias, D. Bernardo,
foi o quarto anjo que Deus colocou no meu caminho e que, sem ele, dificilmente eu
seria padre, hoje. Quando ele me disse “eu vou ajudar o senhor”, eu criei ânimo
novo! Pois, no mosteiro, dificilmente eu seria padre. Não havia interesse da parte
dos que estavam à frente da comunidade para me ajudar concretamente, de
verdade; não havia interesse da parte deles, mais precisamente o abade, que é a
autoridade maior dentro de um mosteiro.
Nessas alturas, já contava com meus 27 anos de idade.
Decidi, então, pedi licença dos votos temporários e, no final de novembro,
voltei para São Paulo, capital.
Fiquei numa Paróquia na zona norte da capital paulista, no Tucuruví, com o
Pe. Antônio Vilela e, em janeiro de 1977, fui para Ribeirão Preto (SP).
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Nessas alturas, o Pe. Davi já havia conversado com o bispo da Diocese de
Itapeva/SP, surgiu a possibilidade de eu ir para o Seminário dos Padres
Estigmatinos, pois ele, o bispo, pertencia à congregação. Fui para lá, como
seminarista da Diocese de Itapeva, e não como seminarista religioso.
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CAPÍTULO IV
FARIA TUDO DE NOVO OU REINVENTARIA O PASSADO
E A MEMÓRIA?
Claro que a memória depende dos subsídios da invenção, do que você
inventa para sua vida. Não é uma falsidade ideológica. É que a memória
não tem uma precisão pedagógica, ela não é uma cópia do que aconteceu.
O que aconteceu está sujeito às várias versões que você dá aos fatos. Ao
longo dos anos, a experiência olha o fato com outra mirada. Eu acho que o
ato de inventar faz parte do uso da linguagem. A linguagem inventa. A
memória inventa.
Nélida Piñon
A problematização apresentada por Nélida Piñon, faz a gente lembrar da
música de Geraldo Vandré “Para não Dizer que Não Falei das Flores”, quando ele
cantava lindamente, denunciando, como podia, o regime militar, que reprimiu o País
de março de 1964, até quando se teve no Brasil as eleições para Presidente da
República, no final de 1989, que ficou para o 2º turno, Fernando Collor de Mello e
Luis Inácio Lula da Silva (PIÑON, 2009).
Piñon fala da realidade da sua memória, de uma invenção, criatividade e
capacidade humana de, a partir do que parece impossível, chegar ao possível se
impor aos fatos quando possível e, ir em frente.
Vandré falava da coragem que os brasileiros teriam que descobrir em si
mesmos, para ir em frente, naquele momento em que a Nação tinha o cadeado na
boca e não podia dizer nada, não podia achar nada, não pensar sobre nada. Essa
foi a realidade que se viveu por quase 30 anos. Mas, mesmo assim, algumas
pessoas diziam, falavam, corriam risco e tentavam falar das flores.
No contexto em que estava vivendo, apesar de tudo parecer dizer não,
tentou-se ir em frente, se jogar na luta pela conquista do que se queria. Certeza não
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tinha; esta só se a tem, depois que o fato acontece, depois que a ideia se torna
realidade. Mas, a esperança de que poderia conseguir, esta não me abandonou.
Apesar de que, em alguns momentos, vinha a falta de perspectiva, o desânimo, o
cansaço, a tristeza, os tropeços e assim por diante.
Uma passagem bíblica belíssima, do livro de Jeremias, valeria a pena citar
aqui (Jr1,4-9). O profeta tímido, se sentindo fragilizado e, no versículo 6, ele deixa
sair pela boca a sua inquietação: “Mas eu disse: Ah! Senhor Iaweh, eis que eu não
sei falar, porque sou ainda uma criança”. É quando o ser humano reconhece a sua
pequenez e confia, não na sua capacidade, mas apela para a força que está fora de
nós!... Quantas e quantas vezes não se têm na vida a atitude de Jeremias? A
experiência mostra que a força que se tem, muitas vezes, não pode muito não. Se a
força humana não fosse fortalecida por essa força indescritível, o homem não iria
muito longe. O Sl. 8 exalta muito a figura humana, a sua grandeza e valor. Mas, sem
a força que vem do alto, tudo pode se tornar pó.
Portanto, confiar em Deus e confiar na vida é fundamental. Caminhando entre
as incertezas, chegar-se a certeza. É o caminho; caminhar implica tropeçar em
pedras, machucar os pés, experimentar a dor, sentir-se só, frágil. A vida não é isso?
Fui, então, para Ribeirão Preto. O Seminário dos Padres Estigmatinos, fica na
R. Conde Afonso Celso, 1282, com a R. Floriano Peixoto, no Jardim Sumaré. Lá se
tornou minha nova morada.
Em fevereiro de 1977, comecei o curso supletivo de 1º Grau, na Sociedade
Educacional de Ribeirão Preto - Colégio Bandeirantes- SERP, na Rua Garibaldi com
a Mariana Junqueira – região central, distante do Seminário mais ou menos uns dois
km.
No seminário, a maioria era de garotos, meninos que queriam ser padre. De
um modo geral, tinham entre 14 e 20 anos. Os mais velhos éramos dois: João
Firmino, também da Diocese de Itapeva, filho de Itaporanga, ficou padre; é um ou
dois anos mais velho que eu; e eu, agora imaginem, aguentar essa meninada! Foi
um sufoco.
Uma das coisas difíceis no seminário era que o dormitório era comum: cada
um tinha aula num colégio diferente e ninguém chegava na hora certa para dormir.
Às vezes, a gente já estava dormindo, aí chegava um, depois outro e outro... Ah que
tristeza! Era horrível! Tinha a sala de leitura e estudos, mas não podia ficar lá depois