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Artigo


               Trotski, Rosa Luxemburgo e o mito da
                “teoria leninista da organização”

Murilo Leal Pereira Neto11                                                     pensei em erigir as formulações do Que Fazer? em algo
                                                                               “programático”, em princípios especiais (LÊNIN apud
        Tentaremos argumentar neste artigo que Leon                            CARLO, 1976, p. 89)4.4
Trotski, embora tenha aderido ao Partido Bolchevique em                        Na célebre polêmica com Rosa Luxemburgo,
agosto de 1917 e, a partir de então, defendido a concepção              Lênin nega que defendesse um sistema de organização
leninista da organização partidária, empreendeu, antes                  contra qualquer outro:
disso, uma trajetória política e defendeu uma concepção                        (...) Devo assinalar que o que o artigo de Rosa
                                                                               Luxemburgo, publicado no Neue Zeit, dá a conhecer
de partido mais próxima das tradições da II Internacional
                                                                               ao leitor não é meu livro, mas outra coisa, distinta (...)
– que, por sua vez, mantinha proximidade com a                                 A camarada Luxemburgo diz, por exemplo, que em meu
experiência de organização da I Internacional. Mesmo                           livro manifesta-se clara e nitidamente a tendência de um
depois de sua conversão ao bolchevismo-leninismo,                              centralismo extremo. A camarada Luxemburgo supõe,
Trotsky defendeu uma concepção de centralismo                                  assim, que defendo um sistema de organização contra
democrático mais flexível do que muitos de seus                                qualquer outro. Mas, na realidade, não existe tal coisa. O
                                                                               que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira até
discípulos, que lideraram a IV Internacional ou algumas
                                                                               a última página, são os princípios elementares de qualquer
de suas facções depois de 1940.                                                organização de partido que se possa imaginar (LENINE,
        Na impossibilidade de dialogar com as múltiplas                        1985, p. 44 e 48).
correntes do trotskismo no espaço deste artigo,                                 Feitas essas ressalvas, vejamos como Mandel
selecionamos dois textos de destacados representantes de                interpreta o que seria a teoria do partido de Lênin.
sua corrente majoritária: Ernest Mandel e Daniel Bensaïd.               Consideramos que é possível extrair do texto as seguintes
O objetivo é sugerir que, sendo a organização política                  proposições básicas:
revolucionária da classe trabalhadora necessariamente                           1)          O conceito leninista de organização
uma empresa difícil e complexa, pois se trata de dar forma              fundamenta-se em uma espécie de tipologia das
política a um conteúdo social em permanente processo                    diferentes fases do processo evolutivo de formação
de mudança, a rigidez da concepção de organização                       da consciência da classe operária. Haveria a massa de
partidária não pode contribuir para o sucesso da tarefa.                operários, a vanguarda em um sentido amplo (operários
        Comecemos por La teoria leninista de la                         que alcançaram o primeiro grau de organização) e a
organización, de Mandel. O primeiro aspecto a assinalar                 organização revolucionária;
é que, segundo o autor, Lênin teria, como o próprio título                      2)          A revolução pode ser descrita como
do trabalho indica, elaborado uma teoria do partido                     um processo no qual, em um primeiro momento, o núcleo
– ausente, até então, no arsenal de idéias do marxismo.                 de revolucionários consegue integrar a consciência dos
Cabe assinalar, entretanto, que é o próprio Lênin quem,                 operários avançados à sua própria e, em um segundo
em diferentes ocasiões, nega a pretensão de elaborar                    momento, a ação dos operários avançados consegue
uma “teoria do partido”. Vejamos:                                       integrar a ação das grandes massas;
       O erro principal dos que hoje polemizam com o Que                        3)          Esse processo, porém, não pode se
       Fazer? consiste em desligar por completo esta obra de
       uma situação histórica determinada, de um período
                                                                        dar sem que a vanguarda operária tenha sido previamente
       concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou          treinada e, por sua vez, tenha treinado o proletariado na
       há muito tempo (...) Que Fazer? é o compêndio da tática          idéia e na aplicação do programa revolucionário para a
       e da política iskrista22 em matéria de organização durante       luta. Este aspecto reveste-se de particular importância,
       os anos de 1901 e 1902. Um compêndio, nem mais nem               uma vez que a estratégia de Lênin se basearia também
       menos (...) Ora, nem mesmo no II Congresso33                     em um balanço das lutas precedentes do movimento
1 Doutor em História Social pela USP. Coordenador do Curso de           socialista europeu, que derrubaram a ilusão de que
História da Faccamp (Faculdade Campo Limpo Paulista).                   “existia uma linha reta entre as vitórias parciais nas lutas
2 Iskra (Centelha) é o nome do jornal criado por Lênin em seu exílio    eleitorais, as greves de conscientização revolucionária e
na Suíça, veiculando as posições da corrente por ele liderada.
                                                                        um incremento da combatividade revolucionária do
3 Refere-se ao II Congresso do Partido Operário Social Democrata
Russo, realizado em 1903, no qual deu-se a divisão entre bolcheviques
e mencheviques.
                                                                        4 Todas as traduções do castelhano são de Murilo Leal.
proletariado” (MANDEL, 1984, p. 62). Ao contrário,               corrente majoritária do trotskismo. Trata-se de Daniel
apenas se os operários acumulam uma experiência de luta          Bensaïd que, juntamente com Alain Nair, elaborou o
que não se limita a reivindicações parciais nos limites do       texto A propósito do problema da organização: Lênin
capitalismo, podem formar uma consciência de classe              e Rosa.
revolucionária. Essas demandas mais avançadas podem                      Os autores também aderem à idéia de que Lênin
ser trazidas apenas “através dos esforços de uma massa           elaborou uma teoria da organização em conformidade
ampla de operários avançados que estão estreitamente             com uma teoria da dinâmica das relações sociais
vinculados às massas e que são os que disseminam e               contemporâneas. Segundo essa teoria, o proletariado
publicam essas demandas (que, em geral, não surgem               seria o sujeito teórico-histórico da revolução,
espontaneamente da experiência diária da classe)(...)”           condicionado pelo modo de produção capitalista.
(MANDEL, 1984, p 63)                                             Seria o proletariado em-si. A vanguarda, que surge
        4)           A concepção leninista do partido            da formação social, seria o sujeito político-prático da
pressupõe “uma teoria da essência da teoria marxista e           revolução, representando o proletariado para-si5.1 Em
de sua relação específica com a ciência por uma parte e          conseqüência, os autores endossam a idéia de que “a
a luta de classes proletária por outra” (MANDEL, 1984,           consciência social-democrata só pode provir de fora dos
p. 7). Isto implica que o programa socialista pode ser           operários, dos intelectuais revolucionários portadores do
elaborado pela teoria marxista e posteriormente difundido        conhecimento e da compreensão global do processo de
às massas. “A construção do partido revolucionário de            produção” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 14).
classe é o processo pelo qual o programa da revolução                    Além da apreensão da tradição bolchevique (um
socialista é fundido com a experiência que adquiriu na           patrimônio vivo de experiências) como uma teoria e
luta a maioria dos trabalhadores avançados” (MANDEL,             mesmo um sistema de organização, outra peculiaridade
1984, p. 40).                                                    do texto chama a atenção. Os autores valorizam o
        5)           A centralização defendida por               partido leninista como uma formação orientada para
Lênin refere-se a um conteúdo político, mais do que              a intervenção no campo político propriamente dito,
a um processo formal, organizativo. O plano seria o              entendido como a luta de partidos pelo poder do
da centralização de todas as revoltas e movimentos               Estado. O texto dá a entender que foi um dos méritos de
de resistência elementares, espontâneos, dispersos ou            Lênin ter compreendido a representação de classe como
locais.                                                          representação propriamente política. Vejamos:
        O texto de Mandel apresenta, também, uma                       O partido é o instrumento pelo qual a fração consciente
                                                                       da classe operária ingressa na luta política e prepara o
polêmica com Rosa Luxemburgo, criticando-a pelo
                                                                       enfrentamento com o Estado burguês centralizado, chave
que seriam seus erros a respeito da questão do partido.                mestra da formação social capitalista (...) (BENSAÏD; NAIR,
Afirma o autor:                                                        1980, p. 20).
      O conceito de Luxemburgo de que ‘o exército proletário           Dito de outra maneira, a política, que é a ordem a que pertence
      é recrutado e chega a estar consciente de seus objetivos         o partido, é irredutível ao social: a classe como conceito
      no curso da própria luta’ foi definitivamente refutado           permanece como sujeito teórico e não prático da história; a
      pela história. Mesmo nas lutas operárias mais amplas,            mediação do partido, pelo qual ela acede ao político, continua
      abrangentes e vigorosas, as massas trabalhadoras não             sendo indispensável (...) (Bensaïd; Nair, 1980, p. 31)
      adquiriram uma compreensão clara das tarefas da luta             Na realidade, o terreno político não existe a priori; só se
      ou o fizeram apenas de modo insuficiente (MANDEL,                constitui com a estruturação das próprias forças políticas. É por
      1984, p. 25).                                                    isso que “a expressão mais vigorosa, mais completa e melhor
                                                                       definida da luta de classes política é a luta de partidos”[citação
        Como veremos adiante, a delimitação das                        de Lênin]. Por esta luta, cujo objetivo é o Estado, se instaura
diferenças políticas com Rosa Luxemburgo em torno                      a especificidade do político que é o lugar de irrupção da crise
da questão da organização partidária estabelecida pelo                 revolucionária (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 37).
próprio Trotski é bem diferente. Tentaremos sugerir,                     É óbvio que a teoria de que a classe é apenas
ainda, que o agrupamento da vanguarda de classe em               o sujeito teórico-histórico da revolução, enquanto a
torno de uma política correta (uma tática-plano, como            vanguarda é o sujeito político-prático e, ainda, que
se dizia na esquerda européia da época) e a possibilidade        a política é a luta de partidos pelo poder de Estado,
dessa vanguarda dirigir a massa dos trabalhadores é              reconhece como sujeito da história e da política a
um processo que depende muito menos do regime                    vanguarda agrupada no partido e não a classe em sua
partidário e muito mais das condições sociais/históricas.        ampla configuração e em suas múltiplas formas de
O regime partidário do centralismo-democrático pode              organização e práticas políticas. A vanguarda aparece
tanto contribuir para a formação de uma vanguarda                quase como um substituto e não uma direção da classe.
revolucionária efetiva, como de um aparelho partidário           5 Os autores esclarecem que o “modo de produção capitalista” é
auto-suficiente, ou de uma seita política.                       um conceito abstrato-formal, não tendo existência real. Nenhuma
        Recorreremos a outro teórico, a fim de que               formação social específica coincide com ele. Citando Poulantzas,
                                                                 os autores afirmam que a formação social é “uma superoposição
possamos perceber outras facetas da apreensão da teoria          específica de muitos modos de produção puros” (BENSAÏD; NAIR,
leninista do partido pelos trotskistas, ou pelo menos pela       1980, p. 14).
Para concluir este breve comentário ao texto de                      rígida. O máximo que se pode dizer é que na avaliação
                                                                             histórico-filosófica do movimento operário, a seleção
Bensaïd e Nair, é necessário registrar os momentos de                        reparatória da vanguarda era deficiente em Rosa, em
polêmica com Rosa Luxemburgo. A crítica substantiva                          comparação com as ações de massa que se poderiam
formulada pelos autores reprova o prognóstico de                             esperar; Lênin, sem consolar-se com os milagres das
Rosa de uma marcha inevitável do capitalismo para a                          futuras ações, tomava os operários avançados e constante
catástrofe e a suposição de que o agravamento incessante                     e incansavelmente os soldava em núcleos firmes, legais ou
das contradições sociais engendraria, por um lado, um                        ilegais, nas organizações de massa ou na clandestinidade,
                                                                             mediante um programa claramente definido. (TROTSKI,
proletariado espontaneamente revolucionário, e por
                                                                             1979a, p. 39-41)
outro, um partido que deveria ser apenas um “ponto
                                                                               Este artigo é concluído de forma instigante,
de união organizativa de todas as camadas postas em
                                                                      jogando por terra toda a interpretação estreita que se
movimento contra a burguesia por esta revolução”. A
                                                                      observou tanto entre marxistas-leninistas quanto entre
conclusão: “Assim, esta visão simplesmente trágica do
                                                                      trotskistas, da polêmica e das divergências entre Lênin
capitalismo conduz Rosa a superestimar o movimento
                                                                      e Rosa:
de massas e a subestimar a necessidade e o papel do                          Os tresnoitados confusionistas do espontaneísmo têm
partido no sistema capitalista” (BENSAÏD; NAIR, 1980,                        tanto direito de referir-se a Rosa como os miseráveis
p. 18 e 19)                                                                  burocratas do Comintern a Lênin. Deixemos de lado as
        Além dessa crítica mais séria, aliás já formulada                    questões secundárias, superadas pelos acontecimentos e
por Lukács em 1921, os autores afirmam, de forma                             com plena justeza podemos colocar nosso trabalho pela
                                                                             Quarta Internacional sob o signo dos “três L”, não apenas
surpreendentemente pouco respeitosa, que a concepção
                                                                             sob o signo de Lênin, mas também de Luxemburgo e
organizativa de Rosa era “muito mais trivial, às vezes                       Liebknecht (TROTSKI, 1979a, p. 44)6.2
emocional e com freqüência infra-teórica”, acusam-na de                        Defendemos a tese de que a experiência do
um “vitalismo ingênuo, um naturalismo organizativo”, de               Partido bolchevique não foi originalmente concebida
“simplismo entusiasta” e ainda afirmam que Rosa teria                 como modelo por seus dirigentes. Monty Johnstone
empunhado “a bandeira de ‘liberdade’ e da ‘democracia’                lembra que a idéia de partido de Lênin não se reduzia
contra as posições ‘extremas’ de Lênin” (BENSAÏD;                     a um único modelo organizativo. Houve o modelo do
NAIR, 1980, p. 17).                                                   partido de quadros ou de massas, com estruturas internas
        Cabe observar que, mesmo um Trotski já                        que iam do cupulismo conspirativo à mais ampla
plenamente bolchevique-leninista, em 1935, delimita                   democracia. “Comum a todos estes modelos era a idéia
suas diferenças com Rosa Luxemburgo no campo das                      de uma vanguarda centralizada que se emprenhasse
concepções de organização de maneira muito diferente                  em fundir a teoria e a consciência socialistas com o
dos autores citados até aqui. Vejamos como Trotski                    movimento espontâneo dos operários” (JOHNSTONE,
recupera as posições de Rosa a respeito do problema da                1988, p. 16).
relação entre espontaneidade e organização:                                    A experiência de organização partidária dos
      É inegável que Rosa Luxemburgo contrapôs
      apaixonadamente a espontaneidade das ações de massas
                                                                      bolcheviques esteve, portanto, indissoluvelmente
      à política conservadora “coroada pela vitória” da social-       imbricada com as tarefas e processos próprios da esquerda
      democracia alemã, sobretudo depois da revolução de              na Rússia. Assim sendo, cabe indagar: como e por que foi
      1905. Esta contraposição tinha um caráter absolutamente         erigida em modelo e adotada como paradigma nos quatro
      revolucionário e progressivo. Muito antes que Lênin,            cantos do mundo? A primeira resposta, e a mais óbvia, é
      Rosa Luxemburgo compreendeu o caráter retardatário dos          apontada por Monty Johnston: “Os bolcheviques haviam
      aparatos partidário e sindical e começou a lutar contra eles.
                                                                      conquistado a primeira vitória da revolução socialista e
      Na medida em que contou com a agudização inevitável
      dos conflitos de classe, sempre prognosticou com certeza        era inevitável que isso incrementasse o poder de atração
      a aparição elementar independente das massas contra a           do único tipo de partido que podia se vangloriar de uma
      vontade e a linha de conduta do oficialismo. Neste amplo        vitória tão formidável” (JOHNSTONE, 1988, p. 14).
      sentido histórico está comprovado que Rosa tinha razão.                  No momento em que o caminho bolchevique vai
      Porque a revolução de 1918 foi “espontânea”, isto é,            se consolidando como modelo, após a Primeira Guerra,
      as massas a levaram a cabo contra todas as previsões e
      precauções do oficialismo partidário. Mas, por outro
      lado, toda a história posterior da Alemanha demonstrou
      amplamente que a espontaneidade por si só está longe            6 Creio que fica claro aqui que a intenção de Trotski era apoiar-
      de ser suficiente para conseguir a vitória; o regime de         se em uma ampla e aberta tradição marxista para construir o novo
      Hitler é um argumento de peso contra a panacéia da              partido mundial e não em um único modelo artificialmente abstraído
      espontaneidade.                                                 da experiência histórica. Ainda que, talvez, o próprio Trotski
      A própria Rosa nunca se encerrou na mera teoria da              possa ser criticado por não ter sido absolutamente coerente com a
      espontaneidade (...) Rosa Luxemburgo se esforçou por            proposição formulada nesse texto. É interessante observar que,
      educar de antemão a ala revolucionária do proletariado e        segundo Hobsbawm, Karl Liebknecht, embora fosse filho de um
                                                                      dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão e amigo de
      por reuni-lo organizativamente tanto quanto possível. Na
                                                                      Marx e Engels, Wilhem Liebknecht, nem sequer se dizia marxista.
      Polônia constituiu uma organização independente muito
                                                                      (HOBSBAWM, 1995, p. 378.)
com o triunfo da Revolução de Outubro e a formação da                  defender e adotar a concepção leninista da organização,
III Internacional, o movimento socialista mundial vive                 sua experiência impedia que as concepções e tradições
uma polarização: de um lado, a vitória bolchevique; de                 bolcheviques se tornassem um modelo rígido e formal.
outro, a tradição da social-democracia alemã e européia,                        Ainda em maio de 1917, Trotski recusou um
alinhada patrioticamente ao lado de suas burguesias                    convite para somar-se às fileiras do partido de Lênin,
na guerra imperialista, ou a derrota das outras opções                 pois tinha planos de formar uma nova organização
socialistas: esmagamento da Revolução Alemã,                           (ABOSCH, 1974, p. 47). Desde 1904, mantivera-se
assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.                      numa posição acima das frações, pretendendo unificar
Em momentos de crise, a força de atração de um modelo                  bolcheviques e mencheviques (AUTHIER, 1976, p. 43).
salvador é ainda maior.                                                Seria superficial atribuir a distância entre Lênin e Trotski
         O poder de atração do modelo leninista talvez se              em questões de organização a simples imaturidade
origine, ainda, de estratos mais profundos das práticas                deste último. Por que Trotski e seu grupo de camaradas
sociais. Como lembra Henri Lefebvre:                                   (ex-bolcheviques e ex-mencheviques que mantinham
       O fetichismo nasce e renasce incessantemente das                publicações e certa influência em distritos operários de
       profundezas da prática e da vida social (...) Então, tendo      Petrogrado, integrado, entre outros, por Lunatcharsky,
       desaparecido o processo real do qual emergia, a obra
                                                                       Riazanov, Manuilski, Yoffe) (DEUTSCHER, 1984, p.
       parece incompreensível, maravilhosa. O seu prestígio
       fica a ganhar, o conhecimento torna-se ainda menos              277) só adereriam ao Partido Bolchevique às vésperas
       claro. O homem eminente, o homem eficaz, o indivíduo            da Revolução Russa?
       criador fetichizam-se num afastamento que os torna                       Em primeiro lugar, havia divergências
       misteriosos e temíveis, sagrados e amaldiçoados.                quanto à concepção estratégica da Revolução Russa,
       (LEFEBVRE, 1977, p. 62)                                         suficientemente explicitadas por Trotski em vários
        Sim, mesmo a organização revolucionária,                       momentos, especialmente no artigo Três concepções da
obra criada para destruir a sociedade da qual emerge                   Revolução Russa (TROTSKI, 1977, p. 75). Entretanto,
o fetichismo das mercadorias, foi absorvida e passou a                 também estavam presentes graves divergências político-
circular nas relações sociais como fetiche – mitificada,               organizativas. Como se sabe, Trotski, Rosa Luxemburgo
esvaziada de sua história, do contexto de seu nascimento               e toda a social-democracia européia se opuseram às
e vida.                                                                posições de Lênin no II Congresso do Partido Operário
        Certamente, esse não foi um processo espontâneo.               Social-Democrata Russo, em 1903 (CARLO, 1976, p.
O leninismo, o marxismo e até o socialismo foram                       84). As posições de Rosa Luxemburgo no episódio,
apropriados e transformados em ideologia por uma casta                 sintetizadas no texto Problemas de organização da
burocrática estatal parasitária e mesquinha. Tornou-se                 social-democracia russa, foram amplamente divulgadas
fator de coesão e justificação ideológica de interesses e              e são bem conhecidas. Entretanto, os dois textos nos
privilégios sociais de casta7.1 Para este fim, nada mais               quais Trotski formula suas divergências, quais sejam:
útil do que um modelo rígido, esvaziado de qualquer                    As nossas tarefas políticas e Relatório da delegação
conteúdo histórico verificável e discutível.                           siberiana, não tiveram a mesma fortuna. Trotski e seus
        Como é sabido, uma das armas empregadas pela                   seguidores se opuseram à republicação dos textos, que
burocracia stalinista contra Trotski foi a acusação de sua             hoje são pouco conhecidos (AUTHIER, 1976, p. 7). Ora,
tardia adesão ao Partido Bolchevique. Este se defendeu                 este mesmo fato é revelador dos processos históricos
lembrando que, após a entrada no partido, tornara-se um                que fizeram parte da afirmação do sistema leninista de
bolchevique disciplinado, merecendo plena confiança                    partido como modelo – algumas das idéias alternativas
de Lênin; ao mesmo tempo, admitiu que sua trajetória                   foram apagadas por seus próprios autores!
anterior em assuntos de organização partidária revelara                         Não obstante, em busca de respostas para
imaturidade. Tentaremos aqui reconstituir alguns                       problemas colocados por sua prática, o movimento
momentos desse percurso anterior a 1917, não como erro,                socialista vem abrindo e divulgando o conteúdo dos
mas como parte integrante das experiências necessárias                 arquivos que conservam registros de sua história.
da esquerda russa e européia naquele período. O objetivo               Assim, o Relatório da delegação siberiana voltou a ser
é demonstrar que, por mais que Trotski tenha passado a                 publicado na década de 1970.
7 Talvez seja interessante mencionar a descrição do sistema político            O Relatório é um informe dirigido aos comitês
soviético feita por Hobsbawm, pois ajuda a compreender o quanto a      do Partido Operário Social Democrata Russa (POSDR),
adoção de um caricatural “modelo leninista” de partido é funcional
como legitimação do satus quo mantido pela burocracia stalinista
                                                                       escrito por Trotski na condição de membro da delegação
dentro da URSS e do exercício da dominação dessa burocracia sobre      da União Siberiana ao II Congresso do Partido, prestando
os partidos comunistas do mundo. “Baseavam-se num partido único        contas e analisando o encontro político8.2 O Relatório foi
fortemente hierárquico e autoritário que monopolizava o poder do       escrito nos dois dias que sucederam o Congresso e a partir
Estado – na verdade às vezes praticamente substituía o Estado -,
operando uma economia centralmente planejada e (pelo menos em          8 O outro membro da “delegação siberiana” era Dimitri Ulianov,
teoria) impondo uma única ideologia marxista-leninista compulsória     irmão mais novo de Lênin, que defendeu as posições do irmão no
aos habitantes do país” (HOBSBAWM, 1995, p. 365.)                      Congresso (TROTSKI s/d/, p 170).
de então teve ampla divulgação: “Fizeram-se cópias do              meios materiais e lhe fornece uma colaboração pessoal
que eu tinha escrito e cópias dessas cópias, abundantes            regular sob a direção de uma das suas organizações”. Na
(...) Este processo natural encontra-se em tal estado de           fórmula de Lênin, em vez de colaboração regular os
desenvolvimento que a intervenção de Gutemberg é                   estatutos definiam que o membro do Partido “participa
quase inevitável” (TROTSKI 1976, p. 89).                           da atividade de uma das organizações do Partido”.
         O texto é uma polêmica com as concepções de               Trotski investe contra esta fórmula afirmando que é
organização partidária e estratégia política de Lênin,             impossível que a direção partidária controle todos os
vitoriosas no II Congresso. Basicamente, Trotski                   membros da organização. Segundo a fórmula de Lênin,
opõe ao que seria uma concepção formal, mecânica e                 “o Comitê Central, onipresente, penetrando em tudo
mesmo metafísica, uma concepção mais complexa,                     e tudo tomando em conta, poderá apanhar todos os
dialética (TROTSKI 1976, p. 70). Afirma que o                      membros do Partido no local do crime. Na realidade,
centralismo defendido por Lênin no Congresso era “uma              trata-se de um sonho burocrático bastante ingênuo(...)”
construção formal ao contrário”, uma “antítese lógica do           (TROTSKI, 1976, p. 95).
diletantismo”. A disciplina proposta nesse centralismo                     Trotski argumenta, ainda, com o exemplo das
não adviria de um sentimento desenvolvido de disciplina            Organizações Operárias, existentes em várias cidades
de Partido, mas                                                    importantes, que vinham funcionando mais ou menos
      (...) do sentimento de se achar perdido, sentimento          sob o comando do Partido, tendo sido, entretanto,
      resultante do “crack” do diletantismo anárquico.             criadas de acordo com princípios diferentes dos da
      “Venham reinar e governem-nos” eis como podemos
                                                                   organização partidária. A fórmula de Lênin deixaria
      formular o estado de espírito da maioria. Um praticismo
      estreito, que se mostrou impraticável, foi substituído por   à ação partidária apenas duas opções: ou a exigência
      uma desconfiança total para com os militantes de base        de que as Organizações Operárias se dissolvessem e
      e por uma fé cega na onipotência da Redação no exílio        ingressassem no Partido ou a expulsão dos membros das
      (TROTSKI 1976, p. 123).                                      mesmas do seio do Partido. A fórmula dos mencheviques,
        Por outro lado, na avaliação de Trotski, o                 argumenta Trotski, permitiria uma tática mais flexível:
combate encabeçado por Lênin contra o economicismo                         Se quereis permanecer no Partido – dirá este aos
e o tradeunionismo nos anos anteriores – leit-motiv de                     representantes da Organização Operária – deveis colocar-
Que fazer? – não trouxera resultados muitos animadores.                    vos sob a direção do Partido, o Comitê local. Isto bastará
                                                                           para que a Organização Operária aceite no seu seio um
Trotski reproduz uma carta de um militante social-                         representante do Comitê, que tentará fazer passar à ação
democrata à redação do jornal partidário, Iskra: “A                        – apenas pela força de sua influência, bem entendido, a
agitação política tomou, durante o último período, um                      “linha” conforme à opinião geral do Partido (TROTSKI
caráter demasiado abstrato, está muito pouco ligada à                      1976, p. 96-97).
vida concreta e às exigências diárias das massas operárias.                As concepções de Trotski sobre o problema
Nossa agitação política transforma-se por vezes numa               da organização não eram muito diferentes daquelas
declamação política completamente oca” (TROTSKI,                   hegemônicas na social-democracia européia, às quais,
1976, p. 89). Aprovando a crítica do militante, Trotski            aliás, o próprio Lênin aderiu formalmente até 19149.3
acrescenta: “No arsenal do agitador social-democrata               Também Trotski defendia a necessidade da organização
não encontramos neste momento nada mais do que                     de um partido baseado no centralismo democrático.
fórmulas políticas sentimentais, apelos estereotipados             Apenas considerava que sua construção era um processo
para derrubar a autocracia, fórmulas e apelos que, pela            que envolvia a relação com o movimento de uma classe
sua abstração, se tornaram vazios de todo conteúdo                 social num contexto histórico. Naquele momento, Trotski
revolucionário” (TROTSKI, 1976, p. 89).                            via as soluções de Lênin como artificiais e burocráticas.
        Trotski conclui sua crítica ao que qualifica               Argumentava: “Há só uma saída: uma organização
ironicamente como a tendência política, afirmando que,             comum a todo o Partido com um Comitê Central à
se o economicismo se caracterizava por uma incapacidade            cabeça. Um Congresso convocado para este efeito não
de ligar os interesses profissionais particulares com              pode resolver a questão. É indispensável criar primeiro o
as tarefas gerais da política de classes, a política dos           centro antes de o proclamar” (TROTSKI 1976, p. 130).
seguidores de Lênin se caracterizava pela incapacidade
de “ligar as tarefas da luta política revolucionária (que
eles, no fundo, apenas reconhece formalmente) com as               9 A esse respeito, em polêmica com os stalinistas, Trotski afirma no
                                                                   texto Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo, de 1933, que Stalin havia
reivindicações imediatas, cotidianas e, em particular,
                                                                   inventado uma Rosa Luxemburgo “centrista” desde 1904 e um Lênin
com as necessidades profissionais limitadas” (TROTSKI,             “100% bolchevique” desde o começo. Trotski lembra que até 1914
1976, p. 90).                                                      “Lênin considerava Kautsky seu mestre e não perdia a oportunidade
        Com relação à famigerada polêmica a respeito               de afirma-lo”. Até 1914 Lênin afirmava que “o bolchevismo não era
do Artigo I dos estatutos, Trotski adere claramente à              uma corrente independente, mas a tradução às circunstâncias russas
                                                                   da tendência Bebel-Kautsky (...) Lênin considerava o bolchevismo
proposição dos mencheviques: “É membro do Partido                  como a versão russa do kaustskismo, que, por sua vez, ele identificava
aquele que reconhece o seu programa, o apóia por                   com o marxismo. (TROTSKI 1979, p. 335-337).
Diga-se de passagem que as fórmulas expostas                        O aparelho do Partido Bolchevique, antes da chegada
por Lênin no Que Fazer? pareceram tão estranhas a                            de Lênin, em abril, portanto ainda em pleno período
Plekhanov, que, em um artigo de 1904, ele indagava:                          revolucionário, comportava-se apenas como oposição leal
                                                                             no âmbito da democracia burguesa e estava de acordo que
“onde ele poderia ter ido pescar suas teses”? (AUTHIER,                      os sovietes entregassem o poder ao Governo Provisório
1976, p. 48)101.                                                             (TROTSKI 1967, p. 246).
         Embora a partir de 1917, a mudança de Trotski                         Enquanto isso, os operários bolcheviques da
tenha sido coerente e verdadeira, é difícil encontrar em              fábrica Viborg se reuniam e exigiam do partido a tomada
sua obra alguma passagem que explicite a teoria leninista             do poder pelos sovietes11.2
do partido, ou faça menção a um sistema organizativo                           Trotski deixa bastante claro que o oportunismo
acabado.                                                              do aparelho do partido não era casual, provinha de
         Comecemos pelo capítulo de Minha Vida dedicado               sua própria estratégia e concepções sobre a Revolução
ao II Congresso do POSDR. Embora seja possível                        Russa. Colhendo depoimentos de velhos militantes
argumentar que se trata de um texto memorialístico, é                 bolcheviques, Trotski identifica o problema: o partido
difícil acreditar que, se Trotski atribuísse às concepções            havia insistido demais na ditadura democrática do
de Lênin a qualidade de um achado teórico, isto deixaria              campesinato e do proletariado. O consenso, então, era
de transparecer no capítulo que trata exatamente da                   de que a revolução que se anunciava só poderia ser uma
cisão do partido. Em primeiro lugar, mesmo aprovando                  revolução burguesa. Um velho dirigente bolchevique
a posteriori as decisões de Lênin, Trotski não deixa de               chega a uma formulação paradoxal: “Nós (muitos de
apontar os aspectos pessoais envolvidos na disputa. Em                nós) orientamo-nos inconscientemente para a revolução
segundo lugar, fica claro também que, naquele momento,                proletária pensando que nos dirigíamos para a revolução
havia muita confusão e ninguém estava demasiadamente                  democrático-burguesa” (TROTSKI, 1967, p. 277).
preocupado em formular teorias. A divisão entre duros                          Ora, a pretensão de Lênin, afirmada a reafirmada
e moles, ou seja, bolcheviques e mencheviques, era                    no Que Fazer? era de que o partido, armado com a
concebida assim: “Se não havia uma linha divisória,                   chamada tática-plano (ou seja, uma linha política
existia, contudo, uma diferença sensível na maneira                   claramente definida), fosse capaz de nuclear e educar
de abordar as questões, na decisão, da perseverança                   uma vanguarda que, por sua vez, educasse e conduzisse as
em relação aos fins” (TROTSKI s/d, p. 164). Portanto,                 massas pelo caminho antevisto pelo partido. Ocorre que
tratava-se, muito mais, de diferenças de atitude do que               na prática, a tática-plano tão cuidadosamente cultivada,
de diferenças teóricas.                                               quase pôs tudo a perder: todos os dirigentes ou militantes
         A única passagem neste capítulo da qual se pode              próximos à direção haviam, durante anos, se habituado
extrair algo que diga respeito a um modelo de partido                 a pensar a Revolução Russa como uma revolução
é aquela em que Trotski fala sobre o centralismo                      democrático-burguesa, que seria dirigida por uma
leninista:                                                            coalizão chamada ditadura democrática do proletariado
       Eu estava entre os centralistas. É incontestável, porém,
                                                                      e do campesinato. Ora, o governo de Kerensky era
       que não podia então ter uma opinião clara a respeito do
       centralismo severo e imperioso reclamado por um partido        perfeitamente compatível com essa definição teórica. Por
       revolucionário que fora criado para lançar milhões de          sua vez, foram, segundo o relato de Trotski, os operários
       homens ao assalto da velha sociedade (...) Por ocasião do      de base, menos doutrinados pela tática-plano e mais
       Congresso de Londres, em 1903, a revolução tinha para          ligados ao chão das lutas sociais, que representaram a
       mim ainda muito de abstração teórica. O centralismo            força fundamental para a reorientação partidária. É certo
       leninista não podia ainda brotar em meu cérebro de uma         que, das páginas da História da Revolução Russa, Lênin
       concepção revolucionária clara e definida à qual tivesse
       chegado por minha conta (TROTSKI, s/d, p. 1745-175).
                                                                      sai gigantesco. Contra tudo e contra todos, a partir de
        O relato histórico da Revolução Russa por                     abril, ele teria reorientado o partido no rumo da ditadura
Trotski, especialmente os capítulos Os bolcheviques e                 do proletariado e da revolução socialista. Entretanto, o
Lênin e O rearmamento do Partido, deixam bastante                     fez com a base do partido, contra o seu aparelho e não
abalado um dos postulados centrais da chamada                         o contrário.
teoria leninista da organização, qual seja, o de que a                         Nada do que foi dito até aqui deve obscurecer
medula política da concepção leninista da organização                 o fato de que, a partir de 1917, as concepções de
corresponde a uma compreensão estratégica científica                  organização partidária às quais Trotski se mantêm fiel
da natureza e da dinâmica da revolução social. Trotski                até o fim de seus dias, e que orientaram a construção da
observa que                                                           IV Internacional, são as concepções bolcheviques, da III
                                                                      Internacional. Cremos que se pode afirmar que, no núcleo
10 Cabe notar que, quando Que fazer? foi escrito, Lênin e Plekhanov
eram aliados, contra as tendências economicistas, o alvo central da   11 É, aliás, bastante conhecido o fato de que os bolcheviques “des-
crítica do texto. O artigo de Plekhanov, publicado três anos após     cobriram” os sovietes depois que o movimento espontâneo de massas
Que Fazer?, e depois do II Congresso, pode ser sintomático de uma     os havia criado. Segundo Authier, havia, nos primeiros anos do sécu-
tomada de consciência e revisão crítica das teses leninistas sob o    lo, uma fratura entre o POSDR e o “movimento de massas organiza-
impacto da crise posterior ao II Congresso do POSDR.                  das” (AUTHIER, 1976, p. 33).
desta apreensão da concepção leninista por Trotski, está                 Sobre a impossibilidade de abordar o problema de
uma idéia sobre a dinâmica da relação entre programa,             organização de um ponto de vista formal, Trotski afirma:
partido, vanguarda e massas. Cabe ao partido formular                   Tampouco penso que eu possa dar uma fórmula tal sobre
um programa correto para a revolução socialista.                        o centralismo democrático que “de uma vez por todas”
                                                                        elimine mal-entendidos e falsas interpretações. Um
Com base num regime flexivelmente construído, de
                                                                        partido é um organismo vivo. Desenvolve-se em luta
acordo com a fórmula do centralismo democrático,                        contra obstáculos externos e contradições internas (...) O
o partido deve nuclear solidamente uma vanguarda                        regime de um partido não cai pronto do céu, mas forma-
operária que, por sua vez, seja capaz, na dinâmica dos                  se gradualmente na luta. A linha política predomina sobre
acontecimentos, de orientar politicamente as massas                     o regime; em primeiro lugar é necessário definir problemas
nos momentos decisivos da ação política. Depois de                      estratégicos e métodos táticos corretamente com o
                                                                        objetivo de resolvê-los (...) A fórmula para um centralismo
1917, Trotski não mais se afastou dessa concepção
                                                                        democrático deve encontrar inevitavelmente uma expressão
central, assim formulada por ele:                                       diferente nos partidos de diversos países e em diferentes
      É mister preparar a revolução mediante a incessante e
                                                                        estados de desenvolvimento de um mesmo partido.
      implacável luta de classes, no curso da qual a direção
                                                                        A democracia e o centralismo não se encontram em
      ganha a confiança inabalável do partido, une a vanguarda
                                                                        absoluto numa proporção invariável uma com relação
      com o conjunto da classe e converte o proletariado em
                                                                        ao outro. Tudo depende das circunstâncias concretas, da
      direção de todos os explorados da cidade e do campo
                                                                        situação política do país, da força e da experiência do
      (TROTSKI 1979a, p. 21).
                                                                        Partido, do nível geral de seus membros, da autoridade que
        Neste sentido, no processo de construção da                     a direção consiga adquirir (TROTSKI.1979b, p. 133).
IV Internacional, Trotski foi sempre peremptoriamente                    Sobre a questão da democracia:
contrário a qualquer unificação híbrida ou amorfa com                   O regime interno do partido bolchevique se caracterizava
as correntes que então lhe eram próximas, preferindo                    pelo método do centralismo democrático (...) Liberdade
cultivar um núcleo de revolucionários que tivesse clareza               de crítica e confronto de idéias eram os poderosos fatores
política e programática. Quando lançou, em 1935, a Carta                de sustentação da democracia interna. A presente doutrina
                                                                        de que o bolchevismo não tolera facções é um mito da
aberta pela criação da IV Internacional, o revolucionário               decadência. Na realidade, a história do bolchevismo
russo sublinhou: “As tarefas revolucionárias de nossa                   é uma história de conflitos de facções. E, de fato, como
época condenam de antemão ao fracasso toda unificação                   poderia uma organização genuinamente revolucionária,
híbrida e amorfa”.                                                      estabelecendo para si própria a tarefa de transformar o
        Três anos depois, em carta dirigida a um militante              mundo e unindo sob sua bandeira os mais audaciosos
belga que discordava do lançamento imediato da IV                       iconoclastas, lutadores e rebeldes, crescer e desenvolver-
                                                                        se sem conflitos intelectuais, sem agrupamentos e facções
Internacional, Trotski ponderava:
                                                                        temporárias? O comando bolchevique sempre fez o possível
      Parece que para você o nome IV Internacional impediria
                                                                        para atenuar os conflitos e encurtar a duração do trabalho
      às organizações simpatizantes ou meio simpatizantes se
                                                                        fracionário, mas não pôde ir além disso. O Comitê Central
      aproximarem de nós. É completamente errôneo. Nós só
                                                                        apoiava-se neste agitado suporte democrático, de onde
      podemos atrair a outros com uma política clara e correta.
                                                                        extraiu a audácia de tomar decisões e dar ordens. A precisão
      Para isto, devemos ter uma organização e não uma mancha
                                                                        óbvia do comando em todos os estágios críticos é o que
      nebulosa (TROTSKI 1979c, p. 505).
                                                                        investiu da alta autoridade, o capital moral insubstituível
        Porém, ao mesmo tempo em que aderia à                           para o centralismo (TROTSKI, 1981, p. 145).
concepção segundo a qual o núcleo partidário (ou seria                    Pode-se concluir, portanto, que toda teoria da
aparelho partidário?) deveria educar a vanguarda e esta           organização partidária, extraída de Lênin ou Trotski,
educar as massas numa política clara e correta, Trotski           que pretenda ir muito além da defesa do centralismo
também afirmava que, na dinâmica das revoluções, as               democrático e do nucleamento e formação política de
massas sempre estavam à esquerda do mais revolucionário           uma vanguarda de classe, estará forçando a nota. Mesmo
dos partidos e a base do partido sempre estava à esquerda         estes dois princípios só poderão contribuir para o avanço
de sua direção. Creio que esta formulação paradoxal               político da luta de classes se outras condições - sociais,
é mais representativa das concepções de organização               históricas e políticas – permitirem a organização de
partidária de Lênin e Trotski do que as teorias e sistemas        classe, o desenvolvimento de experiências políticas
que se tentou construir depois.                                   significativas, a manutenção de um agrupamento político
        Para terminar esta abordagem do conceito                  de vanguarda dinâmico, vivo, isento dos vícios do culto
de organização política revolucionária em Trotski,                à personalidade, das lutas fraticidas, de teoricismo, do
gostaríamos de recorrer a algumas passagens de seus               seguidismo, do sectarismo...a mera importação de um
escritos que ressaltam dois aspectos um pouco esquecidos:         modelo ou de uma suposta teoria não protege ninguém
primeiro, sua abordagem historicamente concreta, mesmo            desses perigos.
daquele núcleo mais conceitual do sistema partidário: o
centralismo democrático; e, segundo, a ênfase que ele
confere ao aspecto da democracia, relacionada com o
centralismo, no regime partidário. Vejamos.
Referências
         ABOSCH, Heinz. Crónica de Trotski – Datos sobre
su vida y su obra. Barcelona: Anagrama, 1974.
         AUTHIER, Denis. “Prefacio”. In: TROTSKI, Leon.
Relatório da delegação siberiana. Coimbra: Centelha, 1976.
         BENSAÏD, Daniel; NAIR, Alain. A propósito del
problema de organización: Lenin y Rosa Luxemburg. In:
Teoria marxista del partido político/2. México: Pasado y
Presente, 1980.
         CARLO, Antonio. A concepção do partido
revolucionário em Lênin. São Paulo, Estudos CEBRAP, 15,
1976.
         DEUTSCHER, Isaac. Trotski – O profeta desarmado.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
         HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos – o breve
século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
         LUXEMBBURGO, Rosa. Obras escolhidas. Tomo
II. Bogotá, Pluma, 1979.
         MANDEL, Ernest. La teoria leninista de la
organización. México: Ediciones Era, 1984.
         TROTSKI Leon. A revolução permanente na Rússia.
Lisboa: Edições Antídoto, 1977.
         _________. Minha vida. Rio de Janeiro: José
Olympio, s/d.
         _________. “Fuera las manos de Rosa Luxemburgo”
In: LUXEMBURGO, Rosa. Obras escogidas. Vol II. Bogotá:
Pluma, 1979.
         _________. Escritos. Tomo VII – Vol 1. Bogotá:
Pluma, 1979a.
         _________. Escritos. Tomo IX – Vol 1. Bogotá:
Pluma, 1979b.
         _________. Escritos. Tomo IX – Vol 2. Bogotá:
Pluma, 1979c.
         _________. História da Revolução Russa. Rio de
Janeiro: Saga, 1967.
         _________. A Degeneração do Partido Bolchevista.
In: MIRANDA, Orlando. Trotski. São Paulo: Ática, 1981
(Coleção Grandes Cientistas Sociais, 22).

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  • 1. Artigo Trotski, Rosa Luxemburgo e o mito da “teoria leninista da organização” Murilo Leal Pereira Neto11 pensei em erigir as formulações do Que Fazer? em algo “programático”, em princípios especiais (LÊNIN apud Tentaremos argumentar neste artigo que Leon CARLO, 1976, p. 89)4.4 Trotski, embora tenha aderido ao Partido Bolchevique em Na célebre polêmica com Rosa Luxemburgo, agosto de 1917 e, a partir de então, defendido a concepção Lênin nega que defendesse um sistema de organização leninista da organização partidária, empreendeu, antes contra qualquer outro: disso, uma trajetória política e defendeu uma concepção (...) Devo assinalar que o que o artigo de Rosa Luxemburgo, publicado no Neue Zeit, dá a conhecer de partido mais próxima das tradições da II Internacional ao leitor não é meu livro, mas outra coisa, distinta (...) – que, por sua vez, mantinha proximidade com a A camarada Luxemburgo diz, por exemplo, que em meu experiência de organização da I Internacional. Mesmo livro manifesta-se clara e nitidamente a tendência de um depois de sua conversão ao bolchevismo-leninismo, centralismo extremo. A camarada Luxemburgo supõe, Trotsky defendeu uma concepção de centralismo assim, que defendo um sistema de organização contra democrático mais flexível do que muitos de seus qualquer outro. Mas, na realidade, não existe tal coisa. O que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira até discípulos, que lideraram a IV Internacional ou algumas a última página, são os princípios elementares de qualquer de suas facções depois de 1940. organização de partido que se possa imaginar (LENINE, Na impossibilidade de dialogar com as múltiplas 1985, p. 44 e 48). correntes do trotskismo no espaço deste artigo, Feitas essas ressalvas, vejamos como Mandel selecionamos dois textos de destacados representantes de interpreta o que seria a teoria do partido de Lênin. sua corrente majoritária: Ernest Mandel e Daniel Bensaïd. Consideramos que é possível extrair do texto as seguintes O objetivo é sugerir que, sendo a organização política proposições básicas: revolucionária da classe trabalhadora necessariamente 1) O conceito leninista de organização uma empresa difícil e complexa, pois se trata de dar forma fundamenta-se em uma espécie de tipologia das política a um conteúdo social em permanente processo diferentes fases do processo evolutivo de formação de mudança, a rigidez da concepção de organização da consciência da classe operária. Haveria a massa de partidária não pode contribuir para o sucesso da tarefa. operários, a vanguarda em um sentido amplo (operários Comecemos por La teoria leninista de la que alcançaram o primeiro grau de organização) e a organización, de Mandel. O primeiro aspecto a assinalar organização revolucionária; é que, segundo o autor, Lênin teria, como o próprio título 2) A revolução pode ser descrita como do trabalho indica, elaborado uma teoria do partido um processo no qual, em um primeiro momento, o núcleo – ausente, até então, no arsenal de idéias do marxismo. de revolucionários consegue integrar a consciência dos Cabe assinalar, entretanto, que é o próprio Lênin quem, operários avançados à sua própria e, em um segundo em diferentes ocasiões, nega a pretensão de elaborar momento, a ação dos operários avançados consegue uma “teoria do partido”. Vejamos: integrar a ação das grandes massas; O erro principal dos que hoje polemizam com o Que 3) Esse processo, porém, não pode se Fazer? consiste em desligar por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período dar sem que a vanguarda operária tenha sido previamente concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou treinada e, por sua vez, tenha treinado o proletariado na há muito tempo (...) Que Fazer? é o compêndio da tática idéia e na aplicação do programa revolucionário para a e da política iskrista22 em matéria de organização durante luta. Este aspecto reveste-se de particular importância, os anos de 1901 e 1902. Um compêndio, nem mais nem uma vez que a estratégia de Lênin se basearia também menos (...) Ora, nem mesmo no II Congresso33 em um balanço das lutas precedentes do movimento 1 Doutor em História Social pela USP. Coordenador do Curso de socialista europeu, que derrubaram a ilusão de que História da Faccamp (Faculdade Campo Limpo Paulista). “existia uma linha reta entre as vitórias parciais nas lutas 2 Iskra (Centelha) é o nome do jornal criado por Lênin em seu exílio eleitorais, as greves de conscientização revolucionária e na Suíça, veiculando as posições da corrente por ele liderada. um incremento da combatividade revolucionária do 3 Refere-se ao II Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo, realizado em 1903, no qual deu-se a divisão entre bolcheviques e mencheviques. 4 Todas as traduções do castelhano são de Murilo Leal.
  • 2. proletariado” (MANDEL, 1984, p. 62). Ao contrário, corrente majoritária do trotskismo. Trata-se de Daniel apenas se os operários acumulam uma experiência de luta Bensaïd que, juntamente com Alain Nair, elaborou o que não se limita a reivindicações parciais nos limites do texto A propósito do problema da organização: Lênin capitalismo, podem formar uma consciência de classe e Rosa. revolucionária. Essas demandas mais avançadas podem Os autores também aderem à idéia de que Lênin ser trazidas apenas “através dos esforços de uma massa elaborou uma teoria da organização em conformidade ampla de operários avançados que estão estreitamente com uma teoria da dinâmica das relações sociais vinculados às massas e que são os que disseminam e contemporâneas. Segundo essa teoria, o proletariado publicam essas demandas (que, em geral, não surgem seria o sujeito teórico-histórico da revolução, espontaneamente da experiência diária da classe)(...)” condicionado pelo modo de produção capitalista. (MANDEL, 1984, p 63) Seria o proletariado em-si. A vanguarda, que surge 4) A concepção leninista do partido da formação social, seria o sujeito político-prático da pressupõe “uma teoria da essência da teoria marxista e revolução, representando o proletariado para-si5.1 Em de sua relação específica com a ciência por uma parte e conseqüência, os autores endossam a idéia de que “a a luta de classes proletária por outra” (MANDEL, 1984, consciência social-democrata só pode provir de fora dos p. 7). Isto implica que o programa socialista pode ser operários, dos intelectuais revolucionários portadores do elaborado pela teoria marxista e posteriormente difundido conhecimento e da compreensão global do processo de às massas. “A construção do partido revolucionário de produção” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 14). classe é o processo pelo qual o programa da revolução Além da apreensão da tradição bolchevique (um socialista é fundido com a experiência que adquiriu na patrimônio vivo de experiências) como uma teoria e luta a maioria dos trabalhadores avançados” (MANDEL, mesmo um sistema de organização, outra peculiaridade 1984, p. 40). do texto chama a atenção. Os autores valorizam o 5) A centralização defendida por partido leninista como uma formação orientada para Lênin refere-se a um conteúdo político, mais do que a intervenção no campo político propriamente dito, a um processo formal, organizativo. O plano seria o entendido como a luta de partidos pelo poder do da centralização de todas as revoltas e movimentos Estado. O texto dá a entender que foi um dos méritos de de resistência elementares, espontâneos, dispersos ou Lênin ter compreendido a representação de classe como locais. representação propriamente política. Vejamos: O texto de Mandel apresenta, também, uma O partido é o instrumento pelo qual a fração consciente da classe operária ingressa na luta política e prepara o polêmica com Rosa Luxemburgo, criticando-a pelo enfrentamento com o Estado burguês centralizado, chave que seriam seus erros a respeito da questão do partido. mestra da formação social capitalista (...) (BENSAÏD; NAIR, Afirma o autor: 1980, p. 20). O conceito de Luxemburgo de que ‘o exército proletário Dito de outra maneira, a política, que é a ordem a que pertence é recrutado e chega a estar consciente de seus objetivos o partido, é irredutível ao social: a classe como conceito no curso da própria luta’ foi definitivamente refutado permanece como sujeito teórico e não prático da história; a pela história. Mesmo nas lutas operárias mais amplas, mediação do partido, pelo qual ela acede ao político, continua abrangentes e vigorosas, as massas trabalhadoras não sendo indispensável (...) (Bensaïd; Nair, 1980, p. 31) adquiriram uma compreensão clara das tarefas da luta Na realidade, o terreno político não existe a priori; só se ou o fizeram apenas de modo insuficiente (MANDEL, constitui com a estruturação das próprias forças políticas. É por 1984, p. 25). isso que “a expressão mais vigorosa, mais completa e melhor definida da luta de classes política é a luta de partidos”[citação Como veremos adiante, a delimitação das de Lênin]. Por esta luta, cujo objetivo é o Estado, se instaura diferenças políticas com Rosa Luxemburgo em torno a especificidade do político que é o lugar de irrupção da crise da questão da organização partidária estabelecida pelo revolucionária (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 37). próprio Trotski é bem diferente. Tentaremos sugerir, É óbvio que a teoria de que a classe é apenas ainda, que o agrupamento da vanguarda de classe em o sujeito teórico-histórico da revolução, enquanto a torno de uma política correta (uma tática-plano, como vanguarda é o sujeito político-prático e, ainda, que se dizia na esquerda européia da época) e a possibilidade a política é a luta de partidos pelo poder de Estado, dessa vanguarda dirigir a massa dos trabalhadores é reconhece como sujeito da história e da política a um processo que depende muito menos do regime vanguarda agrupada no partido e não a classe em sua partidário e muito mais das condições sociais/históricas. ampla configuração e em suas múltiplas formas de O regime partidário do centralismo-democrático pode organização e práticas políticas. A vanguarda aparece tanto contribuir para a formação de uma vanguarda quase como um substituto e não uma direção da classe. revolucionária efetiva, como de um aparelho partidário 5 Os autores esclarecem que o “modo de produção capitalista” é auto-suficiente, ou de uma seita política. um conceito abstrato-formal, não tendo existência real. Nenhuma Recorreremos a outro teórico, a fim de que formação social específica coincide com ele. Citando Poulantzas, os autores afirmam que a formação social é “uma superoposição possamos perceber outras facetas da apreensão da teoria específica de muitos modos de produção puros” (BENSAÏD; NAIR, leninista do partido pelos trotskistas, ou pelo menos pela 1980, p. 14).
  • 3. Para concluir este breve comentário ao texto de rígida. O máximo que se pode dizer é que na avaliação histórico-filosófica do movimento operário, a seleção Bensaïd e Nair, é necessário registrar os momentos de reparatória da vanguarda era deficiente em Rosa, em polêmica com Rosa Luxemburgo. A crítica substantiva comparação com as ações de massa que se poderiam formulada pelos autores reprova o prognóstico de esperar; Lênin, sem consolar-se com os milagres das Rosa de uma marcha inevitável do capitalismo para a futuras ações, tomava os operários avançados e constante catástrofe e a suposição de que o agravamento incessante e incansavelmente os soldava em núcleos firmes, legais ou das contradições sociais engendraria, por um lado, um ilegais, nas organizações de massa ou na clandestinidade, mediante um programa claramente definido. (TROTSKI, proletariado espontaneamente revolucionário, e por 1979a, p. 39-41) outro, um partido que deveria ser apenas um “ponto Este artigo é concluído de forma instigante, de união organizativa de todas as camadas postas em jogando por terra toda a interpretação estreita que se movimento contra a burguesia por esta revolução”. A observou tanto entre marxistas-leninistas quanto entre conclusão: “Assim, esta visão simplesmente trágica do trotskistas, da polêmica e das divergências entre Lênin capitalismo conduz Rosa a superestimar o movimento e Rosa: de massas e a subestimar a necessidade e o papel do Os tresnoitados confusionistas do espontaneísmo têm partido no sistema capitalista” (BENSAÏD; NAIR, 1980, tanto direito de referir-se a Rosa como os miseráveis p. 18 e 19) burocratas do Comintern a Lênin. Deixemos de lado as Além dessa crítica mais séria, aliás já formulada questões secundárias, superadas pelos acontecimentos e por Lukács em 1921, os autores afirmam, de forma com plena justeza podemos colocar nosso trabalho pela Quarta Internacional sob o signo dos “três L”, não apenas surpreendentemente pouco respeitosa, que a concepção sob o signo de Lênin, mas também de Luxemburgo e organizativa de Rosa era “muito mais trivial, às vezes Liebknecht (TROTSKI, 1979a, p. 44)6.2 emocional e com freqüência infra-teórica”, acusam-na de Defendemos a tese de que a experiência do um “vitalismo ingênuo, um naturalismo organizativo”, de Partido bolchevique não foi originalmente concebida “simplismo entusiasta” e ainda afirmam que Rosa teria como modelo por seus dirigentes. Monty Johnstone empunhado “a bandeira de ‘liberdade’ e da ‘democracia’ lembra que a idéia de partido de Lênin não se reduzia contra as posições ‘extremas’ de Lênin” (BENSAÏD; a um único modelo organizativo. Houve o modelo do NAIR, 1980, p. 17). partido de quadros ou de massas, com estruturas internas Cabe observar que, mesmo um Trotski já que iam do cupulismo conspirativo à mais ampla plenamente bolchevique-leninista, em 1935, delimita democracia. “Comum a todos estes modelos era a idéia suas diferenças com Rosa Luxemburgo no campo das de uma vanguarda centralizada que se emprenhasse concepções de organização de maneira muito diferente em fundir a teoria e a consciência socialistas com o dos autores citados até aqui. Vejamos como Trotski movimento espontâneo dos operários” (JOHNSTONE, recupera as posições de Rosa a respeito do problema da 1988, p. 16). relação entre espontaneidade e organização: A experiência de organização partidária dos É inegável que Rosa Luxemburgo contrapôs apaixonadamente a espontaneidade das ações de massas bolcheviques esteve, portanto, indissoluvelmente à política conservadora “coroada pela vitória” da social- imbricada com as tarefas e processos próprios da esquerda democracia alemã, sobretudo depois da revolução de na Rússia. Assim sendo, cabe indagar: como e por que foi 1905. Esta contraposição tinha um caráter absolutamente erigida em modelo e adotada como paradigma nos quatro revolucionário e progressivo. Muito antes que Lênin, cantos do mundo? A primeira resposta, e a mais óbvia, é Rosa Luxemburgo compreendeu o caráter retardatário dos apontada por Monty Johnston: “Os bolcheviques haviam aparatos partidário e sindical e começou a lutar contra eles. conquistado a primeira vitória da revolução socialista e Na medida em que contou com a agudização inevitável dos conflitos de classe, sempre prognosticou com certeza era inevitável que isso incrementasse o poder de atração a aparição elementar independente das massas contra a do único tipo de partido que podia se vangloriar de uma vontade e a linha de conduta do oficialismo. Neste amplo vitória tão formidável” (JOHNSTONE, 1988, p. 14). sentido histórico está comprovado que Rosa tinha razão. No momento em que o caminho bolchevique vai Porque a revolução de 1918 foi “espontânea”, isto é, se consolidando como modelo, após a Primeira Guerra, as massas a levaram a cabo contra todas as previsões e precauções do oficialismo partidário. Mas, por outro lado, toda a história posterior da Alemanha demonstrou amplamente que a espontaneidade por si só está longe 6 Creio que fica claro aqui que a intenção de Trotski era apoiar- de ser suficiente para conseguir a vitória; o regime de se em uma ampla e aberta tradição marxista para construir o novo Hitler é um argumento de peso contra a panacéia da partido mundial e não em um único modelo artificialmente abstraído espontaneidade. da experiência histórica. Ainda que, talvez, o próprio Trotski A própria Rosa nunca se encerrou na mera teoria da possa ser criticado por não ter sido absolutamente coerente com a espontaneidade (...) Rosa Luxemburgo se esforçou por proposição formulada nesse texto. É interessante observar que, educar de antemão a ala revolucionária do proletariado e segundo Hobsbawm, Karl Liebknecht, embora fosse filho de um dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão e amigo de por reuni-lo organizativamente tanto quanto possível. Na Marx e Engels, Wilhem Liebknecht, nem sequer se dizia marxista. Polônia constituiu uma organização independente muito (HOBSBAWM, 1995, p. 378.)
  • 4. com o triunfo da Revolução de Outubro e a formação da defender e adotar a concepção leninista da organização, III Internacional, o movimento socialista mundial vive sua experiência impedia que as concepções e tradições uma polarização: de um lado, a vitória bolchevique; de bolcheviques se tornassem um modelo rígido e formal. outro, a tradição da social-democracia alemã e européia, Ainda em maio de 1917, Trotski recusou um alinhada patrioticamente ao lado de suas burguesias convite para somar-se às fileiras do partido de Lênin, na guerra imperialista, ou a derrota das outras opções pois tinha planos de formar uma nova organização socialistas: esmagamento da Revolução Alemã, (ABOSCH, 1974, p. 47). Desde 1904, mantivera-se assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. numa posição acima das frações, pretendendo unificar Em momentos de crise, a força de atração de um modelo bolcheviques e mencheviques (AUTHIER, 1976, p. 43). salvador é ainda maior. Seria superficial atribuir a distância entre Lênin e Trotski O poder de atração do modelo leninista talvez se em questões de organização a simples imaturidade origine, ainda, de estratos mais profundos das práticas deste último. Por que Trotski e seu grupo de camaradas sociais. Como lembra Henri Lefebvre: (ex-bolcheviques e ex-mencheviques que mantinham O fetichismo nasce e renasce incessantemente das publicações e certa influência em distritos operários de profundezas da prática e da vida social (...) Então, tendo Petrogrado, integrado, entre outros, por Lunatcharsky, desaparecido o processo real do qual emergia, a obra Riazanov, Manuilski, Yoffe) (DEUTSCHER, 1984, p. parece incompreensível, maravilhosa. O seu prestígio fica a ganhar, o conhecimento torna-se ainda menos 277) só adereriam ao Partido Bolchevique às vésperas claro. O homem eminente, o homem eficaz, o indivíduo da Revolução Russa? criador fetichizam-se num afastamento que os torna Em primeiro lugar, havia divergências misteriosos e temíveis, sagrados e amaldiçoados. quanto à concepção estratégica da Revolução Russa, (LEFEBVRE, 1977, p. 62) suficientemente explicitadas por Trotski em vários Sim, mesmo a organização revolucionária, momentos, especialmente no artigo Três concepções da obra criada para destruir a sociedade da qual emerge Revolução Russa (TROTSKI, 1977, p. 75). Entretanto, o fetichismo das mercadorias, foi absorvida e passou a também estavam presentes graves divergências político- circular nas relações sociais como fetiche – mitificada, organizativas. Como se sabe, Trotski, Rosa Luxemburgo esvaziada de sua história, do contexto de seu nascimento e toda a social-democracia européia se opuseram às e vida. posições de Lênin no II Congresso do Partido Operário Certamente, esse não foi um processo espontâneo. Social-Democrata Russo, em 1903 (CARLO, 1976, p. O leninismo, o marxismo e até o socialismo foram 84). As posições de Rosa Luxemburgo no episódio, apropriados e transformados em ideologia por uma casta sintetizadas no texto Problemas de organização da burocrática estatal parasitária e mesquinha. Tornou-se social-democracia russa, foram amplamente divulgadas fator de coesão e justificação ideológica de interesses e e são bem conhecidas. Entretanto, os dois textos nos privilégios sociais de casta7.1 Para este fim, nada mais quais Trotski formula suas divergências, quais sejam: útil do que um modelo rígido, esvaziado de qualquer As nossas tarefas políticas e Relatório da delegação conteúdo histórico verificável e discutível. siberiana, não tiveram a mesma fortuna. Trotski e seus Como é sabido, uma das armas empregadas pela seguidores se opuseram à republicação dos textos, que burocracia stalinista contra Trotski foi a acusação de sua hoje são pouco conhecidos (AUTHIER, 1976, p. 7). Ora, tardia adesão ao Partido Bolchevique. Este se defendeu este mesmo fato é revelador dos processos históricos lembrando que, após a entrada no partido, tornara-se um que fizeram parte da afirmação do sistema leninista de bolchevique disciplinado, merecendo plena confiança partido como modelo – algumas das idéias alternativas de Lênin; ao mesmo tempo, admitiu que sua trajetória foram apagadas por seus próprios autores! anterior em assuntos de organização partidária revelara Não obstante, em busca de respostas para imaturidade. Tentaremos aqui reconstituir alguns problemas colocados por sua prática, o movimento momentos desse percurso anterior a 1917, não como erro, socialista vem abrindo e divulgando o conteúdo dos mas como parte integrante das experiências necessárias arquivos que conservam registros de sua história. da esquerda russa e européia naquele período. O objetivo Assim, o Relatório da delegação siberiana voltou a ser é demonstrar que, por mais que Trotski tenha passado a publicado na década de 1970. 7 Talvez seja interessante mencionar a descrição do sistema político O Relatório é um informe dirigido aos comitês soviético feita por Hobsbawm, pois ajuda a compreender o quanto a do Partido Operário Social Democrata Russa (POSDR), adoção de um caricatural “modelo leninista” de partido é funcional como legitimação do satus quo mantido pela burocracia stalinista escrito por Trotski na condição de membro da delegação dentro da URSS e do exercício da dominação dessa burocracia sobre da União Siberiana ao II Congresso do Partido, prestando os partidos comunistas do mundo. “Baseavam-se num partido único contas e analisando o encontro político8.2 O Relatório foi fortemente hierárquico e autoritário que monopolizava o poder do escrito nos dois dias que sucederam o Congresso e a partir Estado – na verdade às vezes praticamente substituía o Estado -, operando uma economia centralmente planejada e (pelo menos em 8 O outro membro da “delegação siberiana” era Dimitri Ulianov, teoria) impondo uma única ideologia marxista-leninista compulsória irmão mais novo de Lênin, que defendeu as posições do irmão no aos habitantes do país” (HOBSBAWM, 1995, p. 365.) Congresso (TROTSKI s/d/, p 170).
  • 5. de então teve ampla divulgação: “Fizeram-se cópias do meios materiais e lhe fornece uma colaboração pessoal que eu tinha escrito e cópias dessas cópias, abundantes regular sob a direção de uma das suas organizações”. Na (...) Este processo natural encontra-se em tal estado de fórmula de Lênin, em vez de colaboração regular os desenvolvimento que a intervenção de Gutemberg é estatutos definiam que o membro do Partido “participa quase inevitável” (TROTSKI 1976, p. 89). da atividade de uma das organizações do Partido”. O texto é uma polêmica com as concepções de Trotski investe contra esta fórmula afirmando que é organização partidária e estratégia política de Lênin, impossível que a direção partidária controle todos os vitoriosas no II Congresso. Basicamente, Trotski membros da organização. Segundo a fórmula de Lênin, opõe ao que seria uma concepção formal, mecânica e “o Comitê Central, onipresente, penetrando em tudo mesmo metafísica, uma concepção mais complexa, e tudo tomando em conta, poderá apanhar todos os dialética (TROTSKI 1976, p. 70). Afirma que o membros do Partido no local do crime. Na realidade, centralismo defendido por Lênin no Congresso era “uma trata-se de um sonho burocrático bastante ingênuo(...)” construção formal ao contrário”, uma “antítese lógica do (TROTSKI, 1976, p. 95). diletantismo”. A disciplina proposta nesse centralismo Trotski argumenta, ainda, com o exemplo das não adviria de um sentimento desenvolvido de disciplina Organizações Operárias, existentes em várias cidades de Partido, mas importantes, que vinham funcionando mais ou menos (...) do sentimento de se achar perdido, sentimento sob o comando do Partido, tendo sido, entretanto, resultante do “crack” do diletantismo anárquico. criadas de acordo com princípios diferentes dos da “Venham reinar e governem-nos” eis como podemos organização partidária. A fórmula de Lênin deixaria formular o estado de espírito da maioria. Um praticismo estreito, que se mostrou impraticável, foi substituído por à ação partidária apenas duas opções: ou a exigência uma desconfiança total para com os militantes de base de que as Organizações Operárias se dissolvessem e e por uma fé cega na onipotência da Redação no exílio ingressassem no Partido ou a expulsão dos membros das (TROTSKI 1976, p. 123). mesmas do seio do Partido. A fórmula dos mencheviques, Por outro lado, na avaliação de Trotski, o argumenta Trotski, permitiria uma tática mais flexível: combate encabeçado por Lênin contra o economicismo Se quereis permanecer no Partido – dirá este aos e o tradeunionismo nos anos anteriores – leit-motiv de representantes da Organização Operária – deveis colocar- Que fazer? – não trouxera resultados muitos animadores. vos sob a direção do Partido, o Comitê local. Isto bastará para que a Organização Operária aceite no seu seio um Trotski reproduz uma carta de um militante social- representante do Comitê, que tentará fazer passar à ação democrata à redação do jornal partidário, Iskra: “A – apenas pela força de sua influência, bem entendido, a agitação política tomou, durante o último período, um “linha” conforme à opinião geral do Partido (TROTSKI caráter demasiado abstrato, está muito pouco ligada à 1976, p. 96-97). vida concreta e às exigências diárias das massas operárias. As concepções de Trotski sobre o problema Nossa agitação política transforma-se por vezes numa da organização não eram muito diferentes daquelas declamação política completamente oca” (TROTSKI, hegemônicas na social-democracia européia, às quais, 1976, p. 89). Aprovando a crítica do militante, Trotski aliás, o próprio Lênin aderiu formalmente até 19149.3 acrescenta: “No arsenal do agitador social-democrata Também Trotski defendia a necessidade da organização não encontramos neste momento nada mais do que de um partido baseado no centralismo democrático. fórmulas políticas sentimentais, apelos estereotipados Apenas considerava que sua construção era um processo para derrubar a autocracia, fórmulas e apelos que, pela que envolvia a relação com o movimento de uma classe sua abstração, se tornaram vazios de todo conteúdo social num contexto histórico. Naquele momento, Trotski revolucionário” (TROTSKI, 1976, p. 89). via as soluções de Lênin como artificiais e burocráticas. Trotski conclui sua crítica ao que qualifica Argumentava: “Há só uma saída: uma organização ironicamente como a tendência política, afirmando que, comum a todo o Partido com um Comitê Central à se o economicismo se caracterizava por uma incapacidade cabeça. Um Congresso convocado para este efeito não de ligar os interesses profissionais particulares com pode resolver a questão. É indispensável criar primeiro o as tarefas gerais da política de classes, a política dos centro antes de o proclamar” (TROTSKI 1976, p. 130). seguidores de Lênin se caracterizava pela incapacidade de “ligar as tarefas da luta política revolucionária (que eles, no fundo, apenas reconhece formalmente) com as 9 A esse respeito, em polêmica com os stalinistas, Trotski afirma no texto Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo, de 1933, que Stalin havia reivindicações imediatas, cotidianas e, em particular, inventado uma Rosa Luxemburgo “centrista” desde 1904 e um Lênin com as necessidades profissionais limitadas” (TROTSKI, “100% bolchevique” desde o começo. Trotski lembra que até 1914 1976, p. 90). “Lênin considerava Kautsky seu mestre e não perdia a oportunidade Com relação à famigerada polêmica a respeito de afirma-lo”. Até 1914 Lênin afirmava que “o bolchevismo não era do Artigo I dos estatutos, Trotski adere claramente à uma corrente independente, mas a tradução às circunstâncias russas da tendência Bebel-Kautsky (...) Lênin considerava o bolchevismo proposição dos mencheviques: “É membro do Partido como a versão russa do kaustskismo, que, por sua vez, ele identificava aquele que reconhece o seu programa, o apóia por com o marxismo. (TROTSKI 1979, p. 335-337).
  • 6. Diga-se de passagem que as fórmulas expostas O aparelho do Partido Bolchevique, antes da chegada por Lênin no Que Fazer? pareceram tão estranhas a de Lênin, em abril, portanto ainda em pleno período Plekhanov, que, em um artigo de 1904, ele indagava: revolucionário, comportava-se apenas como oposição leal no âmbito da democracia burguesa e estava de acordo que “onde ele poderia ter ido pescar suas teses”? (AUTHIER, os sovietes entregassem o poder ao Governo Provisório 1976, p. 48)101. (TROTSKI 1967, p. 246). Embora a partir de 1917, a mudança de Trotski Enquanto isso, os operários bolcheviques da tenha sido coerente e verdadeira, é difícil encontrar em fábrica Viborg se reuniam e exigiam do partido a tomada sua obra alguma passagem que explicite a teoria leninista do poder pelos sovietes11.2 do partido, ou faça menção a um sistema organizativo Trotski deixa bastante claro que o oportunismo acabado. do aparelho do partido não era casual, provinha de Comecemos pelo capítulo de Minha Vida dedicado sua própria estratégia e concepções sobre a Revolução ao II Congresso do POSDR. Embora seja possível Russa. Colhendo depoimentos de velhos militantes argumentar que se trata de um texto memorialístico, é bolcheviques, Trotski identifica o problema: o partido difícil acreditar que, se Trotski atribuísse às concepções havia insistido demais na ditadura democrática do de Lênin a qualidade de um achado teórico, isto deixaria campesinato e do proletariado. O consenso, então, era de transparecer no capítulo que trata exatamente da de que a revolução que se anunciava só poderia ser uma cisão do partido. Em primeiro lugar, mesmo aprovando revolução burguesa. Um velho dirigente bolchevique a posteriori as decisões de Lênin, Trotski não deixa de chega a uma formulação paradoxal: “Nós (muitos de apontar os aspectos pessoais envolvidos na disputa. Em nós) orientamo-nos inconscientemente para a revolução segundo lugar, fica claro também que, naquele momento, proletária pensando que nos dirigíamos para a revolução havia muita confusão e ninguém estava demasiadamente democrático-burguesa” (TROTSKI, 1967, p. 277). preocupado em formular teorias. A divisão entre duros Ora, a pretensão de Lênin, afirmada a reafirmada e moles, ou seja, bolcheviques e mencheviques, era no Que Fazer? era de que o partido, armado com a concebida assim: “Se não havia uma linha divisória, chamada tática-plano (ou seja, uma linha política existia, contudo, uma diferença sensível na maneira claramente definida), fosse capaz de nuclear e educar de abordar as questões, na decisão, da perseverança uma vanguarda que, por sua vez, educasse e conduzisse as em relação aos fins” (TROTSKI s/d, p. 164). Portanto, massas pelo caminho antevisto pelo partido. Ocorre que tratava-se, muito mais, de diferenças de atitude do que na prática, a tática-plano tão cuidadosamente cultivada, de diferenças teóricas. quase pôs tudo a perder: todos os dirigentes ou militantes A única passagem neste capítulo da qual se pode próximos à direção haviam, durante anos, se habituado extrair algo que diga respeito a um modelo de partido a pensar a Revolução Russa como uma revolução é aquela em que Trotski fala sobre o centralismo democrático-burguesa, que seria dirigida por uma leninista: coalizão chamada ditadura democrática do proletariado Eu estava entre os centralistas. É incontestável, porém, e do campesinato. Ora, o governo de Kerensky era que não podia então ter uma opinião clara a respeito do centralismo severo e imperioso reclamado por um partido perfeitamente compatível com essa definição teórica. Por revolucionário que fora criado para lançar milhões de sua vez, foram, segundo o relato de Trotski, os operários homens ao assalto da velha sociedade (...) Por ocasião do de base, menos doutrinados pela tática-plano e mais Congresso de Londres, em 1903, a revolução tinha para ligados ao chão das lutas sociais, que representaram a mim ainda muito de abstração teórica. O centralismo força fundamental para a reorientação partidária. É certo leninista não podia ainda brotar em meu cérebro de uma que, das páginas da História da Revolução Russa, Lênin concepção revolucionária clara e definida à qual tivesse chegado por minha conta (TROTSKI, s/d, p. 1745-175). sai gigantesco. Contra tudo e contra todos, a partir de O relato histórico da Revolução Russa por abril, ele teria reorientado o partido no rumo da ditadura Trotski, especialmente os capítulos Os bolcheviques e do proletariado e da revolução socialista. Entretanto, o Lênin e O rearmamento do Partido, deixam bastante fez com a base do partido, contra o seu aparelho e não abalado um dos postulados centrais da chamada o contrário. teoria leninista da organização, qual seja, o de que a Nada do que foi dito até aqui deve obscurecer medula política da concepção leninista da organização o fato de que, a partir de 1917, as concepções de corresponde a uma compreensão estratégica científica organização partidária às quais Trotski se mantêm fiel da natureza e da dinâmica da revolução social. Trotski até o fim de seus dias, e que orientaram a construção da observa que IV Internacional, são as concepções bolcheviques, da III Internacional. Cremos que se pode afirmar que, no núcleo 10 Cabe notar que, quando Que fazer? foi escrito, Lênin e Plekhanov eram aliados, contra as tendências economicistas, o alvo central da 11 É, aliás, bastante conhecido o fato de que os bolcheviques “des- crítica do texto. O artigo de Plekhanov, publicado três anos após cobriram” os sovietes depois que o movimento espontâneo de massas Que Fazer?, e depois do II Congresso, pode ser sintomático de uma os havia criado. Segundo Authier, havia, nos primeiros anos do sécu- tomada de consciência e revisão crítica das teses leninistas sob o lo, uma fratura entre o POSDR e o “movimento de massas organiza- impacto da crise posterior ao II Congresso do POSDR. das” (AUTHIER, 1976, p. 33).
  • 7. desta apreensão da concepção leninista por Trotski, está Sobre a impossibilidade de abordar o problema de uma idéia sobre a dinâmica da relação entre programa, organização de um ponto de vista formal, Trotski afirma: partido, vanguarda e massas. Cabe ao partido formular Tampouco penso que eu possa dar uma fórmula tal sobre um programa correto para a revolução socialista. o centralismo democrático que “de uma vez por todas” elimine mal-entendidos e falsas interpretações. Um Com base num regime flexivelmente construído, de partido é um organismo vivo. Desenvolve-se em luta acordo com a fórmula do centralismo democrático, contra obstáculos externos e contradições internas (...) O o partido deve nuclear solidamente uma vanguarda regime de um partido não cai pronto do céu, mas forma- operária que, por sua vez, seja capaz, na dinâmica dos se gradualmente na luta. A linha política predomina sobre acontecimentos, de orientar politicamente as massas o regime; em primeiro lugar é necessário definir problemas nos momentos decisivos da ação política. Depois de estratégicos e métodos táticos corretamente com o objetivo de resolvê-los (...) A fórmula para um centralismo 1917, Trotski não mais se afastou dessa concepção democrático deve encontrar inevitavelmente uma expressão central, assim formulada por ele: diferente nos partidos de diversos países e em diferentes É mister preparar a revolução mediante a incessante e estados de desenvolvimento de um mesmo partido. implacável luta de classes, no curso da qual a direção A democracia e o centralismo não se encontram em ganha a confiança inabalável do partido, une a vanguarda absoluto numa proporção invariável uma com relação com o conjunto da classe e converte o proletariado em ao outro. Tudo depende das circunstâncias concretas, da direção de todos os explorados da cidade e do campo situação política do país, da força e da experiência do (TROTSKI 1979a, p. 21). Partido, do nível geral de seus membros, da autoridade que Neste sentido, no processo de construção da a direção consiga adquirir (TROTSKI.1979b, p. 133). IV Internacional, Trotski foi sempre peremptoriamente Sobre a questão da democracia: contrário a qualquer unificação híbrida ou amorfa com O regime interno do partido bolchevique se caracterizava as correntes que então lhe eram próximas, preferindo pelo método do centralismo democrático (...) Liberdade cultivar um núcleo de revolucionários que tivesse clareza de crítica e confronto de idéias eram os poderosos fatores política e programática. Quando lançou, em 1935, a Carta de sustentação da democracia interna. A presente doutrina de que o bolchevismo não tolera facções é um mito da aberta pela criação da IV Internacional, o revolucionário decadência. Na realidade, a história do bolchevismo russo sublinhou: “As tarefas revolucionárias de nossa é uma história de conflitos de facções. E, de fato, como época condenam de antemão ao fracasso toda unificação poderia uma organização genuinamente revolucionária, híbrida e amorfa”. estabelecendo para si própria a tarefa de transformar o Três anos depois, em carta dirigida a um militante mundo e unindo sob sua bandeira os mais audaciosos belga que discordava do lançamento imediato da IV iconoclastas, lutadores e rebeldes, crescer e desenvolver- se sem conflitos intelectuais, sem agrupamentos e facções Internacional, Trotski ponderava: temporárias? O comando bolchevique sempre fez o possível Parece que para você o nome IV Internacional impediria para atenuar os conflitos e encurtar a duração do trabalho às organizações simpatizantes ou meio simpatizantes se fracionário, mas não pôde ir além disso. O Comitê Central aproximarem de nós. É completamente errôneo. Nós só apoiava-se neste agitado suporte democrático, de onde podemos atrair a outros com uma política clara e correta. extraiu a audácia de tomar decisões e dar ordens. A precisão Para isto, devemos ter uma organização e não uma mancha óbvia do comando em todos os estágios críticos é o que nebulosa (TROTSKI 1979c, p. 505). investiu da alta autoridade, o capital moral insubstituível Porém, ao mesmo tempo em que aderia à para o centralismo (TROTSKI, 1981, p. 145). concepção segundo a qual o núcleo partidário (ou seria Pode-se concluir, portanto, que toda teoria da aparelho partidário?) deveria educar a vanguarda e esta organização partidária, extraída de Lênin ou Trotski, educar as massas numa política clara e correta, Trotski que pretenda ir muito além da defesa do centralismo também afirmava que, na dinâmica das revoluções, as democrático e do nucleamento e formação política de massas sempre estavam à esquerda do mais revolucionário uma vanguarda de classe, estará forçando a nota. Mesmo dos partidos e a base do partido sempre estava à esquerda estes dois princípios só poderão contribuir para o avanço de sua direção. Creio que esta formulação paradoxal político da luta de classes se outras condições - sociais, é mais representativa das concepções de organização históricas e políticas – permitirem a organização de partidária de Lênin e Trotski do que as teorias e sistemas classe, o desenvolvimento de experiências políticas que se tentou construir depois. significativas, a manutenção de um agrupamento político Para terminar esta abordagem do conceito de vanguarda dinâmico, vivo, isento dos vícios do culto de organização política revolucionária em Trotski, à personalidade, das lutas fraticidas, de teoricismo, do gostaríamos de recorrer a algumas passagens de seus seguidismo, do sectarismo...a mera importação de um escritos que ressaltam dois aspectos um pouco esquecidos: modelo ou de uma suposta teoria não protege ninguém primeiro, sua abordagem historicamente concreta, mesmo desses perigos. daquele núcleo mais conceitual do sistema partidário: o centralismo democrático; e, segundo, a ênfase que ele confere ao aspecto da democracia, relacionada com o centralismo, no regime partidário. Vejamos.
  • 8. Referências ABOSCH, Heinz. Crónica de Trotski – Datos sobre su vida y su obra. Barcelona: Anagrama, 1974. AUTHIER, Denis. “Prefacio”. In: TROTSKI, Leon. Relatório da delegação siberiana. Coimbra: Centelha, 1976. BENSAÏD, Daniel; NAIR, Alain. A propósito del problema de organización: Lenin y Rosa Luxemburg. In: Teoria marxista del partido político/2. México: Pasado y Presente, 1980. CARLO, Antonio. A concepção do partido revolucionário em Lênin. São Paulo, Estudos CEBRAP, 15, 1976. DEUTSCHER, Isaac. Trotski – O profeta desarmado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos – o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LUXEMBBURGO, Rosa. Obras escolhidas. Tomo II. Bogotá, Pluma, 1979. MANDEL, Ernest. La teoria leninista de la organización. México: Ediciones Era, 1984. TROTSKI Leon. A revolução permanente na Rússia. Lisboa: Edições Antídoto, 1977. _________. Minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, s/d. _________. “Fuera las manos de Rosa Luxemburgo” In: LUXEMBURGO, Rosa. Obras escogidas. Vol II. Bogotá: Pluma, 1979. _________. Escritos. Tomo VII – Vol 1. Bogotá: Pluma, 1979a. _________. Escritos. Tomo IX – Vol 1. Bogotá: Pluma, 1979b. _________. Escritos. Tomo IX – Vol 2. Bogotá: Pluma, 1979c. _________. História da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Saga, 1967. _________. A Degeneração do Partido Bolchevista. In: MIRANDA, Orlando. Trotski. São Paulo: Ática, 1981 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 22).