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Estudo comparativo das representações urbanas
em Almeida Garret e Dalton Trevisan
Roberto Nicolato1
Resumo
Este artigo busca revelar as similitudes existentes nas representações sociais de duas
obras literárias: Viagens na minha terra, de Almeida Garret, e Em busca de Curitiba
perdida, de Dalton Trevisan. Embora produzidos em épocas e espaços urbanos diversos, os
dois livros mais assemelham do que se diferenciam. Se a comparação não pode ser medida
no nível temático e da linguagem, há um mesmo e enfático direcionamento quanto às
preocupações políticas e estéticas, em Dalton e Garret , a respeito de uma cidade (Curitiba)
e de um pais (Portugal), num momento de grandes transformações históricas.
Palavras –Chave
Literatura - Curitiba e Portugal – Estudo das representações
1 Roberto Nicolato é mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
É professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo realizar um estudo comparativo entre as obras
Viagens na Minha Terra (GARRET, 2003), de Almeida Garret, e Em Busca de Curitiba
perdida (TREVISAN, 1992), de Dalton Trevisan. Escritos em diferentes épocas, os dois
livros se assemelham em alguns aspectos e procedimentos, que são de grande relevância
para se compreender a relação do sujeito com a realidade imediata, tanto no sentido da
ficção quanto da crítica social.
As similitudes entre as duas obras ocorrem menos no nível da linguagem e da
temática que em torno de preocupações políticas e estéticas e de foco narrativo
assemelhados, no contexto do que poderíamos denominar de modernidade. Assim, entre
outras funções, analisa a noção de sujeito que pensa a sua cidade e o seu país, no caso de
Dalton Trevisan e Almeida Garret, respectivamente, num dado momento histórico marcado
por profundas transformações políticas, urbanísticas e culturais.
Num primeiro momento, a análise busca revelar aspectos gerais de Em busca de
Curitiba perdida e Viagens na minha terra, e de que maneira os dados biográficos dos
autores são representativos para a compreensão dos textos (muitos deles no formato da
crônica), além de evidenciar o que está em jogo nas discussões das temáticas apresentadas.
A seguir, a linha de raciocínio recai sobre questões relativas ao foco narrativo,
embora sem perder de vista a preocupação maior das obras que é a de refletir sobre uma
fase específica da história de uma cidade e um país. Neste sentido, cabe notar o papel que
cumpre na economia da obra as interlocuções, a ironia e os diferentes formatos de texto
(crônicas de viagens e de cunho social, poemas em prosa, e novela). Para finalizar, este
estudo aborda a maneira como Dalton Trevisan e Almeida Garret se inserem no contexto
das tradições e da modernidade, tendo como zonas de fraturas os episódios posteriores à
Guerra Civil em Portugal e as reformas urbanas em Curitiba. Nos dois casos, em
proeminência uma firme preocupação em preservar a memória, como pressuposto básico
para assegurar a identidade cultural da coletividade.
2 AQUELE PAÍS, ESTA CIDADE
Antes de buscarmos uma comparação mais específica dos pontos de maior
convergência, é preciso, no entanto, situar Viagens na Minha Terra e Em busca de Curitiba
perdida, dentro do contexto histórico e político em que estão inseridos. Afinal, os dois
livros trazem em comum além da afirmação ou, melhor, da consolidação de um projeto
estético, a necessidade de pensar a cidade ou um país num momento de importantes
transformações nas práticas políticas, culturais e urbanas.
Viagens na Minha Terra se configura tendo como pano de fundo o panorama
político instaurado em Portugal, que vai da Revolução Francesa aos anos de 1840,
assumindo papel de grande relevância as invasões francesas em solo português e as lutas
liberais. A guerra civil, que durou dois anos (até 1834), transformou de forma significativa
a estrutura sócio-política de Portugal, empurrando o país para uma nova fase: a da
sociedade liberal, constitucional e capitalista.
A obra de Garret começou a ser publicada em forma de folhetim, em agosto de
1843, na Revista Universal Lisbonense, dirigida por Castilho, sendo interrompida por
algum tempo – conforme se leva a crer por motivos de censura -, e posteriormente
retomada, pelos meados de 1845. Garrett havia sido convidado pelo amigo Passos Manuel,
em carta de 6 de julho de 1843, para visitar Santarém e desta pequena viagem – pequena na
quilometragem, mas incomensurável no aspecto cultural – resultou uma das mais
importantes obras do período romântico português.
Em busca de Curitiba perdida surge mais de um século depois, precisamente em
1992, um ano antes do aniversário de 300 anos de Curitiba, momento em que as esferas do
poder público local capitaliza o resultado advindo das transformações urbanísticas iniciadas
em 1970, cujo projeto mudou ou aperfeiçoou o traçado iniciado pelo Plano Agache, e
buscou oferecer à cidade infra-estrutura necessária para suportar o crescimento econômico,
demográfico e das demandas sociais nos anos que se seguiram.
A antologia de Dalton Trevisan vai reunir contos e os chamados textos híbridos, que
se aproximam da crônica e da poesia em prosa, extraídos de diferentes obras anteriores do
autor. Na mesma coletânea, são revelados outros escritos, trazendo impresso o ineditismo,
num discurso bastante colado aos acontecimentos, inclusive, em consonância um tanto
direta com o momento histórico em que a cidade se via envolvida.
A multiplicidade dessa coletânea carrega consigo a dicção de um autor ainda jovem,
representado pela crônica “Em busca de Curitiba”, cuja primeira publicação data de 1945,
no número 6 da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan. O texto tinha como título
original “minha cidade” e ao longo dos anos foi várias vezes refeito. Apesar de ainda
restrito ao universo da província, Dalton Trevisan figurava, naquela época, como um
intelectual atuante no universo literário cultural da capital paranaense.
A publicação do livro Em busca de Curitiba perdida, às vésperas das
comemorações dos 300 anos da cidade, se dá no momento em que Dalton já está se
estabeleceu como grande contista nacional. O discurso silencioso, no entanto, não o
impedirá de marcar posição no contexto da efeméride, com uma voz dissonante que emerge
nesse projeto editorial em que se articulam novas representações (tanto no campo estético
como político e simbólico), tendo como principal personagem uma cidade em franco
processo de transformação.
Quanto a Almeida Garret, quando escreveu Viagens na Minha Terra, já havia
servido ao governo como Encarregado de Negócios de Portugal em Bruxelas, na Bélgica, e
tinha sido indicado a propor um plano para a criação de um teatro nacional, embora acabe
passando para a oposição por não concordar com o Ministério Costa Cabral e com a
restauração da Carta Constitucional de D. Pedro. Garret, na verdade, defendia uma reforma
da Carta que se mostrasse mais afeiçoada aos ideais defendidos na Revolução de Setembro
(1836) e na Constituinte de 1838.
Esta atitude custaria ao escritor e político a perda de dois importantes cargos que
ocupava: o de Inspetor Geral dos Teatros e Espetáculos Nacionais e Cronista-mor do Reino,
que mais tarde seriam recuperados ao voltar a colaborar com o governo. De soldado do
liberalismo nos idos da guerra civil, chefiada por Dom Pedro em 1832, Garret, com o
passar dos anos, adotará uma posição de maior prudência ou, como afirma José-Augusto
França, em O Romantismo em Portugal, mais confusa, assaz religiosa, se comparada com a
de Herculano, no que se refere ao liberalismo. (FRANÇA, 1993, pág. 76)
Para Almeida Garret, a ordem e a religião, conforme revela França, vão constituir as
suas coordenadas permanentes, assim como a defesa de uma monarquia representativa
(1993, pág. 78). Isto talvez explique o posicionamento do autor em Viagens na Minha
Terra com respeito à necessidade de preservar a memória e os bens culturais e artísticos de
Portugal, vilipendiados em decorrência das transformações políticas vivenciadas pelo país.
A bem da verdade, em Viagens..., Garret se mostrará contrário tanto em relação aos
excessos do liberalismo materialista, representado pela figura do barão, como em relação ao
clero conservador, que terá no personagem Frei Dinis a sua principal representação.
De defensor do ensino público, da liberdade e igualdade, mas com ordem em 1837,
ao fato de se ligar, 1853, a uma situação de centro-direita que o fará ministro e visconde, a
história política de Garret é, no mínimo, mais incoerente que a literária, cujo projeto tem
como um dos principais desafios discutir de maneira inovadora a pátria portuguesa no
século XIX. “O que desde Garret a estrutura no seu âmago, é o projeto novo de
problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência individual,
com a realidade específica e autônoma que é a Pátria” (LOURENÇO, 1988, pág. 80).
Na produção literária anterior à do autor de Viagens na minha terra, conforme
assevera Eduardo Lourenço, a nação Portugal ainda não havia sido apreendida como
“realidade histórica”, uma vez que “era vivida sem autêntica interioridade” (1988, p.81). “A
partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o
núcleo de pulsão literária determinante” (1988, p. 80), atesta o autor ao fazer uma viagem
sobre o destino histórico-místico de Portugal do romantismo ao modernismo de Fernando
Pessoa.
Se na base das preocupações de Garret está ancorada a noção de pátria e nação, em
conformidade com o espírito romântico, em Dalton Trevisan as discussões sobre as
transformações urbanísticas vivenciadas por Curitiba se fundam a partir de um projeto que
visa pensar a cidade, tanto em termos políticos (especialmente com relação às
transformações urbanísticas) como estéticos. Em especial, na medida em que Em busca de
Curitiba perdida é editada durante a fase de preparativos para a festa dos 300 anos da
capital paranaense.
Nesta coletânea, o autor mostra uma nova possibilidade de compreender as
mudanças ocorridas em Curitiba, num momento em que as várias instâncias e camadas
sociais da cidade conjugam um mesmo discurso, qual seja, o da administração municipal,
ao referir insistentemente a cidade, nos meios de comunicação, como detentora dos títulos
de “cidade modelo” e “capital ecológica”.
Com certeza, pode-se afirmar que dois textos, “Em busca de Curitiba”, que
abre o livro de título homônimo, e “Curitiba revisitada”, que encerra o volume lançado em
1992, dão a medida certa da representatividade da obra de Dalton Trevisan no contexto
dessas comemorações municipais. No primeiro, ou melhor nessa crônica que com o passar
dos anos ganhou um tom memorialístico, Dalton Trevisan demarca o seu território, seu
domínio no plano estético e político, a partir de personagens e espaços “eleitos” , num
movimento de negação e afirmação:
“Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina
da Escola Normal, do Gigi, que é o maior pidão e nada não ganha (a
mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi) (…)”.
(TREVISAN, 1992, p.7)
“Não, a do Museu Paranaense com o esqueleto do
Pithecanthropus erectus, mas do Templo das Musas, com os versos
dourados de Pitágoras(…)”. (1992, p. 8)
Dalton também se coloca como o intelectual que busca refletir sobre as contradições
do seu tempo, e do momento histórico em que esta inserida a cidade. Desta forma, nesse
inventário reatualizado, que se traduz numa espécie de memorial do que deve ser lembrado
(conforme já demonstrado em outro trabalho de minha autoria)2
, ele continuará negando o
discurso de determinadas instâncias relacionadas com o poder, que poderíamos caracterizar
como a Curitiba oficial (a dos administradores e elite intelectual), em prol da Curitiba
humana, povoada de loucos, rufiões, prostitutas, colonos, normalistas de gravatinha,
neopitagóricos, soldados do fogo, entre outros”.
2 Algumas discussões importantes deste trabalho estão contidas na dissertação de mestrado de
minha autoria, intitulada LITERATURA E CIDADE: Análise do espaço urbano em Dalton Trevisan,
de 2002. Elas foram utilizadas de maneira a contribuir com a abordagem e adaptadas ao objetivo
que se presta à composição do texto.
Na verdade, também não há como dissociar a crônica “Em busca de Curitiba
Perdida” do desejo de uma geração liderada por Dalton Trevisan, -- e que teve a revista
Joaquim como veículo de divulgação de suas idéias – de criar no Paraná um movimento de
renovação nas artes e na literatura em contraposição aos ideais reacionários e conservadores
do movimento paranista e também simbolista, este capitaneado no Paraná pelo poeta
Emiliano Perneta.
“Sob este ângulo é que o texto “minha cidade” deve ser analisado: qual seja, a partir
de um movimento que pretende romper com o passadismo, instaurar novas idéias, o que vai
desencadear numa nova maneira de olhar a cidade” (NICOLATO, 2002, p.15). Assim,
Dalton vai cantar nos seus contos a cidade das criaturas comuns, quando não humildes,
conforme o ensaio “Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan”, escrito pelo
crítico Wilson Martins na Revista Joaquim de número 14:
É notável a fascinação que essa pobre fauna exerce sobre o contista:
e tudo exclusiva e rigorosamente debaixo de um interesse de análise
psicológica, de conhecimento do homem, pois o sr. Dalton Trevisan
não é político, ou, pelo menos, não pretende fazer de sua arte um
veículo de intenções políticas.”
Merece destaque o fato do texto “minha cidade” ter sido republicado (já com novos
formatos e diferentes títulos) em pelo menos dois momentos marcantes, na história do
Paraná e de Curitiba, sempre com o propósito de marcar posição e afirmar a cidade
provinciana, a cidade da memória: em 1953, por ocasião das comemorações do I
Centenário de Emancipação do Paraná e, em 1992, durante os preparativos do aniversário
dos 300 anos da cidade.
O fato de republicá-lo novamente, mesmo que alguns de seus sintagmas possam ter
significação mais datada, ou seja, para o momento em que foi escrito na década de 40,
demonstra a necessidade de Dalton de não só reafirmar seu posicionamento sobre questões
de ordem estética e política (não no sentido partidário) como também a sua cidade no plano
da memória que necessita ser preservada em meio a um turbilhão de mudanças que alteram
a fisionomia da sua cidade.
E no momento em que das comemorações dos 300 anos deriva um discurso oficial
de dimensão unívoca, Dalton Trevisan irá reunir ainda na coletânea Em busca de Curitiba
Perdida uma série de textos, até então inéditos, alguns deles com uma visão contrária à do
discurso predominante e visando a recuperação da memória da cidade, como “Que fim
levou o vampiro de Curitiba?”, “Cartinha a um velho poeta”, “Cartinha a um velho
prosador” e “Curitiba revisitada”.
Estes textos que são carregados de ironia - e nos quais o narrador faz uma crítica
nada velada a personagens da igreja, da literatura e da administração municipal – deveriam
ser agrupados num outro livro a ser publicado com o título Os sete segredos de Curitiba,
conforme indicação do autor no final de cada texto. Eles acabaram integrando em 1994 o
livro Dinorá: novos mistérios.
Diferente de “Em busca de Curitiba perdida”, o poema em prosa “Curitiba
revisitada”, por exemplo, versa sobre temas mais datados na medida em que representa, em
tom de crítica, as transformações urbanísticas mais recentes sofridas por Curitiba, conforme
atesta já no começo: “Que fim ò Cara você deu à minha cidade/ a outra sem casa demais
sem carros demais sem gente demais(...) (TREVISAN, 1992, p.85). É importante notar que
a letra “C”, do termo “cara” é utilizada em caixa alta, numa referência direta do autor ao
governo municipal.
Embora “Curitiba revisitada” aponte para uma crítica mais direcionada numa
determinada circunstância histórica, a dissonância em Dalton abarca valor mais amplo. Isto
porque, a natureza do seu discurso revela-se contrária, sobretudo, às mudanças que põem
xeque as redes de sociabilidades estabelecidas e à perda da medida da cidade, independente
dos grupos políticos que estão no poder.
Já a preocupação nacionalista que perpassa o espírito romântico funciona como um
leitmotiv, com um motivo central na obra de Garret. O poema longo e narrativo, “Camões”,
considerado evento fundador do romantismo em terras portuguesas (embora carregando
algo de clássico em sua estrutura) versa não apenas sobre a morte e o amor impossível,
como também acentua a valorização do herói como indivíduo, colocando em debate todas
as contradições nas relações entre o poeta português e a pátria. Um exemplo são as
constantes referências à ingratidão, da qual Garret também se considerava uma vítima.
Garret também transitou pela esfera do romance histórico ao trazer à tona discussões
sobre acontecimentos e símbolos históricos de uma região de Portugal, a cidade do Porto,
em O Arco de Santana, e a temática da moral no procedimento “exemplar” de Frei Luiz de
Souza, ao atear fogo à sua propriedade contra a possibilidade de vê-la ocupada pelos
ingleses.
3 ROTAS DE VIAGEM
Tanto no projeto de Garret quanto de Dalton Trevisan, as reflexões sobre a pátria e a
cidade são permeadas por dois tipos de narrador que assumem diferentes vozes discursivas,
e que transitam entre realidade e a ficção. Em se tratando de Viagens na minha terra, se nos
textos que se aproximam da crônica, social e de viagem, o narrador se mostra em primeira
pessoa do plural – num trajeto em que inclui não apenas os companheiros de viagem, mas
também o leitor –, no que é considerado novela aparece em terceira pessoa, num
distanciamento que é válido somente para a história de caráter romântico.
Em Viagens na Minha Terra, Garret apresenta ao leitor uma crônica de viagem, em
que se articulam memória e digressões, além de uma novela romântica. Na obra, a
narrativa se desdobra em dois tempos distintos, retratando, primeiro, a viagem do
cronista/autor por um período de dez dias à região de Santarém, onde pôde, decepcionado,
ver e sentir de perto as marcas impingidas pela destruição material e cultural causadas
durante os anos da Guerra Civil.
Noutro tempo, mais distendido, tem-se a narrativa com ares de ficção, constituindo-
se numa pequena novela atravessada, no nível sentimental, pelo amor romântico e
impossível entre Joaninha (apelidada de “a menina dos olhos verdes” ou “a menina dos
rouxinóis”) e o primo Carlos; em termos políticos, por momentos decisivos da guerra civil
empreendida por Dom Pedro e seus partidários, no intuito de reaver o trono português,
ocupado por Dom Miguel, de feições absolutistas e mais conservadoras.
No livro de Almeida Garret, primeiramente irrompe a figura do narrador-autor
como cronista social, numa viagem “real”, de Lisboa a Santarém, cujo início integra o
relato do próprio narrador: “São 17 deste mês de julho, ano de graça de 1843, uma segunda-
feira, dia sem nota e de boa estréia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar
para o Terreiro do Paço. Cheguei muito a horas, envergonhei os meus madrugadores dos
meus companheiros de viagem(...) Partimos.” (GARRET, 2003, p.12). A viagem de Garret
a Santarém seria concluída em 26 daquele mês.
Já de início, o narrador dá a antever que o conhecimento real está associado ao ato,
não balizado somente pela razão, mas também pela experiência concreta. Assim, a narrativa
passa a se configurar a partir de uma interação entre o eu e o espaço em que os fatos
históricos e o imaginário se sucedem: “Vou nada menos que a Santarém; e protesto que de
quanto vir e ouvir, de quanto ou pensar e sentir há de se fazer crônica. Era uma idéia vaga,
mais desejo que tenção, que eu tinha há muito, de ir conhecer as ricas várzeas desse
Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental de nossas vilas”. (2003,
p.12)
Nesta época, Garret já havia sido reeleito deputado (em 1842, pela Estremadura).
Era defensor do catolicismo contra os excessos do liberalismo materialista, mas por outro
lado combatia “o perigoso” domínio dos padres, especialmente os de linhagem
conservadora. Já havia escrito o Alfageme de Santarém, Um Auto de Gil Vicente e Frei
Luis de Souza. (2003, p. 263).
A viagem de Garret é marcada pela narração, e principalmente pelas digressões
sobre literatura, política, filosofia, entre outras, sustentadas através da linguagem da
crônica, desse gênero híbrido formado pela literatura e jornalismo, conjugado no tempo
presente, e cuja matéria-prima está ancorada no que se pode caracterizar como efêmero e
circunstancial.
Como em toda crônica, o narrador de Viagem na minha terra vai estabelecer juízos
de valor neste confronto direto de suas preferências cultural e intelectual com a realidade
imediata em que se depara. Partindo da concepção de “progresso”, termo que se constitui a
base das principais discussões concernentes ao século XIX, Garret vai se valer da
comparação como argumento para estabelecer de um lado os “espiritualistas” e de outro os
“materialistas”, anunciando-os, de pronto, como personagens centrais de um dos grandes
momentos da história de Portugal.
O primeiro terá como representação a figura de Dom Quixote, do clássico romance
espanhol de Miguel de Cervantes, e, por extensão, a ala dos padres conservadores, e o
segundo o fiel escudeiro Sancho Pancho, cuja caricatura recai sobre os barões que, na
esfera do poder monárquico, vão substituir os aristocratas amigos do rei (como na
seqüência do livro, aos leitores será dado a saber).
A bem da verdade, a comparação entre personagens, idéias e situações que marcarão
o velho e novo, tendo como ponto de referência os episódios posteriores ao da Guerra Civil,
vão constituir a própria essência da interlocução que o narrador irá manter com o leitor de
Viagens na minha terra. No fundo, o que estará em jogo nesta conversa é a necessidade de
fazer com que o leitor não perca o fio da meada, pontuada por uma série de reflexões cujo
objetivo final é pensar a pátria, seja no campo político, tecnológico ou cultural.
E, assim, já no começo do livro, após definir os novos personagens da cena política,
o narrador em tom de ironia (marca que vai caracterizar a parte inicial do enunciado) ditará
o rumo de suas pequenas andanças geográficas e intelectuais: “Ora nesta minha viagem
Tejoarriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor
entendesse agora. Tomarei cuidado lembrar de vem em quando, porque receio muito que se
esqueça”. (2003, p. 19).
Nessa interlocução o autor-cronista assumirá o papel de guia, em meio a uma
narrativa que se quer emaranhada e fragmentada pelas diferentes combinações de gêneros.
Para seguir a viagem de Garret, é necessário então ter muita paciência, conforme observa o
narrador bem mais adiante: “Neste despropositado e inclassificável livro das minhas
Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações de tal
modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão
embaraçada meada”. (2003, p. 173).
Paciência para unir os fios do discurso de uma narrativa marcada pela expolição,
argumento já utilizado na antiguidade e que, segundo Philipe Breton citando a definição do
autor de Rhétorique à Herrenius, “consiste em se deter sobre um mesmo ponto, ao mesmo
tempo que se dá a impressão de exprimir idéias sempre diferentes”. (BRETON, 1999,
p.105). Esse recurso em Garret se amplia, para reforçar ao longo do enunciado a
representação das figuras dos personagens barão e clero conservador, apresentadas em toda
a sua complexidade social e humana.
Mas nessa embaraçada meada, é necessário ainda desfazer intrincados fios, tanto o
mais que são representados por considerações de toda ordem, por um arco de digressões
que vão desde pensar as obras de autores da literatura clássica e portuguesa, passando pela
discussão filosófica da natureza do homem, até a necessidade de preservar os valores
culturais e a memória do país.
Outro recurso utilizado por Garret na composição de Viagens na minha terra é a
ironia, cuja definição compreende o contraste entre uma realidade e uma aparência, na
medida em que “(...) todos mais ou menos plausivelmente afirmam estar dizendo ou
fazendo alguma coisa, enquanto na realidade transmitem uma mensagem totalmente
diferente”. (MUECKE, 1995, p.52).
Um bom exemplo, nessa direção, é a própria viagem de Garret, a começar pelo
percurso escolhido, cujo caminho se projeta para a outra margem, inversa àquela
empreendida pelos grandes navegadores portugueses, ao desbravar o oceano na conquista
do novo mundo. O cronista, por sua vez, fará uma viagem mais modesta, de poucos
quilômetros, seguindo o Rio Tejo em direção ao interior de Portugal:
“A ousadia do narrador é imensa: substitui a grandeza épica pela
paz bucólica, a praia ocidental pela Lisboa oriental, a Lisboa
burguesa pela Lisboa popular, o “grande oceano por achar” pelo
“pequeno mar mediterrâneo” e a epopeia do mar pela tradição da
terra nessa porta de saída da cidade que tem mais belezas nas suas
hortas e nas suas árvores que a aridez monumental de Belém”.
CERDEIRA, 2003, p.247).
Na realidade, o narrador fará uma viagem rudimentar no revés da direção do
“progresso”, e porque não dizer, de natureza romântica, num bom percurso no lombo de
uma mula, sem pressa de chegada, e não sem uma boa pitada de humor: “Ao chão estive eu
para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para Azambuja o nosso cômodo
veículo, e diante de mim, a enfezada mulinha asneira, que – ai, triste! – tinha de ser o meu
transporte de ali até Santarém. (GARRET, 2003, p. 37).
Em outras passagens, o cronista irá ironizar o gosto da gente de Lisboa pelas
viagens, ou seja, toda uma gente que passa a vida entre o Chiado, a rua do Ouro e o teatro
S. Carlos, e a ideologia do progresso que começava a instalar com força na ideologia
apregoada pela nova ordem político-social. “Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de
pó de pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Ícaro,
para andar, a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e
grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos”.
(2003, p.25).
De certa maneira, no decorrer de Viagens na minha terra, a ironia aos
poucos vai se misturando à crítica social, ao desapontamento do autor que depara com o
patrimônio natural e cultural vilipendiado pós-guerra civil, e um bom exemplo está na
chegada ao Pinhal da Azambuja: “Este é o Pinhal da Azambuja? Não pode ser. Esta, aquela
antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico? E eu que, em
pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro Malas Artes, que logo em imaginação, lhe
não pudesse a cena aqui perto!..(...) Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão..
(2003, p. 33).
Ao mesmo tempo, o discurso enunciado pelo cronista aponta, de maneira
subjacente, para a necessidade de reconstruir um passado em ruínas e resgatar determinados
valores seculares que deveriam continuar sustentando a estrutura identitária da nação, e que
haviam sido esquecidos, até mesmo profanados pelos novos donos do poder. Assim, a
viagem de Garret é no sentido da presentificação da memória, do resgate dos contos
populares e monásticos, do respeito ao patrimônio histórico e dos heróis populares.
O desapontamento do autor se evidencia ainda mais na medida em que o cronista
não conseguirá descobrir a morada do Alfageme de Santarém, em que se depara com uma
Santarém em ruínas e com a profanação do túmulo de el-rei Fernando, entre outras
conseqüências da nova ordem que se instalou após a guerra civil e da qual o próprio o autor
participou ativamente. Garret a esta altura acredita na religião como formadora da alma e
da cultura do povo português, embora exerça duras críticas à ala da igreja ligada ao regime
absolutista.
Desta forma, aponta novamente sua crítica aos barões, que ele denomina de os
vendilhões do templo. “Em Portugal, não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa
sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante,
devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas
profanadas de tudo o que elevava o espírito...” (2003, p. 222).
Mas já pela metade desta obra múltipla e complexa, o narrador, nos apresenta uma
pequena história de ficção romântica, que ajuda a compreender um pouco as contradições
daquele período na história de Portugal e o que estava em jogo no cenário político e
econômico da época. O segundo narrador de Viagens na minha terra, de natureza
dramática, ficcional, discorrerá sobre uma história de amor (envolvendo os personagens da
casa do vale) iniciada em 1832 e tendo como pano de fundo a luta entre os exércitos de
Dom Pedro e Dom Miguel, em plena Guerra Civil.
Dom Miguel havia entrado em cena em 1828, aclamado rei de Portugal, depois de
ter-se casado com D. Maria, filha de Dom Pedro. Mas o partido da pequena rainha sentiu-se
traído, uma vez que Portugal voltou a adotar o regime absolutista. Após haver abdicado do
trono em favor da filha, Dom Pedro vai para a Europa, organiza um exército na tentativa de
reconquistar o reino perdido.
Dom Pedro desembarca nas proximidades da cidade do Porto, em 1832, com apenas
7.500 homens e após dois anos de sangrentas batalhas sairá vitorioso em cima de um
exército de 80 mil homens conduzido por Dom Miguel. Garret, juntamente com Alexandre
Herculano, integra essa expedição militar. Com Mousinho da Silveira, trabalha na
elaboração das leis do novo governo. Em 1933 vai para Paris e depois do fim da guerra
civil (Dom Miguel é derrotado em Évora) retorna a Portugal.
Será a partir do capítulo 11, que entrará em cena a pequena novela de caráter
romântico, narrada em terceira pessoa, tendo como protagonista a figura de Carlos (herói
romântico e revolucionário), da inocente Joaninha, da avó Dona Francisca e de frei Dinis.
A interlocução passa, no entanto, a se dar com o público formado pelas leitoras, o que
demonstra que, para Garret, os assuntos considerados mais sérios, quando assumia o tom da
crônica e da crítica social, deveriam ser direcionados aos homens: “Anda assim, belas e
amáveis leitoras, entendemo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem
aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e
singela, sinceramente contada e sem pretensão”. (2003, p. 66).
De filósofo, que garante não ter sido, numa das sínteses que anuncia o capítulo 11, o
autor passa a incorporar nesta pequena novela a figura do poeta, que se dá ao direito de
enamorar-se, e assim construir uma narrativa, cuja natureza da trama é perpassada pelo
sentido de culpa e pelo destino trágico, bem aos moldes do que se caracteriza o espírito
romântico.
O fato é que as digressões continuam, mesmo que em menos aparições, guiando o
texto de natureza ficcional, pois que o drama vivenciado por Carlos não está relacionado
apenas aos seus instintos amorosos, a suas normas e valores perante o código dos amantes.
Ele está, mais do que isso, intimamente relacionado com os conflitos de ordem político-
social vigentes em Portugal da década de 30, do século XIX.
Carlos vai trair os seus dois sustentáculos (a posição de amante e revolucionário), e
que o fizeram herói romântico, para se integrar a uma nova fase, que resultaria em
profundas mudanças na história de Portugal. Indiferente a tudo, Carlos irá se transformar
num barão, figura abominada pelo narrador-cronista, em suas digressões. Mais uma vez, a
narrativa em forma de crônica e a novela romanesca estarão se tangenciando no diálogo
final entre o narrador e Frei Dinis.
O caráter de Carlos já havia sido posto em discussão entre o narrador e um
companheiro de viagem sobre o fato de o herói amar, ao mesmo tempo, duas mulheres (a
prima Joaninha e a inglesa Georgina). Ali vem apenas a confirmação final de que o
narrador já havia dito sobre a configuração dos heróis nos dramas românticos: diante da
nova realidade social, eles morrem ou se transformam em monstros, corrompidos pela
sociedade, como Carlos. Embora Carlos, ao ser elevado a essa nova esfera social, deixará
de ser herói para se integrar à nova sociedade. E para Joaninha, a menina dos olhos verdes
da inocência, esse mundo corrompido pelo dinheiro e a ganância só lhe reservará a morte.
É importante ressaltar que no final de Viagens na minha terra os dois tempos da
narrativa – marcados pela presente viagem do autor a Santarém e pela reconstrução dos
episódios da Guerra Civil – assim como dois gêneros utilizados (novela e crônica), se
tangenciam na medida em que se dá o encontro hipotético entre o narrador e o personagem
Frei Dinis na casa do Vale. E neste diálogo, uma fala do religioso, que representa o
conservadorismo, mostra-se reveladora: (...)Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não
tiveram menos. Erramos ambos”. (2003, p.250).
Mas segundo Lélia Parreira Duarte, “a história de Carlos e Joaninha e outras que se
incluem na narrativa não parecem importar tanto quanto o aproveitamento das
oportunidades que o texto oferece para as digressões(...) para a desmistificação de certezas
com relação à história e outras supostas verdades. Garret mostra nas viagens que a verdade
é sempre uma construção que depende de retóricas e dialéticas – exercícios de linguagem –
para se afirmar”. (DUARTE, 2003, p.152).
Já na coletânea Em busca de Curitiba perdida, Dalton Trevisan também apresenta
um narrador sob o ponto de vista da ficção, bem próximo do processo discursivo, como
acontece nos contos, e outro em diálogo com a vertente memorialista e com as questões
mais atuais da sociedade, numa aproximação com a crônica. Será esse distanciamento da
situação ficcional que permitirá um caráter opinativo nos textos considerados híbridos.
O autor lançará um olhar reflexivo sobre a cidade, situando-a em dois tempos
(embora não revelados às claras), na medida em que irá resgatar e republicar um texto
como “Em busca de Curitiba perdida”, escrito na década de 40, ao mesmo tempo em que
estará editando, de maneira inédita, outro texto mais atual, como o poema em prosa
“Curitiba revisitada”, por ocasião dos preparativos dos 300 anos da cidade.
No primeiro, o autor fará uma viagem (sem sair do lugar, diga-se de passagem) ao
universo da cidade, e, de pronto, vai eleger espaços e personagens de sua preferência,
inscritos numa espécie de inventário pessoal. A Curitiba que o narrador “viaja” é a capital
paranaense dos anos 40 e 50, quando a população não passava de 350 mil habitantes, época
em que era comum o footing na rua XV de Novembro e nos cinemas. “Para as pessoas que
viveram os anos 50 em Curitiba, não seria difícil perceber o quanto e como a cidade foi
transformada”, diz Antônio Cesar de Almeida Santos, em Memórias e Cidade”. (SANTOS,
1999).
Além disso, o que torna o texto “Em busca de Curitiba Perdida” bastante revelador
ao ser republicado nas proximidades dos festejos dos 300 anos não será a visão saudosista e
romântica da cidade nas décadas de 40 e 50. Na verdade, o que está em jogo neste caso é
uma questão ideológica e intelectual, qual seja, a divisão que o autor estabelece entre duas
instâncias - a dos espaços marginais e das pessoas comuns e os espaços ditos “oficiais”,
relacionados ao poder seja ele político (não no sentido partidário) ou cultural – e a sua
preferência pela primeira.
Esta compreensão, no entanto, se torna mais completa quando se tem a leitura de
todos os textos híbridos que compõem o livro lançado em 1992, sobretudo a narrativa
“Curitiba revisitada”, onde há críticas à Curitiba “enjoadinha” e “para inglês ver” dos anos
90. O desapontamento é o mesmo verificado em Garret, mas aqui noutra direção, não mais
no âmbito de um país, mas de uma cidade, cuja paisagem se revela desfigurada como
conseqüência das muitas transformações urbanísticas.
Se em Garret a interlocução assume o papel de guia, num jogo que visa oferecer
caminhos para compreensão de um texto múltiplo, mas interdependente, e que num
processo continuum leva o leitor a desembaraçar o fio da meada, em Dalton a interlocução
é mais especificamente de caráter irônico. Mesmo porque diferentemente da obra do
escritor português, Em busca de Curitiba perdida é estruturada como uma coletânea de
textos autônomos, de diferentes épocas, embora em suas relações possam apontar para
significações em comum.
Em Dalton Trevisan, a ironia vai acompanhar todo o discurso e essa marca, no que
tange como contraponto à visão positiva da cidade, propalada principalmente nos meios de
comunicação, é bastante evidenciada no próprio lançamento de Em busca de Curitiba
perdida, em 1992, no auge dos preparativos para a comemoração dos 300 anos de Curitiba,
que ocorreu em 29 de março de 1993.
O conceito de ironia se aplica com justeza à publicação já na primeira página de Em
Busca de Curitiba Perdida — antes mesmo da folha de rosto (em que está o título, editora e
autor da obra) —, do “Hino Oficial de Curitiba”, instituído em 11.05.67, e que tem letra de
Ciro Silva e música de Bento Mossurunga.
Essa atitude demonstra, já de início, que o livro Em busca de Curitiba perdida teria
o propósito de desconstruir o discurso positivo dos festejos dos 300 anos; afinal de contas o
que se verá nos textos a seguir não será a imagem do narrador alçando vôo nas asas de uma
cidade descrita como jardim de rosa e de luz, como nos mostra o “Hino Oficial de
Curitiba”.
Será, no entanto, em “Curitiba revisitada” (uma citação de “Lisbon Revisited” de
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa) que o autor fará uma crítica
mais incisiva à cidade que perdeu a medida, colocando em xeque os títulos de “cidade
modelo” (“ai da cólera que espuma os teus urbanistas/ apostam na corrida de rato dos
malditos carros/suprimindo o sinal e a vez do pedestre(...) ( GARRET, 1992, p.87) ou de
“capital ecológica” (“não me venham de terrorismo ecológico/ você que defende a baleia
corcunda do pólo sul/cobre os muros de pegadas do besteirol tatibitate/grande protetor da
minhoca verde dos Andes(...)”. (1992, p.87).
Quanto aos textos de caráter mais ficcionais, se em Garret mesmo na novela
romântica o narrador se apresenta em perspectiva crítica, em Dalton os personagens são
revelados em sua incomunicabilidade, em suas relações afetivas marcadas pelo sistema
patriarcal predominante nas décadas de 40 e 50.
Na realidade, o que vai diferir Dalton dos novelistas clássicos será a intenção de
transformar a pessoa comum num herói, mesmo que às avessas, e assim retratar o que está
em jogo nas rede de sociabilidades no espaço público e privado num momento específico
da história de Curitiba. Embora esses “heróis” do cotidiano ganhem voz na estrutura
narrativa, nota-se que eles são revelados em sua condição, sem qualquer olhar de
complacência.
4 TRADIÇÃO E MODERNIDADE
Tanto em Viagens na minha terra como na obra Em busca de Curitiba perdida há
uma preocupação em resgatar ou pelo menos buscar a manutenção de valores e tradições
culturais numa sociedade em rápida transformação. Em Garret, o que está em jogo são as
mudanças provocadas pelo progresso, pelo materialismo advindo da implantação do
sistema liberal; em Dalton as reformas urbanísticas que mudaram a paisagem e as redes
sociabilidades na capital paranaense.
Em sua receita de como escrever um romance, Garret em tom de ironia e com
desfaçatez revela o que importa num livro como Viagens...: “Cuidas que vamos estudar a
história, a natureza, os monumentos, a pintura, os sepulcros, os edifícios, as memórias da
época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e
situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isto é trabalho
difícil, longo, delicado (...).” (GARRET, 2003, p. 34).
Será justamente este o rumo que tomará o autor nessa viagem, em que tentará
reafirmar ou até mesmo resgatar a história de Portugal, através dos contos e personagens
populares, e da valorização da memória dos nobres, além de passar a limpo sua filiação à
história da literatura, desde os clássicos. E neste contexto de respeito pelas tradições do
povo, o desapontamento de Garret será ainda maior quando da chegada a Santarém.
Ali, o que o narrador irá encontrar é uma cidade completamente destruída, túmulos
de reis profanados, e heróis esquecidos, entre eles o Alfageme de Santarém. “Nada
pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou
menos anacronismo, uma leva base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do
célebre cutileiro-profeta, que a história herdou das crônicas romanescas, e hoje o romance
outra vez reclama da história” (2003, p.203). Isto sem falar no desmantelamento do sistema
educacional português e do gosto duvidoso que se instaurou no campo da arte.
Vale destacar que no século XIX, enquanto a Inglaterra estava às voltas com a
Revolução Industrial, Portugal ainda se configurava como um país pobre, sem indústria,
ainda ignorando a máquina a vapor, e com um sistema medieval de propriedade. Mas após
o período de Guerra Civil, entraria numa nova fase de transformações tecnológicas, o que
podia se antever na macadamização das vias de transporte e na implantação de um sistema
ferroviário.
Conforme revela nota de referência, na altura em que Garret escrevia Viagens na
minha terra o governo português tomava medidas para abrir o primeiro caminho de ferro,
inaugurado em 1856. O ceticismo do autor quanto à implantação das novas tecnologias é
reforçado no final do livro ao mesmo em que novamente vai dirigir duras críticas à classe
dos barões: “Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura,
porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal!” (2003,
p.251).
Conforme define Elena Losada Soler, o romântico é um homem cindido, e com ele
começa a dispersão do eu na multiplicidade. “Entre as muitas cisões ocupa um lugar fucral
a que o dilacera entre os restos do sonho arcádico e a realidade de um futuro que o afasta da
natureza, aquilo que Garret definiu como o Adão Natural versus o Adão social”. (SOLER,
2003, p. 184).
Para a autora, o personagem Carlos de Viagens na minha terra é construído desde o
início como uma espécie de alter ego do autor, no que tem de múltiplo e contraditório
principalmente no relacionamento afetivo. Quanto às suas posições políticas, embora o
Garret tenha investido o tempo todo contra a classe dos barões, mais tarde não se furtará em
receber o título de visconde.
Por outro lado, essa mesma tese da multiplicidade encontra ressonância no projeto
estético de Garret, nos procedimentos de composição utilizados no romance Viagens..., pois
que a combinação de diferentes gêneros, inclusive a ocorrência de uma novela dentro de
uma crônica de viagem e social, assim como as diferentes perspectivas da narrativa e
interlocuções com o leitor demonstram um forte diálogo com a modernidade.
Neste sentido, a coletânea Em busca de Curitiba perdida também aponta para a
direção das técnicas mais modernas de composição textual. Da mesma forma, o sujeito que
pensa a cidade e a voz manifestada nos textos híbridos vêm marcados pela contradição,
como a própria essência da modernidade. Os textos enunciam a dicção de um sujeito que
nega, a certa altura, as sucessivas transformações urbanas que vão pôr em xeque a noção de
identidade e de pertencimento dos indivíduos no convívio social.
Dalton também vai buscar preservar o passado, mas não tão remoto, visto que
pretende presentificar na memória a sua Curitiba dos anos 40 e 50. Mas não se pode
afirmar que o autor é contra o sujeito moderno. Mesmo porque a construção do seu projeto
literário, que se insurge contra o modelo simbolista, assim como o enredo e personagens em
sua obra, se nutrem da natureza da própria modernidade e no que ela carrega, em si, de
paradoxal.
Isto posto, o espaço da cidade é visto em seu aspecto positivo como ponto de
aglomeração, de sociabilidades. Assim como Baudelaire, Dalton compõe um discurso
marcado pelo lirismo para representar o universo de personagens que circulam pelas ruas
da cidade. E vai mais além, ao trazer também para a sua ficção as mazelas da união
conjugal e a incomunicabilidade que permeiam as relações no universo sacrossanto do lar.
Enquanto Baudelaire vai compor a sua lírica a partir do cortejo heróico dos dândis,
flâneurs, apaches, lésbicas, proletários e prostitutas da Paris da segunda metade do século
19, Dalton Trevisan vai “cantar” a realidade dos indivíduos dos bairros periféricos, das
diversões populares, que freqüentam os bares e “inferninhos” de uma Curitiba provinciana,
em fase de transformação.
Em Baudelaire assim como em Dalton, a natureza desse espaço, que começa a
sofrer bruscas mudanças, vai se refletir, a partir de um determinado momento, num eu
cindido, que antevê um futuro menos glorioso para a cidade, e que nos permite pensar na
modernidade tardia, representada pelo esvaziamento e a degradação das áreas centrais, da
rua apenas como ponto de passagem do automóvel, das aglomerações humanas reduzidas
aos condomínios fechados e aos shoppings-centers.
Essa contradição da modernidade, em Baudelaire, aparece com muita clareza no
poema “O cisne”, no qual o poeta utiliza-se da metáfora do cisne — que no lugar de uma
antiga fonte vai se deparar com “ásperas lajes” — para bem caracterizar o processo de
modernização da velha Paris. “Fecundou-me de súbito a fértil memória, /Quando eu
cruzava a passo o novo Carrossel. Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/Depressa
muda mais que um coração infiel.” BAUDELAIRE, 1985, p.325).
Assim como em Baudelaire, as transformações urbanas da cidade, a certa altura,
também vão afetar, sobremaneira a ficção de DT. Mas esse posicionamento contra o que se
poderia chamar de modernidade tardia se revela em DT principalmente nos textos híbridos,
uma vez que nos contos predomina o espaço da cidade em seu aspecto positivo, no sentido
da aglomeração e da possibilidade do convívio social intenso, para o bem e para mal, entre
os personagens.
A exceção nos contos, no entanto, fica por conta de textos como “Cemitério de
elefantes” e “Uma vela para Dario”, onde se denuncia a degradação do espaço como
organizador da vida do sujeito. Nos textos híbridos, aquele que mais representa o eu
cindido do narrador frente às súbitas transformações da cidade é “Curitiba revisitada”.
Nesse texto, DT vai denunciar o espaço urbano apenas como ponto de passagem, a partir da
abertura de novas ruas e o aumento da velocidade dos veículos que cruzam a cidade.
Como diz Richard Sennett, em Carne e pedra, o espaço urbano, na
contemporaneidade, é marcado pela experiência da velocidade, do corpo que se move
passivamente para destinos descontínuos e fragmentados. “O espaço tornou-se um lugar de
passagem, medido pela facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele”.
(SENNETT, 2001, p.17)
Sennett continua, observando um fenômeno que compreende as redes de
sociabilidades nos novos tempos:
A massa de corpos que antes aglomerava-se nos centros urbanos
hoje está dispersa, reunindo-se em pólos comerciais, mais
preocupada em consumir do que com qualquer outro propósito mais
complexo, político ou comunitário. Presentemente, a multidão
sente-se ameaçada pela presença de outros seres humanos que
destoam de suas intenções. (2001, p.17).
A verdade é que a partir da década de 60, do século passado, Curitiba experimentou
um acelerado crescimento, perdeu a medida da província e, nela, o narrador não se vê, não
mais se identifica. O mesmo ocorrerá com Garret ao vivenciar uma viagem onde a perda
da memória coloca em xeque a própria noção de identidade anunciada pelos novos tempos.
REFERÊNCIAS
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Bauru: Edusc, 1999.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 325.
Ver.
CERDEIRA DA SILVA, Teresa Cristina. De viagens e viajantes. In: MONTEIRO, Ofélia
Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um romântico, um moderno.
v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia romântica e modernidade em Viagens na minha terra. In:
MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um
romântico, um moderno. v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.
FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal: Estudos de factos sociocultural.
Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
GARRET, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade – Psicanálise mítica do destino português.
3 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
MARTINS, Wilson. Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan. Revista
Joaquim, n. 14, edição fac-similar, p. 7.
MUECKE, D.C. Ironia e irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995.
NICOLATO, Roberto. Literatura e cidade: O universo urbano em Dalton Trevisan.
Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado) – UFPR.
SANTOS, Antônio César de Almeida. Memórias e Cidade. Depoimentos e Transformação
Urbana em Curitiba (1930-1990). 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999.
SENNETT, Richard. Carne e pedra. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SOLER, Elena Losada. A construção de Carlos como herói romântico em Viagens na
minha terra. In: MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida
Garret – um romântico, um moderno. v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2003.
TREVISAN, Dalton. Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 1992.
__. Minha Cidade. Joaquim, n. 6, nov. de 1945, edição fac. similar. Curitiba: Coleção
Brasil Diferente, Imprensa Oficial do Paraná, 2000.

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Garret e dalton

  • 1. Estudo comparativo das representações urbanas em Almeida Garret e Dalton Trevisan Roberto Nicolato1 Resumo Este artigo busca revelar as similitudes existentes nas representações sociais de duas obras literárias: Viagens na minha terra, de Almeida Garret, e Em busca de Curitiba perdida, de Dalton Trevisan. Embora produzidos em épocas e espaços urbanos diversos, os dois livros mais assemelham do que se diferenciam. Se a comparação não pode ser medida no nível temático e da linguagem, há um mesmo e enfático direcionamento quanto às preocupações políticas e estéticas, em Dalton e Garret , a respeito de uma cidade (Curitiba) e de um pais (Portugal), num momento de grandes transformações históricas. Palavras –Chave Literatura - Curitiba e Portugal – Estudo das representações 1 Roberto Nicolato é mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. É professor do curso de Jornalismo do Centro Universitário Uninter, em Curitiba.
  • 2. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo realizar um estudo comparativo entre as obras Viagens na Minha Terra (GARRET, 2003), de Almeida Garret, e Em Busca de Curitiba perdida (TREVISAN, 1992), de Dalton Trevisan. Escritos em diferentes épocas, os dois livros se assemelham em alguns aspectos e procedimentos, que são de grande relevância para se compreender a relação do sujeito com a realidade imediata, tanto no sentido da ficção quanto da crítica social. As similitudes entre as duas obras ocorrem menos no nível da linguagem e da temática que em torno de preocupações políticas e estéticas e de foco narrativo assemelhados, no contexto do que poderíamos denominar de modernidade. Assim, entre outras funções, analisa a noção de sujeito que pensa a sua cidade e o seu país, no caso de Dalton Trevisan e Almeida Garret, respectivamente, num dado momento histórico marcado por profundas transformações políticas, urbanísticas e culturais. Num primeiro momento, a análise busca revelar aspectos gerais de Em busca de Curitiba perdida e Viagens na minha terra, e de que maneira os dados biográficos dos autores são representativos para a compreensão dos textos (muitos deles no formato da crônica), além de evidenciar o que está em jogo nas discussões das temáticas apresentadas. A seguir, a linha de raciocínio recai sobre questões relativas ao foco narrativo, embora sem perder de vista a preocupação maior das obras que é a de refletir sobre uma fase específica da história de uma cidade e um país. Neste sentido, cabe notar o papel que cumpre na economia da obra as interlocuções, a ironia e os diferentes formatos de texto (crônicas de viagens e de cunho social, poemas em prosa, e novela). Para finalizar, este estudo aborda a maneira como Dalton Trevisan e Almeida Garret se inserem no contexto das tradições e da modernidade, tendo como zonas de fraturas os episódios posteriores à Guerra Civil em Portugal e as reformas urbanas em Curitiba. Nos dois casos, em proeminência uma firme preocupação em preservar a memória, como pressuposto básico para assegurar a identidade cultural da coletividade.
  • 3. 2 AQUELE PAÍS, ESTA CIDADE Antes de buscarmos uma comparação mais específica dos pontos de maior convergência, é preciso, no entanto, situar Viagens na Minha Terra e Em busca de Curitiba perdida, dentro do contexto histórico e político em que estão inseridos. Afinal, os dois livros trazem em comum além da afirmação ou, melhor, da consolidação de um projeto estético, a necessidade de pensar a cidade ou um país num momento de importantes transformações nas práticas políticas, culturais e urbanas. Viagens na Minha Terra se configura tendo como pano de fundo o panorama político instaurado em Portugal, que vai da Revolução Francesa aos anos de 1840, assumindo papel de grande relevância as invasões francesas em solo português e as lutas liberais. A guerra civil, que durou dois anos (até 1834), transformou de forma significativa a estrutura sócio-política de Portugal, empurrando o país para uma nova fase: a da sociedade liberal, constitucional e capitalista. A obra de Garret começou a ser publicada em forma de folhetim, em agosto de 1843, na Revista Universal Lisbonense, dirigida por Castilho, sendo interrompida por algum tempo – conforme se leva a crer por motivos de censura -, e posteriormente retomada, pelos meados de 1845. Garrett havia sido convidado pelo amigo Passos Manuel, em carta de 6 de julho de 1843, para visitar Santarém e desta pequena viagem – pequena na quilometragem, mas incomensurável no aspecto cultural – resultou uma das mais importantes obras do período romântico português. Em busca de Curitiba perdida surge mais de um século depois, precisamente em 1992, um ano antes do aniversário de 300 anos de Curitiba, momento em que as esferas do poder público local capitaliza o resultado advindo das transformações urbanísticas iniciadas em 1970, cujo projeto mudou ou aperfeiçoou o traçado iniciado pelo Plano Agache, e buscou oferecer à cidade infra-estrutura necessária para suportar o crescimento econômico, demográfico e das demandas sociais nos anos que se seguiram. A antologia de Dalton Trevisan vai reunir contos e os chamados textos híbridos, que se aproximam da crônica e da poesia em prosa, extraídos de diferentes obras anteriores do autor. Na mesma coletânea, são revelados outros escritos, trazendo impresso o ineditismo,
  • 4. num discurso bastante colado aos acontecimentos, inclusive, em consonância um tanto direta com o momento histórico em que a cidade se via envolvida. A multiplicidade dessa coletânea carrega consigo a dicção de um autor ainda jovem, representado pela crônica “Em busca de Curitiba”, cuja primeira publicação data de 1945, no número 6 da revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan. O texto tinha como título original “minha cidade” e ao longo dos anos foi várias vezes refeito. Apesar de ainda restrito ao universo da província, Dalton Trevisan figurava, naquela época, como um intelectual atuante no universo literário cultural da capital paranaense. A publicação do livro Em busca de Curitiba perdida, às vésperas das comemorações dos 300 anos da cidade, se dá no momento em que Dalton já está se estabeleceu como grande contista nacional. O discurso silencioso, no entanto, não o impedirá de marcar posição no contexto da efeméride, com uma voz dissonante que emerge nesse projeto editorial em que se articulam novas representações (tanto no campo estético como político e simbólico), tendo como principal personagem uma cidade em franco processo de transformação. Quanto a Almeida Garret, quando escreveu Viagens na Minha Terra, já havia servido ao governo como Encarregado de Negócios de Portugal em Bruxelas, na Bélgica, e tinha sido indicado a propor um plano para a criação de um teatro nacional, embora acabe passando para a oposição por não concordar com o Ministério Costa Cabral e com a restauração da Carta Constitucional de D. Pedro. Garret, na verdade, defendia uma reforma da Carta que se mostrasse mais afeiçoada aos ideais defendidos na Revolução de Setembro (1836) e na Constituinte de 1838. Esta atitude custaria ao escritor e político a perda de dois importantes cargos que ocupava: o de Inspetor Geral dos Teatros e Espetáculos Nacionais e Cronista-mor do Reino, que mais tarde seriam recuperados ao voltar a colaborar com o governo. De soldado do liberalismo nos idos da guerra civil, chefiada por Dom Pedro em 1832, Garret, com o passar dos anos, adotará uma posição de maior prudência ou, como afirma José-Augusto França, em O Romantismo em Portugal, mais confusa, assaz religiosa, se comparada com a de Herculano, no que se refere ao liberalismo. (FRANÇA, 1993, pág. 76) Para Almeida Garret, a ordem e a religião, conforme revela França, vão constituir as suas coordenadas permanentes, assim como a defesa de uma monarquia representativa
  • 5. (1993, pág. 78). Isto talvez explique o posicionamento do autor em Viagens na Minha Terra com respeito à necessidade de preservar a memória e os bens culturais e artísticos de Portugal, vilipendiados em decorrência das transformações políticas vivenciadas pelo país. A bem da verdade, em Viagens..., Garret se mostrará contrário tanto em relação aos excessos do liberalismo materialista, representado pela figura do barão, como em relação ao clero conservador, que terá no personagem Frei Dinis a sua principal representação. De defensor do ensino público, da liberdade e igualdade, mas com ordem em 1837, ao fato de se ligar, 1853, a uma situação de centro-direita que o fará ministro e visconde, a história política de Garret é, no mínimo, mais incoerente que a literária, cujo projeto tem como um dos principais desafios discutir de maneira inovadora a pátria portuguesa no século XIX. “O que desde Garret a estrutura no seu âmago, é o projeto novo de problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência individual, com a realidade específica e autônoma que é a Pátria” (LOURENÇO, 1988, pág. 80). Na produção literária anterior à do autor de Viagens na minha terra, conforme assevera Eduardo Lourenço, a nação Portugal ainda não havia sido apreendida como “realidade histórica”, uma vez que “era vivida sem autêntica interioridade” (1988, p.81). “A partir de Garrett e Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o núcleo de pulsão literária determinante” (1988, p. 80), atesta o autor ao fazer uma viagem sobre o destino histórico-místico de Portugal do romantismo ao modernismo de Fernando Pessoa. Se na base das preocupações de Garret está ancorada a noção de pátria e nação, em conformidade com o espírito romântico, em Dalton Trevisan as discussões sobre as transformações urbanísticas vivenciadas por Curitiba se fundam a partir de um projeto que visa pensar a cidade, tanto em termos políticos (especialmente com relação às transformações urbanísticas) como estéticos. Em especial, na medida em que Em busca de Curitiba perdida é editada durante a fase de preparativos para a festa dos 300 anos da capital paranaense. Nesta coletânea, o autor mostra uma nova possibilidade de compreender as mudanças ocorridas em Curitiba, num momento em que as várias instâncias e camadas sociais da cidade conjugam um mesmo discurso, qual seja, o da administração municipal,
  • 6. ao referir insistentemente a cidade, nos meios de comunicação, como detentora dos títulos de “cidade modelo” e “capital ecológica”. Com certeza, pode-se afirmar que dois textos, “Em busca de Curitiba”, que abre o livro de título homônimo, e “Curitiba revisitada”, que encerra o volume lançado em 1992, dão a medida certa da representatividade da obra de Dalton Trevisan no contexto dessas comemorações municipais. No primeiro, ou melhor nessa crônica que com o passar dos anos ganhou um tom memorialístico, Dalton Trevisan demarca o seu território, seu domínio no plano estético e político, a partir de personagens e espaços “eleitos” , num movimento de negação e afirmação: “Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal, do Gigi, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi) (…)”. (TREVISAN, 1992, p.7) “Não, a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras(…)”. (1992, p. 8) Dalton também se coloca como o intelectual que busca refletir sobre as contradições do seu tempo, e do momento histórico em que esta inserida a cidade. Desta forma, nesse inventário reatualizado, que se traduz numa espécie de memorial do que deve ser lembrado (conforme já demonstrado em outro trabalho de minha autoria)2 , ele continuará negando o discurso de determinadas instâncias relacionadas com o poder, que poderíamos caracterizar como a Curitiba oficial (a dos administradores e elite intelectual), em prol da Curitiba humana, povoada de loucos, rufiões, prostitutas, colonos, normalistas de gravatinha, neopitagóricos, soldados do fogo, entre outros”. 2 Algumas discussões importantes deste trabalho estão contidas na dissertação de mestrado de minha autoria, intitulada LITERATURA E CIDADE: Análise do espaço urbano em Dalton Trevisan, de 2002. Elas foram utilizadas de maneira a contribuir com a abordagem e adaptadas ao objetivo que se presta à composição do texto.
  • 7. Na verdade, também não há como dissociar a crônica “Em busca de Curitiba Perdida” do desejo de uma geração liderada por Dalton Trevisan, -- e que teve a revista Joaquim como veículo de divulgação de suas idéias – de criar no Paraná um movimento de renovação nas artes e na literatura em contraposição aos ideais reacionários e conservadores do movimento paranista e também simbolista, este capitaneado no Paraná pelo poeta Emiliano Perneta. “Sob este ângulo é que o texto “minha cidade” deve ser analisado: qual seja, a partir de um movimento que pretende romper com o passadismo, instaurar novas idéias, o que vai desencadear numa nova maneira de olhar a cidade” (NICOLATO, 2002, p.15). Assim, Dalton vai cantar nos seus contos a cidade das criaturas comuns, quando não humildes, conforme o ensaio “Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan”, escrito pelo crítico Wilson Martins na Revista Joaquim de número 14: É notável a fascinação que essa pobre fauna exerce sobre o contista: e tudo exclusiva e rigorosamente debaixo de um interesse de análise psicológica, de conhecimento do homem, pois o sr. Dalton Trevisan não é político, ou, pelo menos, não pretende fazer de sua arte um veículo de intenções políticas.” Merece destaque o fato do texto “minha cidade” ter sido republicado (já com novos formatos e diferentes títulos) em pelo menos dois momentos marcantes, na história do Paraná e de Curitiba, sempre com o propósito de marcar posição e afirmar a cidade provinciana, a cidade da memória: em 1953, por ocasião das comemorações do I Centenário de Emancipação do Paraná e, em 1992, durante os preparativos do aniversário dos 300 anos da cidade. O fato de republicá-lo novamente, mesmo que alguns de seus sintagmas possam ter significação mais datada, ou seja, para o momento em que foi escrito na década de 40, demonstra a necessidade de Dalton de não só reafirmar seu posicionamento sobre questões de ordem estética e política (não no sentido partidário) como também a sua cidade no plano da memória que necessita ser preservada em meio a um turbilhão de mudanças que alteram a fisionomia da sua cidade.
  • 8. E no momento em que das comemorações dos 300 anos deriva um discurso oficial de dimensão unívoca, Dalton Trevisan irá reunir ainda na coletânea Em busca de Curitiba Perdida uma série de textos, até então inéditos, alguns deles com uma visão contrária à do discurso predominante e visando a recuperação da memória da cidade, como “Que fim levou o vampiro de Curitiba?”, “Cartinha a um velho poeta”, “Cartinha a um velho prosador” e “Curitiba revisitada”. Estes textos que são carregados de ironia - e nos quais o narrador faz uma crítica nada velada a personagens da igreja, da literatura e da administração municipal – deveriam ser agrupados num outro livro a ser publicado com o título Os sete segredos de Curitiba, conforme indicação do autor no final de cada texto. Eles acabaram integrando em 1994 o livro Dinorá: novos mistérios. Diferente de “Em busca de Curitiba perdida”, o poema em prosa “Curitiba revisitada”, por exemplo, versa sobre temas mais datados na medida em que representa, em tom de crítica, as transformações urbanísticas mais recentes sofridas por Curitiba, conforme atesta já no começo: “Que fim ò Cara você deu à minha cidade/ a outra sem casa demais sem carros demais sem gente demais(...) (TREVISAN, 1992, p.85). É importante notar que a letra “C”, do termo “cara” é utilizada em caixa alta, numa referência direta do autor ao governo municipal. Embora “Curitiba revisitada” aponte para uma crítica mais direcionada numa determinada circunstância histórica, a dissonância em Dalton abarca valor mais amplo. Isto porque, a natureza do seu discurso revela-se contrária, sobretudo, às mudanças que põem xeque as redes de sociabilidades estabelecidas e à perda da medida da cidade, independente dos grupos políticos que estão no poder. Já a preocupação nacionalista que perpassa o espírito romântico funciona como um leitmotiv, com um motivo central na obra de Garret. O poema longo e narrativo, “Camões”, considerado evento fundador do romantismo em terras portuguesas (embora carregando algo de clássico em sua estrutura) versa não apenas sobre a morte e o amor impossível, como também acentua a valorização do herói como indivíduo, colocando em debate todas as contradições nas relações entre o poeta português e a pátria. Um exemplo são as constantes referências à ingratidão, da qual Garret também se considerava uma vítima.
  • 9. Garret também transitou pela esfera do romance histórico ao trazer à tona discussões sobre acontecimentos e símbolos históricos de uma região de Portugal, a cidade do Porto, em O Arco de Santana, e a temática da moral no procedimento “exemplar” de Frei Luiz de Souza, ao atear fogo à sua propriedade contra a possibilidade de vê-la ocupada pelos ingleses. 3 ROTAS DE VIAGEM Tanto no projeto de Garret quanto de Dalton Trevisan, as reflexões sobre a pátria e a cidade são permeadas por dois tipos de narrador que assumem diferentes vozes discursivas, e que transitam entre realidade e a ficção. Em se tratando de Viagens na minha terra, se nos textos que se aproximam da crônica, social e de viagem, o narrador se mostra em primeira pessoa do plural – num trajeto em que inclui não apenas os companheiros de viagem, mas também o leitor –, no que é considerado novela aparece em terceira pessoa, num distanciamento que é válido somente para a história de caráter romântico. Em Viagens na Minha Terra, Garret apresenta ao leitor uma crônica de viagem, em que se articulam memória e digressões, além de uma novela romântica. Na obra, a narrativa se desdobra em dois tempos distintos, retratando, primeiro, a viagem do cronista/autor por um período de dez dias à região de Santarém, onde pôde, decepcionado, ver e sentir de perto as marcas impingidas pela destruição material e cultural causadas durante os anos da Guerra Civil. Noutro tempo, mais distendido, tem-se a narrativa com ares de ficção, constituindo- se numa pequena novela atravessada, no nível sentimental, pelo amor romântico e impossível entre Joaninha (apelidada de “a menina dos olhos verdes” ou “a menina dos rouxinóis”) e o primo Carlos; em termos políticos, por momentos decisivos da guerra civil empreendida por Dom Pedro e seus partidários, no intuito de reaver o trono português, ocupado por Dom Miguel, de feições absolutistas e mais conservadoras. No livro de Almeida Garret, primeiramente irrompe a figura do narrador-autor como cronista social, numa viagem “real”, de Lisboa a Santarém, cujo início integra o relato do próprio narrador: “São 17 deste mês de julho, ano de graça de 1843, uma segunda- feira, dia sem nota e de boa estréia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar
  • 10. para o Terreiro do Paço. Cheguei muito a horas, envergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem(...) Partimos.” (GARRET, 2003, p.12). A viagem de Garret a Santarém seria concluída em 26 daquele mês. Já de início, o narrador dá a antever que o conhecimento real está associado ao ato, não balizado somente pela razão, mas também pela experiência concreta. Assim, a narrativa passa a se configurar a partir de uma interação entre o eu e o espaço em que os fatos históricos e o imaginário se sucedem: “Vou nada menos que a Santarém; e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto ou pensar e sentir há de se fazer crônica. Era uma idéia vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha há muito, de ir conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais histórica e monumental de nossas vilas”. (2003, p.12) Nesta época, Garret já havia sido reeleito deputado (em 1842, pela Estremadura). Era defensor do catolicismo contra os excessos do liberalismo materialista, mas por outro lado combatia “o perigoso” domínio dos padres, especialmente os de linhagem conservadora. Já havia escrito o Alfageme de Santarém, Um Auto de Gil Vicente e Frei Luis de Souza. (2003, p. 263). A viagem de Garret é marcada pela narração, e principalmente pelas digressões sobre literatura, política, filosofia, entre outras, sustentadas através da linguagem da crônica, desse gênero híbrido formado pela literatura e jornalismo, conjugado no tempo presente, e cuja matéria-prima está ancorada no que se pode caracterizar como efêmero e circunstancial. Como em toda crônica, o narrador de Viagem na minha terra vai estabelecer juízos de valor neste confronto direto de suas preferências cultural e intelectual com a realidade imediata em que se depara. Partindo da concepção de “progresso”, termo que se constitui a base das principais discussões concernentes ao século XIX, Garret vai se valer da comparação como argumento para estabelecer de um lado os “espiritualistas” e de outro os “materialistas”, anunciando-os, de pronto, como personagens centrais de um dos grandes momentos da história de Portugal. O primeiro terá como representação a figura de Dom Quixote, do clássico romance espanhol de Miguel de Cervantes, e, por extensão, a ala dos padres conservadores, e o segundo o fiel escudeiro Sancho Pancho, cuja caricatura recai sobre os barões que, na
  • 11. esfera do poder monárquico, vão substituir os aristocratas amigos do rei (como na seqüência do livro, aos leitores será dado a saber). A bem da verdade, a comparação entre personagens, idéias e situações que marcarão o velho e novo, tendo como ponto de referência os episódios posteriores ao da Guerra Civil, vão constituir a própria essência da interlocução que o narrador irá manter com o leitor de Viagens na minha terra. No fundo, o que estará em jogo nesta conversa é a necessidade de fazer com que o leitor não perca o fio da meada, pontuada por uma série de reflexões cujo objetivo final é pensar a pátria, seja no campo político, tecnológico ou cultural. E, assim, já no começo do livro, após definir os novos personagens da cena política, o narrador em tom de ironia (marca que vai caracterizar a parte inicial do enunciado) ditará o rumo de suas pequenas andanças geográficas e intelectuais: “Ora nesta minha viagem Tejoarriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor entendesse agora. Tomarei cuidado lembrar de vem em quando, porque receio muito que se esqueça”. (2003, p. 19). Nessa interlocução o autor-cronista assumirá o papel de guia, em meio a uma narrativa que se quer emaranhada e fragmentada pelas diferentes combinações de gêneros. Para seguir a viagem de Garret, é necessário então ter muita paciência, conforme observa o narrador bem mais adiante: “Neste despropositado e inclassificável livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações de tal modo, que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir em tão embaraçada meada”. (2003, p. 173). Paciência para unir os fios do discurso de uma narrativa marcada pela expolição, argumento já utilizado na antiguidade e que, segundo Philipe Breton citando a definição do autor de Rhétorique à Herrenius, “consiste em se deter sobre um mesmo ponto, ao mesmo tempo que se dá a impressão de exprimir idéias sempre diferentes”. (BRETON, 1999, p.105). Esse recurso em Garret se amplia, para reforçar ao longo do enunciado a representação das figuras dos personagens barão e clero conservador, apresentadas em toda a sua complexidade social e humana. Mas nessa embaraçada meada, é necessário ainda desfazer intrincados fios, tanto o mais que são representados por considerações de toda ordem, por um arco de digressões que vão desde pensar as obras de autores da literatura clássica e portuguesa, passando pela
  • 12. discussão filosófica da natureza do homem, até a necessidade de preservar os valores culturais e a memória do país. Outro recurso utilizado por Garret na composição de Viagens na minha terra é a ironia, cuja definição compreende o contraste entre uma realidade e uma aparência, na medida em que “(...) todos mais ou menos plausivelmente afirmam estar dizendo ou fazendo alguma coisa, enquanto na realidade transmitem uma mensagem totalmente diferente”. (MUECKE, 1995, p.52). Um bom exemplo, nessa direção, é a própria viagem de Garret, a começar pelo percurso escolhido, cujo caminho se projeta para a outra margem, inversa àquela empreendida pelos grandes navegadores portugueses, ao desbravar o oceano na conquista do novo mundo. O cronista, por sua vez, fará uma viagem mais modesta, de poucos quilômetros, seguindo o Rio Tejo em direção ao interior de Portugal: “A ousadia do narrador é imensa: substitui a grandeza épica pela paz bucólica, a praia ocidental pela Lisboa oriental, a Lisboa burguesa pela Lisboa popular, o “grande oceano por achar” pelo “pequeno mar mediterrâneo” e a epopeia do mar pela tradição da terra nessa porta de saída da cidade que tem mais belezas nas suas hortas e nas suas árvores que a aridez monumental de Belém”. CERDEIRA, 2003, p.247). Na realidade, o narrador fará uma viagem rudimentar no revés da direção do “progresso”, e porque não dizer, de natureza romântica, num bom percurso no lombo de uma mula, sem pressa de chegada, e não sem uma boa pitada de humor: “Ao chão estive eu para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para Azambuja o nosso cômodo veículo, e diante de mim, a enfezada mulinha asneira, que – ai, triste! – tinha de ser o meu transporte de ali até Santarém. (GARRET, 2003, p. 37). Em outras passagens, o cronista irá ironizar o gosto da gente de Lisboa pelas viagens, ou seja, toda uma gente que passa a vida entre o Chiado, a rua do Ouro e o teatro S. Carlos, e a ideologia do progresso que começava a instalar com força na ideologia
  • 13. apregoada pela nova ordem político-social. “Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Ícaro, para andar, a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos”. (2003, p.25). De certa maneira, no decorrer de Viagens na minha terra, a ironia aos poucos vai se misturando à crítica social, ao desapontamento do autor que depara com o patrimônio natural e cultural vilipendiado pós-guerra civil, e um bom exemplo está na chegada ao Pinhal da Azambuja: “Este é o Pinhal da Azambuja? Não pode ser. Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico? E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro Malas Artes, que logo em imaginação, lhe não pudesse a cena aqui perto!..(...) Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão.. (2003, p. 33). Ao mesmo tempo, o discurso enunciado pelo cronista aponta, de maneira subjacente, para a necessidade de reconstruir um passado em ruínas e resgatar determinados valores seculares que deveriam continuar sustentando a estrutura identitária da nação, e que haviam sido esquecidos, até mesmo profanados pelos novos donos do poder. Assim, a viagem de Garret é no sentido da presentificação da memória, do resgate dos contos populares e monásticos, do respeito ao patrimônio histórico e dos heróis populares. O desapontamento do autor se evidencia ainda mais na medida em que o cronista não conseguirá descobrir a morada do Alfageme de Santarém, em que se depara com uma Santarém em ruínas e com a profanação do túmulo de el-rei Fernando, entre outras conseqüências da nova ordem que se instalou após a guerra civil e da qual o próprio o autor participou ativamente. Garret a esta altura acredita na religião como formadora da alma e da cultura do povo português, embora exerça duras críticas à ala da igreja ligada ao regime absolutista. Desta forma, aponta novamente sua crítica aos barões, que ele denomina de os vendilhões do templo. “Em Portugal, não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia, desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espírito...” (2003, p. 222).
  • 14. Mas já pela metade desta obra múltipla e complexa, o narrador, nos apresenta uma pequena história de ficção romântica, que ajuda a compreender um pouco as contradições daquele período na história de Portugal e o que estava em jogo no cenário político e econômico da época. O segundo narrador de Viagens na minha terra, de natureza dramática, ficcional, discorrerá sobre uma história de amor (envolvendo os personagens da casa do vale) iniciada em 1832 e tendo como pano de fundo a luta entre os exércitos de Dom Pedro e Dom Miguel, em plena Guerra Civil. Dom Miguel havia entrado em cena em 1828, aclamado rei de Portugal, depois de ter-se casado com D. Maria, filha de Dom Pedro. Mas o partido da pequena rainha sentiu-se traído, uma vez que Portugal voltou a adotar o regime absolutista. Após haver abdicado do trono em favor da filha, Dom Pedro vai para a Europa, organiza um exército na tentativa de reconquistar o reino perdido. Dom Pedro desembarca nas proximidades da cidade do Porto, em 1832, com apenas 7.500 homens e após dois anos de sangrentas batalhas sairá vitorioso em cima de um exército de 80 mil homens conduzido por Dom Miguel. Garret, juntamente com Alexandre Herculano, integra essa expedição militar. Com Mousinho da Silveira, trabalha na elaboração das leis do novo governo. Em 1933 vai para Paris e depois do fim da guerra civil (Dom Miguel é derrotado em Évora) retorna a Portugal. Será a partir do capítulo 11, que entrará em cena a pequena novela de caráter romântico, narrada em terceira pessoa, tendo como protagonista a figura de Carlos (herói romântico e revolucionário), da inocente Joaninha, da avó Dona Francisca e de frei Dinis. A interlocução passa, no entanto, a se dar com o público formado pelas leitoras, o que demonstra que, para Garret, os assuntos considerados mais sérios, quando assumia o tom da crônica e da crítica social, deveriam ser direcionados aos homens: “Anda assim, belas e amáveis leitoras, entendemo-nos: o que eu vou contar não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão”. (2003, p. 66). De filósofo, que garante não ter sido, numa das sínteses que anuncia o capítulo 11, o autor passa a incorporar nesta pequena novela a figura do poeta, que se dá ao direito de enamorar-se, e assim construir uma narrativa, cuja natureza da trama é perpassada pelo
  • 15. sentido de culpa e pelo destino trágico, bem aos moldes do que se caracteriza o espírito romântico. O fato é que as digressões continuam, mesmo que em menos aparições, guiando o texto de natureza ficcional, pois que o drama vivenciado por Carlos não está relacionado apenas aos seus instintos amorosos, a suas normas e valores perante o código dos amantes. Ele está, mais do que isso, intimamente relacionado com os conflitos de ordem político- social vigentes em Portugal da década de 30, do século XIX. Carlos vai trair os seus dois sustentáculos (a posição de amante e revolucionário), e que o fizeram herói romântico, para se integrar a uma nova fase, que resultaria em profundas mudanças na história de Portugal. Indiferente a tudo, Carlos irá se transformar num barão, figura abominada pelo narrador-cronista, em suas digressões. Mais uma vez, a narrativa em forma de crônica e a novela romanesca estarão se tangenciando no diálogo final entre o narrador e Frei Dinis. O caráter de Carlos já havia sido posto em discussão entre o narrador e um companheiro de viagem sobre o fato de o herói amar, ao mesmo tempo, duas mulheres (a prima Joaninha e a inglesa Georgina). Ali vem apenas a confirmação final de que o narrador já havia dito sobre a configuração dos heróis nos dramas românticos: diante da nova realidade social, eles morrem ou se transformam em monstros, corrompidos pela sociedade, como Carlos. Embora Carlos, ao ser elevado a essa nova esfera social, deixará de ser herói para se integrar à nova sociedade. E para Joaninha, a menina dos olhos verdes da inocência, esse mundo corrompido pelo dinheiro e a ganância só lhe reservará a morte. É importante ressaltar que no final de Viagens na minha terra os dois tempos da narrativa – marcados pela presente viagem do autor a Santarém e pela reconstrução dos episódios da Guerra Civil – assim como dois gêneros utilizados (novela e crônica), se tangenciam na medida em que se dá o encontro hipotético entre o narrador e o personagem Frei Dinis na casa do Vale. E neste diálogo, uma fala do religioso, que representa o conservadorismo, mostra-se reveladora: (...)Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos. Erramos ambos”. (2003, p.250). Mas segundo Lélia Parreira Duarte, “a história de Carlos e Joaninha e outras que se incluem na narrativa não parecem importar tanto quanto o aproveitamento das oportunidades que o texto oferece para as digressões(...) para a desmistificação de certezas
  • 16. com relação à história e outras supostas verdades. Garret mostra nas viagens que a verdade é sempre uma construção que depende de retóricas e dialéticas – exercícios de linguagem – para se afirmar”. (DUARTE, 2003, p.152). Já na coletânea Em busca de Curitiba perdida, Dalton Trevisan também apresenta um narrador sob o ponto de vista da ficção, bem próximo do processo discursivo, como acontece nos contos, e outro em diálogo com a vertente memorialista e com as questões mais atuais da sociedade, numa aproximação com a crônica. Será esse distanciamento da situação ficcional que permitirá um caráter opinativo nos textos considerados híbridos. O autor lançará um olhar reflexivo sobre a cidade, situando-a em dois tempos (embora não revelados às claras), na medida em que irá resgatar e republicar um texto como “Em busca de Curitiba perdida”, escrito na década de 40, ao mesmo tempo em que estará editando, de maneira inédita, outro texto mais atual, como o poema em prosa “Curitiba revisitada”, por ocasião dos preparativos dos 300 anos da cidade. No primeiro, o autor fará uma viagem (sem sair do lugar, diga-se de passagem) ao universo da cidade, e, de pronto, vai eleger espaços e personagens de sua preferência, inscritos numa espécie de inventário pessoal. A Curitiba que o narrador “viaja” é a capital paranaense dos anos 40 e 50, quando a população não passava de 350 mil habitantes, época em que era comum o footing na rua XV de Novembro e nos cinemas. “Para as pessoas que viveram os anos 50 em Curitiba, não seria difícil perceber o quanto e como a cidade foi transformada”, diz Antônio Cesar de Almeida Santos, em Memórias e Cidade”. (SANTOS, 1999). Além disso, o que torna o texto “Em busca de Curitiba Perdida” bastante revelador ao ser republicado nas proximidades dos festejos dos 300 anos não será a visão saudosista e romântica da cidade nas décadas de 40 e 50. Na verdade, o que está em jogo neste caso é uma questão ideológica e intelectual, qual seja, a divisão que o autor estabelece entre duas instâncias - a dos espaços marginais e das pessoas comuns e os espaços ditos “oficiais”, relacionados ao poder seja ele político (não no sentido partidário) ou cultural – e a sua preferência pela primeira. Esta compreensão, no entanto, se torna mais completa quando se tem a leitura de todos os textos híbridos que compõem o livro lançado em 1992, sobretudo a narrativa “Curitiba revisitada”, onde há críticas à Curitiba “enjoadinha” e “para inglês ver” dos anos
  • 17. 90. O desapontamento é o mesmo verificado em Garret, mas aqui noutra direção, não mais no âmbito de um país, mas de uma cidade, cuja paisagem se revela desfigurada como conseqüência das muitas transformações urbanísticas. Se em Garret a interlocução assume o papel de guia, num jogo que visa oferecer caminhos para compreensão de um texto múltiplo, mas interdependente, e que num processo continuum leva o leitor a desembaraçar o fio da meada, em Dalton a interlocução é mais especificamente de caráter irônico. Mesmo porque diferentemente da obra do escritor português, Em busca de Curitiba perdida é estruturada como uma coletânea de textos autônomos, de diferentes épocas, embora em suas relações possam apontar para significações em comum. Em Dalton Trevisan, a ironia vai acompanhar todo o discurso e essa marca, no que tange como contraponto à visão positiva da cidade, propalada principalmente nos meios de comunicação, é bastante evidenciada no próprio lançamento de Em busca de Curitiba perdida, em 1992, no auge dos preparativos para a comemoração dos 300 anos de Curitiba, que ocorreu em 29 de março de 1993. O conceito de ironia se aplica com justeza à publicação já na primeira página de Em Busca de Curitiba Perdida — antes mesmo da folha de rosto (em que está o título, editora e autor da obra) —, do “Hino Oficial de Curitiba”, instituído em 11.05.67, e que tem letra de Ciro Silva e música de Bento Mossurunga. Essa atitude demonstra, já de início, que o livro Em busca de Curitiba perdida teria o propósito de desconstruir o discurso positivo dos festejos dos 300 anos; afinal de contas o que se verá nos textos a seguir não será a imagem do narrador alçando vôo nas asas de uma cidade descrita como jardim de rosa e de luz, como nos mostra o “Hino Oficial de Curitiba”. Será, no entanto, em “Curitiba revisitada” (uma citação de “Lisbon Revisited” de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa) que o autor fará uma crítica mais incisiva à cidade que perdeu a medida, colocando em xeque os títulos de “cidade modelo” (“ai da cólera que espuma os teus urbanistas/ apostam na corrida de rato dos malditos carros/suprimindo o sinal e a vez do pedestre(...) ( GARRET, 1992, p.87) ou de “capital ecológica” (“não me venham de terrorismo ecológico/ você que defende a baleia
  • 18. corcunda do pólo sul/cobre os muros de pegadas do besteirol tatibitate/grande protetor da minhoca verde dos Andes(...)”. (1992, p.87). Quanto aos textos de caráter mais ficcionais, se em Garret mesmo na novela romântica o narrador se apresenta em perspectiva crítica, em Dalton os personagens são revelados em sua incomunicabilidade, em suas relações afetivas marcadas pelo sistema patriarcal predominante nas décadas de 40 e 50. Na realidade, o que vai diferir Dalton dos novelistas clássicos será a intenção de transformar a pessoa comum num herói, mesmo que às avessas, e assim retratar o que está em jogo nas rede de sociabilidades no espaço público e privado num momento específico da história de Curitiba. Embora esses “heróis” do cotidiano ganhem voz na estrutura narrativa, nota-se que eles são revelados em sua condição, sem qualquer olhar de complacência. 4 TRADIÇÃO E MODERNIDADE Tanto em Viagens na minha terra como na obra Em busca de Curitiba perdida há uma preocupação em resgatar ou pelo menos buscar a manutenção de valores e tradições culturais numa sociedade em rápida transformação. Em Garret, o que está em jogo são as mudanças provocadas pelo progresso, pelo materialismo advindo da implantação do sistema liberal; em Dalton as reformas urbanísticas que mudaram a paisagem e as redes sociabilidades na capital paranaense. Em sua receita de como escrever um romance, Garret em tom de ironia e com desfaçatez revela o que importa num livro como Viagens...: “Cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, a pintura, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isto é trabalho difícil, longo, delicado (...).” (GARRET, 2003, p. 34). Será justamente este o rumo que tomará o autor nessa viagem, em que tentará reafirmar ou até mesmo resgatar a história de Portugal, através dos contos e personagens populares, e da valorização da memória dos nobres, além de passar a limpo sua filiação à
  • 19. história da literatura, desde os clássicos. E neste contexto de respeito pelas tradições do povo, o desapontamento de Garret será ainda maior quando da chegada a Santarém. Ali, o que o narrador irá encontrar é uma cidade completamente destruída, túmulos de reis profanados, e heróis esquecidos, entre eles o Alfageme de Santarém. “Nada pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou menos anacronismo, uma leva base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do célebre cutileiro-profeta, que a história herdou das crônicas romanescas, e hoje o romance outra vez reclama da história” (2003, p.203). Isto sem falar no desmantelamento do sistema educacional português e do gosto duvidoso que se instaurou no campo da arte. Vale destacar que no século XIX, enquanto a Inglaterra estava às voltas com a Revolução Industrial, Portugal ainda se configurava como um país pobre, sem indústria, ainda ignorando a máquina a vapor, e com um sistema medieval de propriedade. Mas após o período de Guerra Civil, entraria numa nova fase de transformações tecnológicas, o que podia se antever na macadamização das vias de transporte e na implantação de um sistema ferroviário. Conforme revela nota de referência, na altura em que Garret escrevia Viagens na minha terra o governo português tomava medidas para abrir o primeiro caminho de ferro, inaugurado em 1856. O ceticismo do autor quanto à implantação das novas tecnologias é reforçado no final do livro ao mesmo em que novamente vai dirigir duras críticas à classe dos barões: “Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura, porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal!” (2003, p.251). Conforme define Elena Losada Soler, o romântico é um homem cindido, e com ele começa a dispersão do eu na multiplicidade. “Entre as muitas cisões ocupa um lugar fucral a que o dilacera entre os restos do sonho arcádico e a realidade de um futuro que o afasta da natureza, aquilo que Garret definiu como o Adão Natural versus o Adão social”. (SOLER, 2003, p. 184). Para a autora, o personagem Carlos de Viagens na minha terra é construído desde o início como uma espécie de alter ego do autor, no que tem de múltiplo e contraditório principalmente no relacionamento afetivo. Quanto às suas posições políticas, embora o
  • 20. Garret tenha investido o tempo todo contra a classe dos barões, mais tarde não se furtará em receber o título de visconde. Por outro lado, essa mesma tese da multiplicidade encontra ressonância no projeto estético de Garret, nos procedimentos de composição utilizados no romance Viagens..., pois que a combinação de diferentes gêneros, inclusive a ocorrência de uma novela dentro de uma crônica de viagem e social, assim como as diferentes perspectivas da narrativa e interlocuções com o leitor demonstram um forte diálogo com a modernidade. Neste sentido, a coletânea Em busca de Curitiba perdida também aponta para a direção das técnicas mais modernas de composição textual. Da mesma forma, o sujeito que pensa a cidade e a voz manifestada nos textos híbridos vêm marcados pela contradição, como a própria essência da modernidade. Os textos enunciam a dicção de um sujeito que nega, a certa altura, as sucessivas transformações urbanas que vão pôr em xeque a noção de identidade e de pertencimento dos indivíduos no convívio social. Dalton também vai buscar preservar o passado, mas não tão remoto, visto que pretende presentificar na memória a sua Curitiba dos anos 40 e 50. Mas não se pode afirmar que o autor é contra o sujeito moderno. Mesmo porque a construção do seu projeto literário, que se insurge contra o modelo simbolista, assim como o enredo e personagens em sua obra, se nutrem da natureza da própria modernidade e no que ela carrega, em si, de paradoxal. Isto posto, o espaço da cidade é visto em seu aspecto positivo como ponto de aglomeração, de sociabilidades. Assim como Baudelaire, Dalton compõe um discurso marcado pelo lirismo para representar o universo de personagens que circulam pelas ruas da cidade. E vai mais além, ao trazer também para a sua ficção as mazelas da união conjugal e a incomunicabilidade que permeiam as relações no universo sacrossanto do lar. Enquanto Baudelaire vai compor a sua lírica a partir do cortejo heróico dos dândis, flâneurs, apaches, lésbicas, proletários e prostitutas da Paris da segunda metade do século 19, Dalton Trevisan vai “cantar” a realidade dos indivíduos dos bairros periféricos, das diversões populares, que freqüentam os bares e “inferninhos” de uma Curitiba provinciana, em fase de transformação. Em Baudelaire assim como em Dalton, a natureza desse espaço, que começa a sofrer bruscas mudanças, vai se refletir, a partir de um determinado momento, num eu
  • 21. cindido, que antevê um futuro menos glorioso para a cidade, e que nos permite pensar na modernidade tardia, representada pelo esvaziamento e a degradação das áreas centrais, da rua apenas como ponto de passagem do automóvel, das aglomerações humanas reduzidas aos condomínios fechados e aos shoppings-centers. Essa contradição da modernidade, em Baudelaire, aparece com muita clareza no poema “O cisne”, no qual o poeta utiliza-se da metáfora do cisne — que no lugar de uma antiga fonte vai se deparar com “ásperas lajes” — para bem caracterizar o processo de modernização da velha Paris. “Fecundou-me de súbito a fértil memória, /Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel. Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/Depressa muda mais que um coração infiel.” BAUDELAIRE, 1985, p.325). Assim como em Baudelaire, as transformações urbanas da cidade, a certa altura, também vão afetar, sobremaneira a ficção de DT. Mas esse posicionamento contra o que se poderia chamar de modernidade tardia se revela em DT principalmente nos textos híbridos, uma vez que nos contos predomina o espaço da cidade em seu aspecto positivo, no sentido da aglomeração e da possibilidade do convívio social intenso, para o bem e para mal, entre os personagens. A exceção nos contos, no entanto, fica por conta de textos como “Cemitério de elefantes” e “Uma vela para Dario”, onde se denuncia a degradação do espaço como organizador da vida do sujeito. Nos textos híbridos, aquele que mais representa o eu cindido do narrador frente às súbitas transformações da cidade é “Curitiba revisitada”. Nesse texto, DT vai denunciar o espaço urbano apenas como ponto de passagem, a partir da abertura de novas ruas e o aumento da velocidade dos veículos que cruzam a cidade. Como diz Richard Sennett, em Carne e pedra, o espaço urbano, na contemporaneidade, é marcado pela experiência da velocidade, do corpo que se move passivamente para destinos descontínuos e fragmentados. “O espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos através dele ou nos afastamos dele”. (SENNETT, 2001, p.17) Sennett continua, observando um fenômeno que compreende as redes de sociabilidades nos novos tempos:
  • 22. A massa de corpos que antes aglomerava-se nos centros urbanos hoje está dispersa, reunindo-se em pólos comerciais, mais preocupada em consumir do que com qualquer outro propósito mais complexo, político ou comunitário. Presentemente, a multidão sente-se ameaçada pela presença de outros seres humanos que destoam de suas intenções. (2001, p.17). A verdade é que a partir da década de 60, do século passado, Curitiba experimentou um acelerado crescimento, perdeu a medida da província e, nela, o narrador não se vê, não mais se identifica. O mesmo ocorrerá com Garret ao vivenciar uma viagem onde a perda da memória coloca em xeque a própria noção de identidade anunciada pelos novos tempos. REFERÊNCIAS BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Bauru: Edusc, 1999. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 325. Ver. CERDEIRA DA SILVA, Teresa Cristina. De viagens e viajantes. In: MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um romântico, um moderno. v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia romântica e modernidade em Viagens na minha terra. In: MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um romântico, um moderno. v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal: Estudos de factos sociocultural. Lisboa: Livros Horizonte, 1993. GARRET, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade – Psicanálise mítica do destino português. 3 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
  • 23. MARTINS, Wilson. Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan. Revista Joaquim, n. 14, edição fac-similar, p. 7. MUECKE, D.C. Ironia e irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995. NICOLATO, Roberto. Literatura e cidade: O universo urbano em Dalton Trevisan. Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado) – UFPR. SANTOS, Antônio César de Almeida. Memórias e Cidade. Depoimentos e Transformação Urbana em Curitiba (1930-1990). 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. SENNETT, Richard. Carne e pedra. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. SOLER, Elena Losada. A construção de Carlos como herói romântico em Viagens na minha terra. In: MONTEIRO, Ofélia Paiva Monteiro; SANTANA, Maria Helena. Almeida Garret – um romântico, um moderno. v I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. TREVISAN, Dalton. Em busca de Curitiba perdida. Rio de Janeiro: Record, 1992. __. Minha Cidade. Joaquim, n. 6, nov. de 1945, edição fac. similar. Curitiba: Coleção Brasil Diferente, Imprensa Oficial do Paraná, 2000.