Este documento apresenta um curso prático sobre liturgia cristã dividido em seis partes: 1) O que é culto?; 2) Por que fazer culto?; 3) Onde se faz culto?; 4) Quem participa do culto?; 5) Quando fazer culto?; 6) Como fazer culto? O autor discute os conceitos-chave da liturgia cristã e oferece orientações para a organização de cultos comunitários.
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 129 - Ao partir do pão
Em espírito e em verdade - curso prático de liturgia
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EM ESPÍRITO
E EM VERDADE
Curso prático de liturgia
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5. 2| S É R I E C R I S T I A N I S M O P R Á T I C O
EM ESPÍRITO
E EM VERDADE
Curso prático de liturgia
Luiz Carlos Ramos
EDITEO
São Bernardo do Campo, 2008
7. Sumário
Prefácio ................................................................... 7
Prólogo .................................................................. 11
Introdução ............................................................ 13
Liturgia e Culto ............................................................ 13
Liturgia e Teologia........................................................ 13
Modelos bíblicos e históricos de ordem para o culto ....... 16
As bases da liturgia cristã: o Pão e a Palavra ................. 24
I O que é culto? (A liturgia do serviço) ...............29
II Por que fazer culto? (A liturgia da graça) .......37
III Onde se faz culto? (A liturgia do espaço
sagrado)................................................................41
Lugares Sagrados........................................................ 42
Tabernáculo................................................................. 43
O Templo .................................................................... 45
Sinagogas ................................................................... 47
Casas (cenáculo) ......................................................... 48
Praça pública ............................................................... 50
Prisões ........................................................................ 52
Catacumbas ................................................................ 53
Basílicas e catedrais ..................................................... 54
A linguagem espacial e a teologia dos edifícios, mobílias
e utensílios religiosos................................................... 57
A Igreja: em espírito e em verdade............................... 62
IV Quem participa do culto? (A liturgia
do povo de Deus)..................................................65
8. 6|
O lugar da criança no culto cristão................................ 69
Culto para crianças ou culto com as crianças? ............... 72
O que as crianças podem e não podem fazer no culto?.. 74
Preparação da liturgia de um culto inclusivo.................. 78
Portanto...................................................................... 79
V Quando fazer culto? (A liturgia do tempo)....... 81
A celebração da História da Salvação............................ 82
O Calendário Litúrgico.................................................. 85
Ciclo do Natal ........................................................87
O Tempo Comum (após Epifania
e após Pentecostes) ...............................................91
Ciclo Pascal ...........................................................94
Esquema do Ano Litúrgico............................................ 99
VI Como fazer culto? (A liturgia da liberdade
e da criatividade)................................................ 103
Objetividade e subjetividade litúrgicas .........................104
A emoção na comunicação litúrgica........................105
A razão na comunicação litúrgica ...........................106
Emoção, sensação e razão e a saúde litúrgica .........109
Outras formas de comunicação-não-verbal na liturgia ......110
A natureza e o culto .............................................111
O corpo e o culto..................................................119
A cultura e o culto................................................131
A Equipe ou Ministério de Liturgia................................135
Epílogo ................................................................ 139
Referências......................................................... 141
Textos sobre culto e liturgia.........................................141
Textos sobre a comunicação por vias não-verbais ........143
9. Prefácio
A Série Cristianismo Prático (SCRIPT)
foi planejada para oferecer às lide-
ranças das igrejas locais, pastores e
pastoras, leigos e leigas, um instru-
mento de trabalho e aperfeiçoamento
da pastoral cristã. Como uma de-
monstração de nossa disposição, te-
mos a alegria de apresentar o traba-
lho do Rev. Luiz Carlos Ramos, Em
Espírito e em Verdade, um curso prá-
tico de liturgia.
A publicação deste livro torna-se
urgente, exatamente, porque cresce,
nas igrejas evangélicas, uma atitude
de desdém para com a palavra “litur-
gia”. Há poucos dias, ouvi a seguinte
frase, numa oração de um leigo: “Re-
10. 8|
preenda, Senhor, o espírito de litur-
gia”. Indagado pelo pastor sobre o
seu conceito de liturgia, ele respon-
deu: “é aquele papelzinho que orga-
niza o culto”.
O livro Em Espírito e em Verdade
tem a intenção de esclarecer o signi-
ficado de liturgia para a Igreja Cristã.
Mais do que enfatizar a liturgia como
uma ordem para a celebração cúlti-
ca, o autor deixa claro que ela vai
além. Para ele, liturgia deve ser com-
preendida como uma vida de serviço
à Causa Divina. Isso faz da liturgia
um conjunto harmonioso de pala-
vras, gestos e expressões que orien-
tam e desafiam a comunidade cele-
brante a aperfeiçoar o seu testemu-
nho cristão.
Assim, pedagogicamente, a liturgia
deixa de ser mera questão formal,
para exercer um verdadeiro papel pro-
fético, desafiando a cada celebrante a
transformar os passos litúrgicos, con-
11. | 9
tidos numa folha de papel, em práti-
cas do seu dia-a-dia.
O autor desenvolve este tema com
profundidade e leveza. Partindo das
bases bíblicas, mostra a liturgia como
um instrumento necessário ao teste-
munho cristão. Além disso, ele deseja
mostrar que a liturgia é um dos ele-
mentos que sinalizam a dimensão
ecumênica da Igreja Cristã, em todas
as épocas. Na diversidade das igrejas,
a liturgia se faz presente na especifi-
cidade de cada tradição cristã.
Portanto, a Faculdade de Teologia
da Igreja Metodista pretende, com
esta publicação, incentivar as igrejas
locais a redescobrirem a importância
da liturgia, para o culto, e a dialoga-
rem com as tradições cristãs. A preo-
cupação do Rev. Luiz Carlos é com a
prática do culto nas igrejas.
Como editor da Série Cristianismo
Prático, espero que este curso prático
de liturgia ajude o povo cristão na bus-
ca de uma autêntica celebração de sua
12. 10|
fé. Que os cultos sejam mais comunitá-
rios e participativos, e que o povo cren-
te seja mais consciente e comprometido
com a Palavra de Deus.
Tércio Machado Siqueira
13. Prólogo
O material desta obra é o resulta-
do da experiência do autor como pas-
tor e como liturgista. É fruto dos
cursos ministrados nas comunidades
pelo Brasil afora e das aulas de Li-
turgia da Faculdade de Teologia da
Igreja Metodista; e também da expe-
rimentação de uma espiritualidade
encarnada, vivenciada nas celebra-
ções da Igreja local, regional e nacio-
nalmente, bem como em tantos en-
contros ecumênicos, e, particular-
mente, nos cultos da FaTeo.
Luiz Carlos Ramos
15. Introdução
Liturgia e Culto
NTES DE APRESENTARMOS
uma definição de liturgia, é
importante fazer uma pe-
quena distinção entre Liturgia e Cul-
to: segundo Nelson Kirst (ver referên-
cias bibliográficas no final da publi-
cação) Culto é o encontro celebrativo
entre Deus e o seu povo, e a Liturgia
é o que acontece nesse encontro.
Liturgia e Teologia
Convencionalmente, a Teologia se
estrutura em três grandes áreas, a
saber: (1) Bíblia, que se ocupa da in-
A
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14|
vestigação das fontes da fé cristã; (2)
Teologia Sistemática e História, que
estuda a maneira como a fé foi inter-
pretada e reinterpretada em diferen-
tes épocas e lugares; (3) e Pastoral,
que se ocupa da práxis da fé, isto é,
da reflexão e da prática aplicada à
realidade das pessoas e das comuni-
dades de fé no contexto da missão da
Igreja a toda a humanidade.
Didaticamente, a Liturgia inscre-
ve-se no escopo da Teologia Pastoral,
que, por sua vez, se subdivide em di-
ferentes áreas, sendo as principais
estabelecidas a partir da narrativa
bíblica do livro dos Atos dos Apóstolos
(especialmente, 2.42-47): doutrina
(didaskalia) – comunhão (koinonia) –
partilha do pão (diakonia) – ora-
ção/louvor (liturgia). A Liturgia é, por-
tanto, um capítulo da Teologia Pasto-
ral, ao lado da Educação Cristã, do
Aconselhamento ou Poimênica, da
Diaconia ou Ministérios. Entretanto,
essas divisões têm caráter meramente
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| 15
didático, pois, na prática, todas as
áreas da Teologia estão imbricadas,
interligadas e se interdependem.
Na academia, o uso científico do
termo liturgia aplica-se à disciplina
teológica que trata da ritualidade ce-
rimonial e rubrical que regulam o e-
xercício externo do culto.
Considera-se a liturgia como teolo-
gia primeira (theologia prima) e a re-
flexão dogmática como Teologia se-
gunda (theologia secunda). É igual-
mente considerada ápice e fonte (cul-
men et fons) da ação da igreja (actio
ecclesiae). Neste sentido, como ensina
Casiano Floristán, a liturgia é “lugar
primário no qual se realiza a autênti-
ca fé, ao mesmo tempo em que é fonte
e norma primeira da doutrina”. A li-
turgia é uma das três grandes ações
da Igreja, sendo precedida pela evan-
gelização e seguida pela atividade ca-
ritativa, testemunhal ou apostólica.
Assim sendo, não se pode fazer Li-
turgia sem se recorrer à fonte da nos-
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16|
sa fé, a Bíblia; nem à interpretação e
atualização dessa fé, a Teologia Sis-
temática e a História; e, muito menos,
sem recorrer-se à aplicação dessa fé à
vida com vistas à transformação da
realidade à luz dos princípios do Rei-
no de Deus, que é a tarefa específica
da Teologia Pastoral.
Por essa razão, trataremos dos
temas da Liturgia, sempre relacio-
nando-os à Bíblia, à sistematização
histórica e à práxis pastoral.
Comecemos, portanto, pela busca
de alguns modelos bíblicos de ordem
para o culto.
Modelos bíblicos e históricos
de ordem para o culto
Na Bíblia Hebraica há muitas in-
dicações, umas mais, outras menos
explícitas, de diferentes práticas li-
túrgicas. Um bom exemplo é a narra-
tiva de Neemias 8.1-12. Note-se a
estrutura sugerida pela narrativa:
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Reunião – leitura bíblica – adoração –
edificação (explicação da leitura) –
refeição comunitária/serviço aos ne-
cessitados.
No mesmo livro podemos encon-
trar variações dessa estrutura, veja-
se, por exemplo, Neemias 9: Confis-
são individual – leitura bíblica – ado-
ração e louvor – confissão comunitá-
ria – dedicação (renovação da alian-
ça).
Um dos modelos mais significati-
vos é o encontrado em Isaías 6.1-8. A
estrutura oferecida por esta passagem
forneceu a base para a liturgia de vá-
rias igrejas reformadas e, particular-
mente, a Igreja Metodista, aqui no
Brasil: adoração – confissão (indivi-
dual e comunitária) – edificação – de-
dicação.
No Novo Testamento, várias são as
referências. Detenhamo-nos em al-
gumas das que mais inspiraram a
prática litúrgica histórica.
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18|
Lucas 24. O capítulo 24 do Evan-
gelho de Lucas repete sistematica-
mente uma mesma estrutura: encon-
tro – Serviço da Palavra – Serviço da
Mesa – Envio. Veja Lucas 24.13-35;
36-43; 44-49.
O mesmo texto de Atos 2.42-47,
mencionado acima, também nos ofe-
rece uma referência sobre a prática
celebrativa dos primeiros cristãos:
instrução – comunhão – partilha –
oração e louvor.
Apocalipse 8. Uma outra proposta
litúrgica, bem diferente, encontramos
no relato de um culto escatológico,
narrado no capítulo 8 e seguintes do
livro do Apocalipse: silêncio contem-
plativo – súplicas (incensário) – pro-
clamação (trombetas) – edificação
(10.8-10) – Envio (10.11; 11.1ss).
Um dos registros mais antigos, a
que temos acesso, sobre o culto nos
primeiros séculos, encontra-se na
Didachè, que era uma espécie de ma-
nual dos primeiros cristãos, datado,
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| 19
provavelmente, do final do primeiro
século. Veja-se, a título de ilustração,
a seguinte oração eucarística extraída
da Didachè:
No que se refere à eucaristia,
dai graças assim:
Primeiramente, sobre o cálice:
Nós te damos graças, ó Pai nosso,
pela santa vinha de Davi, teu servo;
tu no-la fizeste conhecer
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Depois, sobre o pão partido:
Nós te damos graças, ó Pai nosso,
pela vida e pelo conhecimento
que nos concedeste
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Como esse pão partido,
antes disseminado
sobre as montanhas,
foi reunido para ser apenas um,
reúne do mesmo modo tua igreja das
extremidades terra em teu Reino.
Sim, a ti são a glória e o poder
por Jesus Cristo, pelos séculos!
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Depois de terdes comido o pão,
agradecei assim:
Nós te damos graças, ó Pai santo,
por teu santo nome,
que abrigaste em nosso coração,
pelo conhecimento, pela fé
e pela imortalidade
que nos concedeste
por Jesus, teu filho.
Glória a ti pelos séculos!
Tu, Senhor todo-poderoso, criaste o
universo para louvor de teu nome e
deste aos homens a comida e a bebida
para [seu] regozijo,
a fim de que eles te dêem graças;
mas a nós, tu nos deste um alimento
e uma bebida espirituais
e a vida eterna por teu filho.
Antes de tudo nós te damos graças
porque és poderoso;
Glória a ti pelos séculos!
Lembra-te, Senhor,
de livrar tua igreja de todo mal
e de completá-la em teu amor.
Reúne, dos quatro ventos a Igreja,
que santificaste,
no Reino que preparaste para ela.
Porque a ti pertencem o poder
e a glória pelos séculos!
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Venha a tua graça
e passe este mundo!
Hosana ao Deus de Davi!
Quem é santo venha;
quem não é faça penitência.
Marana tha! Amém.
Síntese: Adoração (orações a Deus,
o Pai) – Eucaristia (proclamação do
evangelho e memorial de Jesus, o Fi-
lho) – Diakonia (Espírito Santo motiva
o serviço/coleta em favor dos necessi-
tados).
Outro importante documento é o
relato de Justino Mártir (Primeira
Apologia), de meados do segundo sé-
culo da era cristã. Assim Justino des-
creve a celebração do domingo:
Depois disso, continuamos a recor-
dação dessas coisas. Aqueles que têm
posses prestam ajuda a todos os que
têm necessidade, e nós nos damos
assistência mutua. Em todas as nos-
sas oferendas bendizemos o Criador
do universo por seu filho Jesus Cristo
e pelo Espírito Santo. No dia chamado
do sol, todos, habitem nas cidades ou
nos campos, se reúnem num mesmo
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22|
lugar. São lidas as memórias dos a-
póstolos e os escritos dos profetas en-
quanto o tempo o permite. Terminada
a leitura, aquele que preside toma a
palavra para advertir e exortar à imi-
tação desses belos ensinamentos. Em
seguida, todos nós nos levantamos e
oramos em voz alta. Depois, como já
dissemos, terminada a oração, são
trazidos pão, vinho e água. Aquele
que preside, à medida que suas forças
o permitem, faz subir ao céu orações e
ações de graça, e todo o povo respon-
de com a aclamação amém.
Segue-se a distribuição dos alimentos
consagrados a cada um, e a parte dos
ausentes lhes é enviada pelo ministé-
rio dos diáconos. Aqueles que têm
bens em abundância e querem fazer
doações doam livremente o que que-
rem. O que é recolhido é entregue ao
presidente, que dá assistência aos ór-
fãos, ás viúvas, aos doentes, aos indi-
gentes, aos presos, aos hóspedes es-
trangeiros, numa palavra, a todos os
que estão passando necessidade.
Nós nos reunimos no dia de Sol por-
que é o primeiro dia, aquele em que
Deus, tirando a matéria das trevas,
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criou o mundo, porque nesse mesmo
dia o nosso salvador Jesus Cristo res-
suscitou dos mortos. Na vigília do dia
de Saturno ele foi crucificado e, no dia
seguinte a este, isto é, no dia do Sol,
ele apareceu aos seus apóstolos e aos
seus discípulos e lhes ensinou essa
doutrina que nós acabamos de sub-
meter ao vosso exame.
A liturgia começava com leituras
das Escrituras e relatos dos testemu-
nhos dos apóstolos (seguidores de
Jesus) – exortações para a imitação
dos atos de Jesus, conforme teste-
munhados – orações pelo mundo e
pela igreja, particularmente pelos en-
fermos, ou que estavam à morte, e
pelos que haviam sido presos por pro-
fessarem a Cristo, denunciados por
não cristãos – beijo da Paz – ofertório
dos elementos eucarísticos – oração
eucarística – distribuição dos elemen-
tos eucarísticos aos presentes e envio
aos ausentes – coleta em favor dos
necessitados (alimentos, roupas ou
dinheiro) – despedida com oração pa-
26. L U I Z C A R L O S R A M O S
24|
ra que todos permaneçam fiéis e a
salvo até reunirem-se novamente no
próximo domingo.
As bases da liturgia cristã:
o Pão e a Palavra
Sabe-se que os primeiros cristãos
mantinham seu costume, como ju-
deus, de freqüentar a sinagoga, aos
sábados, para ouvir a leitura da Lei,
dos Escritos e dos Profetas; e que, no
domingo, se reuniam nas casas para
o “partir do pão” e celebrar a memória
de Jesus. Celebravam, assim, a Pala-
vra, no sábado, e a Ceia, no domingo.
Porém, à medida que os cristãos fo-
ram sendo expulsos das sinagogas,
passaram a concentrar no domingo a
celebração da Palavra e da Mesa.
Num primeiro momento, como sa-
lienta Nelson Kirst em Nossa Liturgia:
das origens até hoje, o sacramento
eucarístico era feito no contexto de
uma refeição normal e tinha a seguin-
te estrutura: O celebrante partia o
pão e fazia uma oração de ação de
27. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 25
graças, depois todos comiam a refei-
ção comunal e, ao final, o celebrante
voltava a chamar a atenção de todos
para a partilha do vinho que era pre-
cedida de outra oração de ação de
graças. A estrutura era, portanto: pão
– refeição – vinho. Mais tarde, por
razões várias, passou-se a realizar a
refeição em primeiro lugar, juntando
a celebração do pão e do vinho no
final da cerimônia: refeição – pão e
vinho. Mais adiante, ainda, separou-
se completamente a refeição do me-
morial do pão e do vinho.
O culto cristão integra em uma
única celebração a leitura e a explica-
ção das Escrituras, próprias da litur-
gia da Sinagoga judaica, e o memorial
eucarístico, do Cenáculo.
As primeiras pessoas a professar a
fé cristã eram, principalmente, judias,
e assim continuaram até que foram
expulsas da Sinagoga. Até então, re-
uniam-se no sábado (Shabah), na Si-
nagoga para a liturgia da Palavra, e
tornavam a reunir-se no domingo (Dia
28. L U I Z C A R L O S R A M O S
26|
do Senhor) para a Liturgia do Cenácu-
lo.
Quando as Sinagogas fecharam
suas portas aos cristãos, estes passa-
ram a concentrar a liturgia da Pala-
vra, e a do Cenáculo, numa única
celebração, desta vez no Dia do Se-
nhor (Kyriake hemera).
Dos relatos bíblicos e históricos,
mencionados até aqui, podemos esta-
belecer um padrão que dá o funda-
mento da liturgia cristã: a Celebração
da Palavra e a Celebração da Mesa.
Quase todos os relatos têm em co-
mum o fato de terem dois focos dis-
tintos e complementares: a leitura e
explicação da Palavra, de um lado, e a
prática sacramental do memorial ins-
tituído por Jesus, a eucaristia, ou
Santa Ceia, ou ainda a Ceia do Se-
nhor, de outro. Pão e Palavra são,
portanto, os pilares da liturgia.
Na organização do espaço celebra-
tivo, esses “pilares” ficam evidentes
pela disposição, no altar: da mesa da
comunhão e do púlpito, lugares res-
pectivos da comunhão e da proclama-
29. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 27
ção; do sacramento e do Evangelho;
da partilha e do anúncio; da fé e da
prática; dos atos de piedade e das
obras de misericórdia; enfim, do Pão e
da Palavra.
31. 29|
I
O que é culto?
(A liturgia do serviço)
TERMO LITURGIA TEM origem no
grego clássico leitourgia (leitos
[adjetivo de laós] = povo + ergon
= trabalho, esforço), que originalmente
designava toda obra, ação ou iniciativa
assumida livremente por um indivíduo
em favor do povo ou do bairro ou da
cidade ou do Estado. Aos poucos o ter-
mo passou a designar qualquer traba-
lho que importasse em “serviço”, mais
ou menos obrigatório, prestado ao Es-
tado, ou a um indivíduo, ou mesmo à
divindade (“serviço religioso”).
O
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30|
Na Bíblia Hebraica, ou Antigo Tes-
tamento, um dos termos mais signifi-
cativos, relativos ao culto, é hawa,
que pode ser traduzido por “prostrar-
se” e “adorar”. A palavra é empregada
170 vezes em todo o AT e traz a idéia
de submissão e auto-humilhação,
cujo sentido sugere um curvar-se até
a testa encostar o chão.
Derivam de hawa outros termos
que nos ajudam a entender melhor a
força e a idéia da raiz desse termo:
abad, traduzido por “escravo”, servo
(equivalente ao grego doulos); abida,
traduzido por “serviço”, “ritual”, “ado-
ração”; ‘abodah, traduzido por “traba-
lho” e ‘abad, “servir”, “cultivar o cam-
po” (vd. Êx 12.21-28; Dt 10.8; 2Cr
8.14).
Em Esdras 6, por exemplo, esses
termos são empregados na narrativa
que descreve o serviço realizado por
ocasião da construção ou reconstru-
ção de Jerusalém.
33. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 31
A tradução grega do Antigo Testa-
mento, a Septuaginta (LXX), emprega
o termo liturgia sempre, sem exceção,
para designar o “serviço religioso”
prestado pelos levitas a Yaweh (ocorre
mais de 150 vezes).
No Novo Testamento, o verbo lei-
tourgeo, o adjetivo leitourgikos e os
substantivos leitourgia e leitourgos
ocorrem 15 vezes e, em geral, são tra-
duzidos como “serviço”, “ministério”,
“socorro/auxílio” e seus correspon-
dentes. Em Atos 13.2 o termo tem,
especificamente, o sentido de “culto”
(ver também: Hb 1.7,14, 8.2,6, 10.11;
Fp 2.17).
Nos escritos extrabíblicos, como
na Didachè e textos de Clemente, o
termo aparece claramente relacionado
com a celebração eucarística.
Ao longo da história da Igreja, o
termo grego foi preservado na igreja
oriental, mas substituído por seus
equivalentes latinos (officium, ministe-
rium, múnus...) na igreja latina.
34. L U I Z C A R L O S R A M O S
32|
Atualmente, a palavra liturgia se
aplica a todo o conjunto dos atos ri-
tuais e da Igreja pelos quais prosse-
gue no mundo no exercício do sacer-
dócio de Jesus Cristo, destinado a
santificar os seres humanos e glorifi-
car a Deus.
No Novo Testamento, outros ter-
mos são utilizados com o mesmo sen-
tido de leitourgia (At 13.2; Hb 1.7,14,
8.2,6, 10.11; Fp 2.17), entre eles:
Proskyneo (equivalente ao he-
braico hawa), geralmente tra-
duzido por “adorar/adoração/
adorador”, (Mt 2.2,8, 11; 4.9,
10; Jo 4.20-23; Ap 3.9). Signi-
fica, literalmente, “curvar-se”,
“prostrar-se”;
Sebomai, traduzido por “te-
mor”, “piedade” (Mt 15.9; At
13.43,50, 16.14, 17.4,17, 18.
7,13, 19.27). É a característica
dos homens e mulheres cuja
piedade se tornava notória pela
35. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 33
prática da oração, do jejum e
das esmolas dadas aos pobres;
E Latreia, traduzido como “cul-
to”, “serviço sagrado” (Rm 9.4,
12.1; Hb 9.1,6,9,14; Mt 4.10;
At. 7.7; Ap 7.15, 22.3). A la-
treia é a tarefa do latris, o mais
humilde dos serviçais do perío-
do bíblico. Há vários tipos de
escravos que são mencionados
na Bíblia: o doulos, que cuida-
va dos serviços externos (trata-
va dos animais, lavrava a ter-
ra...); o diakonos, que cuidava
dos serviços domésticos (servia
as mesas, limpava a casa...); e
o latris, que era quem fazia o
trabalho mais degradante (lim-
pava a latrina). O latris não é
mencionado nas páginas do
NT, mas o seu serviço sim, nos
textos indicados acima. Da
mesma raiz, temos as expres-
sões em português “latrina” e
“idolatria”.
36. L U I Z C A R L O S R A M O S
34|
Todos esses termos têm a conota-
ção de humildade e serviço.
Portanto, liturgia é o serviço comuni-
tário celebrado pelo povo de Deus por
meio da adoração à Trindade e da soli-
dariedade aos da família da fé, bem co-
mo a toda a comunidade humana.
Talvez por essa origem etimológica
dos termos, para muitos, participar
do culto assumiu um caráter de de-
ver, de obrigação, de trabalho (até
hoje, um termo muito comum na lín-
gua inglesa para designar o culto é
service, “serviço”).
Por essa razão, é preciso, aqui,
evocar a grande ação da graça de
Deus, que toma a iniciativa de vir até
nós, no culto, como veio ao encontro
da humanidade na pessoa de Jesus
Cristo, e estabelece conosco uma no-
va aliança, pela qual já não somos
chamados servos, mas amigos:
Já não vos chamo servos, porque o ser-
vo não sabe o que faz o seu senhor;
mas tenho-vos chamado amigos, por-
37. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 35
que tudo quanto ouvi de meu Pai vos
tenho dado a conhecer. (Jo 15.15)
Assim sendo, o culto é o encontro
maravilhoso do Eterno com o efêmero,
do Infinito com o finito, do Santíssimo
com o pecador redimido.
A dimensão do serviço prestado
com muita humildade permanece,
mas não por dever, mas por amor.
Dizendo de outra forma, a liturgia
é um diálogo interativo e afetivo en-
tre Deus e os seres humanos e des-
tes entre si, no contexto celebrativo
da fé, na forma de um serviço co-
munal — comunitário e comunica-
cional — porque é prestado por to-
dos e para todos.
39. II
Por que fazer culto?
(A liturgia da graça)
OR QUE ALGUÉM VAI AO CULTO? A
resposta a esta pergunta pode
ser reveladora da teologia do
culto.
Há, historicamente, três posturas
clássicas a esse respeito: a primeira,
típica da Igreja Medieval, que diz que
devemos ir ao culto para sermos a-
graciados por Deus: ênfase na mística
sacramental.
Uma segunda, muito difundida
entre os anabatistas, diz que devemos
ir ao culto para sermos alimentados
P
40. L U I Z C A R L O S R A M O S
38|
pela Palavra de Deus: ênfase na ra-
cionalidade dogmática.
Finalmente, a posição de reforma-
dores, como Calvino e Lutero, que
entenderam que a liturgia não deve
ser considerada mero meio para se
obter graça ou favor divinos, nem co-
mo ocasião para que o povo de Deus
seja alimentado por sua Palavra, uma
vez essas seriam práticas antropocên-
tricas — porque têm como último be-
neficiário o ser humano.
Em contrapartida, os reformadores
entenderam que a liturgia deve ser
teocêntrica, de modo que Deus seja o
sujeito, o centro, o foco do culto. As-
sim, o fiel deve buscar em primeiro
lugar o Reino de Deus e sua justiça —
isso também no culto. Assim, a graça,
a instrução bem como as demais coi-
sas, serão acrescentados aos fiéis
como decorrência natural. Aqui estão
sendo levadas em consideração as
duas grandes doutrinas da Reforma
Protestante: a Teologia da Graça (es-
41. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 39
pecialmente, Lutero) e a da Soberania
de Deus (especialmente, Calvino).
Na prática, constata-se que há um
caminho de mão dupla: de um lado,
Deus vem ao encontro da comunidade
(e é sempre ele quem toma a iniciati-
va), e, por outro lado, a comunidade
vai ao encontro de Deus, como res-
posta em ação de graças à grande
ação da graça de Deus. O culto se
constitui, assim, em ponto de encon-
tro celebrativo entre Deus e a comu-
nidade e desta consigo mesma (cf. Tg
4.8).
No entanto, não se deve perder o
referencial de que Deus é o centro do
culto, é ele que “está sentado no alto
e sublime trono” (cf. Is 61).
A pergunta “por que fazer cultos?”
será melhor respondida e mais deta-
lhadamente explicada ao longo dos
próximos capítulos, à medida que a-
bordarmos outros aspectos essenciais
da liturgia.
43. III
Onde se faz culto?
(A liturgia do espaço sagrado)
UANTO AO ESPAÇO LITÚRGICO,
desde muito cedo na experiên-
cia do povo de Deus, conforme
registrada nas Escrituras, houve a
preocupação de delimitações e esta-
belecimento de áreas nas quais a ma-
nifestação do Sagrado é experimenta-
da de maneira especialmente enfática.
A relação do povo de Deus com
tais lugares acompanhou o amadure-
cimento da sua fé e espiritualidade,
bem como as contingências sócio-
político-geográficas próprias de cada
período de sua história.
Q
44. L U I Z C A R L O S R A M O S
42|
Lugares Sagrados
Primeiramente, na fase em que o
povo de Deus dava seus primeiros
passos na construção de sua identi-
dade religiosa (fé e teologia), sua ex-
periência com as manifestações de
Yaweh (as teofanias) eram eventuais
e esporádicas. Assim, as primeiras
referências são os chamados Lugares
Sagrados, tais como aconteceu com:
Noé, após o Dilúvio (Gn 8.20); Abraão,
nos Carvalhais de Manre (Gn 13.18);
Moisés, no Monte Horebe (Êx 3.5);
Josué, no Monte Ebal (Js 8.30); Davi,
na Eira de Ornã (1Cr 21.26); Esdras e
Neemias, na reconstrução do Templo
(Ed 3.2); mesmo Jesus, no Monte da
Transfiguração (Mc 9.2ss); e Paulo, no
lugar de oração às margens de um rio
(At 16.13 ).
Nas primeiras experiências, o lu-
gar em si passa a ser considerado
sagrado, porque ali algo especial da
parte de Deus aconteceu.
45. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 43
Na medida em que a identidade re-
ligiosa do povo de Deus vai se estabe-
lecendo com mais clareza, começou-
se a construir ou utilizar-se de locais
conforme as circunstâncias do seu
cotidiano.
Tabernáculo
Quando nômades, habitantes de
tendas, e peregrinos do deserto, cons-
truíram o Tabernáculo (Êx 30-40, ver
também cap. 25 [especialmente v. 8 a
27]).
O Tabernáculo deveria ficar no
centro do acampamento israelita, com
a entrada do Santo Lugar voltada pa-
ra o Oriente e a do compartimento
interno, o Santo dos Santos, voltado
para o Ocidente.
Tratava-se de uma estrutura sim-
ples: uma cerca de lona com um pá-
tio, e um espaço reservado menor (o
Santo) para os sacrifícios diários, ofe-
recidos pelos sacerdotes, e um ainda
46. L U I Z C A R L O S R A M O S
44|
mais reservado (o Santo dos Santos)
onde o Sumo-Sacerdote oferecia o
sacrifício anual.
O Tabernáculo abrigava a Arca da
Aliança (cf. Êx 25.1-22), o Menorah
ou castiçal de sete braços (cf. Êx
25.31-39), o Altar de Bronze para os
holocaustos (cf. Êx 27.1-8) e o Altar
de Ouro para o incenso (Êx 30.1-10).
Quando o povo levantava acam-
pamento e partia para outras para-
gens, o Tabernáculo era desmontado
e carregado pelos levitas que torna-
vam a montá-lo no novo lugar de des-
tino.
Diferentemente do que se passava
nos Lugares Sagrados, com o Taber-
náculo, Yaweh passa a habitar em
uma tenda muito parecida com a casa
do povo que o adorava, acompanhan-
do-o em sua peregrinação, sempre
que este se mudava.
Durante a conquista de Canaã, o
Tabernáculo permaneceu em Gilgal,
depois em Silo, e depois em Quiriate-
47. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 45
Jearim, até Davi. No tempo de Saul,
ficou em Nobe (1Sm 21.1). Salomão o
trouxe para Jerusalém.
Segundo o Evangelho de João, Je-
sus “tabernaculou” com os seres hu-
manos (cf. 1.14).
O Templo
Quando sedentários, já estabeleci-
dos na Terra Prometida, e passam a
habitar em casas de madeira e alve-
naria, devidamente decoradas e “a-
paineladas” (cf. Ag 1.4), os adoradores
de Yaweh decidem construir o Templo
(cf. 1Rs 5.5; 6).
O modelo para o Templo é o que
há de melhor em termos de edifica-
ções humanas da época.
O Templo passa a ser o lugar de
referência ao redor do qual gira a vida
do povo de Deus. Em Jerusalém, on-
de é edificado, está o centro do poder
político, econômico e religioso.
48. L U I Z C A R L O S R A M O S
46|
E é o Templo que dá legitimidade a
todo o resto. Para isso, peregrinações
anuais eram promovidas, de modo
que todos tinham o compromisso de
comparecer ao Templo periodicamen-
te para oferecer sacrifício, pagar taxas
e impostos e apresentar seus filhos e
iniciá-los na fé de Yaweh.
O Templo de Jerusalém, edificado
por Salomão, foi destruído pelos Babi-
lônios, cerca de 600 anos antes de
Cristo. Em duas ocasiões, foi reedifica-
do (por Neemias, em 520-516 a.C., e
por Herodes, entre 19 a.C. e 64 d.C.).
Depois de quatro anos de rebelião ar-
mada, pela qual os hebreus pretendi-
am inutilmente expulsar os funcioná-
rios de César da terra prometida, no
ano 70, o general romano Tito, obede-
cendo às ordens do seu pai, Vespasia-
no, foi enviado à Palestina para resta-
belecer a ordem imperial. Lá chegando,
assaltou Jerusalém e incendiou e arra-
sou o Templo, não sem antes promo-
ver-lhe o saque completo.
49. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 47
Atualmente, no lugar do Templo,
em Jerusalém, está construída uma
Mesquita Islâmica (a Mesquita da
Cúpula Dourada). Ainda hoje há fac-
ções judaicas que sonham com a re-
construção o Templo de Salomão.
Sinagogas
Quando, na diáspora, o povo de
Deus se viu disperso por “todo o can-
to”, e longe do Templo. Como fazer
para preservar as tradições religio-
sas? Como transmiti-las às novas ge-
rações? Como celebrar a fé? Onde ler
as Escrituras? Onde reunir-se para
as orações?
Tais necessidades motivaram a
constituição das sinagogas (do gr.
syn+ago = “reunir-se”, “ir para junto”).
Estas eram edificações inspiradas no
Templo, em proporções reduzidas, nas
quais o povo passou a se reunir para
exercitar a espiritualidade e alimentar
50. L U I Z C A R L O S R A M O S
48|
a fé. A Sinagoga fazia as vezes do
Templo, a exceção dos sacrifícios.
Jesus, como judeu que era, fre-
qüentava assiduamente as sinagogas
(ver Lc 4.16-37). Também os apósto-
los e os primeiros cristãos reuniam-se
nas sinagogas para a leitura e expli-
cação das Escrituras e para a oração
(ver At 17.1-2 e 10).
Casas (cenáculo)
Além das sinagogas, os primeiros
cristãos se reuniam nas casas das pes-
soas do povo que abriam suas portas
para acolher a comunidade cristã.
Esse costume foi certamente inspi-
rado e incentivado pelo próprio Jesus,
que tinha essa prática de freqüentar as
casas de seus amigos e ali constituir
um lugar de oração, comunhão, e ins-
trução (cf. Lc 4.38; 6.29; 10.38ss).
A instituição do sacramento da Ceia
Eucarística se deu na casa de uma
pessoa anônima que, hospitaleiramen-
51. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 49
te, cedeu o Cenáculo (um aposento des-
tinado às refeições familiares), para que
Jesus, seus seguidores e seguidoras,
bem como, naturalmente, os integran-
tes da família hospedeira, partilhassem
aquela refeição comunal.
Num primeiro momento, na histó-
ria da Igreja Cristã, a prática normal
era, nos sábados, a comunidade reu-
nir-se na Sinagoga, para a Liturgia da
Palavra e, nos domingos, no Cenácu-
lo, para a Liturgia da Mesa.
Aos poucos, à medida que a identi-
dade entre a religiosidade judaica ofici-
al e o cristianismo nascente foi se dis-
tinguindo e distanciando, houve uma
ruptura entre a Sinagoga e o Cenáculo.
Muitos seguidores de Jesus foram,
literalmente, expulsos, excomunga-
dos, da Sinagoga (ver Jo 9.34-35).
Excluída, a comunidade cristã passou
a concentrar nas Casas/Cenáculo
tanto a Liturgia da Palavra quanto a
da Mesa.
52. L U I Z C A R L O S R A M O S
50|
Enquanto gozavam de certa liber-
dade, a comunidade cristã se reunia
nas Casas sem maiores problemas.
Muitas casas abrigavam Igrejas (ver,
por exemplo, Rm 16.5; Fm 1-3). Estas
passaram a ser conhecidas como Ca-
sas-igrejas (em gr. oikos-ekklesia; em
latim, domus ecclesie): a comunidade
de fé que se reúne em salas de casas
particulares.
Estima-se que, no final do terceiro
século, havia mais de 40 Casas-
igrejas somente em Roma.
Para os cristãos, não mais o templo
é o lugar da habitação da divindade,
mas a própria comunidade dos fiéis é
entendida como o lugar espiritual on-
de Deus, em Cristo, se faz presente,
onde quer que esta esteja reunida.
Praça pública
Grande parte do ministério de Je-
sus — a partir do seu batismo por João
Batista e depois do seu primeiro mila-
53. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 51
gre, em Caná da Galiléia (cf. Jo 1 e 2)
— se deu em espaços públicos: nas
praias, à beira dos lagos (cf. Mt 5 e pa-
ralelos); nas planícies e nas colinas (cf.
Lc 6.17ss e Mt 5); pelas estradas, nos
caminhos e à margem dos caminhos
(cf. Mc 10.17,46; Lc 24.13ss); em jar-
dins e hortos (cf. Lc 22.39 e par.); nas
ruas das cidades (cf. Lc 19); no pátio e
nos espaços comuns do Templo (cf. Lc
19.41-17); etc.
Também os apóstolos, impulsiona-
dos pelo Espírito Santo, ganharam as
ruas para falar das maravilhas de Deus
(cf. At 2); ocuparam os espaços públi-
cos de debate, tais como as praças e o
Areópago (cf. At 17.16ss, especialmente
os vs. 17b e 19); evangelizaram nas
estradas (cf. At 8.26ss); em tombadi-
lhos de navios (cf. At 27); nas margens
de rios (cf. At 16.13-15); etc.
54. L U I Z C A R L O S R A M O S
52|
Prisões
Não tardou para que fossem lan-
çados em prisões aqueles e aquelas
que anunciavam o Evangelho de Je-
sus Cristo com tanta ousadia (ver At
5.18; 12.7). Particularmente em Atos
16.25, encontramos Paulo e Silas
cantando louvores a Deus na prisão.
Em Romanos 16.17, entre outras
passagens bíblicas, Paulo menciona
nominalmente os seus “companheiros
de prisão”. Mesmo preso, Paulo conti-
nuou a sua missão apostólica como
pregador do Evangelho, gerando mui-
tos “filhos na fé”, mesmo “na prisão”,
como podemos constatar por sua Epís-
tola a Filemon (esp. o v. 10).
Também João, prisioneiro na Ilha
de Pátmos, exerceu seu ministério
pastoral, redigindo suas cartas às Igre-
jas da Ásia Menor e registrando suas
visões e textos litúrgicos de louvor e
glorificação ao Senhor Deus Eterno (cf.
Ap 1.4 e 2.1ss).
55. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 53
Catacumbas
Quando a perseguição às pessoas
que professavam sua fé em Cristo ga-
nhou proporções mais violentas, atin-
gindo níveis de crueldade inimaginá-
veis, as comunidades cristãs precisa-
ram de lugares mais seguros e discre-
tos onde pudessem reunir-se “secre-
tamente’’ e em relativa segurança.
Assim as Catacumbas passam a ser
a nova “sede” dos cultos. Os cemitérios
eram lugares temidos, porque, segundo
as superstições pagãs, eram lugares
habitados por espíritos imundos (ver Mc
5), lugar de demônios e assombrações.
Mas, por causa da experiência,
primeiro, da ressurreição de Lázaro e,
depois, da ressurreição de Jesus, pa-
ra os cristãos, nem a morte nem os
cemitérios eram temidos.
Desde o martírio de Estevão (cf. At
7.54-60), e de Tiago, irmão de João
(cf. At 12.1-2), a comunidade cristã
adotou o costume de honrar a memó-
56. L U I Z C A R L O S R A M O S
54|
ria dos seus mártires. Daí nasceu o
costume de reunir-se nos lugares on-
de descansam os restos mortais da-
queles e daquelas que deram sua vida
por sua fé em Cristo. Ali, junto às lá-
pides dos mártires, a salvo dos su-
persticiosos perseguidores, a Igreja se
reuniu inúmeras vezes para a Liturgia
da Palavra e a Liturgia da Mesa (ver
Ap 7.9-17 [esp. v. 14]).
Basílicas e catedrais
Em meados do século IV, devido a
controvertidos episódios políticos e
místicos do Imperador Constantino, o
cristianismo passou, não só a ser to-
lerado, mas a ser, enfaticamente, in-
centivado com o respaldo do Estado.
Esse período recebeu a designação de
Paz Constantiniana.
Os pequenos grupos marginais de
cristãos vão, rapidamente, se tornan-
do grandes assembléias. Isso exigiu
uma reestruturação do espaço cele-
57. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 55
brativo. As casas já não davam conta
de abrigar às grandes massas que
afluíam para as cerimônias religiosas.
O próprio Constantino designou,
então, seus arquitetos para a edificação
de novos espaços destinados aos cultos
cristãos. Ora, a experiência desses pro-
fissionais quando, à construção de
amplos edifícios, estava consolidada
pelas chamadas Basílicas. Estas eram,
a princípio, espaços forenses onde se
reunia o Tribunal do Júri da época,
para julgar processos judiciais.
Tais edifícios têm o santuário, ge-
ralmente com abside (nicho ou recin-
to semicircular ou poligonal, de teto
abobadado, geralmente situado nos
fundos ou na extremidade da cons-
trução ou de parte dela) para a cáte-
dra (antes destinada para uso do ma-
gistrado, agora reservado para quem
preside a liturgia), um ambão ou púl-
pito (antiga tribuna), o altar (mesa da
comunhão), e um nártex (vestíbulo
que ficava à entrada da basílica pale-
58. L U I Z C A R L O S R A M O S
56|
ocristã, destinado aos catecúmenos,
para que pudessem assistir aos ritu-
ais, sem deles participar diretamente,
por ainda não serem batizados [conti-
nuou em uso nas igrejas da Idade
Média e, mesmo após perder seu sen-
tido, nos períodos posteriores, per-
maneceu demarcado pelo espaço en-
tre a portada e o pára-vento]).
Nos séculos subseqüentes, as ba-
sílicas apresentaram formas variadas
(quadrada, redonda, em forma de
cruz latina, de cruz grega ou sim-
plesmente de aula [pátio ou grande
vestíbulo], retangular).
Os estilos variaram, com as cultu-
ras dos respectivos séculos: estilo
românico, gótico, clássico renascen-
tista, barroco, neo-clássico, e con-
temporâneo.
O termo “Catedral” é relativo a “cá-
tedra”, e designa a igreja principal de
uma diocese, onde se encontra o tro-
no episcopal; sé, matriz.
59. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 57
A linguagem espacial e a teologia
dos edifícios, mobílias e utensílios
religiosos
No culto, antes mesmo que os ce-
lebrantes pronunciem qualquer pala-
vra, o Evangelho já começa a ser pre-
gado e conceitos teológicos e ideológi-
cos já estão sendo transmitidos pela
linguagem espacial da arquitetura do
edifício, pela disposição e tipos da
mobília, pela estética e função dos
utensílios.
Pode-se identificar, para fins didá-
ticos, três concepções espaciais típi-
cas: O conceito medieval, que valoriza
o altar, pois sua teologia reforça o
aspecto místico e espiritual da parti-
cipação no mistério eucarístico. O
conceito cartesiano, próprio do perío-
do da pós-Reforma do séc. XVI, que
coloca em evidência o púlpito, que
reforça o aspecto intelectual, concei-
tual e didático da fé. E o conceito mi-
diático, comum nos dias atuais, que
60. L U I Z C A R L O S R A M O S
58|
valoriza o palco, isto é, o aspecto es-
petacular do evento celebrativo, cujo
centro passa a ser a performance dos
celebrantes como comunicadores-
atores e dos instrumentistas e canto-
res.
Deve-se, portanto, ter um espírito
crítico em relação ao trato que se dá
ao espaço celebrativo, pois aquilo que
este comunica pode, eloqüentemente,
estar em flagrante contradição com
aquilo que os/as pregadores/as a-
nunciam dos púlpitos.
As edificações religiosas devem ser
adequadas à celebração das ações
litúrgicas e devem facilitar a partici-
pação ativa dos fiéis.
Cada elemento arquitetônico, ou
da mobília ou utensílio empregado no
culto, tem implicações teológico-
litúrgicas que expressam seu (1) as-
pecto celebrativo, pois o culto é fé e
festa motivada pela Graça (cf. Lc
15.7,10,23 e 32); (2) aspecto educati-
vo, pois há uma teologia inerente às
61. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 59
formas dos espaços retangulares,
quadrados, circulares e em leque —
uns mais inclusivos outros menos; (3)
aspecto encarnacional, pois o espaço
explicita o nível de inculturação ou
encarnação do Evangelho pregado em
determinada cultura, como expressão
material da Palavra, à luz da encar-
nação de Deus em Cristo (Jo 1.14); (4)
aspecto espiritual, pois aponta para a
transcendência por meio da transpa-
rência perceptível na concepção desse
espaço: simplicidade nobre, familiari-
dade, beleza, propriedade, qualidade,
autenticidade ou integridade dos ele-
mentos que compõem o ambiente ce-
lebrativo; (5) aspecto estético-poético
do espaço que, intencionalmente, in-
tegra a comunidade de fiéis (corpo-
alma-e-espírito), por meio de cuida-
dosa ambientação e decoração que
possibilitem a inclusão dos sentidos,
sentimentos, emoções e razões.
Isso implica em um cuidado teoló-
gico-litúrgico-estético do lugar ou es-
62. L U I Z C A R L O S R A M O S
60|
paço onde esse povo se reúne. Por
isso, são considerados imprescindí-
veis, nos templos cristãos, como es-
trutura mínima fundamental, o san-
tuário, a nave e o átrio.
O Santuário é o espaço central
(não fisicamente, mas no sentido de
mais importante) do edifício. Tudo de-
ve estar orientado para o espaço re-
servado para o Memorial Pascal, lugar
da renovação da aliança: o altar, que
representa a mesa do sacrifício (AT), a
mesa eucarística (NT) e as lápides dos
fiéis que deram sua vida por amor a
Cristo, os mártires; para a pia ou fon-
te bastismal, que, juntamente com a
mesa do altar, representam os dois
sacramentos (Ceia e Batismo); para o
ambão ou púlpito, que é o lugar de
onde o Evangelho é pregado e a Pala-
vra de Deus é proclamada; e para a
sédia ou cátedra, que é o lugar onde
se senta o presidente da celebração.
A Nave (do latim navis, que signi-
fica “navio”, pela lembrança do forma-
63. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 61
to das vigas que suportam o teto de
alguns templos se parecerem com o
costado de um navio) é o espaço da
assembléia, que são os membros do
corpo místico de Cristo. É o lugar da
atenção, do alerta, da vigilância. É o
lugar dos batizados e, por esta razão,
o batistério (ou pia batismal) pode es-
tar colocado à entrada da nave, indi-
cando que participam da celebração
cristã aquelas pessoas que receberam
o Sacramento do Batismo e se vestiram
das “vestes brancas” para apresentar-
se diante do Trono do Cordeiro.
E o Átrio (do latim atriu[m]) é o
espaço de transição. É o espaço para
a festa do encontro, onde as pessoas
se reúnem antes e depois da celebra-
ção. Ao chegar para o culto, a pessoa
se prepara para entrar no santuário,
fica em silêncio e passa pela porta
que é Cristo (não se pode chegar no
lugar santo a não ser por intermédio
de Cristo — Jo 10.7,9).
64. L U I Z C A R L O S R A M O S
62|
Os vários objetos que são empre-
gados no culto devem ser cuidadosa-
mente escolhidos e sabiamente em-
pregados, quer sejam objetos simbóli-
cos, tais como o pão e o vinho e os
recipientes que os contêm, a Bíblia, a
cruz; quer sejam objetos festivos, co-
mo são os candelabros, as flores e os
vasos, os estandartes, os ornamentos
e os vitrais; e mesmo os objetos fun-
cionais, entre eles, o suporte para a
Bíblia, as toalhas, os sistemas acústi-
cos, climatizadores, de iluminação, etc.
A Igreja: em espírito e em verdade
Teologicamente, ou espiritualmen-
te falando, à luz dos ensinamentos e
da prática de Jesus (cf. Jo 4.20-23),
deve-se compreender que o “espaço
sagrado”, por excelência, não depende
da forma arquitetônica, nem da topo-
grafia, mas da atitude dos fiéis que
devem adorar o Pai “em espírito e em
verdade”.
65. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 63
Essa compreensão — de adorado-
res que adoram em espírito e em ver-
dade —, juntamente com o dito de
Jesus de que “onde estiverem dois ou
três reunidos em meu nome, ali estou
no meio deles” (Mt 18.20), fundamen-
tou a eclesiologia cristã: a “igreja” não
é um edifício, mas o povo reunido em
nome de Jesus, o Cristo.
Os modelos para os edifícios cris-
tãos, portanto, não devem ser os sun-
tuosos “templos” do paganismo mo-
derno, tais como os bancos, shopping
centers, edifícios públicos e casas de
espetáculo. Antes, sua forma deve ser
determinada pela teologia do culto,
isto é, a liturgia. Suas linhas devem
ser sóbrias, austeras e singelas — o
que não implica em comprometer a
estética. Linhas que privilegiem o sen-
timento de comunhão da assembléia
com Deus e de solidariedade para
com o próximo; onde Deus possa ser
adorado em espírito e em verdade (Jo
4.24), com decência e com ordem
66. L U I Z C A R L O S R A M O S
64|
(1Co 14.40), com o espírito e com o
entendimento (1Co 14.15), onde pos-
samos apresentar os nossos próprios
corpos em sacrifício vivo, santo e agra-
dável a Deus em um culto racional,
alegre, sensível e sincero (cf. Rm 12.1).
O Ministério da Ambientação, ou
da decoração, ou da ornamentação, é,
em primeira instância, um ministério
kerygmático, de anúncio do Evange-
lho e da proclamação da Palavra.
Aquelas pessoas que abraçam esse
ministério devem estar dispostas a
ambientar e decorar com arte (estética
e qualidade), o que pressupõe dom e
talento; devem também ambientar e
decorar com inteligência (praticidade e
significado), o que requer esforço e
estudo; e devem ainda ambientar e
decorar com o coração (afetividade e
espiritualidade), para o que é preciso
sensibilidade e fé.
67. IV
Quem participa do culto?
(A liturgia do povo de Deus)
e acordo com a tradição bí-
blica, Deus é a personagem
central do culto, pois é ele
quem está assentado no alto e subli-
me trono (cf. Is 6.1); é glorificado por
seres celestiais (cf. Is 6.2); é servido
por ministros ou sacerdotes/liturgos/
celebrantes (cf. 103. 21), é cultuado
pela comunidade de fiéis, a congrega-
ção ou assembléia (cf. Sl 5.8; 22.22-
23, 25-26); até mesmo por todos os
que morreram por causa do seu tes-
temunho, os mártires ou testemu-
nhas, se acham constantemente dian-
D
68. L U I Z C A R L O S R A M O S
66|
te do trono, glorificando o Altíssimo
(cf. Ap 7.9-15); mesmo os pagãos ou
gentios, de todas as nações, estão
convidados para o culto (cf. Sl 117); e,
mais ainda, de acordo com os salmis-
tas, todo ser que respira deve louvar a
Deus (cf. Sl 150.6); e mesmo os seres
inanimados, tais como os corpos ce-
lestes, de alguma forma, proclamam a
glória de Deus, e anunciam as obras
das suas mãos (cf. Sl 19.1).
Deus é quem toma a iniciativa e
vem ao nosso encontro, no culto,
dando início ao diálogo litúrgico e ce-
lebrativo da fé. Pouco sabemos sobre
a participação dos seres celestiais no
culto, bem como a respeito das tes-
temunhas que se acham constante-
mente diante do trono louvando a
Deus. Por outro lado, podemos nos
aplicar a compreender a nossa parti-
cipação no culto, como comunidade
de fiéis.
A congregação de fiéis é formada
por pessoas de todas as camadas so-
69. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 67
ciais, de todas as culturas e de todas
as idades. Isso significa que, do culto,
tomam parte e têm lugar: pessoas das
classes empobrecidas e das classes
abastadas; pessoas cultas ou iletra-
das; e pessoas de todas as idades — a
Igreja talvez seja o único espaço insti-
tucional com tamanha abrangência
inclusiva.
Teoricamente, todos deveriam ter
sua participação no culto garantida,
representada ou contemplada: na es-
trutura da liturgia que se celebra, no
repertório dos cânticos que se ento-
am, no tipo de linguagem que se ado-
ta, etc.
Ou a Igreja é de todos ou não é I-
greja! Igreja só para jovens não é Igre-
ja, é point; igreja só para idosos não é
Igreja, é clube de saudosistas.
Quando se diz que têm lugar no
culto pessoas de todas as idades, es-
tamos dizendo que a liturgia deve ser
concebida e preparada para incluir e
70. L U I Z C A R L O S R A M O S
68|
contemplar bebês, crianças, adoles-
centes, jovens, adultos e idosos.
Embora isso pareça relativamente
óbvio, ao observarmos o que acontece
na prática de muitas igrejas, essa in-
clusão não acontece.
Conquanto se possa constatar um
evidente conflito de gerações, entre
jovens e idosos, na disputa pela he-
gemonia litúrgica, as maiores vítimas
dessas disputas são as crianças.
De uma maneira ou de outra, jo-
vens, adultos e idosos têm os seus
meios para contestar e protestar. As
crianças, entretanto, não têm voz
nem vez.
Não obstante, dar destaque para a
participação da criança no culto não é
apenas uma questão de fazer uma
concessão e dar-lhes, provisoriamen-
te, vez e voz. A criança trazida para o
centro do culto, como se pretende
demonstrar a seguir, é a própria ra-
zão de ser da liturgia.
71. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 69
O lugar da criança no culto cristão
A participação da criança, no cul-
to, merece destaque por uma razão
histórica e bíblica. Como sabemos, o
centro da liturgia cristã é a Páscoa
que é também o centro da liturgia
judaica. Ora, nas instruções dadas
por ocasião da instituição da Páscoa
judaica, a criança desempenha um
papel central, e é ela que dá início às
solenidades.
Vejamos alguns dos relatos bíblicos
da instituição da celebração da Páscoa:
Êxodo 12.24-27: “24 Guardai, pois, is-
to por estatuto para vós outros e para
vossos filhos [grifo nosso], para sempre.
25 E, uma vez dentro na terra que o
SENHOR vos dará, como tem dito, obser-
vai este rito. 26 Quando vossos filhos
[grifo nosso] vos perguntarem: Que rito
é este? 27 Respondereis: É o sacrifício
da Páscoa ao SENHOR, que passou por
cima das casas dos filhos de Israel no
Egito, quando feriu os egípcios e livrou
as nossas casas. Então, o povo se incli-
nou e adorou.”
72. L U I Z C A R L O S R A M O S
70|
Êxodo 13.14: “Quando teu filho [grifo
nosso] amanhã te perguntar: Que é is-
so? Responder-lhe-ás: O SENHOR com
mão forte nos tirou da casa da servi-
dão.”
Deuteronômio 6.20-21: Quando teu fi-
lho [grifo nosso], no futuro, te pergun-
tar, dizendo: Que significam os teste-
munhos, e estatutos, e juízos que o SE-
NHOR, nosso Deus, vos ordenou? 21 En-
tão, dirás a teu filho [grifo nosso]: Éra-
mos servos de Faraó, no Egito; porém o
SENHOR de lá nos tirou com poderosa
mão.
À luz dessas referências, podemos
nos perguntar pelo lugar que as cri-
anças devem ter nos nossos cultos.
As grandes experiências de fé do
povo de Deus eram celebradas ciclica-
mente, justamente, pensando na trans-
missão dessa espiritualidade para as
novas gerações (ver Lc 2.41-42).
As crianças eram, assim, o ele-
mento disparador de tais liturgias.
Tais cerimoniais eram concebidas
especialmente para responder aos
insistentes por quês? das crianças:
73. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 71
“quando vossos filhos vos pergunta-
rem: que rito é este? Responder-lhes-
ás...” (Êx 12.26 e par.).
As crianças eram, portanto, o ponto
de partida e, em grande parte, a razão
de ser da liturgia. É como se o culto
fosse um veículo em cujo motor preci-
sasse ser dada a partida por um siste-
ma eficiente de ignição, para então em-
preender efetivamente sua viagem.
Ao que parece, não faria muito
sentido fazer essas festas sem a pre-
sença das crianças. Sim, é verdade
que os adultos sempre se beneficiam
muito de tais festas, mas para o adul-
to os ritos são sempre repetição, e
tem função de reforço conceitual e
prático, mas para as crianças é des-
coberta e novidade deslumbrante de
um novo universo espiritual.
Assim sendo, se alguém, depois de
Deus, tiver que ser privilegiado no
culto cristão, esse alguém são as cri-
anças.
74. L U I Z C A R L O S R A M O S
72|
Culto para crianças
ou culto com as crianças?
Qual seria, então, a melhor alter-
nativa em relação à questão criança-
e-culto? As alternativas mais freqüen-
temente empregadas pelas igrejas
protestantes são: (1) Modelo do culto
infantil que consiste em tirar a crian-
ça do culto e fazer um outro (infantili-
zado) à parte para elas; (2) o modelo
híbrido que tolera as crianças no cul-
to parcialmente, mas somente até o
momento da prédica, quando, então,
elas são retiradas do templo para um
lugar onde terão atividades “diferen-
ciadas” (a palavra é mais bonita do
que o resultado, pois amiúde o que se
verifica é que tais atividades se resu-
mem a entretenimento sem projeto
didático-pedagógico, supervisionadas
por pessoas que não têm formação
para a educação infantil); (3) e o mo-
delo deixa como está pra ver como fi-
ca, que simplesmente ignora a pre-
75. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 73
sença da criança no culto, cuja litur-
gia prossegue indiferente à presença
das crianças.
O terceiro modelo, do deixa como
está, embora talvez seja o mais recor-
rente, deveria estar fora de cogitação.
Quanto aos outros dois modelos,
por mais bem intencionados que se-
jam tanto o projeto do culto infantil
quanto o projeto híbrido, ambos tam-
bém acabam se tornando antipedagó-
gicos, pois excluem a criança do cul-
to, total ou parcialmente.
Ora, se a criança é retirada do
templo quando pequena, não há como
esperarmos que, quando for adoles-
cente (ou pré-adolescente), ela queira
permanecer no culto. Pois tudo o que
lhe foi ensinado, ainda que não inten-
cionalmente, todas as vezes que foi
retirada do culto, é que ela não é
bem-vinda ali.
As experiências inclusivas são ra-
ras. Isso é em parte compreensível,
mas não justificável. Compreensível,
76. L U I Z C A R L O S R A M O S
74|
porque exige esforço, preocupação e
dá trabalho. É injustificável, porque
não há nada mais importante no Rei-
no de Deus do que as crianças: afinal,
foi isso que aprendemos (ou devería-
mos ter aprendido) de Jesus em Ma-
teus 18.1-2 e em Lucas 9.47.
Como, afinal, a criança pode ser
incluída plenamente no culto? Disso
trataremos a seguir.
O que as crianças podem
e não podem fazer no culto?
Eis uma boa questão para a Igreja
se perguntar: afinal o que as crianças
podem e o que não podem no culto?
Talvez o leitor ou leitora desta refle-
xão se surpreenda com a resposta
enfática que aqui se dará, afirmando
que não há nada, liturgicamente fa-
lando, que as crianças não possam
fazer no culto cristão – nada que um
adulto não faça.
77. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 75
O que acontece, amiúde, nos nos-
sos cultos? Em geral, oramos, canta-
mos, lemos as Escrituras Sagradas,
testemunhamos, proclamamos o E-
vangelho, comungamos, ofertamos,
nos comprometemos assumindo com-
promissos, etc.
Ora, quais desses atos litúrgicos
estão fora das possibilidades das cri-
anças?
As crianças podem aprender a orar
antes mesmo de aprender a andar –
então, por que nunca convidamos
uma criança para fazer uma oração
nos cultos de domingo?
E quanto a cantar, por que tam-
bém não cantamos com elas, uma vez
que elas sempre cantam conosco?
pois todos, mesmo os bebês, adoram
(inclusive no sentido literal do termo)
cantar (afinal, deles nasce o perfeito
louvor, dizem as Escrituras Sagradas
em Mt 21.16). Se elas cantam nosso
repertório, porque nós não cantamos
as suas canções?
78. L U I Z C A R L O S R A M O S
76|
Ler a Bíblia: desde que alfabetiza-
da, o que acontece cada vez mais ce-
do, uma criança com sete, ou seis,
talvez cinco anos, pode fazer leituras,
da Bíblia ou de outros textos litúrgi-
cos, tal como qualquer adulto – não
seria fantástico se todo culto tivesse a
participação de crianças na direção
de certas leituras?
Quanto aos testemunhos e à pro-
clamação, também aí as crianças po-
dem ser sujeitos.
Elas podem, inclusive, participar
da prédica, encenando passagens bí-
blicas, interpretando ilustrações (pra-
ticamente todo sermão recorre às i-
lustrações para aclarar pontos obscu-
ros ou conceitos abstratos). O mero
fato de o pregador, ou pregadora, ter
em mente que seu público também é
formado por crianças, já pode servir
como estímulo para a busca de uma
linguagem mais expressiva, o uso de
vocabulário mais substantivo, objetivo
e concreto; para o emprego de ima-
79. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 77
gens visuais e outros recursos sensí-
veis (ao tato, ao paladar, ao olfato,
por exemplo). Fazendo isso, todos se
beneficiariam, pois quando usamos
linguagem abstrata, somente os adul-
tos (e nem mesmo todos eles) conse-
guem acompanhar, mas a linguagem
objetiva e os substantivos concretos,
todos, crianças e adultos, podem e
gostam de acompanhar.
E, no momento da dedicação, in-
tercessão e envio, as crianças também
podem assumir compromissos como
sujeitos na comunidade de fé e na
construção do Reino de Deus.
Quanto aos bebês, quando presen-
tes ao culto, podem não entender
conceitualmente o que está se pas-
sando, mas afetivamente eles estão
“aprendendo”, desde cedo, que eles
são bem-vindos, que são amados e
que ali é seu lugar: no meio da comu-
nidade de fé.
80. L U I Z C A R L O S R A M O S
78|
Preparação da liturgia
de um culto inclusivo
Preparar a liturgia de um culto in-
clusivo, para todos, no qual todos são
considerados, representados, e cuja
participação está garantida, não é
assim algo tão difícil ou diferente do
convencional.
Basta que, na hora em que estiver-
mos escolhendo o repertório dos hinos,
das leituras, dos gestos e atos litúrgi-
cos, lembrar de incluir as crianças,
assim como fazemos naturalmente com
os jovens e os adultos. Por exemplo,
prever músicas próprias para as crian-
ças (ora, se elas podem cantar nossos
hinos, porque não podemos cantar os
delas?). E na hora de distribuir as tare-
fas na condução do culto, lembrarmo-
nos de atribuir funções às crianças,
que pode ser desde a direção de ora-
ções e leituras, até a cooperação em
atos como o recolhimento das ofertas, a
distribuição da Ceia, e encenações e
81. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 79
performances várias — a depender u-
nicamente da criatividade, da boa von-
tade e do bom senso dos responsáveis
pelo preparo e direção da liturgia dos
cultos ordinários das nossas igrejas.
Portanto...
Para finalizar estas considerações
sobre o culto cristão inclusivo, pode-
mos sintetizar algumas das principais
conclusões a que chegamos, a partir
do exposto acima:
1. Deus é sempre o principal sujeito
do culto Cristão que, mediante o
convite da sua graça, nos reúne
como seu povo num encontro ce-
lebrativo dialógico e interativo.
2. O povo é a congregação de fiéis
que, em resposta ao convite da
graça divina, presta-lhe seu
serviço no culto comunitário.
3. A congregação de fiéis é formada
por todas as pessoas da comu-
nidade: bebês, crianças, adoles-
centes, jovens, adultos e idosos.
82. L U I Z C A R L O S R A M O S
80|
4. As pessoas responsáveis pela
preparação e pela direção da li-
turgia devem levar em conta a
totalidade do povo de Deus, o
que implica em envolver, con-
templar, incluir a todos nos vá-
rios atos litúrgicos.
5. Dentre todos os fiéis, são as
crianças as que merecem maior
cuidado e atenção, pois, à luz
da tradição bíblica, são elas
que deflagram o culto com suas
perguntas fundamentais, às
quais a comunidade celebrante
oferece sua resposta de fé, no
exercício de uma espiritualida-
de que é, assim, transmitida de
geração em geração.
6. Não há nada que um adulto fa-
ça no culto que não possa ser
feito pelas crianças. Portanto,
elas não devem ser meras es-
pectadoras do culto, mas sujei-
tos ativos da dinâmica litúrgica.
Colocar isso em prática... Eis aí
um belo desafio!
83. V
Quando fazer culto?
(A liturgia do tempo)
LITURGIA SE DÁ NO TEMPO e
no espaço. O tempo da litur-
gia é a História da Salvação
contada ciclicamente durante o Ano
Cristão, que tem a Páscoa como centro
irradiador da mensagem salvífica.
Ao contar a história de Jesus (a
expectativa de sua vinda, sua vida e
ensinamentos, sua paixão, morte e
ressurreição) e sua presença espiritu-
al na Igreja, a comunidade de fé re-
lembra, atualiza e celebra a sua pró-
pria salvação.
A
84. L U I Z C A R L O S R A M O S
82|
A liturgia é, a um só tempo, memó-
ria, atualização e esperança salvífica.
A celebração da História da Salvação
Para celebrar a sua salvação em
Cristo, a Igreja, observa o Calendário
Cristão ou Calendário Litúrgico, que
se estrutura em dois ciclos festivos e
dois tempos ordinários: o Ciclo do Na-
tal, formado pelo Advento, Natal e E-
pifania, que é seguido por um primei-
ro Tempo Comum (após Epifania); e o
Ciclo da Páscoa, que compreende a
Quaresma (que dura 40 dias), a Se-
mana Santa, o Tempo Pascal (que
dura 50 dias), e Pentecostes, seguido
de um segundo Tempo Comum (após
Pentecostes).
Essa história é constantemente
atualizada em ocasiões que se revesti-
ram de especial sentido, à luz do E-
vangelho: o Domingo (dia da Ressur-
reição), a Quarta (acordo de Judas
para a traição), Quinta (lava-pés e
85. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 83
instituição da Ceia) e Sexta-feiras
(julgamento, crucificação, morte e
sepultamento de Jesus), e o Sábado
(Jesus no sepulcro); bem como as Ho-
ras de Oração — Matinas-Laudes
(nascer do sol/ressurreição), Tércias
(julgamento), Média (crucificação),
Noas (morte), Vésperas (sepultamen-
to), Completas e as Vigílias Noturnas
(Getsêmani).
No próprio culto, a igreja revive a
História da Salvação: num primeiro
momento adora o Pai (primeira pes-
soa da Trindade), recordando o Cria-
dor que é Santo e perfeito; diante da
santidade do Pai, a congregação reco-
nhece suas imperfeições e pecados,
por isso recorre ao Filho, segunda
pessoa da Trindade, que é o “Cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo”;
agraciada com o perdão, a congrega-
ção pode agora ser instruída na sua
fé, porque o Filho também, é o “Verbo
que se fez carne e habitou entre nós
cheio de graça e de verdade”; essa
86. L U I Z C A R L O S R A M O S
84|
instrução, entretanto, para que se
efetive na vida da comunidade, deve
ser inspirada e iluminada pela ação
do Espírito Santo, a terceira pessoa
da Trindade, que é também quem mo-
tiva e envia a Igreja em sua missão,
que é a de reconciliar a humanidade
com Deus, o Pai, retomando, assim, o
ciclo teológico-litúrgico.
A História da Salvação é, assim,
celebrada no tempo cósmico, no ano
litúrgico, nas horas do dia e naquela
“hora única” que é o culto.
Também a História da Humanida-
de é celebrada na liturgia da comuni-
dade de fé: datas cívicas, nacionais e
internacionais, são motivo de referên-
cia e intercessão no culto.
E, finalmente, a História das Pes-
soas (nascimento, puberdade, casa-
mento, procriação, envelhecimento e
morte) também são motivos que ins-
piram a prática celebrativa, porque
relacionam a nossa própria história
de vida, e nos incluem, na grande his-
87. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 85
tória da salvação, mediante a graça
de Deus.
O Calendário Litúrgico
Todo o Calendário Litúrgico se de-
senvolve a partir da Páscoa. Esta é
comemorada no primeiro domingo
depois da primeira lua cheia do outo-
no, no nosso hemisfério (na primave-
ra, no Norte). Tradicionalmente era a
ocasião em que os catecúmenos eram
batizados e recebidos como membros
da comunidade cristã — geralmente
depois de ter passado três anos se
preparando para isso.
Desde muito cedo, na História da
Igreja, adotou-se o costume de obser-
var um tempo de jejum e oração, pri-
meiramente no dia anterior ao Do-
mingo da Páscoa, depois, durante to-
da a Semana Santa. Finalmente, esse
período se ampliou para quarenta,
inspirados na narrativa da tentação
de Jesus durante quarenta dias e
88. L U I Z C A R L O S R A M O S
86|
quarenta noites no deserto, bem como
nas demais associações com o núme-
ro quatro, quarenta e quatrocentos,
na Bíblia: quarenta dias do dilúvio,
quatrocentos anos de escravidão no
Egito, quarenta anos de peregrinação
pelo deserto, anúncio de que em qua-
renta dias Nínive seria subvertida, e
sua súbita conversão, etc.
A Festa do Natal é mais tardia, e
se estabelece depois do século IV (e o
Advento, depois do VI). Trata-se da
cristianização da festa pagã que cele-
brava o “começo do fim” do inverno,
isto é, o solstício de inverno, no he-
misfério Norte. Para os cristãos, Je-
sus é o Sol da Justiça que nasceu em
Belém; ele é o Sol que é maior que o
astro adorado pelos pagãos, este sol
não existiria, não fosse aquEle.
Da mesma forma que a Páscoa, a
comemoração do nascimento de Je-
sus, no Natal, carecia de preparação.
Novamente o número quatro é evoca-
do. Desta vez, reserva-se quatro se-
89. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 87
manas (domingos), para que as comu-
nidades cristãs se preparem para o
grande evento da encarnação do Ver-
bo. Nesse período, a igreja recorda as
promessas feitas aos pais na fé a res-
peito da vinda do Messias, o Salvador.
Ciclo do Natal
O Ciclo do Natal corresponde a qua-
tro tempos litúrgicos do calendário cris-
tão, a saber, Advento, Natal, Epifania e
Batismo do Senhor. Este ciclo tem início
quatro domingos antes do Natal e se
estende até o Batismo do Senhor.
O Advento é o tempo que marca o
início do calendário litúrgico cristão.
Sua origem é documentada a partir
do século IV a.C. Semelhante à pre-
paração da Páscoa, expiação de Cris-
to, o Advento surge como preparação
para o nascimento de Jesus, o Natal.
Advento, do latim adventus, significa
“vinda”, “espera”.
Trata-se de uma celebração onde o
foco é a expectativa da vinda do Messias,
90. L U I Z C A R L O S R A M O S
88|
o Cristo prometido. Nesse período cele-
bra-se a espera do Messias, e pode ser
dividido em duas partes: os dois primei-
ros domingos enfatizam o Advento Esca-
tológico, o terceiro e o quarto domingos a
Preparação do Natal de Cristo.
Destarte, o Advento tem a dimen-
são da expectativa da segunda vinda
de Cristo, bem como, a expectativa da
chegada do Messias que concretiza o
Reino, o “já” e o “ainda não” – que
significa viver a espera do cumpri-
mento das promessas e renovar a es-
perança no Reino que virá.
A espiritualidade do Advento é mar-
cada pela esperança e o aguardo do
Messias prometido; a fé na concretiza-
ção da promessa; o amor que se de-
monstra com a chegada do Messias e a
paz por ele anunciada e plenificada.
O segundo tempo litúrgico desse
ciclo é o Natal. Esta celebração teve
sua origem nos meados do século IV
d.C., entretanto sua aceitação como
festa cristã ocorreu no século VI d.C.
O Natal surgiu com a finalidade de
afastar os fiéis da festa pagã do natale
91. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 89
solis invictus (“deus sol invencível”), e
passou a significar a chegada do Mes-
sias, o “sol da justiça” (cf. Ml 4.2) já
anunciado e aguardado no Advento.
Natal, na acepção da palavra, sig-
nifica “nascimento”, entretanto para
as/os cristãs/aos a partir do século
IV d.C., este significado é ainda mais
profundo, pois com o nascimento de
Cristo celebra-se “o Verbo que se fez
carne e habitou entre nós”, o Deus
infinitamente rico se faz servo e habi-
ta entre os despossuídos da terra. É
este Verbo que atrai para si toda a
criação a fim de reintegrá-la ao proje-
to salvífico de Deus.
A espiritualidade desse período
enfatiza a humanidade de Cristo e a
salvação que nele é absoluta.
O terceiro tempo desse ciclo é a
Epifania, que surgiu no Oriente como
festa da manifestação do Cristo en-
carnado. Somente, a partir do século
IV d.C., passou para o Ocidente a fim
de rememorar a visita dos reis magos
ao Messias que havia chegado.
92. L U I Z C A R L O S R A M O S
90|
Epifania, do grego ephifaneia, sig-
nifica “manifestação”, “aparição”. An-
tes de tornar-se um termo apropriado
pelo cristianismo, significava a che-
gada de um rei ou imperador. A partir
de Cristo, tem a conotação de “mani-
festação do divino ao mundo”, que no
Primeiro Testamento era expressa
pelo termo “teofania”.
Esse tempo celebra a manifestação
de Cristo aos seres humanos, no mo-
mento em que os reis do Oriente segui-
ram a estrela em busca daquele que
viria a ser o Salvador por excelência.
A Epifania é para o Natal o que o
Pentecostes é para a Páscoa, isto é,
desenvolvimento e permanência do ato
de Cristo em favor da humanidade.
A espiritualidade deste período é
caracterizada pela manifestação e apa-
rição de Cristo ao mundo. É o Cristo
prometido que se torna uma realidade
na vida de mulheres e homens que
procuram a paz, a justiça e o amor.
O Batismo do Senhor é celebrado
no primeiro domingo após a Epifania, e
representa o início da missão de Jesus
93. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 91
no mundo. Este tempo é parte da ma-
nifestação de Jesus aos seres huma-
nos, por isso trata-se de uma continui-
dade da Epifania. Diferenciando-se
pelo fato de que na Epifania é a huma-
nidade (representada pelos magos) que
vai a Cristo, ao passo que com o Ba-
tismo do Senhor é Deus (por meio de
Jesus Cristo) que vem até o ser huma-
no, a fim de cumprir sua missão.
Por isso, a espiritualidade desse
dia é marcada pela missão iniciada
por Jesus em prol dos menos favore-
cidos e injustiçados.
Com o Batismo do Senhor termina
o Ciclo do Natal, dando início ao Tem-
po Comum, ou Tempo após Epifania.
O Tempo Comum
(após Epifania e após Pentecostes)
Além dos dois ciclos festivos, o
“Ano do Senhor”, também contempla
33 ou 34 semanas, situadas entre o
Natal e a Páscoa. Esse período rece-
beu a designação Tempo Comum
94. L U I Z C A R L O S R A M O S
92|
por contrapor-se à época festiva do
Ano Cristão.
O fato de haver um Tempo Comum
ressalta o significado de que Deus
não é Senhor somente das coisas ex-
traordinárias, mas também o é do
cotidiano. Enfatiza a presença cons-
tante e amorosa do Pai na caminhada
do povo rumo à plenitude do Reino. A
cada celebração, antecipamos a eter-
na liturgia do céu, para o qual nos
preparamos, dia-a-dia, tanto no tem-
po festivo como no tempo comum.
Ao longo da história, várias inicia-
tivas foram tomadas no sentido de
oferecer alternativas à liturgia do
tempo não festivo. Para exemplificar
com algumas mais recentes e próxi-
mas, citamos a formalização, na dé-
cada de 30 nos EUA, de uma propos-
ta que sugeria a criação de um novo
período, o Kingdomtide (Ciclo ou
Tempo do Reino). Essa proposta tem
de positivo o fato de enfatizar menos o
aspecto eclesiástico-institucional e
mais o teológico-missionário do perí-
odo. Entretanto, a postura mais am-
95. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 93
plamente adotada pelos protestantes
do mundo todo, foi a de designar as
duas partes do Tempo Comum como
sendo “Tempo após Epifania” e “Tem-
po após Pentecostes”, respectivamen-
te. Na Igreja Metodista no Brasil, o
rev. Messias Valverde propôs uma
organização do Ano Cristão dividido
em Estações Litúrgicas, das quais
destacamos a Estação da Criação,
com uma preocupação ecológica e
escatológica.
A primeira parte do Tempo Co-
mum tem início na segunda-feira a-
pós a comemoração do Batismo do
Senhor e vai até a véspera da Quarta-
Feira de Cinzas, quando começa a
Quaresma (Ciclo da Páscoa).
Sua espiritualidade enfatiza o a-
núncio do Reino de Deus e visa à es-
perança e à pregação da Palavra.
A segunda parte do Tempo Co-
mum começa na segunda-feira após
Pentecostes e dura até a véspera do
Primeiro Domingo do Advento, quan-
do tem início o Ciclo do Natal.
96. L U I Z C A R L O S R A M O S
94|
Sua espiritualidade comemora o
próprio ministério de Cristo em sua
plenitude, principalmente aos domin-
gos e enfatiza a vivência do Reino de
Deus e a compreensão de que os/as
cristãos/ãs, são o sinal desse Reino.
Se na primeira parte do Tempo Co-
mum a ênfase é no anúncio, na se-
gunda é a concretização do Reino de
Deus.
Ciclo Pascal
O Ciclo Pascal — que compreen-
de a Quaresma, a Semana Santa, o
Tempo Pascal, e encerra-se com o
Pentecostes — formou-se a partir de
um processo de reflexão e sistemati-
zação do cristianismo que vai do pri-
meiro ao quarto século da era Cristã.
A partir deste ciclo se constituiu todo
o calendário litúrgico.
Nas comunidades primitivas, era
comum a reunião no primeiro dia de
cada semana na qual celebrava-se a
memória de Jesus. A origem do culto
cristão está em torno dessa “Páscoa
97. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 95
Semanal”, que ocorria no chamado
“Dia do Senhor”.
Em boa parte por influência do
judaísmo cristão, desenvolveu-se
uma celebração anual da Páscoa co-
mo um “grande dia do Senhor”, cuja
festa se prolongava por cinqüenta
dias, sendo o último, o dia de chega-
da do Espírito, o Pentecostes Cristão,
isso já no século II.
No século IV, desenvolveu-se a
tradição de reviver e refletir de um
modo mais sistematizado, os momen-
tos da paixão, isso deu origem às
celebrações da Semana Santa. Desde
o século III as vésperas da Páscoa já
eram dias de reflexão. Os catecúme-
nos que por dois anos vinham sendo
preparados, agora eram acompanha-
dos por toda a comunidade. Inspi-
rando-se nos quarenta dias de pre-
paro de Jesus para seu ministério,
nasceu o período da quaresma. As-
sim, em torno da celebração da mor-
te e ressurreição de Jesus, desenvol-
veu-se todo o Ciclo Pascal do Calen-
dário Litúrgico Cristão, marcado pela
98. L U I Z C A R L O S R A M O S
96|
penitência e confissão, mas também
pela alegria e exultação do crucifica-
do e ressuscitado.
A Quaresma é o período no qual
se enfatiza a importância da contri-
ção, do preparo e da conversão. Ini-
cia-se no quadragésimo dia antes da
Páscoa (não se contam os domingos).
O início na Quarta-feira de Cinzas
retoma à tradição bíblica do arrepen-
dimento com cinzas e vestes de saco
(Jn 3.5-6). É um momento oportuno
para refletir sobre a confissão e o
valor do perdão de Deus.
Sua espiritualidade enfatiza mo-
mentos de preparo na história bíblica
geral e da vida de Jesus:
Quarenta dias de Jesus no de-
serto (Mt 4.2; Lc 4.1ss);
Quarenta dias de Moisés no
Sinai (Êx 34.28);
Quarenta anos do povo no de-
serto (Êx 16.35);
Elias em direção ao Horeb (1Rs
19.8).
A Semana Santa tem início no
Domingo de Ramos, celebração de
99. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 97
Cristo como o Messias, salvador dos
pobres, o rei dos humildes. Reflete-se,
nessa semana, passo a passo, os úl-
timos momentos da vida de Jesus.
Este é o momento da vigília de
preparo para a ressurreição.
Sua espiritualidade chama-nos a
atenção para os momentos finais de
Jesus até o ápice de sua paixão:
A Santa Ceia (Mt 26.17-30);
O Lava-pés (Jo 13.1-17);
Jesus no Getsêmani (Mt 26.36-
46; Mc 14.26-31);
O julgamento, sepultamento e
a crucificação (Mt 27; Mc 15;
Lc 23; Jo 19).
A Páscoa¸ propriamente, é a festa
da ressurreição e da libertação. Um
novo Êxodo ocorre, e a humanidade
passa do cativeiro da morte para a
vida.
Sua solenidade pode iniciar-se já
na Quinta-Feira Santa (instituição da
ceia), que dá início ao chamado Trí-
duo Pascal. Contudo a celebração da
ressurreição começa com uma vigília
na noite de sábado encontrando sua
100. L U I Z C A R L O S R A M O S
98|
plenitude no romper da aurora do
Domingo da Páscoa, quando Cristo é
lembrado como o sol da justiça que
traz a luz da nova vida, na ressurrei-
ção.
A espiritualidade norteadora da
Páscoa aponta para a ressurreição
nos mais variados relatos das comu-
nidades do século I d.C.:
A ressurreição (Mt 28.1-20; Mc
16.1-8; Lc 24.1-12; Jo 20.1-18;
At 1.14);
Cânticos Pascais (Sl 113 ao 118
e Êx 12).
Entre os hebreus, era comum a
celebração da chamada “festa das
semanas” ou Pentecostes, isso por-
que ela se dava sete semanas, ou cin-
qüenta dias, após a Páscoa. Nela, o
povo dava graças ao Senhor pela co-
lheita. Mais tarde, adquiriu mais uma
dimensão celebrativa, a da proclama-
ção da lei (instrução) no Sinai, cin-
qüenta dias após a libertação do Egi-
to.
Na era cristã, o Pentecostes tor-
nou-se o último dia do ciclo pascal,
101. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 99
quando celebra-se a chegada do Espí-
rito Santo como aquele que atualiza a
presença do ressuscitado entre nós,
dando força para que as comunidades
sejam testemunhas de Jesus na his-
tória.
A espiritualidade que nos orienta
nesse período fala da presença conso-
ladora do Espírito que semeia nos
corações a esperança do Reino de
Deus e nos impulsiona para a missão:
Festa das semanas (Êx 34.22;
Lv 23.15);
Jesus promete o Consolador
(Jo 16.7);
Jesus ressuscitado sopra seu
Espírito (Jo 20.22);
A chegada do Espírito Santo no
dia de Pentecostes (At 2).
Esquema do Ano Litúrgico
Ciclo do Natal
Advento (quatro domingos que
antecedem o Natal)
Natal (véspera, dia de Natal e
semana que se segue)
102. L U I Z C A R L O S R A M O S
100|
Epifania (6 de janeiro ou o do-
mingo mais próximo)
Tempo Comum após Epifania
Domingos seguintes até o que
antecede a Quarta-Feira de Cinzas
Ciclo da Páscoa
Quaresma (tem início com a
Quarta-Feira de Cinzas)
Semana Santa: o Domingo de
Ramos ou Domingo da Paixão
(dá início à Semana Santa) que
se completa com o Tríduo Pas-
cal (as solenidades da Institui-
ção da Ceia, a Crucificação e a
Ressurreição de Cristo)
Domingo da Páscoa, que encerra
a Semana Santa (é a festa mais
importante do Ano Litúrgico)
Domingos de Páscoa (até o do-
mingo de Pentecostes)
Pentecostes (encerra o período
da Páscoa)
Tempo Comum após Pentecostes
Domingo da Santíssima Trindade
Domingos seguintes até o...
... Domingo do Cristo Rei (últi-
mo domingo do Ano Litúrgico:
103. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 101
no domingo seguinte recomeça-
se o ciclo do Natal com o Pri-
meiro Domingo de Avento).
104.
105. 103|
VI
Como fazer culto?
(A liturgia da liberdade
e da criatividade)
PARTIR DO NOSSO ESTUDO,
constatamos que um culto
cristão tem uma tríplice
estrutura, caracterizada pela ação
efetiva das três pessoas da Trindade,
o Pai, o Filho, e o Espírito Santo. As-
sim, pode-se dizer que o culto cristão
possui partes essenciais que se au-
sentes o descaracterizariam.
Assim, a estrutura básica da litur-
gia cristã é trinitária e pressupõe um
primeiro momento teológico, no qual
Deus é adorado, um segundo momen-
A
106. L U I Z C A R L O S R A M O S
104|
to Cristológico, no qual a memória de
Cristo é celebrada e proclamada; e
um terceiro momento, Pneumatológi-
co, no qual, pela ação do Espírito, a
comunidade se compromete com o
serviço a Deus e ao próximo.
Essa liturgia é construída a partir
da ação criativa da comunidade de fé
e compõe-se de atos, ritos.
Objetividade e subjetividade
litúrgicas
Nesse sentido, a liturgia se constitui
de ritos, atos, ofícios e sacramentos
comunitários que se expressam pelas
vias racionais próprias das palavras
(escritas, lidas, proclamadas, cantadas)
e pelas vias sensoriais próprias dos
gestos (levantar os olhos, fechar os o-
lhos, ouvir a palavra, aspirar o incenso,
curvar a cabeça, beijar, comer o pão,
beber o vinho, impor as mãos, estender
as mãos, aplaudir, bater no peito, a-
107. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 105
braçar, ficar em pé, sentar-se, ajoelhar-
se, processionais e recessionais...).
A emoção na comunicação litúrgica
Além das dimensões racionais e
sensoriais da comunicação verbal e
não-verbal, a liturgia também comu-
nica pelas vias subjetivas das emo-
ções. A maneira como os ritos, atos,
ofícios e sacramentos afetam nossos
sentimentos dependem de um sem
número de questões que subjazem à
nossa consciência. As emoções podem
ser evocadas a partir de fora, mas
somente podem ser experimentadas a
partir de dentro. O riso ou choro, a
ira ou a ternura, a indignação ou a
compaixão, são estados que, literal-
mente, jorram do subconsciente. São
manifestações que, antes de desper-
tar, jazem adormecidas ou, para usar
a linguagem psicanalítica, estão re-
primidas e contidas no obscuro mun-
do da alma humana.
108. L U I Z C A R L O S R A M O S
106|
Quando somos tocados desde fora
por uma palavra ou um gesto, por um
som ou uma imagem, pode acontecer
de vacilarem as forças repressoras
que mantinham trancadas as com-
portas do subconsciente. Abrem-se
essas comportas e emergem, então,
as emoções, juntamente com memó-
rias significativas (de experiências da
infância, de lembranças dos pais, dos
filhos...), que compõem o repertório
existencial e que, por uma razão ou
outra, foi associado ao instante cele-
brativo. Não raro, essas liberações
emocionais resultam em êxtases que
se revelam tão intensos que chegam a
embotar a razão, dando vazão a ações
não conscientes e não racionais.
A razão na comunicação litúrgica
Ora, o princípio da primazia da
emoção sobre a razão é o grande
trunfo dos meios de comunicação de
massa. Os estudiosos da comunica-
109. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 107
ção rapidamente concluíram que as
pessoas não são persuadidas por ar-
gumentos racionais, mas seduzidas
por experiências emocionais. A mídia
descobriu a eficiência do entreteni-
mento e do espetáculo como mediado-
ras da “conversão” que transforma o
auditório em massa.
Entretenimento, como sugere a eti-
mologia da palavra, se refere a um
processo que procura ter o indivíduo
“entre” alguma coisa. O entretenimen-
to funciona como um parêntesis, no
qual o indivíduo se isola, ainda que
por alguns instantes, do mundo real.
É aqui, no processo de separação do
real, que entra o espetáculo, cuja
etimologia remonta ao latim specu-
lum, espelho. O espetáculo é, portan-
to, uma imagem do real. As imagens,
por mais parecidas que sejam, não
podem ser confundidas com a reali-
dade, pois toda imagem refletida no
espelho se apresenta como o “inverso”
do real ou como sua reprodução in-
110. L U I Z C A R L O S R A M O S
108|
vertida. A vida real, quando espetacu-
larizada, se nos dá como não-vida.
Quando, como espectadores, nos di-
vertimos com o espetáculo, abrimos
um parênteses em nossa vida e sus-
pendemos por um tempo a nossa e-
xistência, para nos dedicarmos à con-
templação da simulação do real.
Como ação terapêutica, essa práti-
ca pode até ser de grande benefício
para a nossa saúde emocional, entre-
tanto, quando isso se dá como meca-
nismo de fuga sistemática da realida-
de, o que se verifica é um desperdício
considerável da vida real. Como o
medo e a amnésia, a fuga também se
constitui em importante dispositivo
de sobrevivência. Não obstante, o me-
do, a amnésia e a fuga não devem
substituir a própria vida, por mais
dura que esta seja, sob pena de ter-
minar por aniquilar a própria existên-
cia. O entretenimento pode causar
dependência, mas não responsabili-
111. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 109
dade; alivia as tensões, mas não re-
sulta em compromissos.
Emoção, sensação e razão e a saú-
de litúrgica
A liturgia é essencialmente comu-
nicação por abranger todo o espectro
comunicacional humano. E a comu-
nicação litúrgica será tanto mais in-
tensa quanto maior for a abrangência
da sua ação, subjetiva/objetiva, ver-
bal/não-verbal, consciente/incons-
ciente... Um grande desafio para a
liturgia é, portanto, dosar adequada-
mente emoção, sensação e razão.
Concluímos que a saúde litúrgica de
uma comunidade de fé depende da
sensibilização equilibrada e inteligen-
te das dimensões sensorial, emocional
e racional da comunicação humana
no contexto celebrativo. Mas isso não
se poderá obter pelo espetáculo nem
pelo entretenimento, mas somente no
serviço comunitário celebrado pelo
112. L U I Z C A R L O S R A M O S
110|
povo para Deus e para toda a comu-
nidade humana.
Outras formas de
comunicação-não-verbal na liturgia
Temos “lugares” comuns com to-
das as pessoas, de todas as idades,
de qualquer nacionalidade e de qual-
quer substrato social.
O primeiro desses “lugares” é a
natura (natureza), em cujo ventre
todos fomos gerados, em cujos seios
saciamos a fome.
O segundo é o corpo — a corporei-
dade é um tema que nos diz respeito
a todos, religiosos ou não, homens e
mulheres, adultos e crianças.
Finalmente, a cultura, o “univer-
so”, a oikoumene, na qual habitamos.
Conquanto diversa e extremamente
complexa — seja nas imensas distân-
cias geográficas dos cinco continen-
tes, quer seja no microcosmo da nos-
113. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 111
sa casa — a cultura nos forja, ora nos
formando, ora nos deformando.
A natureza e o culto
Os antigos filósofos diziam que a
tudo o que existe no mundo é deriva-
do de quatro substâncias elementa-
res: a terra, a água, o fogo e, o ar.
Na Bíblia, encontramos inúmeras
referências a esses elementos relacio-
nados à espiritualidade do povo de
Deus.
No princípio, criou Deus os céus e
a terra. Deus fez o ser humano a par-
tir do pó da terra e o designou para
cultivar e cuidar da terra (“tu és pó e
ao pó tornarás”) ouviu o grito do san-
gue de Abel clamando da terra; não
suportando a maldade do coração
humano, enviou o dilúvio para des-
truir e purificar a terra; chamou A-
braão e lhe disse: “sai da tua terra e
vai pra terra que te mostrarei”; desa-
fiou Moisés a libertar o povo e Israel
114. L U I Z C A R L O S R A M O S
112|
da opressão no Egito e conduzi-lo à
terra prometida; com Josué conquis-
taram e habitaram a terra que mana
leite e mel; em Jesus Cristo, Deus
desceu do céu à terra e habitou entre
nós, cheio de graça e de verdade; pela
boca dos apóstolos, o Evangelho foi
anunciado por toda a terra; João, no
Apocalipse, nos fala assim da nova
Jerusalém: “vi novo céu e nova ter-
ra...”.
A terra é a nossa casa, é o nosso
berço e o nosso destino. A nova terra
é a promessa da vida abundante, da
redenção plena. Na Bíblia, a palavra
terra aparece quase três mil vezes
(2729).
No culto, podemos fazer alusão, ou
mesmo utilizarmos de maneira con-
creta o elemento terra nos momentos
de batismo, de lançamento de pedra
fundamental de edifício religioso, de
renovação do pacto, de ofício fúnebre,
etc., etc.
115. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 113
Não menos importante é a água:
no Gênesis, o Espírito de Deus paira-
va sobre a face das águas; no dilúvio,
as águas cobriram e purificaram a
terra de sua maldade; na libertação
do Egito, Moisés tocou a água com
seu bordão e o mar se abriu para que
o povo passasse; na chegada à terra
prometida, tiveram que transpor o rio
Jordão; o mesmo rio em cujas águas
João batizou multidões e o próprio
Jesus; Jesus andou sobre as águas e
acalmou a tempestade e os vagalhões;
com água, o eunuco, foi batizado por
Filipe e Pedro batizou mais de três mil
almas de uma só vez; Paulo sobrevi-
veu a naufrágios e, como Jonas, foi
devolvido à praia para pregar o Evan-
gelho; na Cidade Santa, descrita no
Apocalipse, há o rio da vida, brilhante
como cristal, que corre do trono de
Deus e do Cordeiro, em cujas mar-
gens está a árvore da vida, que pro-
duz frutos para a cura dos povos e o
último verso do Apocalipse diz: “O
116. L U I Z C A R L O S R A M O S
114|
Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele
que ouve, diga: Vem! Aquele que tem
sede venha, e quem quiser receba de
graça a água da vida”.
Na Bíblia, a palavra água ocorre
659 vezes, sem contar rio, torrente,
chuva, manancial, fonte, etc.
Na liturgia, a água é simbolica-
mente significativa no batismo, na
celebração do ágape, na cerimônia do
lava-pés, nos cultos de renovação do
pacto e de purificação, etc., etc.
O fogo é também a luz. O primeiro
ato criador de Deus foi “haja luz!”;
Deus fez chover enxofre e fogo sobre
Sodoma e Gomorra; Abraão caminha-
va rumo ao lugar onde deveria sacrifi-
car o próprio filho com o cutelo numa
mão e o fogo na outra; Moisés, viu o
fogo em uma sarça que ardia, mas
não se consumia; uma das pragas
lançadas sobre o Egito, no processo
de libertação, foi a chuva de pedras e
fogo; quando o povo peregrinou du-
rante quarenta anos pelo deserto, o
117. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 115
Senhor ia adiante deles de dia com
uma coluna de nuvem e de noite com
uma coluna de fogo para os iluminar
e indicar o caminho; no templo, um
castiçal com sete braços ficara junto
à Torah, para iluminar-lhe a leitura
(“lâmpada para os meus pés é a tua
Palavra, e luz para os meus cami-
nhos”, cantam os salmistas); Isaías
foi purificado do seu pecado, no culto
do Templo, por uma brasa que um
serafim tirara do altar com uma te-
naz; Daniel foi preservado do fogo,
quando atirado numa fornalha para
ser castigado por sua fidelidade a Ya-
weh; João Batista não era a luz, mas
veio para que testificasse da luz; Je-
sus disse: “eu sou a luz do mundo” e,
ainda, “vós sois a luz do mundo”; no
Pentecostes cristão, o Espírito Santo
desceu sobre os discípulos e discípu-
las na forma de línguas de fogo; o au-
tor de Hebreus diz que “o nosso Deus
é fogo consumidor”; inúmeras são as
alusões ao fogo, no Apocalipse, dentre
118. L U I Z C A R L O S R A M O S
116|
elas, a de que “a morte e o inferno
foram lançados para dentro do lago
de fogo” e “a cidade não precisa nem
do sol, nem da lua, para lhe darem
claridade, pois a glória de Deus a ilu-
minou, e o Cordeiro é a sua lâmpada.”
A palavra fogo aparece mais de
360 vezes na Bíblia; luz, mais de 320;
isso para não detalhar sobre a pala-
vra lâmpada, sol, glória, e os verbos
iluminar, resplandecer, glorificar, to-
dos esses, termos relacionados com
fogo/luz.
No culto, as luzes que se acendem
(castiçais) é um importante símbolo
da glória de Deus, da presença do
Espírito, da orientação da Palavra de
Deus, etc., etc.
O ar: no princípio, a terra era sem
forma e vazia e o Espírito (ar, sopro,
vento) de Deus pairava sobre a face
das águas; tendo criado o homem do
pó do terra, Deus soprou em suas
narinas o fôlego da vida; no Dilúvio,
quando Deus lembrou-se de Noé, na
119. S C R I P T 2 : E M E S P Í R I T O E E M V E R D A D E
| 117
arca, “fez soprar um vento sobre a
terra, e baixaram as águas”; na fuga
do Egito, um vento vindo do Oriente
soprou e abriu o Mar de Juncos para
que o povo alcançasse a liberdade;
Elias teve um encontro especial com
Deus após presenciar vendavais, ter-
remotos e saraiva, quando Deus se
apresentou a ele numa brisa tranqüi-
lo e suave; na visão dos ossos secos,
Ezequiel profetizou: “vem dos quatro
ventos, ó espírito, e assopra sobre es-
tes mortos, para que vivam”; no Culto
do templo, não deveria nunca faltar o
incenso, que simboliza as orações dos
fiéis, feito com finíssimas especiarias
aromáticas; certa vez, Jesus, no bar-
co, “repreendeu o vento e disse ao
mar: Acalma-te, emudece! O vento se
aquietou, e fez-se grande bonança”;
ressuscitado, Jesus veio ao encontro
dos seus seguidores, soprou sobre
eles e disse: “recebei o espírito”; no
dia do primeiro Pentecostes Cristão,
“veio do céu um som, como de um
120. L U I Z C A R L O S R A M O S
118|
vento impetuoso, e encheu toda a ca-
sa onde [os discípulos e discípulas]
estavam assentados”; o apóstolo Pau-
lo diz que nós, cristãos e cristãs, so-
mos o bom perfume de Cristo; o últi-
mo verso do Apocalipse diz: “O Espíri-
to e a noiva dizem: Vem! Aquele que
ouve, diga: Vem!”
Em toda a Bíblia, encontramos a
palavra vento, mais de 150 vezes; es-
pírito, 550 vezes, alma, que significa
literalmente “garganta”, por onde
passa o fôlego, mais de 400 vezes;
aroma e perfume, mais de 100 vezes.
Tudo isso é muito sugestivo no
que diz respeito à criatividade litúrgi-
ca. Explorar os aromas e perfumes, e
a simbologia do vento (por meio dos
instrumentos de sopro, por exemplo),
pode ser tremendamente sensibiliza-
dor no exercício de uma espirituali-
dade vívida e no processo de trans-
missão da fé às novas gerações e aos
que se achegam à cultura cristã.