Como preparar adultos autistas para a vida independente
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Adriana Vazzoler-Mendonça
Psicóloga, Arquiteta e Urbanista, com especialização em Gestão da Qualidade e em
Gestão de Negócios. Docente de pós-graduação, atua em clínica com neurofeedback e
atenção a pessoas com Altas Habilidades/Superdotação e seus familiares, gestores e
professores.
Porque crianças crescem! - Aspectos da vida adulta com autismo
O objetivo deste texto é pontuar alguns aspectos da vida do adulto com autismo,
dado que as famílias passam poucos anos cuidando de crianças, mas passarão décadas
convivendo com seus adultos autistas. Considerando que as deficiências são do
ambiente, os graus de autonomia, independência e competências que a pessoa com
autismo poderá alcançar depende inicialmente dos adultos que a acompanham,
familiares, educadores, psicólogos, médicos e demais profissionais da saúde, líderes de
sua religião de escolha e outras pessoas que a influenciam, como irmãos e amigos.
Mesmo com os avanços da ciência e tecnologias assistivas, ainda há na sociedade
barreiras atitudinais, as barreiras subjetivas dos comportamentos que limitam o
desabrochar das competências das crianças, adolescentes e adultos com ou sem
necessidades especiais.
Os primeiros anos
A preparação da qualidade da vida de um adulto com autismo começa na infância.
Geralmente são os familiares e os profissionais da educação infantil que percebem que o
desenvolvimento da criança está diferente, seja pela comunicação, pela interação social
ou pela escolha das atividades. A partir daí inicia-se o processo de busca de uma
explicação, um diagnóstico, que pode, em alguns casos demorar anos, dada a
variabilidade de sintomas e sinais que possam ser considerados dentro do espectro
autista. Enquanto isso, mesmo sem saber o nome do que a criança tem, familiares e
educadores mudam seu comportamento. Nesse momento, nascem os familiares e os
professores de uma criança com necessidades especiais.
O instinto de proteção do filhote fala mais alto e, mesmo sem saber de que tipos de
apoios, acomodações e adaptações ele irá precisar, familiares e educadores podem dar
início a uma relação obstrutiva do desenvolvimento de autonomia e independência que o
prepararia para a vida adulta. Vale lembrar que não existe “o autista” ou um
comportamento autista padrão, mas sim uma gama muito ampla de traços de
comportamentos que têm sido chamados de Transtornos do Espectro Autista (TEA).
Como este assunto está em plena ebulição na comunidade científica, pode-se esperar
que, nos próximos anos, muita coisa venha a ser descoberta, conceitos abandonados,
mitos e estigmas dissolvidos e rótulos extintos.
Devido às infinitas possibilidades de comportamentos de uma pessoa dita autista, e
devido aos avanços das pesquisas e descobertas desse assunto, não é raro encontrar
sujeitos que descobrem que têm autismo na adolescência, na idade adulta e alguns até
depois de se tornarem idosos, ou quando estão investigando o autismo em algum filho ou
neto. Ainda, pessoas com autismo podem ter altas habilidades/superdotação (AH/SD), o
que lhes confere rendimento escolar e no trabalho superior às pessoas de sua idade,
região geográfica e meio socioeconômico. A presença de alto desempenho, talento,
habilidade ou potencial, ocorrendo em conjunto com alguma desordem psiquiátrica,
educacional, sensorial e física pode ser definida como "dupla-excepcionalidade"
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(PFEIFFER, 2013 apud ALVES e NAKANO, 2015) e pode camuflar ou confundir os sinais
de autismo, resultando em diagnóstico tardio.
Os irmãos
A grande missão dos familiares de autistas é prepará-los para o mundo e para
cuidarem de suas vidas quando estiverem sozinhos. Dos cuidadores da criança autista,
os adultos de hoje, é esperado que morram antes dela. Há também casos de crianças e
adolescentes autistas que ficam sozinhos porque são tirados da família por decisão
judicial, por crimes cometidos pelos adultos, e vão para abrigos, ficando à espera da
recuperação de seus responsáveis ou da adoção. Assim sendo, em algum momento da
vida, toda criança, adolescente, adulto ou idoso com autismo se verá sozinho.
Nessa fase, seria bom eles poderem contar com os irmãos, mas a qualidade dessa
convivência será aquela que foi possível ser desenvolvida por eles. Mesmo que eles já
estejam casados, e que haja cunhados e sobrinhos, o lugar do irmão não pode ser
ocupado por seu cônjuge ou filho. Como fator de proteção, cabe aos pais, ou quem
desempenha essa função no presente, promover a amizade e fortalecimento dos laços
entre irmãos, primos e amigos da criança com autismo.
Os irmãos da criança com autismo podem se sentir impactados pela redução da
atenção dos familiares, quando estes se voltam para as necessidades da criança em foco.
Conforme a estrutura de personalidade de cada um, a resposta dos irmãos pode ser um
amadurecimento precoce, aprendendo a se virar sozinhos e ajudando os pais, assumindo
mais responsabilidades do que o necessário ou o compatível com sua idade. Pode
ocorrer que algum irmão, inconscientemente, busque a atenção dos pais adoecendo,
manifestando rebeldia, dificuldades de aprendizagem ou qualquer outro comportamento
que atraia para si os cuidados que acredita ter perdido ou considera que está em
desigualdade em relação ao irmão autista. Irmãos podem transferir para o autista seus
traumas de abandono, de não terem suas necessidades atendidas pela família, na forma
de recusa a ajudar a cuidar do irmão neurodivergente, a sair junto com ele, a serem
amigos, tratando-o com hostilidade ou indiferença. Na adolescência, os ânimos podem se
exacerbar e, na adultez, podem se dar conta de que são estranhos um ao outro.
Há também irmãos que abraçam a causa dos irmãos autistas, mas acabam
superprotegendo-os, seja por imitação dos pais superprotetores ou por compensação de
pais que não conseguem suprir as necessidades especiais dos filhos. Se à primeira vista
relacionamentos assim parecem ser amorosos, não é saudável para nenhuma das partes:
nem para as crianças ou adolescentes que ‘adotam’ seus irmãos autistas quase como se
fossem seus filhos, nem para os ‘adotados’, que podem ser protegidos ou poupados em
demasia, comprometendo o desenvolvimento de sua identidade, responsabilidades,
autonomia e independência.
Essas situações podem ocorrer combinadas e podem ser proporcionalmente
intensificadas quando há mais que um irmão autista na casa. Quanto mais cedo os
familiares souberem disso, melhor eles poderão orquestrar essas relações, de forma que
desenvolva a autonomia e independência de todos, mas com cuidados mútuos entre os
membros da família. Irmãos mais novos, mais velhos e de outros relacionamentos
também podem mostrar à criança com autismo que ela pode cuidar de alguém,
competência que será bastante útil para fazer amigos, trabalhos escolares em equipe,
namorar, trabalhar em empresas, viajar e educar seus próprios filhos.
As emoções
As dinâmicas familiares vêm sempre inundadas de emoções pois, onde há
relações, há emoções. Vale ressaltar que quando a prioridade é o desenvolvimento da
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autonomia e independência da pessoa com autismo, isso passa por desenvolvimento de
habilidades sociais e de inteligência emocional, e a indicação desse aprimoramento pode
se estender a todos os membros da família. Tudo o que favorecer a capacidade da
pessoa com autismo de identificar e nomear as emoções e suas transcendências será
bem vindo, porque saber o que se está sentindo e poder escolher entre manter ou mudar
seu estado emocional é muito saudável e organiza as funções executivas, o raciocínio
superior. Segundo Li et al (2016), com terapias integrativas como as Mandalas das
Emoções, as emoções como raiva e ansiedade podem ser equilibradas com aceitação e
compreensão; euforia e fantasia, com compaixão e fé; preocupação e obsessão, com
gratidão; tristeza e melancolia, com entusiasmo e alegria; medo, susto e fobia, com paz,
harmonia e confiança.
A presença e o olhar do outro
Mesmo quando a pessoa apresenta o que se diz ser autismo severo, recomenda-
se que os familiares e educadores ofereçam todas as atividades próprias de sua idade,
tudo que as outras pessoas de desenvolvimento típico estejam fazendo, seja o brincar
quando criança, os passeios com amigos na adolescência e assim por diante. Para os
profissionais da saúde, até o momento, ainda não há como saber o quanto as pessoas
com autismo realmente aproveitam de sua interação com o ambiente e com outras
pessoas, e o quanto isso pode favorecer seu desenvolvimento.
Segundo Bly (1991), há uma ativa troca de informação entre as células do corpo
das pessoas que estão realizando algo juntas, quer estejam brincando, conversando,
estudando, pescando, jogando videogame, ou simplesmente em dedicada e silenciosa
companhia uma da outra.
Na maioria das culturas tribais, pais e filhos vivem numa divertida tolerância
mútua. O filho tem muito a aprender, e por isso ele e o pai passam horas juntos,
tentando (e fracassando) fazer pontas de flechas, ou consertar uma lança, ou
rastrear um animal esperto. Quando pai e filho passam longas horas juntos, o que
alguns deles ainda fazem, poderíamos dizer que uma substância, quase como
alimento, passa do corpo mais velho para o mais jovem. A mente contemporânea
poderia desejar descrever o intercâmbio entre pai e filho como uma aproximação
de atitudes, uma imitação, mas eu creio que ocorre uma troca física, como se uma
substância estivesse passando diretamente para as células. O corpo do filho —
não a sua mente — recebe, e o pai fornece, esse alimento, em um nível muito
abaixo da consciência. O filho recebe uma cura, não por imposição das mãos,
mas do corpo. (...) Agora, junto do pai, ao consertar pontas de flechas ou arados,
ou lavar pistões na gasolina, ou cuidar do parto junto de animais, o corpo do filho
tem a oportunidade de se reafinar. (...) Tanto as células masculinas como as
femininas encerram uma música maravilhosa. (BLY, 1991, pp.88-89)
O filme sobre Temple Grandin (2010), Engenheira Agropecuária estadunidense e
autista, mostra que sua mãe não se rendeu aos prognósticos médicos dos anos 1950 e,
mesmo diante de uma criança não-verbal, lia em voz alta para a filha, contava histórias,
conversava e, quando chegou à idade escolar, levou-a para uma escola regular. Schmidt
(2012) defende que o cinema, como um meio de comunicação e formação de conceitos,
mostra nesse filme que uma pessoa com autismo pode até compreender o mundo e
funcionar de maneira diferente da média da população, mas todos têm capacidades e
potencialidades a serem desenvolvidas – quando os neurotípicos assim o permitem.
A necessidade de autonomia e independência para exercer seus direitos e deveres
na sociedade não varia nem depende – é lícita e universal. Daí a importância do olhar
positivo e inclusivo dos familiares, educadores, terapeutas e gestores, para prover as
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ferramentas com as quais as pessoas com autismo poderão abrir estradas, construir
pontes e prosperar em suas vidas.
Tomada de decisão apoiada
Apesar de a missão parecer grande, as famílias não estão sozinhas. A Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (BRASIL, 2015) inaugura uma
nova era para os direitos das pessoas que têm transtornos do espectro autista. Não é o
diagnóstico de autismo que lhes torna pessoas com deficiências, mas sim as dificuldades
de natureza física, mental, intelectual e sensorial na interação com o mundo, por pelo
menos dois anos de forma ininterrupta. Segundo essa filosofia, dificuldades podem ser
superadas e a pessoa pode deixar de se considerar pessoa com deficiência a qualquer
momento, mas enquanto precisar de apoios, acomodações e adaptações, a LBI está em
vigor para defender seus direitos.
Além de assegurar seu direito ao atendimento prioritário, direito à vida, à
habilitação e reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho –
independentemente da Lei de Cotas (BRASIL, 1991) –, à assistência social, à previdência
social, à cultura, esporte, turismo e lazer, ao transporte e mobilidade, à acessibilidade, à
informação e comunicação, à tecnologia assistiva, à participação na vida pública e
política, à ciência e tecnologia, à justiça, e à tutela e curatela quando não puderem
exprimir sua vontade, a LBI traz o conceito de tomada de decisão apoiada, extinguindo a
prática de se interditar as pessoas com alguma dificuldade cognitiva ou sensorial, com a
justificativa de que ela não consegue tomar decisões.
No processo de tomada de decisão apoiada, a pessoa com autismo elege duas
pessoas idôneas e de sua confiança para ajudá-la nos mais diversos âmbitos da vida e
cidadania, e os três assinam um instrumento emitido por um juiz. Dessa forma, a pessoa
com autismo pode comprar, vender e doar bens e direitos, investir dinheiro e resgatar
investimentos, constituir sociedade, receber heranças, casar-se e divorciar-se, ter filhos
biológicos ou adotivos, doar sangue, órgãos, tecidos e medula, votar e exercer todos os
demais direitos civis, tendo o aconselhamento e orientação das pessoas de sua confiança
que se comprometeram a fazê-lo.
A LBI ainda é muito nova, mas quanto mais for utilizada, mais oportunidades de
aperfeiçoamento haverá. Nesse cenário, é recomendado que os familiares se inteirem de
todos os direitos já conquistados pela LBI, mesmo que autismo não seja considerado
tecnicamente uma deficiência, mas uma condição neurológica diferente, que requer
atenção especial para alguns processos da vida. Tal como propõem Alcântara, Cordeiro e
Ramalho (2016), a pessoa com autismo deve ser apresentada às práticas de
autoadvocacia, fundamentadas no princípio “Nada sobre nós sem nós” criado na África do
Sul por William Rowland em 1986 e adotado no mundo todo por movimentos de pessoas
com deficiências ou quaisquer necessidades especiais (SASSAKI, 2007). Alinhados com
o que pontua Sassaki (2007, p.8), “Nenhum resultado a respeito das pessoas com
deficiência haverá de ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com
deficiência”. Esse princípio vale também para as pessoas com autismo, para que elas
protagonizem seus processos de inclusão na escola, no trabalho e em qualquer atividade
nesta sociedade, que está dando seus primeiros passos rumo à compreensão sobre o
que significa a inclusão de todos.
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Referências
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