SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  11
Télécharger pour lire hors ligne
O último bondinho

Minha família tem uma mania insossa de
todos os invernos fazer uma viagem até um
parque no sul. Nem o nome da cidade e
muito menos o do parque eu fazia ou faço
questão de saber. Ia pela obrigação. Era o
meu martírio por ainda viver com meus
pais e ter de cuidar deles. Nesse ponto a
vida só compensou de um lado e esqueceu
do outro.

Em minha casa eu fazia do meu quarto um
cômodo à parte. O universo girava em
torno dele. Era minha própria galáxia. Saía
de lá só quando me era conveniente, ou
quando sentia fome ou quando não me
aguentava de vontade de ir ao banheiro. E
ai de quem tentasse me retirar do meu
sossego. Sempre me perguntavam o que
tanto eu fazia lá. Respondia que o que
acontecia lá, ficava lá. Era grosso. Eles eram
acostumados. Principalmente quando
queriam bancar os agentes do FBI me
perguntando sobre as vezes que eu não
atendia a porta, mas a janela se encontrava
aberta. E sobre ser tão fechado com meus
sentimentos e sempre rabugento.

Nessas viagens eu me resguardava no meu
mundo. Levava meu celular e meu fone de
ouvido. Minhas únicas e aprazíveis
companhias. Minha mãe fazia questão de
querer me retirar do sossego me
oferecendo um ticket para ir em um dos
brinquedos. “Tá que eu vou me lambuzar
de neve e me congelar por completo”,
respondia. “Tem disposição para ficar nesse
ócio, mas não tem para se divertir. Você
tem que arrumar uma namoradinha”, ela
sempre me atracava com essa escrota
dedução de que um amor resolveria minha
vida. Coitada. Mal sabe ela do quão
imponente é esse sentimento destruidor
maciço do pouco de razão que há nos seres
humanos. Ainda bem que eu desenvolvi um
repelente chamado “indiferença” e nunca
deixei que ele me picasse e me
envenenasse.

A nossa cabana ficava no topo mais alto da
montanha. Ainda queria saber porque
diabos minha mãe escolheu um lugar tão
miseravelmente frio e distante de tudo
quanto é tipo de socorro. Sempre dizia que
se alguém passasse mal lá em cima, lá em
cima seria o próprio túmulo. Ela me
respondia com o silêncio e fazia questão de
amamentar seu egoísmo em não dar
atenção nem a mim e nem a minha irmã
que dizia o mesmo que eu mas não tão
massacrante.

Pegávamos sempre um bondinho para ir
até lá. O nosso ponto de parada era o
último. Aquele bondinho funcionava mais
ou menos como um ônibus, só que numa
montanha.
Nesse dia minha mãe e minha irmã foram
na frente. Disse que iria um pouco na
floresta visitar uma alcateia, ou então, na
falta da primeira opção, deixar pronta uma
bola de neve de mais ou menos 8m para
atirar no primeiro suspeito de pé-grande
que atravesse nos atormentar.

Não fiz nem um e nem outro, mesmo que
me parecessem tão aventureiros quanto
aquelas viagens nunca foram e sempre
exigiram.

Fui pegar um pequeno machado que trouxe
em minha mochila para cortar algumas
toras de madeira para levar. Não entrei na
floresta, pois já se fazia noite e eu não
queria perder o bondinho. Terminei meu
serviço e fui tomar um café.

Sentei na janela da cafeteria, coloquei meu
fone de ouvido e relaxei enquanto me
deliciava com aquele liquido tão preto
quanto aquela escuridão lá de fora e que
me energizava como um trovão vindo dos
deuses estrelares. No balcão, havia um
moço que tagarelava sem parar. Parecia
que nele foi aplicado uma corrente de 220
volts e ele nunca se desligasse. Já era de
muito de tempo que esse cara me
incomodava. Às vezes preferíamos o
silêncio, mas ele teimava em roubá-lo de
nós. Eu relevava, mesmo desenhando
minha raiva em seu pescoço contorcido em
volta de um laço escrito ‘cala a sua boca,
porra’.

Terminei meu ritual e fui pegar o bondinho.

Me assentei. No momento havia uma moça
assentada no canto encarando o reflexo na
janela e no outro uma moça roçando suas
mãos em nervo e arranhando as batatas de
sua perna quase se automutilando.
Restavam 5min para sua partida. O falador
do bar entrou também. “Pronto. Era só o
que me faltava. Que vontade de fazer o
dedo do meio para o destino e dizer
obrigado”, pensei. O bondinho começou a
subir.

Não foi diferente. Mesmo me assistindo
ignorá-lo com meu fone de ouvido
embutido tão profundamente em meus
ouvidos de modo que não escutasse nada,
ele teimava em tentar retirar meu sossego
com assuntos irrelevantes. Na medida do
tempo eu apenas balançava minha cabeça
em sim e não. Às vezes dizia “é”, ou
“verdade”, ou quando mais animado “com
certeza”. Sempre concordando para que
não       houvesse      contra-argumento
fomentando a discussão e o assunto. E ele
era resistente. Não calou a boca um
segundo. Já não me aguentava de raiva.
Fechei meus olhos e me imaginei pegando
meu machado e cortando sua garganta.
Para que não se debatesse e sujasse todo o
bondinho, primeiramente colocaria sua
cabeça para fora da janela e depois sim eu
daria o golpe. Com o pescoço cortado e
sem a necessidade de manter o corpo ali,
jogaria o resto do corpo pela janela.
Quando abri meus olhos, o rapaz já não
estava mais lá. O bondinho estava parado.
“Deve ter descido”, imaginei. Ufa. Já estava
na altura de paradas.

Mas todo mundo me encarava com os
olhos arregalados. Estranho.

A moça nervosa do outro canto começou a
me encarar e falava gritando. Eu não ouvia
nada e olhava para o outro lado. Estava
relaxado em minhas músicas no fone de
ouvido. Ela começou a gritar mais forte. A
encarei novamente. Dessa vez fiz uma
leitura dos seus lábios e deles não saiam
palavras delicadas. Abusou de todos os
palavrões possíveis e só faltava me
estapear, mesmo com aqueles olhos
regados a medo que pude observar.
Irritado, fechei novamente meus olhos para
relaxar e ignorar e me imaginei pegando
forte no pescoço dela, levantado seu corpo
de modo que prendesse sua cabeça nos
vãos entre os bancos e depois eu metesse
um chute tão forte que quebraria seu
pescoço. Logo depois a jogaria também
pela janela para fazer companhia ao outro
imbecil.

Quando abri meus olhos, a moça já não
estava lá também. Se não tivesse descido
no ponto de parada, somente alguma
mágica deveria ter acontecido. Ainda bem,
já não estava aguentando mais aquela
insolente.

Só restaram eu e a moça silenciosa.
Indescritível o quão harmonioso estava
aquele fim de caminho. Mas ela se
levantou.      Quebrou     o     pequeno
compartimento de segurança e tentou
arrombar com força a porta do bondinho.
Conseguiu abrir. Acoplou as duas mãos
numa das beiradas e gritou para mim: “Vou
pular”. Corri até a moça e disse para que
ela parasse com aquela estupidez. Ela me
encarou e colocou o queixo em cima dos
ombros enquanto dizia: “Eu só não pulo se
você me der um beijo e um abraço forte”.
“Por que você iria querer um abraço e um
beijo forte de mim? Eu? Esse cara mais
desinteressante que conheço?”, respondi.
“Você nem me notou na cafeteria, nem me
notou quando cortava as toras de madeira
e te encarava sentada num dos bancos
perto de lá e muito menos aqui dentro do
bondinho. Eu sempre te apreciava, sempre.
Você nunca percebeu. Eu quero morrer.
Mas você pode me salvar. Você decide”,
disse ela forçando a me entregar
escrupulosamente ao seu amor platônico.
Disse que sim, pois já nos aproximávamos
de árvores altas. Puxei sua mão e a trouxe
de volta. Fechei rapidamente a porta antes
que o vento frio nos fizesse de picolé.

“Agora me dê o que você me prometeu”,
ordenou ela. Dei um abraço forte. Muito
forte. Me envolvi, afinal ela estava fria e eu
estava frio. Apreciei nossa troca de calor.
Senti sua mão passar pelas minhas costas.
Ela empurrava meus braços para trás.
Depois, finalmente pelas minhas nádegas.
Ainda que tentasse me ausentar das garras
da excitação, não fui forte o suficiente para
recarregar minhas forças do poder de
negação. A sensação era a de que ela havia
me acorrentado em alguma fita, pois
estava absortamente dominado pelas suas
deveras artimanhas de sedução.

Ela enfiou a mão no meu bolso e pegou
meu celular. “Ei, devolve isso”, gritei.
Tentei esticar minhas mãos, mas estava
literalmente acorrentado, não foi nenhum
delírio de meu tesão. Ela, me distanciando
com um dos braços, começou a discar para
um número. Segundos depois começou a
falar.

“Agente Vigenski? Aqui é a Agente
Marienne, estou com o suspeito algemado.
Finalmente o pegamos. Pode enviar os
reforços para o bondinho na Serra de
Minaus, no Parque The Hunters, por
favor?”

Contenu connexe

Tendances (13)

Livro - Contos de terror - 5º ano "E"
Livro - Contos de terror - 5º ano "E"Livro - Contos de terror - 5º ano "E"
Livro - Contos de terror - 5º ano "E"
 
Ultima gota pdf 99
Ultima gota pdf 99Ultima gota pdf 99
Ultima gota pdf 99
 
Skins
SkinsSkins
Skins
 
Skins the novel
Skins   the novelSkins   the novel
Skins the novel
 
Sol da minha vida
Sol da minha vidaSol da minha vida
Sol da minha vida
 
Dempeo ii sétima parte
Dempeo ii   sétima parteDempeo ii   sétima parte
Dempeo ii sétima parte
 
Implacvel destino
Implacvel destinoImplacvel destino
Implacvel destino
 
Dempeo ii sexta parte
Dempeo ii   sexta parteDempeo ii   sexta parte
Dempeo ii sexta parte
 
Oitava
OitavaOitava
Oitava
 
Dempeo
Dempeo Dempeo
Dempeo
 
A decisão de Amanda - Por Beatriz Rodrigues
A decisão de Amanda - Por Beatriz RodriguesA decisão de Amanda - Por Beatriz Rodrigues
A decisão de Amanda - Por Beatriz Rodrigues
 
Alma gêmea
Alma gêmeaAlma gêmea
Alma gêmea
 
Como voce pode
Como voce podeComo voce pode
Como voce pode
 

En vedette

Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers web
Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers webBenchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers web
Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers webIrma Schaap
 
Presentación CEC Nº 802
Presentación CEC Nº 802Presentación CEC Nº 802
Presentación CEC Nº 802Lucía Rubio
 
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJ
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJLa evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJ
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJKorazza
 
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b21
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b2140c31f36d4d023b0726c48094dd32b21
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b21Pablo Oliveira
 
Samenwerking Sales en Products
Samenwerking Sales en ProductsSamenwerking Sales en Products
Samenwerking Sales en ProductsCoen Hammer
 

En vedette (9)

Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers web
Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers webBenchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers web
Benchmarkonderzoek Inbraakpreventie mobiele medewerkers web
 
CUNIX_2
CUNIX_2CUNIX_2
CUNIX_2
 
Dia del scout
Dia del scoutDia del scout
Dia del scout
 
Presentación CEC Nº 802
Presentación CEC Nº 802Presentación CEC Nº 802
Presentación CEC Nº 802
 
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJ
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJLa evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJ
La evolución en las últimas décadas. Hugo Valdez, CCPGJ
 
Ingenierías
IngenieríasIngenierías
Ingenierías
 
Curso Intel Salta
Curso Intel SaltaCurso Intel Salta
Curso Intel Salta
 
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b21
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b2140c31f36d4d023b0726c48094dd32b21
40c31f36d4d023b0726c48094dd32b21
 
Samenwerking Sales en Products
Samenwerking Sales en ProductsSamenwerking Sales en Products
Samenwerking Sales en Products
 

Similaire à O ultimo bondinho

Similaire à O ultimo bondinho (20)

MINHA IRMÃ BUNDEIRA
MINHA IRMÃ BUNDEIRAMINHA IRMÃ BUNDEIRA
MINHA IRMÃ BUNDEIRA
 
Ana e eu
Ana e euAna e eu
Ana e eu
 
No ponto de ônibus
No ponto de ônibusNo ponto de ônibus
No ponto de ônibus
 
Pressão
PressãoPressão
Pressão
 
Landslide
LandslideLandslide
Landslide
 
Midnight sun pt
Midnight sun ptMidnight sun pt
Midnight sun pt
 
Elas - Ruben Aguiar
Elas - Ruben AguiarElas - Ruben Aguiar
Elas - Ruben Aguiar
 
Vestígios do tempo
Vestígios do tempoVestígios do tempo
Vestígios do tempo
 
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
"A Destinada" - Paula Ottoni (Cap. 1)
 
Nas sombras
Nas sombrasNas sombras
Nas sombras
 
01 o segredo da amizade
01   o segredo da amizade01   o segredo da amizade
01 o segredo da amizade
 
Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Midnight Sun de
Midnight Sun de Midnight Sun de
Midnight Sun de
 
O Fado - Amanda A.
O Fado - Amanda A. O Fado - Amanda A.
O Fado - Amanda A.
 
Filhos da Escuridão: Obscuro
Filhos da Escuridão: ObscuroFilhos da Escuridão: Obscuro
Filhos da Escuridão: Obscuro
 
Livro diário da nossa paixão
Livro   diário da nossa paixãoLivro   diário da nossa paixão
Livro diário da nossa paixão
 
Brigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & CrimeBrigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & Crime
 
1º capitulo
1º capitulo1º capitulo
1º capitulo
 
Consequências
ConsequênciasConsequências
Consequências
 

O ultimo bondinho

  • 1. O último bondinho Minha família tem uma mania insossa de todos os invernos fazer uma viagem até um parque no sul. Nem o nome da cidade e muito menos o do parque eu fazia ou faço questão de saber. Ia pela obrigação. Era o meu martírio por ainda viver com meus pais e ter de cuidar deles. Nesse ponto a vida só compensou de um lado e esqueceu do outro. Em minha casa eu fazia do meu quarto um cômodo à parte. O universo girava em torno dele. Era minha própria galáxia. Saía de lá só quando me era conveniente, ou quando sentia fome ou quando não me aguentava de vontade de ir ao banheiro. E ai de quem tentasse me retirar do meu sossego. Sempre me perguntavam o que tanto eu fazia lá. Respondia que o que
  • 2. acontecia lá, ficava lá. Era grosso. Eles eram acostumados. Principalmente quando queriam bancar os agentes do FBI me perguntando sobre as vezes que eu não atendia a porta, mas a janela se encontrava aberta. E sobre ser tão fechado com meus sentimentos e sempre rabugento. Nessas viagens eu me resguardava no meu mundo. Levava meu celular e meu fone de ouvido. Minhas únicas e aprazíveis companhias. Minha mãe fazia questão de querer me retirar do sossego me oferecendo um ticket para ir em um dos brinquedos. “Tá que eu vou me lambuzar de neve e me congelar por completo”, respondia. “Tem disposição para ficar nesse ócio, mas não tem para se divertir. Você tem que arrumar uma namoradinha”, ela sempre me atracava com essa escrota dedução de que um amor resolveria minha vida. Coitada. Mal sabe ela do quão imponente é esse sentimento destruidor
  • 3. maciço do pouco de razão que há nos seres humanos. Ainda bem que eu desenvolvi um repelente chamado “indiferença” e nunca deixei que ele me picasse e me envenenasse. A nossa cabana ficava no topo mais alto da montanha. Ainda queria saber porque diabos minha mãe escolheu um lugar tão miseravelmente frio e distante de tudo quanto é tipo de socorro. Sempre dizia que se alguém passasse mal lá em cima, lá em cima seria o próprio túmulo. Ela me respondia com o silêncio e fazia questão de amamentar seu egoísmo em não dar atenção nem a mim e nem a minha irmã que dizia o mesmo que eu mas não tão massacrante. Pegávamos sempre um bondinho para ir até lá. O nosso ponto de parada era o último. Aquele bondinho funcionava mais ou menos como um ônibus, só que numa montanha.
  • 4. Nesse dia minha mãe e minha irmã foram na frente. Disse que iria um pouco na floresta visitar uma alcateia, ou então, na falta da primeira opção, deixar pronta uma bola de neve de mais ou menos 8m para atirar no primeiro suspeito de pé-grande que atravesse nos atormentar. Não fiz nem um e nem outro, mesmo que me parecessem tão aventureiros quanto aquelas viagens nunca foram e sempre exigiram. Fui pegar um pequeno machado que trouxe em minha mochila para cortar algumas toras de madeira para levar. Não entrei na floresta, pois já se fazia noite e eu não queria perder o bondinho. Terminei meu serviço e fui tomar um café. Sentei na janela da cafeteria, coloquei meu fone de ouvido e relaxei enquanto me deliciava com aquele liquido tão preto quanto aquela escuridão lá de fora e que
  • 5. me energizava como um trovão vindo dos deuses estrelares. No balcão, havia um moço que tagarelava sem parar. Parecia que nele foi aplicado uma corrente de 220 volts e ele nunca se desligasse. Já era de muito de tempo que esse cara me incomodava. Às vezes preferíamos o silêncio, mas ele teimava em roubá-lo de nós. Eu relevava, mesmo desenhando minha raiva em seu pescoço contorcido em volta de um laço escrito ‘cala a sua boca, porra’. Terminei meu ritual e fui pegar o bondinho. Me assentei. No momento havia uma moça assentada no canto encarando o reflexo na janela e no outro uma moça roçando suas mãos em nervo e arranhando as batatas de sua perna quase se automutilando. Restavam 5min para sua partida. O falador do bar entrou também. “Pronto. Era só o que me faltava. Que vontade de fazer o dedo do meio para o destino e dizer
  • 6. obrigado”, pensei. O bondinho começou a subir. Não foi diferente. Mesmo me assistindo ignorá-lo com meu fone de ouvido embutido tão profundamente em meus ouvidos de modo que não escutasse nada, ele teimava em tentar retirar meu sossego com assuntos irrelevantes. Na medida do tempo eu apenas balançava minha cabeça em sim e não. Às vezes dizia “é”, ou “verdade”, ou quando mais animado “com certeza”. Sempre concordando para que não houvesse contra-argumento fomentando a discussão e o assunto. E ele era resistente. Não calou a boca um segundo. Já não me aguentava de raiva. Fechei meus olhos e me imaginei pegando meu machado e cortando sua garganta. Para que não se debatesse e sujasse todo o bondinho, primeiramente colocaria sua cabeça para fora da janela e depois sim eu daria o golpe. Com o pescoço cortado e
  • 7. sem a necessidade de manter o corpo ali, jogaria o resto do corpo pela janela. Quando abri meus olhos, o rapaz já não estava mais lá. O bondinho estava parado. “Deve ter descido”, imaginei. Ufa. Já estava na altura de paradas. Mas todo mundo me encarava com os olhos arregalados. Estranho. A moça nervosa do outro canto começou a me encarar e falava gritando. Eu não ouvia nada e olhava para o outro lado. Estava relaxado em minhas músicas no fone de ouvido. Ela começou a gritar mais forte. A encarei novamente. Dessa vez fiz uma leitura dos seus lábios e deles não saiam palavras delicadas. Abusou de todos os palavrões possíveis e só faltava me estapear, mesmo com aqueles olhos regados a medo que pude observar. Irritado, fechei novamente meus olhos para relaxar e ignorar e me imaginei pegando forte no pescoço dela, levantado seu corpo
  • 8. de modo que prendesse sua cabeça nos vãos entre os bancos e depois eu metesse um chute tão forte que quebraria seu pescoço. Logo depois a jogaria também pela janela para fazer companhia ao outro imbecil. Quando abri meus olhos, a moça já não estava lá também. Se não tivesse descido no ponto de parada, somente alguma mágica deveria ter acontecido. Ainda bem, já não estava aguentando mais aquela insolente. Só restaram eu e a moça silenciosa. Indescritível o quão harmonioso estava aquele fim de caminho. Mas ela se levantou. Quebrou o pequeno compartimento de segurança e tentou arrombar com força a porta do bondinho. Conseguiu abrir. Acoplou as duas mãos numa das beiradas e gritou para mim: “Vou pular”. Corri até a moça e disse para que ela parasse com aquela estupidez. Ela me
  • 9. encarou e colocou o queixo em cima dos ombros enquanto dizia: “Eu só não pulo se você me der um beijo e um abraço forte”. “Por que você iria querer um abraço e um beijo forte de mim? Eu? Esse cara mais desinteressante que conheço?”, respondi. “Você nem me notou na cafeteria, nem me notou quando cortava as toras de madeira e te encarava sentada num dos bancos perto de lá e muito menos aqui dentro do bondinho. Eu sempre te apreciava, sempre. Você nunca percebeu. Eu quero morrer. Mas você pode me salvar. Você decide”, disse ela forçando a me entregar escrupulosamente ao seu amor platônico. Disse que sim, pois já nos aproximávamos de árvores altas. Puxei sua mão e a trouxe de volta. Fechei rapidamente a porta antes que o vento frio nos fizesse de picolé. “Agora me dê o que você me prometeu”, ordenou ela. Dei um abraço forte. Muito forte. Me envolvi, afinal ela estava fria e eu
  • 10. estava frio. Apreciei nossa troca de calor. Senti sua mão passar pelas minhas costas. Ela empurrava meus braços para trás. Depois, finalmente pelas minhas nádegas. Ainda que tentasse me ausentar das garras da excitação, não fui forte o suficiente para recarregar minhas forças do poder de negação. A sensação era a de que ela havia me acorrentado em alguma fita, pois estava absortamente dominado pelas suas deveras artimanhas de sedução. Ela enfiou a mão no meu bolso e pegou meu celular. “Ei, devolve isso”, gritei. Tentei esticar minhas mãos, mas estava literalmente acorrentado, não foi nenhum delírio de meu tesão. Ela, me distanciando com um dos braços, começou a discar para um número. Segundos depois começou a falar. “Agente Vigenski? Aqui é a Agente Marienne, estou com o suspeito algemado. Finalmente o pegamos. Pode enviar os
  • 11. reforços para o bondinho na Serra de Minaus, no Parque The Hunters, por favor?”