1. O último bondinho
Minha família tem uma mania insossa de
todos os invernos fazer uma viagem até um
parque no sul. Nem o nome da cidade e
muito menos o do parque eu fazia ou faço
questão de saber. Ia pela obrigação. Era o
meu martírio por ainda viver com meus
pais e ter de cuidar deles. Nesse ponto a
vida só compensou de um lado e esqueceu
do outro.
Em minha casa eu fazia do meu quarto um
cômodo à parte. O universo girava em
torno dele. Era minha própria galáxia. Saía
de lá só quando me era conveniente, ou
quando sentia fome ou quando não me
aguentava de vontade de ir ao banheiro. E
ai de quem tentasse me retirar do meu
sossego. Sempre me perguntavam o que
tanto eu fazia lá. Respondia que o que
2. acontecia lá, ficava lá. Era grosso. Eles eram
acostumados. Principalmente quando
queriam bancar os agentes do FBI me
perguntando sobre as vezes que eu não
atendia a porta, mas a janela se encontrava
aberta. E sobre ser tão fechado com meus
sentimentos e sempre rabugento.
Nessas viagens eu me resguardava no meu
mundo. Levava meu celular e meu fone de
ouvido. Minhas únicas e aprazíveis
companhias. Minha mãe fazia questão de
querer me retirar do sossego me
oferecendo um ticket para ir em um dos
brinquedos. “Tá que eu vou me lambuzar
de neve e me congelar por completo”,
respondia. “Tem disposição para ficar nesse
ócio, mas não tem para se divertir. Você
tem que arrumar uma namoradinha”, ela
sempre me atracava com essa escrota
dedução de que um amor resolveria minha
vida. Coitada. Mal sabe ela do quão
imponente é esse sentimento destruidor
3. maciço do pouco de razão que há nos seres
humanos. Ainda bem que eu desenvolvi um
repelente chamado “indiferença” e nunca
deixei que ele me picasse e me
envenenasse.
A nossa cabana ficava no topo mais alto da
montanha. Ainda queria saber porque
diabos minha mãe escolheu um lugar tão
miseravelmente frio e distante de tudo
quanto é tipo de socorro. Sempre dizia que
se alguém passasse mal lá em cima, lá em
cima seria o próprio túmulo. Ela me
respondia com o silêncio e fazia questão de
amamentar seu egoísmo em não dar
atenção nem a mim e nem a minha irmã
que dizia o mesmo que eu mas não tão
massacrante.
Pegávamos sempre um bondinho para ir
até lá. O nosso ponto de parada era o
último. Aquele bondinho funcionava mais
ou menos como um ônibus, só que numa
montanha.
4. Nesse dia minha mãe e minha irmã foram
na frente. Disse que iria um pouco na
floresta visitar uma alcateia, ou então, na
falta da primeira opção, deixar pronta uma
bola de neve de mais ou menos 8m para
atirar no primeiro suspeito de pé-grande
que atravesse nos atormentar.
Não fiz nem um e nem outro, mesmo que
me parecessem tão aventureiros quanto
aquelas viagens nunca foram e sempre
exigiram.
Fui pegar um pequeno machado que trouxe
em minha mochila para cortar algumas
toras de madeira para levar. Não entrei na
floresta, pois já se fazia noite e eu não
queria perder o bondinho. Terminei meu
serviço e fui tomar um café.
Sentei na janela da cafeteria, coloquei meu
fone de ouvido e relaxei enquanto me
deliciava com aquele liquido tão preto
quanto aquela escuridão lá de fora e que
5. me energizava como um trovão vindo dos
deuses estrelares. No balcão, havia um
moço que tagarelava sem parar. Parecia
que nele foi aplicado uma corrente de 220
volts e ele nunca se desligasse. Já era de
muito de tempo que esse cara me
incomodava. Às vezes preferíamos o
silêncio, mas ele teimava em roubá-lo de
nós. Eu relevava, mesmo desenhando
minha raiva em seu pescoço contorcido em
volta de um laço escrito ‘cala a sua boca,
porra’.
Terminei meu ritual e fui pegar o bondinho.
Me assentei. No momento havia uma moça
assentada no canto encarando o reflexo na
janela e no outro uma moça roçando suas
mãos em nervo e arranhando as batatas de
sua perna quase se automutilando.
Restavam 5min para sua partida. O falador
do bar entrou também. “Pronto. Era só o
que me faltava. Que vontade de fazer o
dedo do meio para o destino e dizer
6. obrigado”, pensei. O bondinho começou a
subir.
Não foi diferente. Mesmo me assistindo
ignorá-lo com meu fone de ouvido
embutido tão profundamente em meus
ouvidos de modo que não escutasse nada,
ele teimava em tentar retirar meu sossego
com assuntos irrelevantes. Na medida do
tempo eu apenas balançava minha cabeça
em sim e não. Às vezes dizia “é”, ou
“verdade”, ou quando mais animado “com
certeza”. Sempre concordando para que
não houvesse contra-argumento
fomentando a discussão e o assunto. E ele
era resistente. Não calou a boca um
segundo. Já não me aguentava de raiva.
Fechei meus olhos e me imaginei pegando
meu machado e cortando sua garganta.
Para que não se debatesse e sujasse todo o
bondinho, primeiramente colocaria sua
cabeça para fora da janela e depois sim eu
daria o golpe. Com o pescoço cortado e
7. sem a necessidade de manter o corpo ali,
jogaria o resto do corpo pela janela.
Quando abri meus olhos, o rapaz já não
estava mais lá. O bondinho estava parado.
“Deve ter descido”, imaginei. Ufa. Já estava
na altura de paradas.
Mas todo mundo me encarava com os
olhos arregalados. Estranho.
A moça nervosa do outro canto começou a
me encarar e falava gritando. Eu não ouvia
nada e olhava para o outro lado. Estava
relaxado em minhas músicas no fone de
ouvido. Ela começou a gritar mais forte. A
encarei novamente. Dessa vez fiz uma
leitura dos seus lábios e deles não saiam
palavras delicadas. Abusou de todos os
palavrões possíveis e só faltava me
estapear, mesmo com aqueles olhos
regados a medo que pude observar.
Irritado, fechei novamente meus olhos para
relaxar e ignorar e me imaginei pegando
forte no pescoço dela, levantado seu corpo
8. de modo que prendesse sua cabeça nos
vãos entre os bancos e depois eu metesse
um chute tão forte que quebraria seu
pescoço. Logo depois a jogaria também
pela janela para fazer companhia ao outro
imbecil.
Quando abri meus olhos, a moça já não
estava lá também. Se não tivesse descido
no ponto de parada, somente alguma
mágica deveria ter acontecido. Ainda bem,
já não estava aguentando mais aquela
insolente.
Só restaram eu e a moça silenciosa.
Indescritível o quão harmonioso estava
aquele fim de caminho. Mas ela se
levantou. Quebrou o pequeno
compartimento de segurança e tentou
arrombar com força a porta do bondinho.
Conseguiu abrir. Acoplou as duas mãos
numa das beiradas e gritou para mim: “Vou
pular”. Corri até a moça e disse para que
ela parasse com aquela estupidez. Ela me
9. encarou e colocou o queixo em cima dos
ombros enquanto dizia: “Eu só não pulo se
você me der um beijo e um abraço forte”.
“Por que você iria querer um abraço e um
beijo forte de mim? Eu? Esse cara mais
desinteressante que conheço?”, respondi.
“Você nem me notou na cafeteria, nem me
notou quando cortava as toras de madeira
e te encarava sentada num dos bancos
perto de lá e muito menos aqui dentro do
bondinho. Eu sempre te apreciava, sempre.
Você nunca percebeu. Eu quero morrer.
Mas você pode me salvar. Você decide”,
disse ela forçando a me entregar
escrupulosamente ao seu amor platônico.
Disse que sim, pois já nos aproximávamos
de árvores altas. Puxei sua mão e a trouxe
de volta. Fechei rapidamente a porta antes
que o vento frio nos fizesse de picolé.
“Agora me dê o que você me prometeu”,
ordenou ela. Dei um abraço forte. Muito
forte. Me envolvi, afinal ela estava fria e eu
10. estava frio. Apreciei nossa troca de calor.
Senti sua mão passar pelas minhas costas.
Ela empurrava meus braços para trás.
Depois, finalmente pelas minhas nádegas.
Ainda que tentasse me ausentar das garras
da excitação, não fui forte o suficiente para
recarregar minhas forças do poder de
negação. A sensação era a de que ela havia
me acorrentado em alguma fita, pois
estava absortamente dominado pelas suas
deveras artimanhas de sedução.
Ela enfiou a mão no meu bolso e pegou
meu celular. “Ei, devolve isso”, gritei.
Tentei esticar minhas mãos, mas estava
literalmente acorrentado, não foi nenhum
delírio de meu tesão. Ela, me distanciando
com um dos braços, começou a discar para
um número. Segundos depois começou a
falar.
“Agente Vigenski? Aqui é a Agente
Marienne, estou com o suspeito algemado.
Finalmente o pegamos. Pode enviar os
11. reforços para o bondinho na Serra de
Minaus, no Parque The Hunters, por
favor?”