Um grupo de historiadores especializados em pesquisas no Arquivo Público da Bahia ajuda pessoas a resolverem questões legais e reconstruírem suas árvores genealógicas encontrando documentos antigos. Eles formaram um grupo para profissionalizarem a atividade de "caçadores de histórias" e já ajudaram em casos como o de uma mulher que precisava da documentação do bisavô italiano. O arquivo completa 120 anos preservando valiosos documentos coloniais, porém seu prédio precisa de reformas.
Texto sérgio augusto martins mascarenhas novospesquisadores
Caçadores de história: grupo ajuda a resolver casos com documentos raros
1. Caçadores Grupo de historiadores é especializado em descobrir
informações perdidas no Arquivo Público da Bahia HISTORIAS Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.br
Foto MARCO AURÉLIO MARTINS mmartins@grupoatarde.com.br
o prédioda Quinta doTan-que,
construção do século
16 onde funciona o Arquivo
Público da Bahia, o silêncio
é de ouro. Na sala
destinada à consulta dos
documentos históricos, muitos deles manuscritos
originais do Brasil colonial, ape-naso
som provocado pelos maços de papel
está autorizado.
Mas, numa tarde de 2006, um choro
ecoounopátiodoedifíciodedoispavimen-tos,
localizado na Baixa de Quintas, em Salvador.
Funcionários do arquivo, que completa
120 anos em 2010 e é o mais importante
do País depois do Arquivo Nacional,
no Rio de Janeiro, pararam de trabalhar.
Na sala de consulta, pesquisadores perderam
a concentração. O historiador Urano
Andrade abandonou papéis sobre a mesa
e, após descer dois vãos de escada em direção
ao térreo, encontrou uma moça com
lágrimas nos olhos. Chamava-se Luciana.
O motivo do choro: sua irmã, que trabalhava
na Itália, corria risco de expulsão
do país por não ter visto de permanência.
Sustentadapelodinheiroenviadotodosos
meses do exterior, a família sentia-se
ameaçada pela extradição. "Ela estava desesperada",
lembra Urano. "Tinha vindo
procurar o registro de entrada de passageiros
na Bahia, em busca do dia em que o
bisavô italiano chegou aqui".
O pesquisador reuniu alguns colegas e
começaram a procurar. "Encontramos não
só a inscrição da entrada do bisavô dela no
portode Ilhéus, massuascertidõesdenas-cimento
e casamento. Isso salvou a família".
Após alguns dias, um tradutorfoi contratado
e, ao fim do julgamento do proces-l
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LEIS RELIGIOSAS
Uma das peças antigas mais bem
conservadas do Arquivo Público da Bahia
é o Compromisso da Irmandade de S.
Benedito da Matriz da Conceição da Praia,
um código de leis de 1684
2. so na Itália, a irmã de Luciana obteve a dupla
nacionalidade, podendo permanecer
legalmente na Europa.
AVENTURA
Para Urano, um ex-gerente de supermercado
de 37 anos que só entrou na faculdade
de história depois dos 30, o episódio
ilustra os momentos emocionantes
de uma profissão que parece saída de fil-mesdeaventura:
adecaçadordehistórias.
Sob um olhar generoso, ele é um Indiana
Jonesdosdocumentosraros,queconciliaa
descoberta de informações históricas com
a atividade de professor.
Mas as semelhanças com o personagem
aventureiro, vivido no cinema por
Harrison Ford, terminam aí. Urano não
gosta de se meter em conflitos nos quais é
quase impossível descobrir quem é o bandido
e quem é o mocinho. "Prefiro não fazer
pesquisas sobre questões envolvendo,
por exemplo, brigas por herança ou reservas
indígenas".
Desde que começou a vasculhar o passado,
como monitor de pesquisas universitárias,
há sete anos, ele se aproximou de
outros pesquisadores. Juntos, formaram
umgrupo especializadoemdesenterrarin-formações
perdidas em papéis amarelados,
cuja escrita dificilmente é compreensível
para uma pessoa sem familiaridade
com a grafia de séculos passados.
Em comum com a maioria dos historiadores,
eles têm projetos pessoais e trabalham
para escrever as próprias teses e dissertações.
Mas, ao oferecer seus serviços
a terceiros, que os contratam para encontrar
a informação que precisam, já ajudaram
a resolver questões judiciais, reconstruir
árvores genealógicas e reunir material
fundamental para o trabalho de outros
historiadores.
"Sempre vão existir pessoas precisando
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ILHA DE PRESENTE
A carta de doação da Ilha de Itaparica
(na época chamada sesmaria), feita pelo
primeiro governador-geral do Brasil,
Thomé de Souza, é o mais antigo
documento preservado no acervo do
Arquivo Público. A ilha foi doada ao nobre
português D. Antônio de Ataíde, conde de
Castanheira, em 1552
de pesquisa, seja nas universidades ou em
outras demandas, como passaporte, dupla
nacionalidade, escrituras. Tudo isso está
envolvido com documentação histórica.
Por isso, surgiu a proposta de criar o grupo
e profissionalizar a atividade".
O primeiro a embarcar na ideiafoiJetro
do Carmo da Luz, 28, que há cinco anos conheceu
Urano na Católica. No começo de
sua carreira de caçador de histórias, cada
incursão nos acervos significava uma surpresa.
"Lembro que, ao fazer um trabalho,
encontrei cartas de cerca de 1850, escritas
por um padre da região de Rodelas (a 540
quilômetros de Salvador)", diz. "O padre
denunciava para a arquidiocese, na capital,
que um europeu de 'maus hábitos'havia
chegado à vila quando os índios esta-vam
já 'domesticados'. O estrangeiro introduziu
o álcool e teria, de certa forma, perturbado
a ordem. Foi um caso muito detalhado,
interessante".
CONVIVÊNCIA
No Arquivo Público da Bahia, principal
território de atuação dos dois pesquisadores,
eles conheceram Cândido Domingues,
25, e Jacira Santos Pinto, 31. Cândido já
ajudou pessoas a comprovarem a nacionalidade
de antepassados e tem no currículo
o trabalho de recolher material para livros
como DomingosSodré-Um SacerdoteAfri-cano
(Companhia das Letras), a elogiada
biografia de um ex-escravo escrita pelo historiador
baiano João José Reis, um dos
maiores estudiosos da área no País. Jacira
também fez pesquisas para obras do gênero
e encontrou documentos ligados a questões
imobiliárias. Recentemente, uma
construtora a procurou para encontrar a escritura
de um terreno no IAPI (bairro), onde
a empresa pretende construir um edifício
de apartamentos.
"Acabamos criando laços de amizade e
conhecendo o trabalho um do outro", revela
Jacira. Esse efeito colateral do convívio
representa uma conveniência: como cada
um deles é especializado em temas e períodos
distintos da história do Brasil e da
Bahia, os quatro conseguem cobrir praticamente
todo o acervo do Arquivo Público,
onde os documentos ocupam estantes
que, alinhadas, preenchem uma distância
equivalente a 25 quilômetros.
O trabalho dos caçadores de histórias
costuma ser remunerado por hora. "Mas
posso fechar um pacote, se a pessoa já sabe
o que quer", explica Urano. "Cobro um
determinado valor para fotografar um ma-
3. Grupo procura informação de casos históricos e já ajudou a resolver questões judiciais e a reconstruir árvores genealógicas
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çocompletodedocumentos.Seapesquisa
for mais intensa, quando tenho de procurar
personagens, o valor é maior".
De negociação em negociação, as investigações
rendem em torno de 600 reais
mensais em cada trabalho. O valor máximo
já recebido por ele, por um único serviço,
foi 1.500 reais, para localizar e fotografar
seis maços de documentos. Urano
levou duas semanas. "Hoje, mando catálogos
digitalizados para interessados em
Portugal, nos EUA e outros países. Eles dizem
o que precisam e eu pesquiso". Atualmente,
trabalha para uma pesquisadora
turca da Universidade de Nova Orleans.
ACERVO
As facilidades trazidas pelos investigadores
profissionais, porém, não impedem
que muitos estrangeiros frequentem pes-
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soalmente o Arquivo Público. Em regra,
vêm atrás do valiosíssimo acervo colonial,
que remete ao período emquea cidade de
Salvador foi capital do Brasil.
Uma das coleções mais importantes é a
de documentos judiciários, produzidos pelo
antigo Tribunal de Relação do Estado do
Brasil e da Bahia, a corte suprema colonial
criada há mais de 400 anos que deu origem
ao Tribunal de Justiça da Bahia e ao
Supremo Tribunal Federal.
Reconhecidos pela Unesco, os cerca de
64mildocumentosdoTribunalganharam,
há dois anos, o título de Memória do Mundo,
o equivalente a serem tombados como
patrimônio da humanidade. "Nossa preocupação
é preservar e difundir", diz a diretora
doArquivo Público da Bahia, Maria Teresa
Matos. "Égratificante quando alguém
nos procura para comprovação de direitos
e podemos ajudar".
Atualmente, o arquivo cuida da recupe-raçãodoacervoligadoàlndependênciada
Bahia, restaurado com patrocínio do governo
da Espanha. O próximo passo é a digitalização
dos papéis, mas a direção afirma
ainda não contar com a infraestrutura
tecnológica necessária. Uma referência,
REBELIÃO ESCRAVA
Escrita em árabe, esta carta do escravo
Amaro Ussá foi apreendida pelo governo
imperial brasileiro durante a repressão à
Revolta dos Malês (1935), movimento
liderado por negros muçulmanos
insatisfeitos com a escravidão, que tinham
como objetivo a conquista da liberdade e
a criação de uma república islâmica
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Arquivo Público da Bahia tem 120 anos e é o segundo mais importante do País, mas o prédio que o abriga precisa de reparos
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REPÚBLICA BAIANA
Uma das coleções mais valiosas é a da
Conjuração Baiana (1798), ou Revolta dos
Alfaiates. O Arquivo Público tem o registro
da devassa feita pelas autoridades da coroa
portuguesa sobre bens e papéis dos
revolucionários, que eram republicanos
segundo Maria Teresa, é a digitalização do acervo de A TARDE, feita
em parceria com a Humanidades Editora e Projetos, com apoio do
Arquivo Público, onde as edições podem ser consultadas.
Além disso, novas normas de consulta para pesquisadores foram
aprovadas pelo governo estadual para proibir o acesso de
não-funcionários aos depósitos. O objetivo é evitar a perda ou extravio
de documentação. Mas o arquivo não tem muito mais a comemorar.
Parte da memória da Revolução dos Alfaiates e da Revolta
dos Malês, duas das mais significativas insurgências populares
da história da Bahia, está com os documentos corroídos ou
parcialmente destruídos, à espera de restauração.
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) desde 1949, a Quinta do Tanque passou por uma
inspeção técnica no final de agosto. Segundo o relatório produzido
pelo órgão, a situação do imóvel é preocupante. Sem manutenção,
cerca de 20% da madeira do telhado e 50% do forro estão comprometidos
pela umidade. O Iphan apontou ainda goteiras, fiação
elétrica exposta - há risco de incêndio - e esquadrias danificadas,
entre outras inadequações. O diretor de arquivos da Fundação Pedro
Calmon, Paulo de Jesus Santos, responsável pelo Arquivo Público,
promete restaurar o telhado e instalar um sistema anti-incêndio
no prédio. Para os caçadores de histórias, o caso não é apenas
de preservar uma memória de valor incalculável.
"Vemos nessa atividade um mercado de trabalho a ser explorado",
acredita Urano. "Facilitamos o acesso aosdocumentose ajudamos
outros pesquisadores a ter novos olhares sobre nossa história,
o que é muito importante". Anote-se. Arquive-se.«
SERVIÇO
Arquivo Público da
Bahia / Ladeira de
Quintas, 50, Baixa de
Quintas / Tel. (71)
3116-2163.
Saiba mais sobre os
caçadores de histórias:
www.uranohistoria.
blogspot.com
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