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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
     DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
             CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO




           MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO




OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS
RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTROLE SOCIAL
                        DA LOUCURA




                      Feira de Santana
                            2008
1



           MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO




OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS
RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTROLE SOCIAL
                        DA LOUCURA




                      Monografia apresentada ao Curso de graduação em
                      Direito, Universidade Estadual de Feira de Santana
                      – UEFS, como requisito parcial para obtenção do
                      grau de Bacharel em Direito.

                      Orientadora: Prof. Dra. Marília Lomanto Veloso.




                      Feira de Santana
                            2008
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A Inês Bastos, minha mãe, por garantir, incondicionalmente, todo o suporte
necessário à confecção deste trabalho.

A Tia Bel, in memorian, pelos exemplos de vida e pela sugestão de cursar Direito.

Aos internos do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA, por me
emprestarem suas histórias de vida para a realização da presente pesquisa.

A todos e todas que lutam, que não se calam, que fazem de sua “loucura” cotidiana
um meio de resistir à opressão.
3



                             AGRADECIMENTOS




A Marília Lomanto, minha “guerreira” orientadora, pela atenção, dedicação e
criticidade.

A Riccardo Cappi, meu “desorientador” e amigo, por acompanhar esta “loucura
monográfica” há alguns anos, entre as salas de aula e as mesas de bar.

A Denise Tourinho, por ter gentilmente aceitado o convite para participar da banca.

Aos funcionários e funcionárias do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-
BA, especialmente, a Dr. Paulo, Rogério, D. Vera, Janete, Val, Gilsélia e Rose, por
deslocarem a atenção de seus trabalhos para atender aos meus pedidos e
esclarecer minhas dúvidas.

Aos amigos Jhon, Ivonete e Mirna, pelas valiosas contribuições ao texto.

A Flávia e Adriana, pelo auxílio metodológico e incentivo ao projeto.

A Lívia, pela acolhedora hospedagem durante toda a realização da pesquisa de
campo, e a Núbia, pela igualmente acolhedora “permissão de uso” da biblioteca.

A Tati, Larissa e Lilian, pelos (importantíssimos!!!) livros emprestados.

A João, Kiko e Mirela, companheiros de angústia monográfica, por não me deixarem
sentir solidão nessa jornada.

A Augusto, por compreender minha necessidade de usar o computador, e a
Eduardo, meu pai, por ter mandado o lap-top, instrumento fundamental para os
últimos momentos.

A minha prima Giuliana, por se perder em São Paulo para tirar cópias dos livros que
não encontrei por aqui, e a Mariana, minha irmã, pelas cópias soteropolitanas e por
outros milhares de auxílios impagáveis.

A Lorena, pela inspiração, pelo carinho, por trazer mais “loucura” à minha vida, e por
compreender, não sem imprescindível resistência, minha ausência e impaciência
durante os turbulentos estágios de confecção do texto.

Por fim, a todos aqueles que os limites desta página não me permitem enumerar,
mas contribuíram significativamente para a construção deste trabalho, e aos quais
devoto inesquecível gratidão.
4




   [...] E como seria bom se uma tromba d'água caísse, fizesse
um buraco no chão, que para se ver o fundo fosse preciso uma
                                                       lanterna!
 Uma tromba d'água que arrancasse telhados, decepasse pelo
         meio a estátua do Imperador, quebrasse as correntes da
  cadeia, as barras de ferro que retalham os rostos dos presos
                                          quando vão ver a rua!

                                Breno Accioly, João Urso, 2007.




[...] É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem
               porta, e como doido compreendo o que é perigoso
    compreender, e como doido é que sinto o amor profundo [...].
          Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com
 oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

                             Clarice Lispector, Mineirinho, 1992.
5



                                   RESUMO




O presente trabalho consiste em um estudo sobre a medida de segurança, centrado
nos discursos produzidos pelo poder judiciário e pelo saber psiquiátrico acerca dos
sujeitos rotulados como loucos-criminosos. Utiliza como fontes principais sentenças
e laudos psiquiátricos obtidos no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador–
BA, no intuito de verificar como se processa a relação entre juízes e psiquiatras no
controle social da loucura perigosa. A pesquisa encontra-se estruturada conforme
quatro momentos. O primeiro constitui uma síntese histórica dos discursos sobre
crime e loucura que, unidos pelo conceito de periculosidade, culminaram na criação
da medida de segurança. A seguir, efetua-se uma análise da regulação normativa da
loucura no Brasil, que perpassa a constituição do Manicômio Judiciário, a instituição
da medida de segurança no Código Penal de 1940, as alterações efetuadas pela
Reforma Penal de 1984 e as inovações trazidas pela Lei nº 10.216/2001. Em
seguida, apresenta-se uma base teórica de ruptura com o positivismo criminológico
e psiquiátrico, calcada na Criminologia da Reação Social e na Antipsiquiatria,
revelando-se a medida de segurança como um instrumento que realiza o processo
seletivo de definição concreta da loucura perigosa. Por fim, a última parte consiste
na explanação dos resultados obtidos no trabalho de campo. Expõem-se as
narrativas elaboradas por psiquiatras e juízes sobre os sujeitos criminalizados e
patologizados e analisa-se o que a complexa relação entre os poderes tem
produzido socialmente, a partir dos conceitos de “estado de exceção” e “homo
sacer”, trabalhados por Giorgio Agamben.


Palavras-chave: Medida de segurança; Discurso; Controle social; Hospital de
Custódia e Tratamento; Loucos-criminosos.
6



                            LISTA DE TABELAS




Tabela 1 – Quantidade de internos por sexo.                107
Tabela 2 – Quantidade de internos por delito cometido.     108
Tabela 3 – Quantidade de internos por situação jurídica.   109
7



           LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS




CAPS     Centro de Atenção Psicossocial
CRC      Centro de Registro e Cadastro
HCT      Hospital de Custódia e Tratamento
HCT-BA   Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA
MNLA     Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
MTSM     Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
NAPS     Núcleo de Atenção Psicossocial
URC      Union of Radical Criminology
NDC      National Deviance Conference
8



                             SUMÁRIO




1 INTRODUÇÃO                                                  11



2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES ENTRE
DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA                                   16
2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER
PSIQUIÁTRICO                                                  16
2.2   DO   DIREITO   PENAL      CLÁSSICO   AO   POSITIVISMO
CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO CRIMINOSO COMO
ANORMAL                                                       29
2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal                      29
2.2.2 A Criminologia Positiva                                 32
2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE
SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO                      37


3 O CONTROLE DA LOUCURA PERIGOSA NO BRASIL                    44
3.1 A PERICULOSIDADE TUPINIQUIM E A CONSTITUIÇÃO DO
MANICÔMIO JUDICIÁRIO                                          44
3.2 O CÓDIGO PENAL DE 1940 E A INSTITUIÇÃO DA MEDIDA
DE    SEGURANÇA NO        ORDENAMENTO      JURÍDICO-PENAL
BRASILEIRO                                                    54
3.3 A MEDIDA DE SEGURANÇA ATUAL: QUESTÕES PENAIS E
PROCESSUAIS                                                   60
3.3.1 A Reforma Penal de 1984                                 60
9



3.3.2 O procedimento de aplicação da medida de segurança         63
3.4 REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA? – A LEI Nº
10.216/2001    E   SUAS    IMPLICAÇÕES      NA    MEDIDA    DE
SEGURANÇA                                                        68


4 EM BUSCA DE UMA BASE TEÓRICA PARA
COMPREENDER A MEDIDA DE SEGURANÇA                                74
4.1   SUPERANDO       O      POSITIVISMO    CRIMINOLÓGICO:
ANTECEDENTES         TEÓRICOS       DE      UMA     RUPTURA
PARADIGMÁTICA                                                    74
4.2 A CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL                              82
4.2.1 O Enfoque Interacionista                                   82
4.2.2 Os “movimentos radicais”: Criminologia Crítica e Nova
Criminologia                                                     89
4.3   ANTIPSIQUIATRIA:       A   DOENÇA     MENTAL     COMO
CONSTRUÇÃO SOCIAL                                                95
4.4   UM   ENFOQUE        CRÍTICO   SOBRE    A    MEDIDA    DE
SEGURANÇA                                                        103


5 OS SUJEITOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: A
CONSTRUÇÃO          DOS      LOUCOS-CRIMINOSOS             NAS
HISTÓRIAS CONTADAS POR MÉDICOS E JUÍZES                          107
5.1 NECESSÁRIO SE FAZ UM PARÊNTESE METODOLÓGICO:
A PESQUISA EMPÍRICA                                              107
5.2 OS NÚMEROS DA INSTITUIÇÃO E A ESCOLHA DOS
CASOS                                                            109
5.3 OS CRIMES QUE SE CONTAM: NARRATIVAS QUE
EMERGEM DOS DISCURSOS LEGAIS E PSIQUIÁTRICOS                     114
10



5.3.1 Sobre laudos e sentenças                               114
5.3.2 Um roubo de identidade                                 118
5.3.3 Um ato obsceno: a cristalização do perigo              122
5.3.4 Distúrbios de conduta: o HCT como destino inevitável   132
5.3.5 A loucura da fome                                      137
5.3.6 Uma surpresa e “uma saída”                             144
5.4 CARACTERÍSTICAS E RESULTADOS DE UMA RELAÇÃO
SIMBIÓTICA ENTRE OS PODERES                                  149


6 PARA NÃO CONCLUIR: AS CONSIDERAÇÕES
FINAIS                                                       155



REFERÊNCIAS                                                  160
11




1 INTRODUÇÃO



             Uma pesquisa em Direito sobre a Loucura parece, logo à primeira vista,
paradoxal em sua essência. De um lado, um saber fechado, opaco, uma tentativa de
normalização da vida e dos comportamentos humanos; do outro, a insânia, o
imprevisível, o diferente: a anti-norma. Direito e Loucura, de fato, apresentam-se
como fenômenos profundamente diversos: o primeiro representa uma construção
humana, supostamente investida de racionalidade, a fim de harmonizar a vida social
(geralmente, pela manutenção de uma desarmônica estrutura de dominação); a
outra, por seu turno, situa-se nas fronteiras do inexplicável, do irracional, constitui
uma existência que o homem há alguns milênios tenta em vão decifrar. A Loucura
troça do Direito, de suas leis, de seus códigos e procedimentos. E em troca ele tenta
moldá-la, aprisioná-la, chamá-la à razão. Embalde: a única maneira com que a
Loucura se aproxima do Direito é na luta pelo reconhecimento de um direito
irrenunciável à diferença.
             Ao considerar a Loucura esta forma diferenciada de existir individual e
socialmente, decidiu-se, nessa pesquisa, estudar as amarras, as formas de
contenção, as técnicas de docilização e aprisionamento, que a humanidade instituiu
para lidar com algo que não consegue compreender. Todavia, o próprio ato de
pesquisar,     no   campo    do   Direito,   converte-se   em   um   problema.   Saber
tradicionalmente normativo, fechado nos códigos, a ciência jurídica não é das mais
afeitas à atividade de pesquisa: “[n]o mais das vezes, escolhe-se um tema de
pesquisa, sobre o qual são feitos levantamentos bibliográficos superficiais nos
manuais, e constrói-se um grande resumo das opiniões emitidas pelos autores mais
acessíveis” (FRATTARI, 2008, s.p.).
12



          É possível atribuir a essa quase total ausência de relação entre ciência
jurídica e pesquisa as principais dificuldades metodológicas deste trabalho, pois,
para estudar a Loucura, foi necessário ir além. Não se pretendia conhecer a
interpretação doutrinária ou jurisprudencial de uma alínea, de certo inciso, de tal
parágrafo, do artigo daquela lei número tanto; tampouco se buscava unicamente
descobrir se este ou aquele instituto era ou não constitucional. Desse modo, a
ciência jurídica e seu tradicional método de compilação das idéias de festejados
autores revelaram-se insuficientes para a abordagem pretendida. Foi preciso
recorrer ao auxilio da Sociologia e, mais diretamente, da Criminologia.
          Entretanto, insiste-se, essa é uma pesquisa em Direito. Malgrado se
apontem as deficiências da tradicional pesquisa, resultante de um tradicional ensino,
que é fruto da própria tradicionalidade do Direito, é preciso criar espaços para a
formulação de uma contra-hegemonia à ciência jurídica puramente dogmática, isto
é, centrada na lei como ponto de partida e modelo de referência. Além da norma, o
fenômeno jurídico é um complexo de práticas concretas, vivenciadas pelos sujeitos
nas relações sociais.


                        O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido,
                        isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu sua
                        existência e no seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia
                        o estudo do direito do seu isolamento, projecta-o no mundo real onde
                        ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os
                        outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história
                        social (MIAILLE, 1994, p. 23).


          Esboça-se aqui, outrossim, uma perspectiva aberta de ciência social do
Direito, não no sentido de uma exclusiva sociologia jurídica, mas buscando instituir a
ciência jurídica como verdadeira ciência social. Para tanto, a compreensão do
fenômeno estudado, para além do aspecto normativo, leva em conta contribuições
advindas da História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Política e, sobretudo, da
Criminologia, que forneceu a base teórica fundamental para este trabalho.
          Uma vez explicitado de que Direito se fala, pode-se retornar à Loucura.
No intuito de compreender como ocorreu o processo histórico de segregação e
patologização desse fenômeno, definiu-se como ponto central de investigação a
medida de segurança, prevista no ordenamento brasileiro como reposta penal para
os indivíduos que cometerem crimes e forem julgados loucos. Pretendeu-se, por
13



conseguinte, estudar este instituto, a partir dos diversos discursos, jurídicos,
criminológicos e psiquiátricos, que o rodeiam: 1) os discursos historicamente
construídos que converteram a loucura em doença mental e atribuíram ao criminoso
o status de anormalidade, e, juntos, através do conceito de periculosidade, erigiram
uma resposta social específica para os sujeitos considerados perigosos (entre os
quais, o louco-criminoso); 2) os discursos que, em âmbito nacional, relacionam-se
com o controle da periculosidade tupiniquim, tanto os que pugnam pela sua
intensificação, quanto os de abrandamento de sua violência; 3) os discursos que
efetuam uma irreversível deslegitimação da medida de segurança, pela negação da
existência ontológica de crime e doença mental, e, principalmente; 4) os discursos
elaborados na prática cotidiana por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos
psiquiátricos, sobre os sujeitos aos quais tal medida é aplicada.
          O objeto da presente pesquisa pode ser, então, anunciado como a análise
dos discursos proferidos por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos periciais,
sobre os sujeitos definidos como loucos-criminosos, internados no Hospital de
Custódia e Tratamento de Salvador – BA. Pretende-se, com isso, através das
narrativas de médicos e juízes sobre as histórias de vida dos sujeitos, desvendar
quem são os indivíduos aos quais se atribui o rótulo de louco-criminoso, com base
em um diagnóstico de periculosidade, e através desse processo, entrever como se
processa a relação entre Poder Judiciário e Psiquiatra no processo de interação
social que constrói, concretamente, uma loucura considerada perigosa.
          A metodologia para realizar tal intuito foi projetada segundo duas fases: a
primeira, de caráter analítico, consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como fontes
livros, revistas especializadas, jornais e sites virtuais, visando a efetuar uma síntese
histórica e esboçar um marco teórico para o trabalho; a segunda representou a parte
empírica, efetuada através de pesquisa de campo no Hospital de Custódia e
Tratamento de Salvador, instituição destinada a acolher os sujeitos que estiverem
em cumprimento de medida de segurança no Estado da Bahia, bem como todos
aqueles relacionados com perícia psiquiátrica no âmbito penal. Nessa fase, o
trabalho foi eminentemente documental e teve como fontes os laudos psiquiátricos e
as sentenças judiciais obtidas no Centro de Registro e Controle (CRC) da instituição
abordada. Além disso, utilizaram-se elementos de outros tipos de pesquisa, como o
estudo de caso e a abordagem biográfica.
          Este trabalho constitui, assim, uma pesquisa exploratória, já que, por seu
14



caráter introdutório, visa basicamente a uma maior familiaridade com o problema
estudado e o levantamento de hipóteses acerca da questão. Pretende-se, antes,
elaborar novas perguntas que fornecer respostas definitivas.
          Deve-se, ainda, reconhecer a contribuição significativa para a presente
monografia da Dissertação de Mestrado de Maria Fernanda Tourinho Peres (1997),
intitulada Doença e Delito: relação entre prática psiquiátrica e poder judiciário no
Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, Bahia, a qual apresenta evidente
proximidade com o objeto aqui estudado. Esse trabalho, além de indicar referências
sobre a legislação psiquiátrica brasileira, forneceu uma análise da medida de
segurança como parte de um amplo “dispositivo de controle-dominação da loucura”,
leitura baseada em Michel Foucault (1984) e retomada na presente pesquisa.
Entretanto, a especificidade da abordagem aqui pretendida se mantém em relação
àquela obra, graças, sobretudo, ao referencial teórico calcado na Criminologia da
Reação Social e à exposição das narrativas construídas por juízes e psiquiatras.
          O texto, enfim, encontra-se estruturado conforme quatro momentos. O
primeiro consiste em uma análise das transformações históricas no olhar social
sobre loucura e crime que resultam, ao final, na criação da medida de segurança.
Primeiramente, estudam-se, a partir dos trabalhos de Foucault (1984; 1997), as
modificações nos discursos produzidos sobre a loucura no Ocidente e a constituição
do saber alienista. A seguir, aponta-se a transição no pensamento sobre o crime da
Escola Clássica do Direito Penal para a Criminologia Positivista, momento em que
se verifica uma patologização do homem delinquente. Nessa parte, novamente, a
obra de Foucault (1999) é central para determinar, por meio da crítica historiográfica
à prisão, as modificações do aparelho punitivo que reclamaram uma nova tecnologia
de docilização dos corpos. Ao final, analisa-se como a união entre criminologia e
psiquiatria, no auge do positivismo, institui uma nova modalidade de controle social,
voltada para a contenção dos sujeitos considerados perigosos.
          O segundo momento do trabalho apresenta uma síntese da normatização
legislativa do fenômeno da loucura no Brasil, do século XVI aos dias atuais.
Desvenda-se, então, como surge o primeiro Manicômio Judiciário brasileiro e como
se dá a instituição normativa da medida de segurança, no Código Penal de 1940.
Revelam-se, ainda, o procedimento de aplicação da medida de segurança e
algumas questões relacionadas à Lei nº 10.216/2001, considerada o símbolo da
Reforma Psiquiátrica brasileira.
15



          Na terceira parte, pretende-se delinear uma base teórica de ruptura com o
positivismo criminológico e psiquiátrico. Utilizam-se, assim, as teses da Criminologia
da Reação Social e da Antipsiquiatria, que desconstroem, respectivamente, os
conceitos de crime/ criminoso e doença/ doente mental, para uma compreensão
crítica da medida de segurança.
          O quarto e último momento consiste na explanação da pesquisa empírica,
em que os discursos dos juízes e psiquiatras envolvidos com o Hospital de Custódia
de Salvador são revelados, por meio das narrativas construídas sobre os doentes
mentais infratores. Apresenta-se, mais detidamente, a metodologia utilizada, os
dados obtidos na instituição e como ocorreu a escolha de cinco casos para estudo.
A seguir, expõem-se as narrativas elaboradas sobre os sujeitos em cumprimento de
medida de segurança, com uma breve análise sobre cada uma delas. Estuda-se,
finalmente, como se processa a complexa relação entre poder judiciário e psiquiatria
e quais são os resultados sociais dessa interação, a partir dos conceitos de “estado
de exceção” e “homo sacer”, trabalhados pelo filósofo italiano Giorgio Agamben
(2002; 2004).
          Espera-se, com isso, estar contribuindo na incansável tarefa de formular
um discurso contra-hegemônico à dogmática-penal tradicional (PRANDO e
SANTOS, 2007), por meio da desconstrução deslegitimadora de um de seus mais
complexos e violentos institutos.
16




2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA
PERSPECTIVA                  HISTÓRICA              DAS         RELAÇÕES                ENTRE
DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA
2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER
PSIQUIÁTRICO



            Compreender o processo de surgimento da medida de segurança
pressupõe, necessariamente, conhecer algumas das diferentes formas pelas quais
os agrupamentos humanos, ao longo de sua história, lidaram com comportamentos
designados como loucura. Significa, ainda, percorrer os (des)caminhos que levaram
tal categoria a adquirir o status de doença mental.
            De início, deve-se pontuar que, nas mais diversas sociedades, as
interações entre os indivíduos são permeadas por condutas que acabam se
afastando de um modelo reconhecido pelo grupo como válido. Em outras palavras,
em qualquer comunidade, há sempre ações que violarão determinadas regras
sociais e que, num determinado contexto, serão taxadas pelo grupo como
desviantes de um padrão considerado normal 1.
            Assim, a violação de algumas regras de conduta pode levar o
transgressor a receber um rótulo: mal educado, ébrio, perverso, pecador, criminoso.
Quando ao descumprimento de tais regras não for possível corresponder nenhuma

1
  Para Thomas Scheff (1970, p. 35-37), “[l]a transgresión de las reglas se refiere a la conducta que
viola abiertamente las reglas aceptadas por el grupo. Los sociólogos suelen considerar estas reglas
como normas sociales”. A desviação, assim, “no es una cualidad del acto que comete la persona,
sino una consecuencia de que otros apliquen reglas y sanciones al ‘transgresor’. […] La transgresión
de las reglas se refiere a una clase de actos: la violación de las normas sociales; la desviación, a
actos determinados que reciben, en forma pública y oficial, el rótulo de violaciones de las normas”.
17



dessas categorias, quando se tratar de normas cujo consenso social é tão completo
que são percebidas pelo grupo como elementares2, restará um resíduo dos mais
diversos tipos de transgressão para o qual a cultura não atribui nenhum rótulo
específico. A essa desviação residual atribui-se o nome de loucura.


                          [L]os diversos tipos de transgresión de las reglas para los cuales
                          nuestra sociedad no proporciona rótulos explícitos y, por
                          consiguiente, determinan a veces que se catalogue al transgresor
                          como enfermo mental, son, desde el punto de vista técnico,
                          transgresiones de reglas residuales (SCHEFF, 1970, p. 37 – grifo
                          original).


             Em decorrência, “aqueles cujas reações espontaneamente se aproximam
mais do padrão proposto são favorecidos; aqueles cujo comportamento se situa fora
do arco de possibilidades antropológicas privilegiadas pela sociedade são
[considerados] anormais” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, pp. 24-25 – grifo nosso).
             No entanto, nem sempre os comportamentos desviantes são tidos,
necessariamente, como indesejáveis. Em comunidades tribais e civilizações antigas,
a loucura posicionava-se, muitas vezes, no campo do sagrado, dando-se destaque
social e respeito ao discurso desviante. Em tradicionais sociedades africanas e
árabes, por exemplo, o louco era o eleito de Deus e da Verdade, sendo-lhes
totalmente estranha qualquer distinção entre o normal e o patológico 3.
             Em verdade, há uma longa tradição envolvendo a loucura na história das
sociedades. Registros de pessoas que se afiguravam estranhas estão presentes em
relatos que remontam aos tempos bíblicos: indivíduos afirmavam ouvir vozes que
ninguém mais ouvia ou ver coisas, e até poder voar, sendo encarados como
feiticeiros, possuídos pelo demônio, sofredores de desarranjos mentais ou,
contraditoriamente, como santos. Segundo George Rosen (apud MILES, 1982, p.
13), investigadores que buscaram reconstruir um histórico de casos de loucos na
Grécia e Roma antigas constataram um paradoxo semelhante: “[e]mbora à ‘loucura

2
  Scheff (1970, p. 36) exemplifica essa situação com as normas destinadas a se estabelecer uma
conversa: “[…] se acepta sin cuestionar que la persona que conversa con otra debe volver el rostro
hacia su interlocutor y no hacia otro lado, que debe mirarlo a los ojos y no clavarle la mirada en la
frente, por ejemplo (...). Al individuo que viole con regularidad estas expectativas no se lo considerará
simplemente un malcriado, sino una persona rara, extraña y temible, porque su conducta infringe el
supuesto mundo del grupo, el mundo interpretado como el único natural, decoroso y posible”.
3
  “Considerados à luz da Psiquiatria, os devaneios, transes e êxtases vivenciados nas culturas
primitivas e nas civilizações arcaicas seriam, em essência, estados patológicos. Porém, seria legítimo
perceber aqueles fenômenos segundo essa ótica?” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 39).
18



divina’ dos profetas e oráculos fosse atribuído um elevado prestígio, aqueles que
eram rotulados como dementes tornavam-se, mais comumente, objeto de insultos,
desprezo e ridículo”.
            Percebe-se, então, que, em certos contextos, embora houvesse atitudes
às quais se atribuía o status de loucura (como comportamento social reprovado),
outras condutas, também anormais, eram valorizadas, simbolizando prestígio
perante o grupo. Verifica-se, ainda, que, mesmo existindo opiniões negativas e
restrições sociais à pessoa considerada louca, como a privação de direitos4, a
relação da comunidade com a loucura não se operava unicamente através da lógica
de exclusão social, tampouco do encarceramento com fins terapêuticos.
            Nesse sentido, Michel Foucault (1984, p. 75), realizando uma análise de
diversos discursos produzidos sobre a loucura, vai demonstrar que sua definição
enquanto doença mental é operação relativamente recente na história ocidental. A
História da Loucura na Idade Clássica (1975), proposta por Foucault, pode,
esquematicamente, ser dividida segundo três grandes momentos: 1) um período de
liberdade e de verdade, que inclui os últimos séculos medievais e o século XVI; 2) a
Grande Internação, que abrange os séculos XVII e XVIII e; 3) a época
contemporânea, pós-Revolução Francesa, quando entra em cena o saber médico,
no intuito de lidar com os loucos que abarrotam os hospitais-gerais.
            O momento inicial caracteriza-se por uma experiência bastante polimorfa
da loucura5. O homem europeu estabelece relações com algo que ele designa como
loucura, desrazão, porém elas fazem parte de sua vida cotidiana: a loucura possui
espaço para falar de si mesma; assusta e, simultaneamente, fascina.
            Além disso, a loucura permaneceu, durante certo tempo, afastada de
fundamentos médicos. Muito embora, desde a medicina grega, algumas atitudes
fossem compreendidas como patologias (frenesi, melancolia, surtos de violência),
com a conseqüência de uma prática curativa, inexistia uma perspectiva de controle
total da loucura pelo saber médico. Havia, assim, leitos reservados aos loucos nos
hospitais da Alta Idade Média; contudo, apresentavam muito mais um caráter de

4
  No direito romano antigo, por exemplo, o louco não podia se casar, nem possuir propriedades
(MILES, 1982, p. 13).
5
  Foucault (1997, p. 17-26) dá ênfase significativa, nesse período, à oposição entre os discursos de
uma “experiência cósmica da loucura”, no fascínio retratado pelas artes plásticas, e da “experiência
crítica da loucura”, na sátira moral expressa na literatura e na filosofia, que, relacionando-se, vão
caracterizar os diversos modelos de interação entre a sociedade da época e a loucura.
19



assistência e isolamento que uma perspectiva de tratamento6. Não se propunham,
pois, a aprisionar, em conceitos médicos, a grande extensão do fenômeno do
desatino.
              O período histórico em que essa extensão torna-se mais visível é
certamente o Renascimento. No fim do século XV, a loucura se renova e se expande
com o poder da linguagem.


                         Há as festas populares em torno dos espetáculos dados pelas
                         “associações de loucos”, como o Navio Azul em Flandres; há toda
                         uma iconografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breughel e
                         a Margot a Louca; há também os textos sábios, as obras de filosofia
                         ou crítica moral, como a Stultifera Navis de Brant ou o Elogio da
                         loucura de Erasmo. Haverá, finalmente, toda a literatura da loucura
                         [...]. Shakespeare e Cervantes no fim do Renascimento são
                         testemunhas do grande prestígio desta loucura cujo reinado próximo
                         tinha sido anunciado, cem anos antes, por Brant e Bosch
                         (FOUCAULT, 1984, p. 77 - grifos originais).


             Até meados de 1650, loucos ainda divertiam o povo, com dramatizações
e festejos populares. O público culto apreciava livros escritos por loucos célebres,
como Bluet d’Arbère, publicados e lidos como obras de loucura (FOUCAULT, 1984,
p. 78).
             De outro lado, em contraponto à exaltação das excentricidades da
loucura, e ao descaso com que a medicina a via, a Igreja Católica, principal
detentora de poder no período, já atuava no sentido de reprimir tudo aquilo em que
vislumbrasse manifestação da influência satânica. “O perturbado mental não era
exatamente um doente que merecesse atendimento médico, mas nem por isso,
dependendo de sua expressão, ficava isento, vez ou outra, da censura religiosa”
(VELO, 2000, p 275). Assim, pelo viés católico, a expressão da loucura aproximava-
se dos ritos não-cristãos, como magia e feitiçaria.
             Havia, também, um antigo costume de escorraçar os loucos das cidades,
para que corressem pelos campos distantes, ou, principalmente, entregando-os a
barqueiros, que os levavam de porto em porto, para que, nessa existência errante,
encontrassem seu destino. A Renascença cristalizou esse costume na Nau dos
Loucos, pintura de Jeronimo Bosch, e, na Narrenschiff, de Brant. No entanto, longe
de significar pura exclusão, esse fenômeno é bastante complexo, como demonstra

6
    Sobre o complexo fenômeno de nascimento do hospital como espaço da clínica, cf. FOUCAULT,
20



Foucault (1997, p. 10):


                          [n]ão é fácil levantar o sentido exato deste costume. [...] [O]s loucos
                          não são corridos da cidade de modo sistemático. Por conseguinte, é
                          possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros,
                          aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus
                          cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas
                          cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou
                          donativos feitos em favor dos insanos. [...] E é possível que essas
                          naus de loucos, que assombraram a imaginação de toda a primeira
                          parte da Renascença, tenham sido naus de peregrinação, navios
                          altamente simbólicos de insanos em busca da razão.

            Ainda segundo o Autor (1997, p. 11-12),

                          [...] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele
                          ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a
                          certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua
                          própria partida. [...] Além do mais, a navegação entrega o homem à
                          incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino,
                          todo embarque é, potencialmente, o último.


            De todo modo, pode-se dizer que a repressão porventura exercida sobre
a loucura era dispersa, descentralizada. Não havia um saber que dela se ocupasse,
tampouco instituições específicas para controlá-la. A exclusão do louco, mesmo
presente, ainda não era a marca principal da relação entre comunidade e loucura.
Até porque, nesse período, dado o seu número e a gravidade da situação, a
preocupação social de excluir voltava-se para os leprosos.
            De fato, na Alta Idade Média, a lepra assola a Europa. Como resposta,
instituem-se       os   leprosários,   gigantescos     estabelecimentos      para   onde    são
compulsoriamente encaminhados os doentes, chegando a existir cerca de dezenove
mil por todo o continente. Contudo, a exclusão nessas cidades malditas não significa
apenas segregação para impedir o contágio, simbolizando muito mais um ritual
sacro, no qual a lepra expressa a cólera e a bondade de Deus perante o leproso.
Conforme Foucault (1997, p. 06), “[o] abandono é, para ele, a salvação; sua
exclusão oferece-lhe uma outra forma de comunhão”.
            No século XV, verifica-se súbito desaparecimento da lepra, consequência
da longa segregação e, com o término das Cruzadas, da ruptura com focos orientais
da doença. Some a lepra e o vazio se estabelece. Os inúmeros antigos leprosários
encontram-se destituídos de função: alguns se tornam casas de correição para

1985, p. 99-111.
21



jovens, outros são abandonados. Apenas no final do século XV, a lepra começa a
ser substituída, nos leprosários e no imaginário social, pelas doenças venéreas.


                         Esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos [...].
                         Por duas vezes [...], a eles tinham sido destinadas [...] diversas
                         barracas e casebres antes utilizados pelos leprosos. Eles logo se
                         tornam tão numerosos que é necessário pensar na construção de
                         outros edifícios, “em certos lugares espaçosos de nossa cidade e
                         arredores, sem vizinhança”. Nasceu uma nova lepra, que toma o
                         lugar da primeira (FOUCAULT, 1997, p. 07).


            Todavia, as doenças venéreas não permanecem muito tempo nesse
espaço de exclusão e logo assumem seu lugar, entre as outras doenças, nos
hospitais. A partir de então, mesmo considerada num conjunto de juízos morais, é a
dimensão médica que prevalece. E surge um novo vazio... Até que uma grande
internação, em meados do século XVII, preencha os estabelecimentos vagos.
            O fenômeno da Grande Internação está, antes de tudo, indissoluvelmente
ligado a uma nova concepção moral da miséria. Enquanto o pensamento medieval
concebe a pobreza como um estado de sofrimento divinamente determinado (a fim
de que a expiação em vida possa assegurar a glória prometida no Paraíso pós-
morte), a era clássica, com a racionalidade da burguesia nascente e a nova ética
trazida pela Reforma protestante7, passa a ver a miséria como sinal de
predestinação. No mundo de Lutero e Calvino, pobreza designa castigo. Assim, “ela
passa de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral que a
condena” (FOUCAULT, 1997, p. 59), tornando-se um obstáculo ao progresso. Se
antes se reprovava a usura, condena-se agora o ócio.
            Inicia-se, então, a prática do internamento, como uma política de gestão
da miséria8, destinada a enclausurar os pobres de todos os sexos, inválidos,
doentes, velhos, prostitutas, mendigos, libertinos, inválidos, eclesiásticos em

7
  Através do conceito de vocação, elaborado por Martinho Lutero (1483-1546), a Reforma Protestante
condenará o ócio, inclusive religioso, exaltando, sobremaneira, o trabalho: “[...] o mais importante é
que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida. A expressão paulina ‘Quem
não trabalha não deve comer’ é incondicionalmente válida para todos. A falta de vontade de trabalhar
é um sintoma da ausência do estado de graça” (WEBER, 1985, p. 113).
8
  Para Loïk Wacquant (2001), o moderno sistema penal dos países capitalistas, intensificado pela
ideologia neoliberal, funciona como um instrumento de gestão da pobreza, criada pela desigualdade
social. Assim, no que parece ser a retomada da medieval lógica de internação, o Estado neoliberal se
propõe à missão de impor aos miseráveis um trabalho cada vez mais precário, reduzindo as políticas
sociais e controlando o desemprego crescente através de políticas e teorias repressivas, como a
Tolerância Zero, e a Teoria da vidraça quebrada, ambas produto de um grande projeto de repressão
da pobreza indócil, intitulado Movimento Lei e Ordem.
22



infração, familiares indesejados, enfim, todos os desviantes do padrão de conduta
concebido como modelo pela burguesia nascente. Assim, os inadaptados ao novo
padrão de produção, circulação e consumo de riquezas foram sistematicamente
internados9. Entre eles, obviamente, os loucos. A internação, assim,


                         [...] organiza numa unidade complexa uma nova sensibilidade à
                         miséria e aos deveres da assistência, novas formas de reação diante
                         dos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma
                         nova ética do trabalho e também o sonho de uma cidade onde a
                         obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas autoritárias da
                         coação (FOUCAULT, 1997, p. 56).


            Enfim, num fenômeno complexo, erige-se a sonhada cidade disciplinar10.
            Um ano é significativo nesse processo: 1656. Nasce o Hospital Geral de
Paris, local específico para essa internação maciça. Esse novo estabelecimento logo
se consolida e se expande: apenas vinte anos depois, há um Hospital Geral em
cada grande cidade da França, por vezes ocupando espaços pertencentes aos
extintos leprosários. “O Classicismo inventou o internamento, um pouco como a
Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por
novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’” (FOUCAULT, 1997, p. 59).
            Com as internações, inicia-se uma distinção (baseada na concepção
religiosa da pobreza, que a vislumbra como fruto da vontade divina) entre o bom
pobre, submisso, que vê no internamento uma obra assistencial, onde pode
encontrar descanso; e o mau pobre, que nele enxerga uma medida de repressão e
busca escapar a essa ordem. O que está em jogo, portanto, é um projeto de
docilidade da miséria, que se justifica num caso como no outro: o internamento
servirá como benefício assistencialista aos pobres dóceis, ou como punição para os
rebeldes, havendo distintos lugares para eles no espaço do Hospital Geral
(FOUCAULT, 1997, p. 61). É a partir dessa valoração ética maniqueísta que a
loucura passa a ser percebida, ora agrupada entre os bons pobres, ora entre os
indóceis; é assim que ela abandona a nau em que ritualmente navegava e se fixa no
hospital, ao lado da miséria e do ócio, criando parentescos novos e estranhos.

9
   Foucault (1997, p. 48) aponta que, ao longo do século XVII, mais de um por cento da população
parisiense esteve enclausurada por algum tempo nas celas das casas de internamento.
10
    “Utopia da cidade perfeitamente governada” a cidade disciplinar constitui, para Foucault (1999, p.
164), o modelo apresentado nas cidades em que se verificou uma epidemia de peste: “[...]
atravessada pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, [...] imobilizada no
funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais”.
23



            É necessário destacar que, apesar do nome, esses hospitais ainda não
possuem caráter médico11. Antes disso, constituem entidades administrativas, com
estrutura semi-jurídica, destinadas a controlar a pobreza e a ociosidade, através de
uma disciplina voltada para a religiosidade e, sobretudo, o trabalho:


                        [...] quando se cria o Hospital Geral, o que se pretende é suprimir a
                        mendicância, isto é a ociosidade como fonte das desordens. A
                        prática de internamento não tem sentido médico, nem preocupações
                        de cura, mas é um problema de polícia. [...] Portanto, é como casas
                        de trabalho forçado que poderiam ser entendidas as casas de
                        internamento. A exclusão social dos condenados dá-se por uma
                        medida de reclusão. [...] No entanto, essa prática possui também um
                        sentido econômico. (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 65-66).


            De fato, no século que antecedeu o início sistemático das internações, a
mendicância e a ociosidade passam a constituir objeto central das preocupações
com a ordem social. Não à toa: por volta de 1559, Paris apresenta mais de 30.000
mendigos, o que representa um número superior a três décimos da população local.
As internações surgem, assim, num aperfeiçoamento de primitivas práticas
repressivas da mendicância, como o açoite e o banimento (FOUCAULT, 1997, p.
64). À medida que se produz uma crise, aumentando-se o número de pobres, o
internamento entra em ação para conter a desordem; fora dos períodos de crise, a
internação passa a adquirir um novo significado:


                        [n]ão se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho
                        aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a (sic)
                        prosperidade de todos. A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos
                        tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de
                        desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a
                        agitação e as revoltas (FOUCAULT, 1997, p. 67).


            Durante o século XVIII, entretanto, a política de internamento começou a
dar sinais de seu fracasso. De um lado, os hospitais tornaram-se lugar da
ociosidade, graças ao alto número de internos e à inexistência de trabalho para

11
  Foucault, em O Nascimento do Hospital, (1985, p. 102), analisando o distanciamento entre prática
médica e instituição hospitalar na Idade Média, afirma que “o Hospital Geral, lugar de internamento,
onde se justapõem e se misturam doentes, loucos, devassos, prostitutas, etc., é ainda, em meados
do século XVII, uma espécie de instrumento misto de exclusão, assistência e transformação
espiritual, em que a função médica não aparece”.
24



todos12; de outro, a internação foi responsável por gerar a miséria que se propunha a
conter. É simples: nos períodos em que não havia crise, a mão-de-obra barata
encontrada nos hospitais era responsável por causar desemprego em regiões
próximas, gerando novos pobres ociosos, a quem se determinava a internação.
Criou-se, assim, um ciclo vicioso que só aumentava a quantidade de reclusos e os
gastos com aqueles estabelecimentos. Em decorrência, no final desse século, uma
nova lógica econômica revelou-se totalmente avessa ao internamento. Percebeu-se
que a absorção dos indigentes nas casas de internação reduzia a mão-de-obra
disponível para o trabalho, aumentando os custos da produção. Ora,


                        [...] por quê (sic) prender “as mulheres de vida alegre que, levadas
                        para as manufaturas do interior, poderiam tornar-se mulheres
                        trabalhadoras”? Ou ainda celerados que só aguardam a liberdade de
                        se fazer enforcar. Por quê (sic) essas pessoas, amarradas a
                        correntes ambulantes, não são utilizadas naqueles trabalhos que
                        poderiam ser malsãos para operários voluntários? Serviriam de
                        exemplo... (MIRABEAU apud FOUCAULT, 1997, p. 397).


            Pareceu muito mais interessante recolocar toda a população de internos
no circuito da produção, dividindo-a entre os locais em que a mão-de-obra era mais
escassa e gerando uma reserva humana capaz de baratear os salários e, por
conseguinte, atenuar o elevado preço dos produtos.
            Além disso, após certo tempo, como sucessão dos leprosários, os
hospitais-gerais passam a consubstanciar a idéia do mal. Teme-se o internamento,
fala-se em febre de prisão, acredita-se que o ar contaminado dessas casas
corromperá as cidades, como se, no espaço fechado que aloja os indesejados
sociais, com todos os seus crimes e vícios, o mal entrasse em fermentação,
espalhando-se pelo ar e contaminando o que houvesse ao redor.
            Consequentemente, a loucura, em conjunto com várias formas de
desajuste social, retoma o seu caráter de fascínio e medo, apresentado durante a
Renascença. Todavia, ela está agora menos próxima do desatino e muito mais
ligada a comportamentos que despertam uma crítica moral: nas tentativas de se
estabelecer uma classificação dos indivíduos loucos, fenômenos como roubo,

12
   De acordo com Foucault (1987, p. 69), chegava-se a absurdos como manter os internos
trabalhando nas obras de um grande poço, que há muito se tinha revelado inútil, ou substituírem-se
os cavalos que carregavam água por equipes de internos.
25



maldade, temor, orgulho, vaidade passam a significar comportamentos doentios13.


                         Com isso, [a loucura] escapa ao que pode haver de histórico no devir
                         humano, para receber um sentido numa moral social: ela se torna o
                         estigma de uma classe que abandonou as formas da ética burguesa;
                         e no exato momento em que o conceito filosófico de alienação
                         adquire uma significação histórica pela análise econômica do
                         trabalho, nesse mesmo momento o conceito médico e psicológico de
                         alienação liberta-se totalmente da história para tornar-se crítica moral
                         em nome da comprometida salvação da espécie (FOUCAULT, 1997,
                         p. 375-376).


            Além de conferir um novo status à loucura, o grande medo do final do
século XVIII gerou uma introdução maior da figura do médico no espaço do hospital-
geral, menos com uma perspectiva terapêutica que como um guardião, cujo objetivo
seria proteger os demais indivíduos do perigo que o mal do internamento passou a
representar. Iniciou-se aí o processo de aquisição do estatuto médico da loucura.
            Outra questão que merece destaque (embora não cause surpresa), nesse
processo gradual de deslegitimação do internamento, foram as internações
arbitrárias. Às vítimas da tirania das famílias e do despotismo paterno14, somaram-se
os enclausuramentos dos inimigos do antigo regime que se procederam no período
anterior à Revolução Francesa. Bem assim, no momento pós-revolucionário, os
muros desses estabelecimentos, sobretudo Bicêtre, viram-se preenchidos por
“inimigos da nação”, aristocratas e sacerdotes que, escondidos, tentavam escapar à
condenação na Bastilha (FOUCAULT, 1997, p. 463).
            Crítica econômica do internamento, necessidade de mão-de-obra para a
produção agrícola e manufatureira; altos custos dos estabelecimentos e pavor
popular por estas casas; denúncia política de internações arbitrárias, protestos e
revoltas: o fim do século XVIII foi também o ocaso da Grande Internação. Como

13
   Consoante Foucault (1997, p. 197) “à medida que se aproximava das diversidades concretas entre
as quais se dividia a loucura, à medida que nos afastávamos de um desatino que problematiza a
razão em sua forma geral, [...] víamos a nosografia assumir o aspecto, ou quase, de uma galeria de
‘retratos morais’. No momento em que quer alcançar o homem concreto, a experiência da loucura
encontra a moral”. O que estava em jogo, portanto, nos primórdios da concepção patológica da
loucura, era a defesa da moralidade burguesa como a única forma possível de existir socialmente.
14
   Thomas Szasz (1994, p. 169), confrontando a posição de Foucault sobre a origem do asilo a partir
do internamento, defende que “[q]uando se iniciou o negócio da loucura, os indivíduos encarcerados
como dementes eram membros das classes abastadas, que representavam um problema para suas
famílias”. Para ele, o asilo surgiu a partir da iniciativa privada e do desejo das famílias ricas de se
livrarem de indivíduos problemáticos. Contudo, Foucault, em diversas passagens de sua obra (1997,
p. 52; 92; 113; 382-386), reconhece a existência de interesse familiar na internação, bem como de
26



antes ocorreu com os leprosários, os hospitais-gerais vão sendo esvaziados.
Instaura-se um marco legal que restringe as internações: a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão. A partir de então,


                        [n]inguém pode ser preso, nem detido, a não ser nos casos previstos
                        pela lei e segundo as formas por ela prescritas. . . A lei só deve
                        admitir penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode
                        ser punido a não ser em virtude de uma lei estabelecida e
                        promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. A era do
                        internamento se encerrou (FOUCAULT, 1997, p. 418).


            Se antes, para conter as crises, foi preciso enclausurar a pobreza, exige-
se agora sua libertação. Porém, nem todas as categorias de indivíduos que habitam
os hospitais terão direito a essa liberdade: ela destina-se apenas aos que, mesmo
representando um desajuste social, revelem-se funcionais para o processo
produtivo. A internação permanece o destino certo de velhos inválidos, criminosos e
loucos15. E é nesse espaço, agora reduzido em sua diversidade, que a loucura será
diretamente apontada, que seus contornos serão delimitados.
            Já há algum tempo, surgiam diversos protestos contra a internação.
Revoltavam-se os internos, sobretudo, com aquilo que consideravam uma dupla
punição: o enclausuramento ao lado de loucos. Foram eles os responsáveis por
apontar, primeiramente, essa classe particular de homens cuja desordem é
permanente e a inquietação irredutível (FOUCAULT, 1997, p. 396). Uma vez
reduzida a população internada, essa distinção começou a se mostrar de forma mais
evidente; os protestos, em decorrência, aumentaram. E o médico, já chamado para
guardar as fronteiras da internação e proteger a sociedade de seus males, foi então
convidado a estabelecer uma diferenciação entre os internos, a separá-los
definitivamente entre asilos e prisões. Com isso, o internamento tomou seu
derradeiro golpe: de ato que mesclava assistencialismo e exclusão social, passa a
ter, predominantemente, o caráter de tratamento. Os hospitais foram, assim,
reformados: alterados em sua essência, tornam-se asilos.
            Na Inglaterra, o principal responsável pela reforma dos hospitais foi
Samuel Tuke (1784-1857), membro dos Quacres, “sociedade de amigos” que se

hospitais privados destinados a loucos abastados, exprimindo a relativa medida de sua importância
na história da constituição dos atuais manicômios.
15
   Não por acaso, esses três grupos têm até hoje a exclusão do convívio como marca de sua relação
com a sociedade.
27



desenvolveu no século XVII e buscou, no fim do século XVIII, assumir a iniciativa
privada no domínio da assistência. Tuke pautou sua reforma na construção do
Retiro, uma casa de campo, com janelas sem grades, numa planície fértil e cheia de
bosques. Em vez de correntes, executava um sistema de tratamento dos internos
calcado em bases religiosas e morais e centrado em dois aspectos primordiais: o
Trabalho e o Olhar (FOUCAULT, 1997, p. 479-480). De um lado, o horário regulado,
a exigência de atenção e a obrigação de chegar a um resultado, afastando os loucos
de uma liberdade prejudicial ao espírito; de outro, um complexo sistema de
observações recíprocas, a fim de levá-los a ver o absurdo de sua loucura e conduzi-
los ao caminho da razão: “a cura significará reinculcar-lhe os sentimentos de
dependência, humildade, culpa, reconhecimento que são a armadura moral da vida
familiar” (FOUCAULT, 1984, p. 82).
          É, entretanto, na França, com Philippe Pinel (1745-1826), que a loucura
será de vez apropriada pela terapêutica do saber médico. Designado para atuar no
Hospital-Geral de Bicêtre, após a Revolução, Pinel, para espanto geral, logo tratou
de libertar os acorrentados; contudo, a retirada das correntes, longe de constituir um
simples ato de humanitarismo, ocultava diversas significações. Primeiro, ela
representava a possibilidade de fazer a distinção entre os insanos, de um lado, e os
prisioneiros políticos e suspeitos escondidos, de outro.


                     Bicêtre é sempre uma imensa reserva de pavores, mas porque nela
                     se enxerga um covil de suspeitos – aristocratas que se ocultam sob
                     os andrajos de pobres, agentes do exterior que tramam, ocultos por
                     uma alienação de encomenda. Mais uma vez é preciso denunciar a
                     loucura para que resplandeça a inocência, mas também para que
                     apareça a duplicidade. [...] De qualquer forma, ela deve ser
                     desmascarada, de modo que a verdade e a razão sejam devolvidas à
                     sua própria condição (FOUCAULT, 1997, p. 465 – grifo original).


          Ademais, a libertação dos internos significou, paradoxalmente, o
aprisionamento da loucura na instituição asilar:


                     - permite-se que a liberdade do louco atue, mas num espaço mais
                     fechado, mais rígido menos livre que aquele, sempre um pouco mais
                     indeciso, do internamento;
                     - liberam-no de seu parentesco com o crime e o mal, mas para fechá-
                     lo nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é
                     inteiramente inocente no absoluto de uma não-liberdade;
                     - retiram-se as correntes que impediam o uso de sua livre vontade,
                     mas para despojá-lo dessa mesma vontade transferida e alienada no
28



                         querer do médico.
                         O louco doravante está livre, e excluído da liberdade. Outrora ele era
                         livre durante o momento em que começava a perder tal liberdade; é
                         livre agora no amplo espaço em que já a perdeu (FOUCAULT, 1997,
                         p. 508).


            Na era clássica, a loucura deixa de ser percebida como desrazão, algo
exterior à razão, passando a ser entendida como uma desordem no pensar, como
erro, como alienação do sujeito. Por conseguinte, torna-se passível de tratamento e
cura, a fim de que o indivíduo encontre a verdade da condição humana.
            Retiradas as correntes16, os muros do asilo ganham novos poderes, vez
que o isolamento do mundo exterior passa a constituir a condição necessária da
nova terapêutica da loucura. Não é a medicina, porém, quem inventa a exclusão do
louco; ela já existia anteriormente. O papel do nascente saber alienista será o de
justificar, cientificamente, as bases desta exclusão e criar formas de controle e cura
da loucura. Além disso, não mais se trata da pura exclusão com fins morais ou
religiosos. O saber médico determina a segregação, visando 1) afastar o louco,
agora doente mental, da família, onde recebe cuidados e consolações indulgentes
que o mantêm na insensatez, a fim de confiá-lo a especialistas, que saberão dosar
cuidado e disciplina para a cura; 2) identificar as diferenças entre os doentes (os
agitados, os melancólicos, os imundos, os suicidas), evitando que a convivência
agrave o seu estado, e; 3) reunir num único estabelecimento, nesse lugar de exame,
o conjunto de medidas necessárias à cura.


                         Essas operações, como princípios teóricos e atos institucionais
                         propiciam um método; fazem “ver” diferente a figura do louco, agora
                         um “alienado mental”, produzem uma visibilidade específica sobre a
                         loucura, construindo um estar louco e um ser louco diferente, no qual
                         o tratamento fundamental é regrar novamente, “dobrar o alienado à
                         razão”, numa espécie de ortopedia da alma (TORRE e AMARANTE,
                         2001, p. 75 – grifo original).


            A história do desatino alcança, então, o instante em que se encontra com
o saber médico, originando um ramo específico, que Pinel denomina de alienismo, e
que mais tarde tornar-se-á a psiquiatria. Com o discurso alienista erigido em saber

16
  Deve-se frisar que a retirada de correntes e algemas não significa o fim da contenção. Conforme
Pessotti (1996, p. 164 – grifos originais), “permanecia a necessidade de conter ou imobilizar certos
pacientes em seus acessos de fúria. O no restraint não era a total ausência de controle. Em vez de
correntes, algemas e celas fortes, adotou-se o gilet de force, o colete de força ou a camisa-de-força”.
29



científico, institui-se um poder destinado a controlar, definitivamente, a loucura e
suas manifestações. Absorvida pela medicina, ela será, por conseguinte,
ressignificada como uma patologia: a doença mental. Doravante, o manicômio passa
a constituir seu principal lugar de morada.




2.2     DO       DIREITO          PENAL         CLÁSSICO            AO       POSITIVISMO
CRIMINOLÓGICO:               A    CONSTRUÇÃO               DO      CRIMINOSO           COMO
ANORMAL
2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal



            De maneira semelhante à história do surgimento da psiquiatria17, as
ponderações iniciais sobre o fenômeno do crime encontravam-se dispersas, estando
muito mais próximas de um questionamento filosófico que de um saber científico.
Assim, as teorias que constituem o embrião de uma forma sistemática e integrada
de pensar o fenômeno delitivo situaram-se no período iluminista.
            Antes, durante o Absolutismo, os crimes praticados eram considerados
uma afronta ao poder do rei. Em decorrência, sobretudo nos casos mais graves, a
punição era severa, atingindo o corpo dos condenados, marcando-os, infligindo-lhes
dores insuportáveis e, porventura, levando-os à morte, na fogueira, na forca, por
esquartejamento...


                        A sentença da corte, é que daqui a dois dias o criador de perfumes,
                        Jean-Baptiste Grenouille seja amarrado a uma cruz de madeira, com
                        o rosto apontado para o céu. Enquanto estiver vivo será açoitado
                        doze vezes, com um ferro em brasa: na junção dos antebraços, dos
                        ombros, de seus quadris e das suas pernas. Mais tarde será içado
                        com uma corda e enforcado, até morrer. E todos e quaisquer atos de
                        misericórdia serão expressamente proibidos ao Carrasco
                        (PERFUME, 2006, s.p.).


            Como o trecho do filme Perfume revela, havia todo um cerimonial da
pena, destinado ao público, para constituir exemplo aos demais, causar temor e

17
  Para uma analogia entre a evolução histórica dos saberes criminológico e psiquiátrico, ver Velo
(2000).
30



respeito à autoridade, que Foucault (1999, p. 32) denomina suplício: “uma produção
diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a
manifestação do poder que pune [...] Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a
economia do poder”.
            No final do século XVII, a lógica de punir absolutista começa a ser
questionada, registrando-se várias críticas aos espetáculos públicos, à severidade
das penas e à punitividade sobre o corpo. De um lado, isso se deve às revoltas
populares ocorridas durante os cerimoniais punitivos18; de outro, à transição do
principal interesse confrontado pelo crime: com o despontar do capitalismo, ele se
desloca da pessoa do soberano, para a propriedade do comerciante.
            De fato, o decorrer do século XVIII verifica um deslocamento do principal
objeto de violência: os “crimes de sangue” tornam-se menos significativos, ganhando
espaço mais acentuado os delitos contra a propriedade, que afetam diretamente o
interesse da emergente burguesia. Os grandes suplícios tornam-se, portanto,
economicamente custosos, moralmente reprováveis e penalmente desproporcionais
aos crimes cometidos. É necessário, destarte, um novo sistema de punição, que não
fique ao arbítrio do superpoder monárquico19; que controle e codifique as diversas
práticas ilícitas; enfim, uma justiça criminal que “puna em vez de se vingar”
(FOUCAULT, 1999, p. 63).
            A base filosófica para esta nova forma de pensar o crime e a pena será
dada pelo movimento intelectual denominado Iluminismo, sobretudo através do
conceito de contrato social, esboçado por Jean-Jacques Rousseau (1995, p. 78):


                         [e]ncontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa
                         e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual
                         cada um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo
                         tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental que o contrato
                         social soluciona.


18
   Para Velo (2000, p. 274 – grifos originais), “por conta das execuções públicas, os espectadores
conseguiam transferir ao executado boa parte de afetos insuportáveis, fazendo-o virtual bode
expiatório. [...] De repente, diante daquele teatro, as pessoas foram percebendo o estado de
vulnerabilidade em que viviam, sujeitas que estavam a um dia representarem o papel do bode”.
19
   Foucault (1999, p. 68) demonstra que uma das principais críticas ao sistema penal do Antigo
Regime era a distribuição mal regulada do poder, sobretudo o “poder excessivo [...] exercido pelo rei,
pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá-
los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real. [...] Ora, essa disfunção do poder provém
de um excesso central: o que se poderia chamar o ‘superpoder’ monárquico que identifica o direito de
punir com o poder pessoal do soberano”.
31



            Ao conceber o homem como ser racional, igual e livre, o iluminismo vê no
criminoso um indivíduo que, deliberadamente, decide violar as leis sociais, não se
interessando por desvendar a existência de outros fatores que possam influir em seu
comportamento. Dessa forma, a pena não será – nem deverá ser – mais que a justa
resposta da sociedade ao desviante. Sob esta ótica, o infrator torna-se um inimigo
comum, deslocando-se a essência do poder punitivo, da vingança do soberano à
defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 76)
            A um novo poder que se institui, deverá corresponder um saber20, visando
a deslegitimar as antigas instituições e justificar a nova estrutura social. É, pois, num
marco de transformação estrutural da sociedade e do Estado, buscando limitar o
superpoder do rei e racionalizar as técnicas de punição, que surgem a teoria
contratualista e as limitações ao poder de punir21, características do movimento
filosófico-jurídico denominado Escola Clássica do Direito Penal.
            Malgrado diversos pensadores estejam situados no âmbito da Escola
Clássica22, certamente o mais importante deles é Cesare Beccaria (1738-1794),
graças ao seu trabalho intitulado Dos delitos e das penas (1998). Nesta obra,
podem-se encontrar as principais bases da concepção liberal clássica do direito
penal: 1) a teoria da divisão dos poderes; 2) a idéia de contrato social, e 3) o
princípio utilitarista da máxima felicidade repartida pelo maior número de pessoas
(BARATTA, 2002, p. 33). É disso que, após discorrer sobre a origem das penas e o
direito de punir, trata Beccaria (1998, p. 66-67):


                         [a] primeira conseqüência destes princípios é que somente as leis
                         podem fixar as penas correspondentes aos delitos; e este poder só
20
    Alerta Foucault (1999, p. 27) que “o poder produz saber [...]; que poder e saber estão diretamente
implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem
saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”.
21
    Optou-se por utilizar o termo poder de punir ao invés do comumente utilizado direito de punir,
seguindo as críticas tecidas a este conceito pela escritora Clarice Lispector (2005, p. 45), no período
em que cursava a Graduação em Direito: “Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O
homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele [...]. E não há direito de
punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e
relativo: como julgar que posso punir baseado apenas em que meu critério de julgamento para
tonalizar tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios? Como crer que se tem
verdadeiramente o direito de punir se se sabe que a não observância do fato X, hoje fato criminoso,
considerava-se igualmente crime?”.
22
    Como pensadores da Escola Liberal Clássica do Direito Penal, podem-se citar, além de Beccaria:
Jeremias Bentham (1748-1832), Caetano Filangieri (1752-1788), Giandomenico Romagnosi (1761-
1835) e Pablo Anselmo von Feuerbach (1775-1833), teóricos de um primeiro período essencialmente
filosófico, e; Giovanni Carmignani (1768-1847), Pellegrino Rossi (1781-1848) e Francesco Carrara
(1805-1848), representantes do período jurídico da Escola (ANDRADE, 1997, p. 45).
32



                     ao legislador pode pertencer, ele que representa toda a sociedade
                     unida por um contrato social; nenhum magistrado (que é parte da
                     sociedade) pode com justiça infligir penas a um outro membro da
                     mesma sociedade. [...]
                     A segunda conseqüência é que, se cada membro particular está
                     ligado à sociedade, esta está, da mesma maneira, ligada a todos os
                     membros particulares através de um contrato que, de sua própria
                     natureza, obriga duas partes. [...] A violação, ainda que de um só, é o
                     início da permissão da anarquia. [...]
                     A terceira conseqüência é que, ainda que se provasse que a
                     atrocidade das penas [...] fosse apenas inútil, mesmo neste caso ela
                     séria contrária, não só àquelas virtudes benéficas que são o efeito de
                     uma razão iluminada – que prefere dirigir homens felizes a um
                     rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tímida crueldade –
                     mas também à justiça e à natureza do próprio contrato social.


          Como observa Andrade (1997, p. 48-49), a grande importância histórica
da obra de Beccaria decorre menos de originalidade e mais da capacidade de
representar os diversos ideais expressos no movimento europeu de reforma penal
do período. Isso porque “se trata de uma obra simultaneamente de combate à
Justiça Penal do Antigo Regime e projeção de uma Justiça Penal liberal, humanitária
e utilitária, contratualmente modelada”.
          Reordenação e limitação do poder punitivo; fim dos suplícios na pena e
reestruturação do processo; império da lei (nullum crimen nulla poena sine lege);
proporcionalidade das penas aos delitos; concepção utilitária do castigo. Em linhas
gerais, são estes os principais postulados trazidos pela Escola Clássica.
          No mundo clássico, portanto, concebendo-se o indivíduo como ser livre,
racional e responsável, o pensamento sobre o crime fixa-se no ato tipificado, não
demonstrando preocupações etiológicas destinadas a investigar as causas do
comportamento criminoso, quer no estudo do indivíduo delinqüente, quer no do seu
meio social. Por centrar-se no ato e pré-conceber a idéia de responsabilidade, não
se detém sobre questões como o discernimento do infrator. Cometido o delito,
deverá haver uma punição equivalente, como resposta social justa e legítima.




2.2.2 A Criminologia Positiva



          No decorrer do século XIX, transformações sociais, políticas e científicas
33



vão ocasionar o surgimento de uma nova forma de pensar o comportamento
criminal. Com a incapacidade revelada pelas teorias clássicas de reduzir os índices
de criminalidade (pois o delito era visto como livre escolha do indivíduo), seus
pressupostos filosóficos e metodológicos serão postos em xeque por um saber
científico-criminológico que se propõe à proteção da sociedade.
           Nesse processo, destaca-se, primeiramente, a Revolução Industrial, que,
iniciada no século anterior na Inglaterra, expande-se pelo mundo e, num contexto de
novas teorias políticas de cunho social ou socialista, gera a necessidade de que o
Estado abandone sua postura liberal e intervenha na ordem econômica e social. De
um lado, isso representa uma reivindicação do proletariado, em busca de condições
menos insalubres no mundo do trabalho; de outro, significa o desejo dos industriais
burgueses de consolidar como problema de polícia as agitações operárias.
           Além disso, o controle intenso exercido sobre a produção exige uma
maneira de estudar e conhecer melhor o homem, classificá-lo, a fim de selecionar os
melhores, mais aptos e mais dóceis ao processo produtivo. Foucault (1999, p. 162-
187) propõe uma análise desse momento histórico a partir do Panóptico, modelo de
prisão elaborado por Jeremy Bentham, na qual haveria uma torre no centro a vigiar
as celas, dispostas ao seu redor em forma de anel. O objetivo do Panóptico é, por
conseguinte, exercer um controle total, de forma que, mesmo não havendo nenhum
guarda na torre, a sensação de vigilância será permanente.
           Para Foucault (1999, p. 170), esse mecanismo, funciona como um
“laboratório de poder”, que se expande para fábricas, asilos, escolas: “[c]ada vez
que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou
um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado”. Como todo
exercício de poder acarreta a produção equivalente de um saber, o mecanismo
panóptico formula um conhecimento sobre os corpos, uma maneira sutil de docilizá-
los, menos com o peso da força que com o controle da vigilância contínua,
expandindo-se das prisões para escolas, hospitais, igrejas e indústrias. Concretiza-
se, desse modo, uma nova modalidade de (micro)poder: a disciplina, “processo
técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força
‘política’, e maximilizada como força útil” (FOUCAULT, 1999, p. 182). Não à toa, há
uma proximidade muito grande entre as mutações tecnológicas do aparelho de
produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de proceder
disciplinares.
34



            Em decorrência dessas transformações, elabora-se uma concepção de
ciência, capaz de atender às novas demandas: o Positivismo. Fundado por Auguste
Comte (1798-1857), considerado o pai da Sociologia, o Positivismo revela-se como
uma afirmação social das ciências experimentais. Propõe, assim, para explicar os
fenômenos, que o inquérito científico, longe de procurar causas últimas (teológicas
ou metafísicas), que derivem de uma fonte externa, deve ater-se ao estudo das
relações existentes entre os fatos, os quais são acessíveis por meio da observação
(COMTE, 1990, p. 03-21).
            Ancorada nessa base e em teorias de incipientes saberes23, desenvolve-
se, no século XIX, inicialmente na Itália, a Criminologia Positivista, respondendo às
necessidades da burguesia para enfrentar os problemas sociais, especialmente a
questão do delito. Mesmo reconhecendo um avanço quanto à questão da diminuição
das penas, a Escola Positiva dirige severas críticas ao pensamento clássico,
apontando-lhe as falhas de um racionalismo abstrato e um individualismo
exacerbado, que impedia a defesa social:


                         [...] a Escola Positiva assumia a [...] tarefa de deslocar a problemática
                         penal [...] de uma orientação filosófica para uma orientação científica,
                         empírico-positiva, a única apta a resgatar aquele segundo
                         personagem “esquecido” pela Escola Clássica: o homem delinquente
                         (ANDRADE, 1997, p. 61).


            Centrando-se na figura do criminoso, a Criminologia Positivista opôs ao
livre-arbítrio dos clássicos, um determinismo bio-psicossocial; outrossim, ela
deslocou a questão da responsabilidade, para a periculosidade do indivíduo
(MANITA, 1997, p. 57). Seus objetivos eram eliminar a metafísica clássica e
substituí-la por um estudo empírico do fenômeno criminal que pudesse diagnosticar
as causas do delito e combatê-las, a fim de erradicar a criminalidade. Para isso, o
método utilizado deveria ser o empírico-indutivo, formulado segundo premissas de

23
  Precursores do positivismo criminológico, esses saberes utilizavam, ainda que precariamente, um
método empírico-indutivo, baseado na observação do indivíduo infrator e do seu meio, orientando-se
no marco das ciências naturais. Por sua importância histórica, devem-se mencionar: a “ciência
penitenciária”, com Howard (1726-1790) e Bentham (1748-1832), descrevendo e denunciando a
realidade penitenciária na Europa do século XVIII; a Fisionomia, através dos estudos de Della Porta
(1535-1616) e Lavater (1741-1801), analisando a inter-relação entre a aparência externa do indivíduo
e sua mente; a Frenologia, que buscava localizar nas partes do cérebro as diversas funções
psíquicas, destacando-se a obra de Gall (1758-1828); a Psiquiatria, com Pinel e Esquirol, que adiante
será melhor abordada, e; a Antropologia, com estudos em crânios de assassinos, destacando-se
Lucas (1805-1885), que formulou o conceito de atavismo (MOLINA e GOMES, 2002, p. 162-167).
35



medição, objetividade e neutralidade. Deslocando-se, pois, da investigação racional
e abstrata para a factual e concreta, era no estudo do homem delinqüente que se
encontrariam as causas do comportamento criminoso.
            O médico e psiquiatra Cesare Lombroso (1835-1909) foi o primeiro a
propor leis gerais para o fenômeno do crime. Sua obra, publicada em 1876, Tratado
Antropológico Experimental do Homem Delinqüente é considerada o marco inicial da
Criminologia científica causal-explicativa, que nasce denominada Antropologia
Criminal (ANDRADE, 1997, p. 65). Influenciado pelas idéias de Charles Darwin24
(1809-1882) e utilizando metodologia própria das ciências naturais, Lombroso
realizou um estudo em prisões e hospitais psiquiátricos25, efetuando autópsias e
análises de criminosos vivos, e comparando as características encontradas,
sobretudo em crânios, com as de populações não delinqüentes. Concluiu, pois, que
haveria na população de delinqüentes semelhanças constituidoras de um tipo
humano específico, que ele denominou criminoso nato. Esse indivíduo atávico
apresentaria uma série de estigmas degenerativo-comportamentais, tais como:
“fronte esquiva e baixa”, “assimetrias cranianas”, “orelhas em forma de asa tubérculo
de Darwin”, ou mesmo “uso freqüente de tatuagens”, “insensibilidade à dor”
(MOLINA e GOMES, 2002, p. 177-179).
            Para Lombroso, portanto, a explicação correta para a pergunta “por que
as pessoas cometem crimes?” é encontrada na existência de uma anormalidade
biológica e/ou psicológica do sujeito criminoso, um atavismo que o distingue dos
outros humanos e o predispõe à prática de delitos.


                         Estabelece-se desta forma uma divisão “científica” entre o (sub)
                         mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por
                         uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o
                         “mal”) e o mundo, decente, da normalidade, representado pela
                         maioria da sociedade (o “bem”) (ANDRADE, 1996, p. 278).


            Enrico Ferri (1856-1929), discípulo de Lombroso, por sua vez, utilizando
uma perspectiva sociológica, desloca o objeto central da etiologia do crime. Para ele,

24
   Naturalista britânico, Darwin formulou a teoria da evolução das espécies, mediante um processo de
seleção natural, cuja influência é bastante significativa para o pensamento criminológico positivista.
25
   Reconhece-se relevância muito maior, no trabalho realizado por Lombroso, ao método empírico
utilizado em suas investigações que à sua teoria criminológica. “Sua teoria do ‘delinquente nato’ foi
formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil
análises de delinqüentes vivos; e o atavismo [...] contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil
reclusos de prisões européias” (MOLINA e GOMES, 2002, p. 177)
36



malgrado a significativa importância dos fatores individuais (orgânicos e psíquicos),
o estudo das causas do delito há de levar em conta, sobretudo, os fatores físicos e
sociais do ambiente em que os comportamentos criminosos se manifestam
(BARATTA, 2002, p. 39; MOLINA e GOMES, 2002, p. 182). Dessa forma, para além
das características biológicas do criminoso, o delito seria fruto de condições
econômicas e sociais que determinam sua conduta.
            O terceiro grande nome da Escola Positiva é Garófalo (1852-1934).
Deslocando as teses criminológicas positivistas para o âmbito do Direito Penal, ele
desenvolve o conceito de “temibilidade do delinquente”, consistente em uma
“perversidade      constante     e   ativa”,    que    posteriormente      será     nomeado       de
periculosidade. Garófalo formula também uma filosofia do castigo, buscando
justificar a pena não mais com o significado retributivo dos clássicos, senão com o
fito de erradicar o delito e proteger a sociedade26 (ANDRADE, 1997, p. 69).
            Portanto, para a Escola Positiva, identificado este potencial de
periculosidade do indivíduo criminoso, a pena converte-se num meio de defesa
social, devendo constituir uma medida de segurança da sociedade contra o infrator,
visando a neutralizá-lo e/ou corrigi-lo: “[...] trata-se de defender a sociedade destes
seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar
do normal” (RAMÍREZ apud ANDRADE, 1996, p. 278).
            Para Baratta (2002, p. 41-43), muito embora a Escola Positiva tenha
conseguido melhor sistematizar o que propunha ser um projeto de defesa da
sociedade, essa proposta foi herdada da Escola Clássica e sua teoria contratual, de
forma que ambas apresentam a ideologia da defesa social como marco teórico e
político comum. O conteúdo dessa ideologia é apresentado por Baratta através dos
seguintes princípios: a) princípio de legitimidade: o Estado, representando o conjunto
de interesses sociais, encontra-se legitimado para reprimir a criminalidade, a fim de
manter a ordem social; b) princípio do bem e do mal: o delinqüente é um elemento
negativo e disfuncional (o mal) para a sociedade (o bem); c) princípio de
culpabilidade: o delito é expressão de uma atitude interior reprovável, porque
contrária aos valores e às normas; d) princípio da finalidade ou da prevenção: a
pena não tem apenas a função de retribuir, mas de prevenir e evitar o crime; e)

26
  Também é Garófalo o responsável por elaborar uma distinção entre os delitos naturais e artificiais,
estes últimos existentes apenas em determinadas culturas, ao passo que aqueles consistem em uma
37



princípio de igualdade: a lei penal é igual para todos, e aplicada de maneira
igualitária; f) princípio do interesse social e do delito natural: os delitos definidos nos
códigos penais representam uma ofensa a interesses fundamentais e condições
essenciais à existência da sociedade.
           Com a intensificação positivista da ideologia da defesa social, está aberto
o caminho para que especialistas não jurídicos do comportamento humano, capazes
de reconhecer e catalogar os distúrbios que possam representar perigo para a
comunidade, disputem o poder de dizer jurídica e cientificamente a verdade sobre o
indivíduo criminoso e seu grau de discernimento, defendendo a imperiosa
necessidade de tratá-lo. Abrem-se, para eles, mas não sem resistências, as portas
de prisões, e também de tribunais.




2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE
SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO


           Uma vez analisado o processo de surgimento do saber psiquiátrico e, por
conseguinte, dos manicômios, bem como compreendidas as transformações no
pensamento criminológico que fizeram a conversão do indivíduo infrator num sujeito
anormal e perigoso, facilmente se perceberá como a fusão dos atributos de louco e
criminoso foi significativa para a cristalização do conceito de periculosidade e a
conseqüente criação de medidas de segurança e manicômios judiciários.
           Em verdade, desde o século das luzes, quando ganhava corpo a Escola
Clássica, já era possível observar uma espécie, ainda embrionária, de patologização
dos comportamentos desviantes, nas obras de médicos como Gall27 (1758-1828) e
Cabanis (1757-1808). De acordo com Carrara (1998, p. 69), para esses autores
clássicos, o crime, por ser um ataque à sociedade e ao contrato social, deixava
perceber uma espécie de “erro”, de “irracionalidade”: mesmo sendo o indivíduo
plenamente responsável por seus atos,

série de condutas nocivas por si próprias, em qualquer sociedade e a qualquer momento (MOLINA E
GOMES, 2002, p. 185).
27
   “Para Gall o crime é causado por um desenvolvimento parcial e não compensado do cérebro, que
ocasiona uma hiperfunção de determinado sentimento. De fato, este autor acreditou haver podido
localizar em diversos pontos do cérebro um instinto de agressividade, um instinto homicida, um
sentido de patrimônio, um sentido moral” (MOLINA E GOMES, 2002, p. 164).
38




                     [...] atacar a sociedade não seria, de certa forma, atacar a si próprio?
                     E atacar a si próprio não seria o ato irracional por excelência?
                     [...] [A] sociedade burguesa, liberal, democrática, progressista,
                     representação do próprio paraíso reconquistado [...], não parece
                     aceitar que alguém possa agredi-la em sã consciência.


          Pinel também se revela importante nesse processo, por haver realizado
os primeiros diagnósticos clínicos, com o fito de separar os criminosos aprisionados
em Bicêtre (em sua maioria políticos), dos loucos deste hospital-geral. Outrossim,
observando alguns casos em que os doentes mentais demonstravam conservar a
integridade das funções do intelecto (isto é, salvo uma ou outra característica
disfuncional acentuada, portavam-se intelectivamente como indivíduos normais),
Pinel refuta a concepção vigente à época, segundo a qual a sede da doença situa-se
unicamente numa lesão orgânica do corpo. Ele formula, então, o conceito de
“loucura parcial”, uma “mania sem delírio”,


                     [...] onde não se constata nenhuma alteração sensível das funções
                     do entendimento, da percepção, do juízo, da imaginação, da
                     memória, mas uma perversão nas funções afetivas, um impulso cego
                     para atos de violência ou mesmo um furor sanguinário, sem que se
                     possa assinalar nenhuma idéia dominante e nenhuma ilusão da
                     imaginação que sejam a causa determinante desta funesta tendência
                     (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 281).


          Contudo, é com Esquirol (1772-1840) e a noção de “monomania
homicida” que louco e criminoso vão definitivamente se cruzar, na figura do
“criminoso alienado”. Para este alienista, discípulo de Pinel, em algumas formas de
loucura, o único sinal evidente do distúrbio seria uma “desordem moral”, voltada
para a prática de crimes (MANITA, 1997, p. 56). Dessa forma, a monomania
homicida implicaria num distúrbio do pensar e do agir, caracterizado por um forte
impulso ao assassinato. Esse impulso seria provocado por uma convicção íntima do
sujeito, baseada em um delírio, uma imaginação exaltada, um raciocínio falso, uma
paixão violenta, um instinto cego (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 283). A
monomania poderia, ainda, ser classificada como erótica, religiosa, suicida,
persecutória... De todo modo, pode-se dizer que a monomania representa, de um
lado, a aproximação entre loucura e crime, apontando-se, na afetividade modificada
do sujeito, um impulso à prática de delitos, geralmente, violentos; de outro, ela
39



significa o aprisionamento definitivo da loucura no campo da moral, da subjetividade,
dos sentidos: o seu estudo torna-se inseparável do conhecimento das paixões
humanas.
            É preciso, ademais, compreender o contexto em que se deu essa
apoteose da monomania homicida. Nesse início de século XIX, período pós-
revolução burguesa, grandes transformações sociais ocorreram: reorganização do
poder, urbanização das cidades, transferência de propriedades. Todavia, tudo isso
em nada alterou a condição de opressão e miserabilidade em que permaneciam as
classes menos abastadas, sobretudo os pequenos camponeses. A transferência de
propriedade não atingiu aqueles que só possuíam os braços para trabalhar; a
libertação jurídica e o estatuto de cidadão serviram apenas para perpetuar
hierarquias e desigualdades, mas, dessa vez, contratualmente modeladas.
            Conforme Peter e Favret (in FOUCAULT, 1991, p. 199), é esse o quadro
social no qual, incentivados pela enxurrada de sangue derramado na Bastilha,
proletários e camponeses “vão intervir e garantir, pelo peso de suas vidas e sua
razão lançados na balança, seu direito de tomar a palavra”. De fato, uma onda de
crimes diferentes, aparentemente sem motivação, passa a chocar a sociedade
burguesa:


                        [...] criadas camponesas matam sem razão, mas cruelmente, as
                        frágeis crianças que amam [...]. A mulher de um jornaleiro, passando
                        necessidade, não mais suportando os gritos de fome de seu filho de
                        quinze meses, golpeia-lhe o pescoço com um cutelo, sangra-o, corta-
                        lhe uma coxa, que come. [...] Antoine Léger, vinhadeiro, deixa a
                        sociedade de sua aldeia, vive nos bosques como um homem
                        selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a
                        com uma faca, chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue (PETER e
                        FAVRET in FOUCAULT, 1991, p. 193-194).


            As razões apresentadas para justificar esses crimes, quando surgem, são
moralmente tão inaceitáveis que não se tem dúvida: está-se diante de um monstro
humano28. Torna-se imperativa, portanto, a presença dos alienistas nos tribunais,
para entender e explicar, no plano científico, esses acontecimentos. E mais: para

28
   Foucault (2001, p. 93), no Curso Os Anormais, ministrado no Collège de France, em 1974-1975,
aponta alguns discursos que, a partir do século XVIII, anunciam uma “natureza monstruosa da
criminalidade, [...] uma monstruosidade que tem seus efeitos no campo da conduta, no campo da
criminalidade, e não no campo da natureza mesma”, como se esboçava anteriormente. E ainda: “o
monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o princípio de inteligibilidade de
todas as formas [...] da anomalia” (FOUCAULT, 2001, p. 71).
40



distinguir o indivíduo normal, cônscio de seus atos, do ser louco e anormal que
constitui o monomaníaco homicida. Como observa Rauter (2003, p. 113),


                     [...] a justiça penal não dispunha de meios para dar conta de um
                     certo tipo de crime cujas características pareciam fugir
                     completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo
                     tempo deixada em aberto pela justiça criminal e proposta pela
                     psiquiatria nascente.


           Entretanto, essa intervenção da psiquiatria nos domínios do direito penal
não se dará sem árdua resistência. Juristas e magistrados dispensarão considerável
hostilidade à doutrina da monomania, ávidos por manter o poder de falar pelo
homem criminoso e puni-lo.
           O registro histórico mais célebre dessa disputa entre os saberes encontra-
se no caso Pierre Rivière, pesquisado e organizado por Foucault (1991). No ano de
1835, Rivière degolou brutalmente a mãe e um casal de irmãos, ainda crianças.
Depois de vagar pelos campos, dirigiu-se a pequenas cidades, comportando-se de
forma excêntrica; foi, então, detido e, na cadeia, escreveu um manuscrito, contando
sua história e as razões de seu crime: a maneira ríspida com que o pai era tratado
pela esposa e a cumplicidade dos irmãos para com ela. A partir daí, houve um
grande debate sobre o caso, repercutindo em dois principais confrontos: um, interno
ao saber médico, entre uma medicina “não especial” ou geral e a recém surgida
especialidade psiquiátrica; e outro, entre duas formas de controle, a psiquiatria e a
justiça penal.
           Surgem, assim, no decorrer do caso Rivière, três pareceres de peritos
médicos. O primeiro deles acompanha a Acusação, elaborado pelo doutor Bouchard.
Representante do pensamento tradicional da medicina, Bouchard investiga em
aspectos orgânicos (doenças de pele, hemorragias, tombos na cabeça) os sinais de
uma doença mental em Rivière. Por não encontrá-los, conclui ser “[...] impossível
encontrar uma doença [...] que tenha agido sobre o cérebro de maneira a causar
dano a suas funções” (FOUCAULT, 1991, p. 113). Assim, Rivière é declarado, neste
primeiro parecer, um indivíduo normal. A forca paira sobre sua cabeça.
           Um segundo parecer médico acompanha a peça de defesa, no intuito de
mitigar a pena de morte. Elaborado pelo doutor Vastel, aponta que “a inteligência de
Rivière não era sadia e que o ato que [...] passava por um crime horrível, não era
mais que o deplorável resultado de uma verdadeira alienação mental” (FOUCAULT,
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Os discursos da medida de segurança

  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTROLE SOCIAL DA LOUCURA Feira de Santana 2008
  • 2. 1 MARCO AURÉLIO BASTOS DE MACEDO OS DISCURSOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSQUIATRIA NO CONTROLE SOCIAL DA LOUCURA Monografia apresentada ao Curso de graduação em Direito, Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof. Dra. Marília Lomanto Veloso. Feira de Santana 2008
  • 3. 2 A Inês Bastos, minha mãe, por garantir, incondicionalmente, todo o suporte necessário à confecção deste trabalho. A Tia Bel, in memorian, pelos exemplos de vida e pela sugestão de cursar Direito. Aos internos do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA, por me emprestarem suas histórias de vida para a realização da presente pesquisa. A todos e todas que lutam, que não se calam, que fazem de sua “loucura” cotidiana um meio de resistir à opressão.
  • 4. 3 AGRADECIMENTOS A Marília Lomanto, minha “guerreira” orientadora, pela atenção, dedicação e criticidade. A Riccardo Cappi, meu “desorientador” e amigo, por acompanhar esta “loucura monográfica” há alguns anos, entre as salas de aula e as mesas de bar. A Denise Tourinho, por ter gentilmente aceitado o convite para participar da banca. Aos funcionários e funcionárias do Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador- BA, especialmente, a Dr. Paulo, Rogério, D. Vera, Janete, Val, Gilsélia e Rose, por deslocarem a atenção de seus trabalhos para atender aos meus pedidos e esclarecer minhas dúvidas. Aos amigos Jhon, Ivonete e Mirna, pelas valiosas contribuições ao texto. A Flávia e Adriana, pelo auxílio metodológico e incentivo ao projeto. A Lívia, pela acolhedora hospedagem durante toda a realização da pesquisa de campo, e a Núbia, pela igualmente acolhedora “permissão de uso” da biblioteca. A Tati, Larissa e Lilian, pelos (importantíssimos!!!) livros emprestados. A João, Kiko e Mirela, companheiros de angústia monográfica, por não me deixarem sentir solidão nessa jornada. A Augusto, por compreender minha necessidade de usar o computador, e a Eduardo, meu pai, por ter mandado o lap-top, instrumento fundamental para os últimos momentos. A minha prima Giuliana, por se perder em São Paulo para tirar cópias dos livros que não encontrei por aqui, e a Mariana, minha irmã, pelas cópias soteropolitanas e por outros milhares de auxílios impagáveis. A Lorena, pela inspiração, pelo carinho, por trazer mais “loucura” à minha vida, e por compreender, não sem imprescindível resistência, minha ausência e impaciência durante os turbulentos estágios de confecção do texto. Por fim, a todos aqueles que os limites desta página não me permitem enumerar, mas contribuíram significativamente para a construção deste trabalho, e aos quais devoto inesquecível gratidão.
  • 5. 4 [...] E como seria bom se uma tromba d'água caísse, fizesse um buraco no chão, que para se ver o fundo fosse preciso uma lanterna! Uma tromba d'água que arrancasse telhados, decepasse pelo meio a estátua do Imperador, quebrasse as correntes da cadeia, as barras de ferro que retalham os rostos dos presos quando vão ver a rua! Breno Accioly, João Urso, 2007. [...] É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo [...]. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade. Clarice Lispector, Mineirinho, 1992.
  • 6. 5 RESUMO O presente trabalho consiste em um estudo sobre a medida de segurança, centrado nos discursos produzidos pelo poder judiciário e pelo saber psiquiátrico acerca dos sujeitos rotulados como loucos-criminosos. Utiliza como fontes principais sentenças e laudos psiquiátricos obtidos no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador– BA, no intuito de verificar como se processa a relação entre juízes e psiquiatras no controle social da loucura perigosa. A pesquisa encontra-se estruturada conforme quatro momentos. O primeiro constitui uma síntese histórica dos discursos sobre crime e loucura que, unidos pelo conceito de periculosidade, culminaram na criação da medida de segurança. A seguir, efetua-se uma análise da regulação normativa da loucura no Brasil, que perpassa a constituição do Manicômio Judiciário, a instituição da medida de segurança no Código Penal de 1940, as alterações efetuadas pela Reforma Penal de 1984 e as inovações trazidas pela Lei nº 10.216/2001. Em seguida, apresenta-se uma base teórica de ruptura com o positivismo criminológico e psiquiátrico, calcada na Criminologia da Reação Social e na Antipsiquiatria, revelando-se a medida de segurança como um instrumento que realiza o processo seletivo de definição concreta da loucura perigosa. Por fim, a última parte consiste na explanação dos resultados obtidos no trabalho de campo. Expõem-se as narrativas elaboradas por psiquiatras e juízes sobre os sujeitos criminalizados e patologizados e analisa-se o que a complexa relação entre os poderes tem produzido socialmente, a partir dos conceitos de “estado de exceção” e “homo sacer”, trabalhados por Giorgio Agamben. Palavras-chave: Medida de segurança; Discurso; Controle social; Hospital de Custódia e Tratamento; Loucos-criminosos.
  • 7. 6 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Quantidade de internos por sexo. 107 Tabela 2 – Quantidade de internos por delito cometido. 108 Tabela 3 – Quantidade de internos por situação jurídica. 109
  • 8. 7 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAPS Centro de Atenção Psicossocial CRC Centro de Registro e Cadastro HCT Hospital de Custódia e Tratamento HCT-BA Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador-BA MNLA Movimento Nacional da Luta Antimanicomial MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental NAPS Núcleo de Atenção Psicossocial URC Union of Radical Criminology NDC National Deviance Conference
  • 9. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 11 2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA 16 2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER PSIQUIÁTRICO 16 2.2 DO DIREITO PENAL CLÁSSICO AO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO CRIMINOSO COMO ANORMAL 29 2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal 29 2.2.2 A Criminologia Positiva 32 2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO 37 3 O CONTROLE DA LOUCURA PERIGOSA NO BRASIL 44 3.1 A PERICULOSIDADE TUPINIQUIM E A CONSTITUIÇÃO DO MANICÔMIO JUDICIÁRIO 44 3.2 O CÓDIGO PENAL DE 1940 E A INSTITUIÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO 54 3.3 A MEDIDA DE SEGURANÇA ATUAL: QUESTÕES PENAIS E PROCESSUAIS 60 3.3.1 A Reforma Penal de 1984 60
  • 10. 9 3.3.2 O procedimento de aplicação da medida de segurança 63 3.4 REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA? – A LEI Nº 10.216/2001 E SUAS IMPLICAÇÕES NA MEDIDA DE SEGURANÇA 68 4 EM BUSCA DE UMA BASE TEÓRICA PARA COMPREENDER A MEDIDA DE SEGURANÇA 74 4.1 SUPERANDO O POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO: ANTECEDENTES TEÓRICOS DE UMA RUPTURA PARADIGMÁTICA 74 4.2 A CRIMINOLOGIA DA REAÇÃO SOCIAL 82 4.2.1 O Enfoque Interacionista 82 4.2.2 Os “movimentos radicais”: Criminologia Crítica e Nova Criminologia 89 4.3 ANTIPSIQUIATRIA: A DOENÇA MENTAL COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL 95 4.4 UM ENFOQUE CRÍTICO SOBRE A MEDIDA DE SEGURANÇA 103 5 OS SUJEITOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA: A CONSTRUÇÃO DOS LOUCOS-CRIMINOSOS NAS HISTÓRIAS CONTADAS POR MÉDICOS E JUÍZES 107 5.1 NECESSÁRIO SE FAZ UM PARÊNTESE METODOLÓGICO: A PESQUISA EMPÍRICA 107 5.2 OS NÚMEROS DA INSTITUIÇÃO E A ESCOLHA DOS CASOS 109 5.3 OS CRIMES QUE SE CONTAM: NARRATIVAS QUE EMERGEM DOS DISCURSOS LEGAIS E PSIQUIÁTRICOS 114
  • 11. 10 5.3.1 Sobre laudos e sentenças 114 5.3.2 Um roubo de identidade 118 5.3.3 Um ato obsceno: a cristalização do perigo 122 5.3.4 Distúrbios de conduta: o HCT como destino inevitável 132 5.3.5 A loucura da fome 137 5.3.6 Uma surpresa e “uma saída” 144 5.4 CARACTERÍSTICAS E RESULTADOS DE UMA RELAÇÃO SIMBIÓTICA ENTRE OS PODERES 149 6 PARA NÃO CONCLUIR: AS CONSIDERAÇÕES FINAIS 155 REFERÊNCIAS 160
  • 12. 11 1 INTRODUÇÃO Uma pesquisa em Direito sobre a Loucura parece, logo à primeira vista, paradoxal em sua essência. De um lado, um saber fechado, opaco, uma tentativa de normalização da vida e dos comportamentos humanos; do outro, a insânia, o imprevisível, o diferente: a anti-norma. Direito e Loucura, de fato, apresentam-se como fenômenos profundamente diversos: o primeiro representa uma construção humana, supostamente investida de racionalidade, a fim de harmonizar a vida social (geralmente, pela manutenção de uma desarmônica estrutura de dominação); a outra, por seu turno, situa-se nas fronteiras do inexplicável, do irracional, constitui uma existência que o homem há alguns milênios tenta em vão decifrar. A Loucura troça do Direito, de suas leis, de seus códigos e procedimentos. E em troca ele tenta moldá-la, aprisioná-la, chamá-la à razão. Embalde: a única maneira com que a Loucura se aproxima do Direito é na luta pelo reconhecimento de um direito irrenunciável à diferença. Ao considerar a Loucura esta forma diferenciada de existir individual e socialmente, decidiu-se, nessa pesquisa, estudar as amarras, as formas de contenção, as técnicas de docilização e aprisionamento, que a humanidade instituiu para lidar com algo que não consegue compreender. Todavia, o próprio ato de pesquisar, no campo do Direito, converte-se em um problema. Saber tradicionalmente normativo, fechado nos códigos, a ciência jurídica não é das mais afeitas à atividade de pesquisa: “[n]o mais das vezes, escolhe-se um tema de pesquisa, sobre o qual são feitos levantamentos bibliográficos superficiais nos manuais, e constrói-se um grande resumo das opiniões emitidas pelos autores mais acessíveis” (FRATTARI, 2008, s.p.).
  • 13. 12 É possível atribuir a essa quase total ausência de relação entre ciência jurídica e pesquisa as principais dificuldades metodológicas deste trabalho, pois, para estudar a Loucura, foi necessário ir além. Não se pretendia conhecer a interpretação doutrinária ou jurisprudencial de uma alínea, de certo inciso, de tal parágrafo, do artigo daquela lei número tanto; tampouco se buscava unicamente descobrir se este ou aquele instituto era ou não constitucional. Desse modo, a ciência jurídica e seu tradicional método de compilação das idéias de festejados autores revelaram-se insuficientes para a abordagem pretendida. Foi preciso recorrer ao auxilio da Sociologia e, mais diretamente, da Criminologia. Entretanto, insiste-se, essa é uma pesquisa em Direito. Malgrado se apontem as deficiências da tradicional pesquisa, resultante de um tradicional ensino, que é fruto da própria tradicionalidade do Direito, é preciso criar espaços para a formulação de uma contra-hegemonia à ciência jurídica puramente dogmática, isto é, centrada na lei como ponto de partida e modelo de referência. Além da norma, o fenômeno jurídico é um complexo de práticas concretas, vivenciadas pelos sujeitos nas relações sociais. O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu sua existência e no seu futuro possível. Este tipo de análise desbloqueia o estudo do direito do seu isolamento, projecta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenômenos da sociedade, torna-o solidário da mesma história social (MIAILLE, 1994, p. 23). Esboça-se aqui, outrossim, uma perspectiva aberta de ciência social do Direito, não no sentido de uma exclusiva sociologia jurídica, mas buscando instituir a ciência jurídica como verdadeira ciência social. Para tanto, a compreensão do fenômeno estudado, para além do aspecto normativo, leva em conta contribuições advindas da História, Sociologia, Filosofia, Antropologia, Política e, sobretudo, da Criminologia, que forneceu a base teórica fundamental para este trabalho. Uma vez explicitado de que Direito se fala, pode-se retornar à Loucura. No intuito de compreender como ocorreu o processo histórico de segregação e patologização desse fenômeno, definiu-se como ponto central de investigação a medida de segurança, prevista no ordenamento brasileiro como reposta penal para os indivíduos que cometerem crimes e forem julgados loucos. Pretendeu-se, por
  • 14. 13 conseguinte, estudar este instituto, a partir dos diversos discursos, jurídicos, criminológicos e psiquiátricos, que o rodeiam: 1) os discursos historicamente construídos que converteram a loucura em doença mental e atribuíram ao criminoso o status de anormalidade, e, juntos, através do conceito de periculosidade, erigiram uma resposta social específica para os sujeitos considerados perigosos (entre os quais, o louco-criminoso); 2) os discursos que, em âmbito nacional, relacionam-se com o controle da periculosidade tupiniquim, tanto os que pugnam pela sua intensificação, quanto os de abrandamento de sua violência; 3) os discursos que efetuam uma irreversível deslegitimação da medida de segurança, pela negação da existência ontológica de crime e doença mental, e, principalmente; 4) os discursos elaborados na prática cotidiana por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos psiquiátricos, sobre os sujeitos aos quais tal medida é aplicada. O objeto da presente pesquisa pode ser, então, anunciado como a análise dos discursos proferidos por juízes e psiquiatras, em sentenças e laudos periciais, sobre os sujeitos definidos como loucos-criminosos, internados no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador – BA. Pretende-se, com isso, através das narrativas de médicos e juízes sobre as histórias de vida dos sujeitos, desvendar quem são os indivíduos aos quais se atribui o rótulo de louco-criminoso, com base em um diagnóstico de periculosidade, e através desse processo, entrever como se processa a relação entre Poder Judiciário e Psiquiatra no processo de interação social que constrói, concretamente, uma loucura considerada perigosa. A metodologia para realizar tal intuito foi projetada segundo duas fases: a primeira, de caráter analítico, consistiu em pesquisa bibliográfica, tendo como fontes livros, revistas especializadas, jornais e sites virtuais, visando a efetuar uma síntese histórica e esboçar um marco teórico para o trabalho; a segunda representou a parte empírica, efetuada através de pesquisa de campo no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, instituição destinada a acolher os sujeitos que estiverem em cumprimento de medida de segurança no Estado da Bahia, bem como todos aqueles relacionados com perícia psiquiátrica no âmbito penal. Nessa fase, o trabalho foi eminentemente documental e teve como fontes os laudos psiquiátricos e as sentenças judiciais obtidas no Centro de Registro e Controle (CRC) da instituição abordada. Além disso, utilizaram-se elementos de outros tipos de pesquisa, como o estudo de caso e a abordagem biográfica. Este trabalho constitui, assim, uma pesquisa exploratória, já que, por seu
  • 15. 14 caráter introdutório, visa basicamente a uma maior familiaridade com o problema estudado e o levantamento de hipóteses acerca da questão. Pretende-se, antes, elaborar novas perguntas que fornecer respostas definitivas. Deve-se, ainda, reconhecer a contribuição significativa para a presente monografia da Dissertação de Mestrado de Maria Fernanda Tourinho Peres (1997), intitulada Doença e Delito: relação entre prática psiquiátrica e poder judiciário no Hospital de Custódia e Tratamento de Salvador, Bahia, a qual apresenta evidente proximidade com o objeto aqui estudado. Esse trabalho, além de indicar referências sobre a legislação psiquiátrica brasileira, forneceu uma análise da medida de segurança como parte de um amplo “dispositivo de controle-dominação da loucura”, leitura baseada em Michel Foucault (1984) e retomada na presente pesquisa. Entretanto, a especificidade da abordagem aqui pretendida se mantém em relação àquela obra, graças, sobretudo, ao referencial teórico calcado na Criminologia da Reação Social e à exposição das narrativas construídas por juízes e psiquiatras. O texto, enfim, encontra-se estruturado conforme quatro momentos. O primeiro consiste em uma análise das transformações históricas no olhar social sobre loucura e crime que resultam, ao final, na criação da medida de segurança. Primeiramente, estudam-se, a partir dos trabalhos de Foucault (1984; 1997), as modificações nos discursos produzidos sobre a loucura no Ocidente e a constituição do saber alienista. A seguir, aponta-se a transição no pensamento sobre o crime da Escola Clássica do Direito Penal para a Criminologia Positivista, momento em que se verifica uma patologização do homem delinquente. Nessa parte, novamente, a obra de Foucault (1999) é central para determinar, por meio da crítica historiográfica à prisão, as modificações do aparelho punitivo que reclamaram uma nova tecnologia de docilização dos corpos. Ao final, analisa-se como a união entre criminologia e psiquiatria, no auge do positivismo, institui uma nova modalidade de controle social, voltada para a contenção dos sujeitos considerados perigosos. O segundo momento do trabalho apresenta uma síntese da normatização legislativa do fenômeno da loucura no Brasil, do século XVI aos dias atuais. Desvenda-se, então, como surge o primeiro Manicômio Judiciário brasileiro e como se dá a instituição normativa da medida de segurança, no Código Penal de 1940. Revelam-se, ainda, o procedimento de aplicação da medida de segurança e algumas questões relacionadas à Lei nº 10.216/2001, considerada o símbolo da Reforma Psiquiátrica brasileira.
  • 16. 15 Na terceira parte, pretende-se delinear uma base teórica de ruptura com o positivismo criminológico e psiquiátrico. Utilizam-se, assim, as teses da Criminologia da Reação Social e da Antipsiquiatria, que desconstroem, respectivamente, os conceitos de crime/ criminoso e doença/ doente mental, para uma compreensão crítica da medida de segurança. O quarto e último momento consiste na explanação da pesquisa empírica, em que os discursos dos juízes e psiquiatras envolvidos com o Hospital de Custódia de Salvador são revelados, por meio das narrativas construídas sobre os doentes mentais infratores. Apresenta-se, mais detidamente, a metodologia utilizada, os dados obtidos na instituição e como ocorreu a escolha de cinco casos para estudo. A seguir, expõem-se as narrativas elaboradas sobre os sujeitos em cumprimento de medida de segurança, com uma breve análise sobre cada uma delas. Estuda-se, finalmente, como se processa a complexa relação entre poder judiciário e psiquiatria e quais são os resultados sociais dessa interação, a partir dos conceitos de “estado de exceção” e “homo sacer”, trabalhados pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (2002; 2004). Espera-se, com isso, estar contribuindo na incansável tarefa de formular um discurso contra-hegemônico à dogmática-penal tradicional (PRANDO e SANTOS, 2007), por meio da desconstrução deslegitimadora de um de seus mais complexos e violentos institutos.
  • 17. 16 2 O SURGIMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO PENAL E PSIQUIATRIA 2.1 A HISTÓRIA DA LOUCURA E O NASCIMENTO DO SABER PSIQUIÁTRICO Compreender o processo de surgimento da medida de segurança pressupõe, necessariamente, conhecer algumas das diferentes formas pelas quais os agrupamentos humanos, ao longo de sua história, lidaram com comportamentos designados como loucura. Significa, ainda, percorrer os (des)caminhos que levaram tal categoria a adquirir o status de doença mental. De início, deve-se pontuar que, nas mais diversas sociedades, as interações entre os indivíduos são permeadas por condutas que acabam se afastando de um modelo reconhecido pelo grupo como válido. Em outras palavras, em qualquer comunidade, há sempre ações que violarão determinadas regras sociais e que, num determinado contexto, serão taxadas pelo grupo como desviantes de um padrão considerado normal 1. Assim, a violação de algumas regras de conduta pode levar o transgressor a receber um rótulo: mal educado, ébrio, perverso, pecador, criminoso. Quando ao descumprimento de tais regras não for possível corresponder nenhuma 1 Para Thomas Scheff (1970, p. 35-37), “[l]a transgresión de las reglas se refiere a la conducta que viola abiertamente las reglas aceptadas por el grupo. Los sociólogos suelen considerar estas reglas como normas sociales”. A desviação, assim, “no es una cualidad del acto que comete la persona, sino una consecuencia de que otros apliquen reglas y sanciones al ‘transgresor’. […] La transgresión de las reglas se refiere a una clase de actos: la violación de las normas sociales; la desviación, a actos determinados que reciben, en forma pública y oficial, el rótulo de violaciones de las normas”.
  • 18. 17 dessas categorias, quando se tratar de normas cujo consenso social é tão completo que são percebidas pelo grupo como elementares2, restará um resíduo dos mais diversos tipos de transgressão para o qual a cultura não atribui nenhum rótulo específico. A essa desviação residual atribui-se o nome de loucura. [L]os diversos tipos de transgresión de las reglas para los cuales nuestra sociedad no proporciona rótulos explícitos y, por consiguiente, determinan a veces que se catalogue al transgresor como enfermo mental, son, desde el punto de vista técnico, transgresiones de reglas residuales (SCHEFF, 1970, p. 37 – grifo original). Em decorrência, “aqueles cujas reações espontaneamente se aproximam mais do padrão proposto são favorecidos; aqueles cujo comportamento se situa fora do arco de possibilidades antropológicas privilegiadas pela sociedade são [considerados] anormais” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, pp. 24-25 – grifo nosso). No entanto, nem sempre os comportamentos desviantes são tidos, necessariamente, como indesejáveis. Em comunidades tribais e civilizações antigas, a loucura posicionava-se, muitas vezes, no campo do sagrado, dando-se destaque social e respeito ao discurso desviante. Em tradicionais sociedades africanas e árabes, por exemplo, o louco era o eleito de Deus e da Verdade, sendo-lhes totalmente estranha qualquer distinção entre o normal e o patológico 3. Em verdade, há uma longa tradição envolvendo a loucura na história das sociedades. Registros de pessoas que se afiguravam estranhas estão presentes em relatos que remontam aos tempos bíblicos: indivíduos afirmavam ouvir vozes que ninguém mais ouvia ou ver coisas, e até poder voar, sendo encarados como feiticeiros, possuídos pelo demônio, sofredores de desarranjos mentais ou, contraditoriamente, como santos. Segundo George Rosen (apud MILES, 1982, p. 13), investigadores que buscaram reconstruir um histórico de casos de loucos na Grécia e Roma antigas constataram um paradoxo semelhante: “[e]mbora à ‘loucura 2 Scheff (1970, p. 36) exemplifica essa situação com as normas destinadas a se estabelecer uma conversa: “[…] se acepta sin cuestionar que la persona que conversa con otra debe volver el rostro hacia su interlocutor y no hacia otro lado, que debe mirarlo a los ojos y no clavarle la mirada en la frente, por ejemplo (...). Al individuo que viole con regularidad estas expectativas no se lo considerará simplemente un malcriado, sino una persona rara, extraña y temible, porque su conducta infringe el supuesto mundo del grupo, el mundo interpretado como el único natural, decoroso y posible”. 3 “Considerados à luz da Psiquiatria, os devaneios, transes e êxtases vivenciados nas culturas primitivas e nas civilizações arcaicas seriam, em essência, estados patológicos. Porém, seria legítimo perceber aqueles fenômenos segundo essa ótica?” (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 39).
  • 19. 18 divina’ dos profetas e oráculos fosse atribuído um elevado prestígio, aqueles que eram rotulados como dementes tornavam-se, mais comumente, objeto de insultos, desprezo e ridículo”. Percebe-se, então, que, em certos contextos, embora houvesse atitudes às quais se atribuía o status de loucura (como comportamento social reprovado), outras condutas, também anormais, eram valorizadas, simbolizando prestígio perante o grupo. Verifica-se, ainda, que, mesmo existindo opiniões negativas e restrições sociais à pessoa considerada louca, como a privação de direitos4, a relação da comunidade com a loucura não se operava unicamente através da lógica de exclusão social, tampouco do encarceramento com fins terapêuticos. Nesse sentido, Michel Foucault (1984, p. 75), realizando uma análise de diversos discursos produzidos sobre a loucura, vai demonstrar que sua definição enquanto doença mental é operação relativamente recente na história ocidental. A História da Loucura na Idade Clássica (1975), proposta por Foucault, pode, esquematicamente, ser dividida segundo três grandes momentos: 1) um período de liberdade e de verdade, que inclui os últimos séculos medievais e o século XVI; 2) a Grande Internação, que abrange os séculos XVII e XVIII e; 3) a época contemporânea, pós-Revolução Francesa, quando entra em cena o saber médico, no intuito de lidar com os loucos que abarrotam os hospitais-gerais. O momento inicial caracteriza-se por uma experiência bastante polimorfa da loucura5. O homem europeu estabelece relações com algo que ele designa como loucura, desrazão, porém elas fazem parte de sua vida cotidiana: a loucura possui espaço para falar de si mesma; assusta e, simultaneamente, fascina. Além disso, a loucura permaneceu, durante certo tempo, afastada de fundamentos médicos. Muito embora, desde a medicina grega, algumas atitudes fossem compreendidas como patologias (frenesi, melancolia, surtos de violência), com a conseqüência de uma prática curativa, inexistia uma perspectiva de controle total da loucura pelo saber médico. Havia, assim, leitos reservados aos loucos nos hospitais da Alta Idade Média; contudo, apresentavam muito mais um caráter de 4 No direito romano antigo, por exemplo, o louco não podia se casar, nem possuir propriedades (MILES, 1982, p. 13). 5 Foucault (1997, p. 17-26) dá ênfase significativa, nesse período, à oposição entre os discursos de uma “experiência cósmica da loucura”, no fascínio retratado pelas artes plásticas, e da “experiência crítica da loucura”, na sátira moral expressa na literatura e na filosofia, que, relacionando-se, vão caracterizar os diversos modelos de interação entre a sociedade da época e a loucura.
  • 20. 19 assistência e isolamento que uma perspectiva de tratamento6. Não se propunham, pois, a aprisionar, em conceitos médicos, a grande extensão do fenômeno do desatino. O período histórico em que essa extensão torna-se mais visível é certamente o Renascimento. No fim do século XV, a loucura se renova e se expande com o poder da linguagem. Há as festas populares em torno dos espetáculos dados pelas “associações de loucos”, como o Navio Azul em Flandres; há toda uma iconografia que vai da Nave dos loucos de Bosch, a Breughel e a Margot a Louca; há também os textos sábios, as obras de filosofia ou crítica moral, como a Stultifera Navis de Brant ou o Elogio da loucura de Erasmo. Haverá, finalmente, toda a literatura da loucura [...]. Shakespeare e Cervantes no fim do Renascimento são testemunhas do grande prestígio desta loucura cujo reinado próximo tinha sido anunciado, cem anos antes, por Brant e Bosch (FOUCAULT, 1984, p. 77 - grifos originais). Até meados de 1650, loucos ainda divertiam o povo, com dramatizações e festejos populares. O público culto apreciava livros escritos por loucos célebres, como Bluet d’Arbère, publicados e lidos como obras de loucura (FOUCAULT, 1984, p. 78). De outro lado, em contraponto à exaltação das excentricidades da loucura, e ao descaso com que a medicina a via, a Igreja Católica, principal detentora de poder no período, já atuava no sentido de reprimir tudo aquilo em que vislumbrasse manifestação da influência satânica. “O perturbado mental não era exatamente um doente que merecesse atendimento médico, mas nem por isso, dependendo de sua expressão, ficava isento, vez ou outra, da censura religiosa” (VELO, 2000, p 275). Assim, pelo viés católico, a expressão da loucura aproximava- se dos ritos não-cristãos, como magia e feitiçaria. Havia, também, um antigo costume de escorraçar os loucos das cidades, para que corressem pelos campos distantes, ou, principalmente, entregando-os a barqueiros, que os levavam de porto em porto, para que, nessa existência errante, encontrassem seu destino. A Renascença cristalizou esse costume na Nau dos Loucos, pintura de Jeronimo Bosch, e, na Narrenschiff, de Brant. No entanto, longe de significar pura exclusão, esse fenômeno é bastante complexo, como demonstra 6 Sobre o complexo fenômeno de nascimento do hospital como espaço da clínica, cf. FOUCAULT,
  • 21. 20 Foucault (1997, p. 10): [n]ão é fácil levantar o sentido exato deste costume. [...] [O]s loucos não são corridos da cidade de modo sistemático. Por conseguinte, é possível supor que são escorraçados apenas os estrangeiros, aceitando cada cidade tomar conta apenas daqueles que são seus cidadãos. Com efeito, é possível encontrar na contabilidade de certas cidades medievais as subvenções destinadas aos loucos, ou donativos feitos em favor dos insanos. [...] E é possível que essas naus de loucos, que assombraram a imaginação de toda a primeira parte da Renascença, tenham sido naus de peregrinação, navios altamente simbólicos de insanos em busca da razão. Ainda segundo o Autor (1997, p. 11-12), [...] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. [...] Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. De todo modo, pode-se dizer que a repressão porventura exercida sobre a loucura era dispersa, descentralizada. Não havia um saber que dela se ocupasse, tampouco instituições específicas para controlá-la. A exclusão do louco, mesmo presente, ainda não era a marca principal da relação entre comunidade e loucura. Até porque, nesse período, dado o seu número e a gravidade da situação, a preocupação social de excluir voltava-se para os leprosos. De fato, na Alta Idade Média, a lepra assola a Europa. Como resposta, instituem-se os leprosários, gigantescos estabelecimentos para onde são compulsoriamente encaminhados os doentes, chegando a existir cerca de dezenove mil por todo o continente. Contudo, a exclusão nessas cidades malditas não significa apenas segregação para impedir o contágio, simbolizando muito mais um ritual sacro, no qual a lepra expressa a cólera e a bondade de Deus perante o leproso. Conforme Foucault (1997, p. 06), “[o] abandono é, para ele, a salvação; sua exclusão oferece-lhe uma outra forma de comunhão”. No século XV, verifica-se súbito desaparecimento da lepra, consequência da longa segregação e, com o término das Cruzadas, da ruptura com focos orientais da doença. Some a lepra e o vazio se estabelece. Os inúmeros antigos leprosários encontram-se destituídos de função: alguns se tornam casas de correição para 1985, p. 99-111.
  • 22. 21 jovens, outros são abandonados. Apenas no final do século XV, a lepra começa a ser substituída, nos leprosários e no imaginário social, pelas doenças venéreas. Esses doentes são recebidos em diversos hospitais de leprosos [...]. Por duas vezes [...], a eles tinham sido destinadas [...] diversas barracas e casebres antes utilizados pelos leprosos. Eles logo se tornam tão numerosos que é necessário pensar na construção de outros edifícios, “em certos lugares espaçosos de nossa cidade e arredores, sem vizinhança”. Nasceu uma nova lepra, que toma o lugar da primeira (FOUCAULT, 1997, p. 07). Todavia, as doenças venéreas não permanecem muito tempo nesse espaço de exclusão e logo assumem seu lugar, entre as outras doenças, nos hospitais. A partir de então, mesmo considerada num conjunto de juízos morais, é a dimensão médica que prevalece. E surge um novo vazio... Até que uma grande internação, em meados do século XVII, preencha os estabelecimentos vagos. O fenômeno da Grande Internação está, antes de tudo, indissoluvelmente ligado a uma nova concepção moral da miséria. Enquanto o pensamento medieval concebe a pobreza como um estado de sofrimento divinamente determinado (a fim de que a expiação em vida possa assegurar a glória prometida no Paraíso pós- morte), a era clássica, com a racionalidade da burguesia nascente e a nova ética trazida pela Reforma protestante7, passa a ver a miséria como sinal de predestinação. No mundo de Lutero e Calvino, pobreza designa castigo. Assim, “ela passa de uma experiência religiosa que a santifica para uma concepção moral que a condena” (FOUCAULT, 1997, p. 59), tornando-se um obstáculo ao progresso. Se antes se reprovava a usura, condena-se agora o ócio. Inicia-se, então, a prática do internamento, como uma política de gestão da miséria8, destinada a enclausurar os pobres de todos os sexos, inválidos, doentes, velhos, prostitutas, mendigos, libertinos, inválidos, eclesiásticos em 7 Através do conceito de vocação, elaborado por Martinho Lutero (1483-1546), a Reforma Protestante condenará o ócio, inclusive religioso, exaltando, sobremaneira, o trabalho: “[...] o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida. A expressão paulina ‘Quem não trabalha não deve comer’ é incondicionalmente válida para todos. A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado de graça” (WEBER, 1985, p. 113). 8 Para Loïk Wacquant (2001), o moderno sistema penal dos países capitalistas, intensificado pela ideologia neoliberal, funciona como um instrumento de gestão da pobreza, criada pela desigualdade social. Assim, no que parece ser a retomada da medieval lógica de internação, o Estado neoliberal se propõe à missão de impor aos miseráveis um trabalho cada vez mais precário, reduzindo as políticas sociais e controlando o desemprego crescente através de políticas e teorias repressivas, como a Tolerância Zero, e a Teoria da vidraça quebrada, ambas produto de um grande projeto de repressão da pobreza indócil, intitulado Movimento Lei e Ordem.
  • 23. 22 infração, familiares indesejados, enfim, todos os desviantes do padrão de conduta concebido como modelo pela burguesia nascente. Assim, os inadaptados ao novo padrão de produção, circulação e consumo de riquezas foram sistematicamente internados9. Entre eles, obviamente, os loucos. A internação, assim, [...] organiza numa unidade complexa uma nova sensibilidade à miséria e aos deveres da assistência, novas formas de reação diante dos problemas econômicos do desemprego e da ociosidade, uma nova ética do trabalho e também o sonho de uma cidade onde a obrigação moral se uniria à lei civil, sob as formas autoritárias da coação (FOUCAULT, 1997, p. 56). Enfim, num fenômeno complexo, erige-se a sonhada cidade disciplinar10. Um ano é significativo nesse processo: 1656. Nasce o Hospital Geral de Paris, local específico para essa internação maciça. Esse novo estabelecimento logo se consolida e se expande: apenas vinte anos depois, há um Hospital Geral em cada grande cidade da França, por vezes ocupando espaços pertencentes aos extintos leprosários. “O Classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média a segregação dos leprosos; o vazio deixado por estes foi ocupado por novas personagens no mundo europeu: são os ‘internos’” (FOUCAULT, 1997, p. 59). Com as internações, inicia-se uma distinção (baseada na concepção religiosa da pobreza, que a vislumbra como fruto da vontade divina) entre o bom pobre, submisso, que vê no internamento uma obra assistencial, onde pode encontrar descanso; e o mau pobre, que nele enxerga uma medida de repressão e busca escapar a essa ordem. O que está em jogo, portanto, é um projeto de docilidade da miséria, que se justifica num caso como no outro: o internamento servirá como benefício assistencialista aos pobres dóceis, ou como punição para os rebeldes, havendo distintos lugares para eles no espaço do Hospital Geral (FOUCAULT, 1997, p. 61). É a partir dessa valoração ética maniqueísta que a loucura passa a ser percebida, ora agrupada entre os bons pobres, ora entre os indóceis; é assim que ela abandona a nau em que ritualmente navegava e se fixa no hospital, ao lado da miséria e do ócio, criando parentescos novos e estranhos. 9 Foucault (1997, p. 48) aponta que, ao longo do século XVII, mais de um por cento da população parisiense esteve enclausurada por algum tempo nas celas das casas de internamento. 10 “Utopia da cidade perfeitamente governada” a cidade disciplinar constitui, para Foucault (1999, p. 164), o modelo apresentado nas cidades em que se verificou uma epidemia de peste: “[...] atravessada pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, [...] imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais”.
  • 24. 23 É necessário destacar que, apesar do nome, esses hospitais ainda não possuem caráter médico11. Antes disso, constituem entidades administrativas, com estrutura semi-jurídica, destinadas a controlar a pobreza e a ociosidade, através de uma disciplina voltada para a religiosidade e, sobretudo, o trabalho: [...] quando se cria o Hospital Geral, o que se pretende é suprimir a mendicância, isto é a ociosidade como fonte das desordens. A prática de internamento não tem sentido médico, nem preocupações de cura, mas é um problema de polícia. [...] Portanto, é como casas de trabalho forçado que poderiam ser entendidas as casas de internamento. A exclusão social dos condenados dá-se por uma medida de reclusão. [...] No entanto, essa prática possui também um sentido econômico. (FRAYZE-PEREIRA, 1982, p. 65-66). De fato, no século que antecedeu o início sistemático das internações, a mendicância e a ociosidade passam a constituir objeto central das preocupações com a ordem social. Não à toa: por volta de 1559, Paris apresenta mais de 30.000 mendigos, o que representa um número superior a três décimos da população local. As internações surgem, assim, num aperfeiçoamento de primitivas práticas repressivas da mendicância, como o açoite e o banimento (FOUCAULT, 1997, p. 64). À medida que se produz uma crise, aumentando-se o número de pobres, o internamento entra em ação para conter a desordem; fora dos períodos de crise, a internação passa a adquirir um novo significado: [n]ão se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a (sic) prosperidade de todos. A alternativa é clara: mão-de-obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas (FOUCAULT, 1997, p. 67). Durante o século XVIII, entretanto, a política de internamento começou a dar sinais de seu fracasso. De um lado, os hospitais tornaram-se lugar da ociosidade, graças ao alto número de internos e à inexistência de trabalho para 11 Foucault, em O Nascimento do Hospital, (1985, p. 102), analisando o distanciamento entre prática médica e instituição hospitalar na Idade Média, afirma que “o Hospital Geral, lugar de internamento, onde se justapõem e se misturam doentes, loucos, devassos, prostitutas, etc., é ainda, em meados do século XVII, uma espécie de instrumento misto de exclusão, assistência e transformação espiritual, em que a função médica não aparece”.
  • 25. 24 todos12; de outro, a internação foi responsável por gerar a miséria que se propunha a conter. É simples: nos períodos em que não havia crise, a mão-de-obra barata encontrada nos hospitais era responsável por causar desemprego em regiões próximas, gerando novos pobres ociosos, a quem se determinava a internação. Criou-se, assim, um ciclo vicioso que só aumentava a quantidade de reclusos e os gastos com aqueles estabelecimentos. Em decorrência, no final desse século, uma nova lógica econômica revelou-se totalmente avessa ao internamento. Percebeu-se que a absorção dos indigentes nas casas de internação reduzia a mão-de-obra disponível para o trabalho, aumentando os custos da produção. Ora, [...] por quê (sic) prender “as mulheres de vida alegre que, levadas para as manufaturas do interior, poderiam tornar-se mulheres trabalhadoras”? Ou ainda celerados que só aguardam a liberdade de se fazer enforcar. Por quê (sic) essas pessoas, amarradas a correntes ambulantes, não são utilizadas naqueles trabalhos que poderiam ser malsãos para operários voluntários? Serviriam de exemplo... (MIRABEAU apud FOUCAULT, 1997, p. 397). Pareceu muito mais interessante recolocar toda a população de internos no circuito da produção, dividindo-a entre os locais em que a mão-de-obra era mais escassa e gerando uma reserva humana capaz de baratear os salários e, por conseguinte, atenuar o elevado preço dos produtos. Além disso, após certo tempo, como sucessão dos leprosários, os hospitais-gerais passam a consubstanciar a idéia do mal. Teme-se o internamento, fala-se em febre de prisão, acredita-se que o ar contaminado dessas casas corromperá as cidades, como se, no espaço fechado que aloja os indesejados sociais, com todos os seus crimes e vícios, o mal entrasse em fermentação, espalhando-se pelo ar e contaminando o que houvesse ao redor. Consequentemente, a loucura, em conjunto com várias formas de desajuste social, retoma o seu caráter de fascínio e medo, apresentado durante a Renascença. Todavia, ela está agora menos próxima do desatino e muito mais ligada a comportamentos que despertam uma crítica moral: nas tentativas de se estabelecer uma classificação dos indivíduos loucos, fenômenos como roubo, 12 De acordo com Foucault (1987, p. 69), chegava-se a absurdos como manter os internos trabalhando nas obras de um grande poço, que há muito se tinha revelado inútil, ou substituírem-se os cavalos que carregavam água por equipes de internos.
  • 26. 25 maldade, temor, orgulho, vaidade passam a significar comportamentos doentios13. Com isso, [a loucura] escapa ao que pode haver de histórico no devir humano, para receber um sentido numa moral social: ela se torna o estigma de uma classe que abandonou as formas da ética burguesa; e no exato momento em que o conceito filosófico de alienação adquire uma significação histórica pela análise econômica do trabalho, nesse mesmo momento o conceito médico e psicológico de alienação liberta-se totalmente da história para tornar-se crítica moral em nome da comprometida salvação da espécie (FOUCAULT, 1997, p. 375-376). Além de conferir um novo status à loucura, o grande medo do final do século XVIII gerou uma introdução maior da figura do médico no espaço do hospital- geral, menos com uma perspectiva terapêutica que como um guardião, cujo objetivo seria proteger os demais indivíduos do perigo que o mal do internamento passou a representar. Iniciou-se aí o processo de aquisição do estatuto médico da loucura. Outra questão que merece destaque (embora não cause surpresa), nesse processo gradual de deslegitimação do internamento, foram as internações arbitrárias. Às vítimas da tirania das famílias e do despotismo paterno14, somaram-se os enclausuramentos dos inimigos do antigo regime que se procederam no período anterior à Revolução Francesa. Bem assim, no momento pós-revolucionário, os muros desses estabelecimentos, sobretudo Bicêtre, viram-se preenchidos por “inimigos da nação”, aristocratas e sacerdotes que, escondidos, tentavam escapar à condenação na Bastilha (FOUCAULT, 1997, p. 463). Crítica econômica do internamento, necessidade de mão-de-obra para a produção agrícola e manufatureira; altos custos dos estabelecimentos e pavor popular por estas casas; denúncia política de internações arbitrárias, protestos e revoltas: o fim do século XVIII foi também o ocaso da Grande Internação. Como 13 Consoante Foucault (1997, p. 197) “à medida que se aproximava das diversidades concretas entre as quais se dividia a loucura, à medida que nos afastávamos de um desatino que problematiza a razão em sua forma geral, [...] víamos a nosografia assumir o aspecto, ou quase, de uma galeria de ‘retratos morais’. No momento em que quer alcançar o homem concreto, a experiência da loucura encontra a moral”. O que estava em jogo, portanto, nos primórdios da concepção patológica da loucura, era a defesa da moralidade burguesa como a única forma possível de existir socialmente. 14 Thomas Szasz (1994, p. 169), confrontando a posição de Foucault sobre a origem do asilo a partir do internamento, defende que “[q]uando se iniciou o negócio da loucura, os indivíduos encarcerados como dementes eram membros das classes abastadas, que representavam um problema para suas famílias”. Para ele, o asilo surgiu a partir da iniciativa privada e do desejo das famílias ricas de se livrarem de indivíduos problemáticos. Contudo, Foucault, em diversas passagens de sua obra (1997, p. 52; 92; 113; 382-386), reconhece a existência de interesse familiar na internação, bem como de
  • 27. 26 antes ocorreu com os leprosários, os hospitais-gerais vão sendo esvaziados. Instaura-se um marco legal que restringe as internações: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A partir de então, [n]inguém pode ser preso, nem detido, a não ser nos casos previstos pela lei e segundo as formas por ela prescritas. . . A lei só deve admitir penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido a não ser em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada. A era do internamento se encerrou (FOUCAULT, 1997, p. 418). Se antes, para conter as crises, foi preciso enclausurar a pobreza, exige- se agora sua libertação. Porém, nem todas as categorias de indivíduos que habitam os hospitais terão direito a essa liberdade: ela destina-se apenas aos que, mesmo representando um desajuste social, revelem-se funcionais para o processo produtivo. A internação permanece o destino certo de velhos inválidos, criminosos e loucos15. E é nesse espaço, agora reduzido em sua diversidade, que a loucura será diretamente apontada, que seus contornos serão delimitados. Já há algum tempo, surgiam diversos protestos contra a internação. Revoltavam-se os internos, sobretudo, com aquilo que consideravam uma dupla punição: o enclausuramento ao lado de loucos. Foram eles os responsáveis por apontar, primeiramente, essa classe particular de homens cuja desordem é permanente e a inquietação irredutível (FOUCAULT, 1997, p. 396). Uma vez reduzida a população internada, essa distinção começou a se mostrar de forma mais evidente; os protestos, em decorrência, aumentaram. E o médico, já chamado para guardar as fronteiras da internação e proteger a sociedade de seus males, foi então convidado a estabelecer uma diferenciação entre os internos, a separá-los definitivamente entre asilos e prisões. Com isso, o internamento tomou seu derradeiro golpe: de ato que mesclava assistencialismo e exclusão social, passa a ter, predominantemente, o caráter de tratamento. Os hospitais foram, assim, reformados: alterados em sua essência, tornam-se asilos. Na Inglaterra, o principal responsável pela reforma dos hospitais foi Samuel Tuke (1784-1857), membro dos Quacres, “sociedade de amigos” que se hospitais privados destinados a loucos abastados, exprimindo a relativa medida de sua importância na história da constituição dos atuais manicômios. 15 Não por acaso, esses três grupos têm até hoje a exclusão do convívio como marca de sua relação com a sociedade.
  • 28. 27 desenvolveu no século XVII e buscou, no fim do século XVIII, assumir a iniciativa privada no domínio da assistência. Tuke pautou sua reforma na construção do Retiro, uma casa de campo, com janelas sem grades, numa planície fértil e cheia de bosques. Em vez de correntes, executava um sistema de tratamento dos internos calcado em bases religiosas e morais e centrado em dois aspectos primordiais: o Trabalho e o Olhar (FOUCAULT, 1997, p. 479-480). De um lado, o horário regulado, a exigência de atenção e a obrigação de chegar a um resultado, afastando os loucos de uma liberdade prejudicial ao espírito; de outro, um complexo sistema de observações recíprocas, a fim de levá-los a ver o absurdo de sua loucura e conduzi- los ao caminho da razão: “a cura significará reinculcar-lhe os sentimentos de dependência, humildade, culpa, reconhecimento que são a armadura moral da vida familiar” (FOUCAULT, 1984, p. 82). É, entretanto, na França, com Philippe Pinel (1745-1826), que a loucura será de vez apropriada pela terapêutica do saber médico. Designado para atuar no Hospital-Geral de Bicêtre, após a Revolução, Pinel, para espanto geral, logo tratou de libertar os acorrentados; contudo, a retirada das correntes, longe de constituir um simples ato de humanitarismo, ocultava diversas significações. Primeiro, ela representava a possibilidade de fazer a distinção entre os insanos, de um lado, e os prisioneiros políticos e suspeitos escondidos, de outro. Bicêtre é sempre uma imensa reserva de pavores, mas porque nela se enxerga um covil de suspeitos – aristocratas que se ocultam sob os andrajos de pobres, agentes do exterior que tramam, ocultos por uma alienação de encomenda. Mais uma vez é preciso denunciar a loucura para que resplandeça a inocência, mas também para que apareça a duplicidade. [...] De qualquer forma, ela deve ser desmascarada, de modo que a verdade e a razão sejam devolvidas à sua própria condição (FOUCAULT, 1997, p. 465 – grifo original). Ademais, a libertação dos internos significou, paradoxalmente, o aprisionamento da loucura na instituição asilar: - permite-se que a liberdade do louco atue, mas num espaço mais fechado, mais rígido menos livre que aquele, sempre um pouco mais indeciso, do internamento; - liberam-no de seu parentesco com o crime e o mal, mas para fechá- lo nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é inteiramente inocente no absoluto de uma não-liberdade; - retiram-se as correntes que impediam o uso de sua livre vontade, mas para despojá-lo dessa mesma vontade transferida e alienada no
  • 29. 28 querer do médico. O louco doravante está livre, e excluído da liberdade. Outrora ele era livre durante o momento em que começava a perder tal liberdade; é livre agora no amplo espaço em que já a perdeu (FOUCAULT, 1997, p. 508). Na era clássica, a loucura deixa de ser percebida como desrazão, algo exterior à razão, passando a ser entendida como uma desordem no pensar, como erro, como alienação do sujeito. Por conseguinte, torna-se passível de tratamento e cura, a fim de que o indivíduo encontre a verdade da condição humana. Retiradas as correntes16, os muros do asilo ganham novos poderes, vez que o isolamento do mundo exterior passa a constituir a condição necessária da nova terapêutica da loucura. Não é a medicina, porém, quem inventa a exclusão do louco; ela já existia anteriormente. O papel do nascente saber alienista será o de justificar, cientificamente, as bases desta exclusão e criar formas de controle e cura da loucura. Além disso, não mais se trata da pura exclusão com fins morais ou religiosos. O saber médico determina a segregação, visando 1) afastar o louco, agora doente mental, da família, onde recebe cuidados e consolações indulgentes que o mantêm na insensatez, a fim de confiá-lo a especialistas, que saberão dosar cuidado e disciplina para a cura; 2) identificar as diferenças entre os doentes (os agitados, os melancólicos, os imundos, os suicidas), evitando que a convivência agrave o seu estado, e; 3) reunir num único estabelecimento, nesse lugar de exame, o conjunto de medidas necessárias à cura. Essas operações, como princípios teóricos e atos institucionais propiciam um método; fazem “ver” diferente a figura do louco, agora um “alienado mental”, produzem uma visibilidade específica sobre a loucura, construindo um estar louco e um ser louco diferente, no qual o tratamento fundamental é regrar novamente, “dobrar o alienado à razão”, numa espécie de ortopedia da alma (TORRE e AMARANTE, 2001, p. 75 – grifo original). A história do desatino alcança, então, o instante em que se encontra com o saber médico, originando um ramo específico, que Pinel denomina de alienismo, e que mais tarde tornar-se-á a psiquiatria. Com o discurso alienista erigido em saber 16 Deve-se frisar que a retirada de correntes e algemas não significa o fim da contenção. Conforme Pessotti (1996, p. 164 – grifos originais), “permanecia a necessidade de conter ou imobilizar certos pacientes em seus acessos de fúria. O no restraint não era a total ausência de controle. Em vez de correntes, algemas e celas fortes, adotou-se o gilet de force, o colete de força ou a camisa-de-força”.
  • 30. 29 científico, institui-se um poder destinado a controlar, definitivamente, a loucura e suas manifestações. Absorvida pela medicina, ela será, por conseguinte, ressignificada como uma patologia: a doença mental. Doravante, o manicômio passa a constituir seu principal lugar de morada. 2.2 DO DIREITO PENAL CLÁSSICO AO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO CRIMINOSO COMO ANORMAL 2.2.1 A Escola Clássica do Direito Penal De maneira semelhante à história do surgimento da psiquiatria17, as ponderações iniciais sobre o fenômeno do crime encontravam-se dispersas, estando muito mais próximas de um questionamento filosófico que de um saber científico. Assim, as teorias que constituem o embrião de uma forma sistemática e integrada de pensar o fenômeno delitivo situaram-se no período iluminista. Antes, durante o Absolutismo, os crimes praticados eram considerados uma afronta ao poder do rei. Em decorrência, sobretudo nos casos mais graves, a punição era severa, atingindo o corpo dos condenados, marcando-os, infligindo-lhes dores insuportáveis e, porventura, levando-os à morte, na fogueira, na forca, por esquartejamento... A sentença da corte, é que daqui a dois dias o criador de perfumes, Jean-Baptiste Grenouille seja amarrado a uma cruz de madeira, com o rosto apontado para o céu. Enquanto estiver vivo será açoitado doze vezes, com um ferro em brasa: na junção dos antebraços, dos ombros, de seus quadris e das suas pernas. Mais tarde será içado com uma corda e enforcado, até morrer. E todos e quaisquer atos de misericórdia serão expressamente proibidos ao Carrasco (PERFUME, 2006, s.p.). Como o trecho do filme Perfume revela, havia todo um cerimonial da pena, destinado ao público, para constituir exemplo aos demais, causar temor e 17 Para uma analogia entre a evolução histórica dos saberes criminológico e psiquiátrico, ver Velo (2000).
  • 31. 30 respeito à autoridade, que Foucault (1999, p. 32) denomina suplício: “uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune [...] Nos ‘excessos’ dos suplícios, se investe toda a economia do poder”. No final do século XVII, a lógica de punir absolutista começa a ser questionada, registrando-se várias críticas aos espetáculos públicos, à severidade das penas e à punitividade sobre o corpo. De um lado, isso se deve às revoltas populares ocorridas durante os cerimoniais punitivos18; de outro, à transição do principal interesse confrontado pelo crime: com o despontar do capitalismo, ele se desloca da pessoa do soberano, para a propriedade do comerciante. De fato, o decorrer do século XVIII verifica um deslocamento do principal objeto de violência: os “crimes de sangue” tornam-se menos significativos, ganhando espaço mais acentuado os delitos contra a propriedade, que afetam diretamente o interesse da emergente burguesia. Os grandes suplícios tornam-se, portanto, economicamente custosos, moralmente reprováveis e penalmente desproporcionais aos crimes cometidos. É necessário, destarte, um novo sistema de punição, que não fique ao arbítrio do superpoder monárquico19; que controle e codifique as diversas práticas ilícitas; enfim, uma justiça criminal que “puna em vez de se vingar” (FOUCAULT, 1999, p. 63). A base filosófica para esta nova forma de pensar o crime e a pena será dada pelo movimento intelectual denominado Iluminismo, sobretudo através do conceito de contrato social, esboçado por Jean-Jacques Rousseau (1995, p. 78): [e]ncontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes. Esse é o problema fundamental que o contrato social soluciona. 18 Para Velo (2000, p. 274 – grifos originais), “por conta das execuções públicas, os espectadores conseguiam transferir ao executado boa parte de afetos insuportáveis, fazendo-o virtual bode expiatório. [...] De repente, diante daquele teatro, as pessoas foram percebendo o estado de vulnerabilidade em que viviam, sujeitas que estavam a um dia representarem o papel do bode”. 19 Foucault (1999, p. 68) demonstra que uma das principais críticas ao sistema penal do Antigo Regime era a distribuição mal regulada do poder, sobretudo o “poder excessivo [...] exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá- los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real. [...] Ora, essa disfunção do poder provém de um excesso central: o que se poderia chamar o ‘superpoder’ monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano”.
  • 32. 31 Ao conceber o homem como ser racional, igual e livre, o iluminismo vê no criminoso um indivíduo que, deliberadamente, decide violar as leis sociais, não se interessando por desvendar a existência de outros fatores que possam influir em seu comportamento. Dessa forma, a pena não será – nem deverá ser – mais que a justa resposta da sociedade ao desviante. Sob esta ótica, o infrator torna-se um inimigo comum, deslocando-se a essência do poder punitivo, da vingança do soberano à defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999, p. 76) A um novo poder que se institui, deverá corresponder um saber20, visando a deslegitimar as antigas instituições e justificar a nova estrutura social. É, pois, num marco de transformação estrutural da sociedade e do Estado, buscando limitar o superpoder do rei e racionalizar as técnicas de punição, que surgem a teoria contratualista e as limitações ao poder de punir21, características do movimento filosófico-jurídico denominado Escola Clássica do Direito Penal. Malgrado diversos pensadores estejam situados no âmbito da Escola Clássica22, certamente o mais importante deles é Cesare Beccaria (1738-1794), graças ao seu trabalho intitulado Dos delitos e das penas (1998). Nesta obra, podem-se encontrar as principais bases da concepção liberal clássica do direito penal: 1) a teoria da divisão dos poderes; 2) a idéia de contrato social, e 3) o princípio utilitarista da máxima felicidade repartida pelo maior número de pessoas (BARATTA, 2002, p. 33). É disso que, após discorrer sobre a origem das penas e o direito de punir, trata Beccaria (1998, p. 66-67): [a] primeira conseqüência destes princípios é que somente as leis podem fixar as penas correspondentes aos delitos; e este poder só 20 Alerta Foucault (1999, p. 27) que “o poder produz saber [...]; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”. 21 Optou-se por utilizar o termo poder de punir ao invés do comumente utilizado direito de punir, seguindo as críticas tecidas a este conceito pela escritora Clarice Lispector (2005, p. 45), no período em que cursava a Graduação em Direito: “Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte do que ele [...]. E não há direito de punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo: como julgar que posso punir baseado apenas em que meu critério de julgamento para tonalizar tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios? Como crer que se tem verdadeiramente o direito de punir se se sabe que a não observância do fato X, hoje fato criminoso, considerava-se igualmente crime?”. 22 Como pensadores da Escola Liberal Clássica do Direito Penal, podem-se citar, além de Beccaria: Jeremias Bentham (1748-1832), Caetano Filangieri (1752-1788), Giandomenico Romagnosi (1761- 1835) e Pablo Anselmo von Feuerbach (1775-1833), teóricos de um primeiro período essencialmente filosófico, e; Giovanni Carmignani (1768-1847), Pellegrino Rossi (1781-1848) e Francesco Carrara (1805-1848), representantes do período jurídico da Escola (ANDRADE, 1997, p. 45).
  • 33. 32 ao legislador pode pertencer, ele que representa toda a sociedade unida por um contrato social; nenhum magistrado (que é parte da sociedade) pode com justiça infligir penas a um outro membro da mesma sociedade. [...] A segunda conseqüência é que, se cada membro particular está ligado à sociedade, esta está, da mesma maneira, ligada a todos os membros particulares através de um contrato que, de sua própria natureza, obriga duas partes. [...] A violação, ainda que de um só, é o início da permissão da anarquia. [...] A terceira conseqüência é que, ainda que se provasse que a atrocidade das penas [...] fosse apenas inútil, mesmo neste caso ela séria contrária, não só àquelas virtudes benéficas que são o efeito de uma razão iluminada – que prefere dirigir homens felizes a um rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tímida crueldade – mas também à justiça e à natureza do próprio contrato social. Como observa Andrade (1997, p. 48-49), a grande importância histórica da obra de Beccaria decorre menos de originalidade e mais da capacidade de representar os diversos ideais expressos no movimento europeu de reforma penal do período. Isso porque “se trata de uma obra simultaneamente de combate à Justiça Penal do Antigo Regime e projeção de uma Justiça Penal liberal, humanitária e utilitária, contratualmente modelada”. Reordenação e limitação do poder punitivo; fim dos suplícios na pena e reestruturação do processo; império da lei (nullum crimen nulla poena sine lege); proporcionalidade das penas aos delitos; concepção utilitária do castigo. Em linhas gerais, são estes os principais postulados trazidos pela Escola Clássica. No mundo clássico, portanto, concebendo-se o indivíduo como ser livre, racional e responsável, o pensamento sobre o crime fixa-se no ato tipificado, não demonstrando preocupações etiológicas destinadas a investigar as causas do comportamento criminoso, quer no estudo do indivíduo delinqüente, quer no do seu meio social. Por centrar-se no ato e pré-conceber a idéia de responsabilidade, não se detém sobre questões como o discernimento do infrator. Cometido o delito, deverá haver uma punição equivalente, como resposta social justa e legítima. 2.2.2 A Criminologia Positiva No decorrer do século XIX, transformações sociais, políticas e científicas
  • 34. 33 vão ocasionar o surgimento de uma nova forma de pensar o comportamento criminal. Com a incapacidade revelada pelas teorias clássicas de reduzir os índices de criminalidade (pois o delito era visto como livre escolha do indivíduo), seus pressupostos filosóficos e metodológicos serão postos em xeque por um saber científico-criminológico que se propõe à proteção da sociedade. Nesse processo, destaca-se, primeiramente, a Revolução Industrial, que, iniciada no século anterior na Inglaterra, expande-se pelo mundo e, num contexto de novas teorias políticas de cunho social ou socialista, gera a necessidade de que o Estado abandone sua postura liberal e intervenha na ordem econômica e social. De um lado, isso representa uma reivindicação do proletariado, em busca de condições menos insalubres no mundo do trabalho; de outro, significa o desejo dos industriais burgueses de consolidar como problema de polícia as agitações operárias. Além disso, o controle intenso exercido sobre a produção exige uma maneira de estudar e conhecer melhor o homem, classificá-lo, a fim de selecionar os melhores, mais aptos e mais dóceis ao processo produtivo. Foucault (1999, p. 162- 187) propõe uma análise desse momento histórico a partir do Panóptico, modelo de prisão elaborado por Jeremy Bentham, na qual haveria uma torre no centro a vigiar as celas, dispostas ao seu redor em forma de anel. O objetivo do Panóptico é, por conseguinte, exercer um controle total, de forma que, mesmo não havendo nenhum guarda na torre, a sensação de vigilância será permanente. Para Foucault (1999, p. 170), esse mecanismo, funciona como um “laboratório de poder”, que se expande para fábricas, asilos, escolas: “[c]ada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado”. Como todo exercício de poder acarreta a produção equivalente de um saber, o mecanismo panóptico formula um conhecimento sobre os corpos, uma maneira sutil de docilizá- los, menos com o peso da força que com o controle da vigilância contínua, expandindo-se das prisões para escolas, hospitais, igrejas e indústrias. Concretiza- se, desse modo, uma nova modalidade de (micro)poder: a disciplina, “processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ônus reduzida como força ‘política’, e maximilizada como força útil” (FOUCAULT, 1999, p. 182). Não à toa, há uma proximidade muito grande entre as mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho, e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares.
  • 35. 34 Em decorrência dessas transformações, elabora-se uma concepção de ciência, capaz de atender às novas demandas: o Positivismo. Fundado por Auguste Comte (1798-1857), considerado o pai da Sociologia, o Positivismo revela-se como uma afirmação social das ciências experimentais. Propõe, assim, para explicar os fenômenos, que o inquérito científico, longe de procurar causas últimas (teológicas ou metafísicas), que derivem de uma fonte externa, deve ater-se ao estudo das relações existentes entre os fatos, os quais são acessíveis por meio da observação (COMTE, 1990, p. 03-21). Ancorada nessa base e em teorias de incipientes saberes23, desenvolve- se, no século XIX, inicialmente na Itália, a Criminologia Positivista, respondendo às necessidades da burguesia para enfrentar os problemas sociais, especialmente a questão do delito. Mesmo reconhecendo um avanço quanto à questão da diminuição das penas, a Escola Positiva dirige severas críticas ao pensamento clássico, apontando-lhe as falhas de um racionalismo abstrato e um individualismo exacerbado, que impedia a defesa social: [...] a Escola Positiva assumia a [...] tarefa de deslocar a problemática penal [...] de uma orientação filosófica para uma orientação científica, empírico-positiva, a única apta a resgatar aquele segundo personagem “esquecido” pela Escola Clássica: o homem delinquente (ANDRADE, 1997, p. 61). Centrando-se na figura do criminoso, a Criminologia Positivista opôs ao livre-arbítrio dos clássicos, um determinismo bio-psicossocial; outrossim, ela deslocou a questão da responsabilidade, para a periculosidade do indivíduo (MANITA, 1997, p. 57). Seus objetivos eram eliminar a metafísica clássica e substituí-la por um estudo empírico do fenômeno criminal que pudesse diagnosticar as causas do delito e combatê-las, a fim de erradicar a criminalidade. Para isso, o método utilizado deveria ser o empírico-indutivo, formulado segundo premissas de 23 Precursores do positivismo criminológico, esses saberes utilizavam, ainda que precariamente, um método empírico-indutivo, baseado na observação do indivíduo infrator e do seu meio, orientando-se no marco das ciências naturais. Por sua importância histórica, devem-se mencionar: a “ciência penitenciária”, com Howard (1726-1790) e Bentham (1748-1832), descrevendo e denunciando a realidade penitenciária na Europa do século XVIII; a Fisionomia, através dos estudos de Della Porta (1535-1616) e Lavater (1741-1801), analisando a inter-relação entre a aparência externa do indivíduo e sua mente; a Frenologia, que buscava localizar nas partes do cérebro as diversas funções psíquicas, destacando-se a obra de Gall (1758-1828); a Psiquiatria, com Pinel e Esquirol, que adiante será melhor abordada, e; a Antropologia, com estudos em crânios de assassinos, destacando-se Lucas (1805-1885), que formulou o conceito de atavismo (MOLINA e GOMES, 2002, p. 162-167).
  • 36. 35 medição, objetividade e neutralidade. Deslocando-se, pois, da investigação racional e abstrata para a factual e concreta, era no estudo do homem delinqüente que se encontrariam as causas do comportamento criminoso. O médico e psiquiatra Cesare Lombroso (1835-1909) foi o primeiro a propor leis gerais para o fenômeno do crime. Sua obra, publicada em 1876, Tratado Antropológico Experimental do Homem Delinqüente é considerada o marco inicial da Criminologia científica causal-explicativa, que nasce denominada Antropologia Criminal (ANDRADE, 1997, p. 65). Influenciado pelas idéias de Charles Darwin24 (1809-1882) e utilizando metodologia própria das ciências naturais, Lombroso realizou um estudo em prisões e hospitais psiquiátricos25, efetuando autópsias e análises de criminosos vivos, e comparando as características encontradas, sobretudo em crânios, com as de populações não delinqüentes. Concluiu, pois, que haveria na população de delinqüentes semelhanças constituidoras de um tipo humano específico, que ele denominou criminoso nato. Esse indivíduo atávico apresentaria uma série de estigmas degenerativo-comportamentais, tais como: “fronte esquiva e baixa”, “assimetrias cranianas”, “orelhas em forma de asa tubérculo de Darwin”, ou mesmo “uso freqüente de tatuagens”, “insensibilidade à dor” (MOLINA e GOMES, 2002, p. 177-179). Para Lombroso, portanto, a explicação correta para a pergunta “por que as pessoas cometem crimes?” é encontrada na existência de uma anormalidade biológica e/ou psicológica do sujeito criminoso, um atavismo que o distingue dos outros humanos e o predispõe à prática de delitos. Estabelece-se desta forma uma divisão “científica” entre o (sub) mundo da criminalidade, equiparada à marginalidade e composta por uma “minoria” de sujeitos potencialmente perigosos e anormais (o “mal”) e o mundo, decente, da normalidade, representado pela maioria da sociedade (o “bem”) (ANDRADE, 1996, p. 278). Enrico Ferri (1856-1929), discípulo de Lombroso, por sua vez, utilizando uma perspectiva sociológica, desloca o objeto central da etiologia do crime. Para ele, 24 Naturalista britânico, Darwin formulou a teoria da evolução das espécies, mediante um processo de seleção natural, cuja influência é bastante significativa para o pensamento criminológico positivista. 25 Reconhece-se relevância muito maior, no trabalho realizado por Lombroso, ao método empírico utilizado em suas investigações que à sua teoria criminológica. “Sua teoria do ‘delinquente nato’ foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil análises de delinqüentes vivos; e o atavismo [...] contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões européias” (MOLINA e GOMES, 2002, p. 177)
  • 37. 36 malgrado a significativa importância dos fatores individuais (orgânicos e psíquicos), o estudo das causas do delito há de levar em conta, sobretudo, os fatores físicos e sociais do ambiente em que os comportamentos criminosos se manifestam (BARATTA, 2002, p. 39; MOLINA e GOMES, 2002, p. 182). Dessa forma, para além das características biológicas do criminoso, o delito seria fruto de condições econômicas e sociais que determinam sua conduta. O terceiro grande nome da Escola Positiva é Garófalo (1852-1934). Deslocando as teses criminológicas positivistas para o âmbito do Direito Penal, ele desenvolve o conceito de “temibilidade do delinquente”, consistente em uma “perversidade constante e ativa”, que posteriormente será nomeado de periculosidade. Garófalo formula também uma filosofia do castigo, buscando justificar a pena não mais com o significado retributivo dos clássicos, senão com o fito de erradicar o delito e proteger a sociedade26 (ANDRADE, 1997, p. 69). Portanto, para a Escola Positiva, identificado este potencial de periculosidade do indivíduo criminoso, a pena converte-se num meio de defesa social, devendo constituir uma medida de segurança da sociedade contra o infrator, visando a neutralizá-lo e/ou corrigi-lo: “[...] trata-se de defender a sociedade destes seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal” (RAMÍREZ apud ANDRADE, 1996, p. 278). Para Baratta (2002, p. 41-43), muito embora a Escola Positiva tenha conseguido melhor sistematizar o que propunha ser um projeto de defesa da sociedade, essa proposta foi herdada da Escola Clássica e sua teoria contratual, de forma que ambas apresentam a ideologia da defesa social como marco teórico e político comum. O conteúdo dessa ideologia é apresentado por Baratta através dos seguintes princípios: a) princípio de legitimidade: o Estado, representando o conjunto de interesses sociais, encontra-se legitimado para reprimir a criminalidade, a fim de manter a ordem social; b) princípio do bem e do mal: o delinqüente é um elemento negativo e disfuncional (o mal) para a sociedade (o bem); c) princípio de culpabilidade: o delito é expressão de uma atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas; d) princípio da finalidade ou da prevenção: a pena não tem apenas a função de retribuir, mas de prevenir e evitar o crime; e) 26 Também é Garófalo o responsável por elaborar uma distinção entre os delitos naturais e artificiais, estes últimos existentes apenas em determinadas culturas, ao passo que aqueles consistem em uma
  • 38. 37 princípio de igualdade: a lei penal é igual para todos, e aplicada de maneira igualitária; f) princípio do interesse social e do delito natural: os delitos definidos nos códigos penais representam uma ofensa a interesses fundamentais e condições essenciais à existência da sociedade. Com a intensificação positivista da ideologia da defesa social, está aberto o caminho para que especialistas não jurídicos do comportamento humano, capazes de reconhecer e catalogar os distúrbios que possam representar perigo para a comunidade, disputem o poder de dizer jurídica e cientificamente a verdade sobre o indivíduo criminoso e seu grau de discernimento, defendendo a imperiosa necessidade de tratá-lo. Abrem-se, para eles, mas não sem resistências, as portas de prisões, e também de tribunais. 2.3 CRIME, LOUCURA E PERICULOSIDADE: A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO UM PRODUTO DO POSITIVISMO Uma vez analisado o processo de surgimento do saber psiquiátrico e, por conseguinte, dos manicômios, bem como compreendidas as transformações no pensamento criminológico que fizeram a conversão do indivíduo infrator num sujeito anormal e perigoso, facilmente se perceberá como a fusão dos atributos de louco e criminoso foi significativa para a cristalização do conceito de periculosidade e a conseqüente criação de medidas de segurança e manicômios judiciários. Em verdade, desde o século das luzes, quando ganhava corpo a Escola Clássica, já era possível observar uma espécie, ainda embrionária, de patologização dos comportamentos desviantes, nas obras de médicos como Gall27 (1758-1828) e Cabanis (1757-1808). De acordo com Carrara (1998, p. 69), para esses autores clássicos, o crime, por ser um ataque à sociedade e ao contrato social, deixava perceber uma espécie de “erro”, de “irracionalidade”: mesmo sendo o indivíduo plenamente responsável por seus atos, série de condutas nocivas por si próprias, em qualquer sociedade e a qualquer momento (MOLINA E GOMES, 2002, p. 185). 27 “Para Gall o crime é causado por um desenvolvimento parcial e não compensado do cérebro, que ocasiona uma hiperfunção de determinado sentimento. De fato, este autor acreditou haver podido localizar em diversos pontos do cérebro um instinto de agressividade, um instinto homicida, um sentido de patrimônio, um sentido moral” (MOLINA E GOMES, 2002, p. 164).
  • 39. 38 [...] atacar a sociedade não seria, de certa forma, atacar a si próprio? E atacar a si próprio não seria o ato irracional por excelência? [...] [A] sociedade burguesa, liberal, democrática, progressista, representação do próprio paraíso reconquistado [...], não parece aceitar que alguém possa agredi-la em sã consciência. Pinel também se revela importante nesse processo, por haver realizado os primeiros diagnósticos clínicos, com o fito de separar os criminosos aprisionados em Bicêtre (em sua maioria políticos), dos loucos deste hospital-geral. Outrossim, observando alguns casos em que os doentes mentais demonstravam conservar a integridade das funções do intelecto (isto é, salvo uma ou outra característica disfuncional acentuada, portavam-se intelectivamente como indivíduos normais), Pinel refuta a concepção vigente à época, segundo a qual a sede da doença situa-se unicamente numa lesão orgânica do corpo. Ele formula, então, o conceito de “loucura parcial”, uma “mania sem delírio”, [...] onde não se constata nenhuma alteração sensível das funções do entendimento, da percepção, do juízo, da imaginação, da memória, mas uma perversão nas funções afetivas, um impulso cego para atos de violência ou mesmo um furor sanguinário, sem que se possa assinalar nenhuma idéia dominante e nenhuma ilusão da imaginação que sejam a causa determinante desta funesta tendência (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 281). Contudo, é com Esquirol (1772-1840) e a noção de “monomania homicida” que louco e criminoso vão definitivamente se cruzar, na figura do “criminoso alienado”. Para este alienista, discípulo de Pinel, em algumas formas de loucura, o único sinal evidente do distúrbio seria uma “desordem moral”, voltada para a prática de crimes (MANITA, 1997, p. 56). Dessa forma, a monomania homicida implicaria num distúrbio do pensar e do agir, caracterizado por um forte impulso ao assassinato. Esse impulso seria provocado por uma convicção íntima do sujeito, baseada em um delírio, uma imaginação exaltada, um raciocínio falso, uma paixão violenta, um instinto cego (FONTANA in FOUCAULT, 1991, p. 283). A monomania poderia, ainda, ser classificada como erótica, religiosa, suicida, persecutória... De todo modo, pode-se dizer que a monomania representa, de um lado, a aproximação entre loucura e crime, apontando-se, na afetividade modificada do sujeito, um impulso à prática de delitos, geralmente, violentos; de outro, ela
  • 40. 39 significa o aprisionamento definitivo da loucura no campo da moral, da subjetividade, dos sentidos: o seu estudo torna-se inseparável do conhecimento das paixões humanas. É preciso, ademais, compreender o contexto em que se deu essa apoteose da monomania homicida. Nesse início de século XIX, período pós- revolução burguesa, grandes transformações sociais ocorreram: reorganização do poder, urbanização das cidades, transferência de propriedades. Todavia, tudo isso em nada alterou a condição de opressão e miserabilidade em que permaneciam as classes menos abastadas, sobretudo os pequenos camponeses. A transferência de propriedade não atingiu aqueles que só possuíam os braços para trabalhar; a libertação jurídica e o estatuto de cidadão serviram apenas para perpetuar hierarquias e desigualdades, mas, dessa vez, contratualmente modeladas. Conforme Peter e Favret (in FOUCAULT, 1991, p. 199), é esse o quadro social no qual, incentivados pela enxurrada de sangue derramado na Bastilha, proletários e camponeses “vão intervir e garantir, pelo peso de suas vidas e sua razão lançados na balança, seu direito de tomar a palavra”. De fato, uma onda de crimes diferentes, aparentemente sem motivação, passa a chocar a sociedade burguesa: [...] criadas camponesas matam sem razão, mas cruelmente, as frágeis crianças que amam [...]. A mulher de um jornaleiro, passando necessidade, não mais suportando os gritos de fome de seu filho de quinze meses, golpeia-lhe o pescoço com um cutelo, sangra-o, corta- lhe uma coxa, que come. [...] Antoine Léger, vinhadeiro, deixa a sociedade de sua aldeia, vive nos bosques como um homem selvagem, agride uma menina e, não podendo violentá-la, abre-a com uma faca, chupa-lhe o coração e bebe-lhe o sangue (PETER e FAVRET in FOUCAULT, 1991, p. 193-194). As razões apresentadas para justificar esses crimes, quando surgem, são moralmente tão inaceitáveis que não se tem dúvida: está-se diante de um monstro humano28. Torna-se imperativa, portanto, a presença dos alienistas nos tribunais, para entender e explicar, no plano científico, esses acontecimentos. E mais: para 28 Foucault (2001, p. 93), no Curso Os Anormais, ministrado no Collège de France, em 1974-1975, aponta alguns discursos que, a partir do século XVIII, anunciam uma “natureza monstruosa da criminalidade, [...] uma monstruosidade que tem seus efeitos no campo da conduta, no campo da criminalidade, e não no campo da natureza mesma”, como se esboçava anteriormente. E ainda: “o monstro é o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o princípio de inteligibilidade de todas as formas [...] da anomalia” (FOUCAULT, 2001, p. 71).
  • 41. 40 distinguir o indivíduo normal, cônscio de seus atos, do ser louco e anormal que constitui o monomaníaco homicida. Como observa Rauter (2003, p. 113), [...] a justiça penal não dispunha de meios para dar conta de um certo tipo de crime cujas características pareciam fugir completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo tempo deixada em aberto pela justiça criminal e proposta pela psiquiatria nascente. Entretanto, essa intervenção da psiquiatria nos domínios do direito penal não se dará sem árdua resistência. Juristas e magistrados dispensarão considerável hostilidade à doutrina da monomania, ávidos por manter o poder de falar pelo homem criminoso e puni-lo. O registro histórico mais célebre dessa disputa entre os saberes encontra- se no caso Pierre Rivière, pesquisado e organizado por Foucault (1991). No ano de 1835, Rivière degolou brutalmente a mãe e um casal de irmãos, ainda crianças. Depois de vagar pelos campos, dirigiu-se a pequenas cidades, comportando-se de forma excêntrica; foi, então, detido e, na cadeia, escreveu um manuscrito, contando sua história e as razões de seu crime: a maneira ríspida com que o pai era tratado pela esposa e a cumplicidade dos irmãos para com ela. A partir daí, houve um grande debate sobre o caso, repercutindo em dois principais confrontos: um, interno ao saber médico, entre uma medicina “não especial” ou geral e a recém surgida especialidade psiquiátrica; e outro, entre duas formas de controle, a psiquiatria e a justiça penal. Surgem, assim, no decorrer do caso Rivière, três pareceres de peritos médicos. O primeiro deles acompanha a Acusação, elaborado pelo doutor Bouchard. Representante do pensamento tradicional da medicina, Bouchard investiga em aspectos orgânicos (doenças de pele, hemorragias, tombos na cabeça) os sinais de uma doença mental em Rivière. Por não encontrá-los, conclui ser “[...] impossível encontrar uma doença [...] que tenha agido sobre o cérebro de maneira a causar dano a suas funções” (FOUCAULT, 1991, p. 113). Assim, Rivière é declarado, neste primeiro parecer, um indivíduo normal. A forca paira sobre sua cabeça. Um segundo parecer médico acompanha a peça de defesa, no intuito de mitigar a pena de morte. Elaborado pelo doutor Vastel, aponta que “a inteligência de Rivière não era sadia e que o ato que [...] passava por um crime horrível, não era mais que o deplorável resultado de uma verdadeira alienação mental” (FOUCAULT,