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  AUTORRETRATOS CONTEMPORÂNEOS: REVELANDO UMA “IDENTIDADE-
          IDEM” OU SUBVERTENDO A LÓGICA DO ESPELHO?


                                                              Karine Gomes Perez – UFSM


Resumo

O presente texto1 aborda o subgênero do autorretrato, a partir de suas características no
Renascimento, estabelecendo-se um contraponto entre essas produções e as práticas
contemporâneas, as quais levam a ideia de autorretrato aos seus limites. Além disso, o texto
menciona autorretratos de artistas legitimados para fundamentar e discutir esse tipo de
produção. Por último, são tecidas considerações acerca da prática artística pessoal,
resultante de pesquisa realizada no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – UFSM,
a qual envolve a produção da série “(Re)Configurações do eu”, cuja proposta consiste em
investigar o processo artístico de criação de autorretratos fotográficos, analisando as
possibilidades de (re)configurações identitárias nele envolvidas.

Palavras-chave: autorretrato; arte contemporânea; (re)configurações do eu.


Resumen

El texto trata sobre el autorretrato, comenzando por sus características en el Renascimiento
y estableciendo un contrapunto entre estas producciones con las del arte contemporáneo.
Por último, son hechas consideracion acerca de la práctica artística personal, cuya
propuesta consiste en investigar el proceso de creación de autorretratos fotográficos,
analizando las posibilidades de (re)configuraciones identitárias implicadas en el proceso.

Palabras clave: autorretrato; arte contemporáneo; (re)configuraciones del yo.



Introdução

Autorretratar-se é um ato referente à produção da imagem do artista realizada por
ele próprio. Se observarmos obras do Renascimento ao Neoclassicismo,
percebemos que o foco de interesse, em grande parte dos autorretratos, centra-se
na semelhança física do autor, principalmente nos aspectos do rosto. Por isso,
nesse caso, metaforicamente, o ato de autorretratar-se pode ser comparado a um
espelho fidedigno, ao refletir as peculiaridades e a “identidade-idem2” do retratado.

Mas, essa coincidência entre autorretrato, “identidade-idem” e espelho continua
regendo a produção contemporânea de autorretratos ou acaba por ser subvertida?
Se a segunda hipótese for aceita, as produções contemporâneas, que tomam o
autor como referente, continuariam a ser denominadas “autorretratos”? Como a série
“(Re)Configurações do eu”, realizada por mim, aproxima-se da ideia de autorretrato?
3785



Breve percurso do autorretrato na arte: relações com o espelho e a identidade

Na tentativa de responder às perguntas lançadas, é preciso rememorar que o
subgênero do autorretrato apresenta uma tradição no percurso da História da Arte
Ocidental, obtendo notoriedade a partir do Renascimento, mesmo que, desde a
baixa Idade Média, artistas já houvessem incluído suas imagens em cenas
religiosas. A consolidação do autorretrato no âmbito artístico, a partir do
Renascimento, pode ter acontecido em decorrência do afastamento entre a atividade
artística e os preceitos religiosos, valorizados no período medieval; assim, o ser
humano e a noção de indivíduo tornam-se focos crescentes das preocupações
sociais e do imaginário dos artistas. Por esse motivo, desde então, o retrato e o
autorretrato passaram a ser amplamente produzidos pictoricamente de maneira
realista ou idealizada, inclusive porque o advento da fotografia não havia ocorrido.

No Renascimento, a difusão de retratos e autorretratos supriu os anseios da corte e
da burguesia urbana. Tais necessidades consistiam, segundo Botti (2005), em
lançar suas imagens como um símbolo de poder, já que a confecção de um retrato
custava um valor alto. Por isso, os artistas eram contratados para pintar as pessoas
ilustres de sua época, sendo o autorretrato produzido nos momentos em que o
artista não tivesse modelos para retratar, com a finalidade de mostrar sua habilidade
artística aos possíveis clientes. Além disso, o ato de retratar-se concede ao artista,
antes mero artesão, certo status social, já que passa a figurar ao lado de pessoas
importantes, a partir do momento em que ambos são retratados por meio da pintura.

Destarte, percebe-se que, desde o contexto histórico Renascentista, o autorretrato
operava como uma espécie de espelho, pois buscava refletir a identidade física do
artista, assim como a sua visão da arte e do contexto no qual se inscrevia. O
autorretrato tinha por objetivo mostrar as particularidades do artista, afirmando e
identificando sua fisionomia em diversas configurações; é repleto de um sentimento
de cumplicidade com o objeto fotografado.

Essa característica motivou muitos artistas, sendo perceptível na obra do holandês
Rembrandt (1606-1669), que realizou uma ampla gama de autorretratos. Suas
produções envolviam a pintura, o desenho e a gravura, meios através dos quais
retratou-se em diversos momentos da vida (figura 01), procurando apreender as
expressões fisionômicas, quem sabe como forma de afirmar-se enquanto sujeito.
3786




 Figura 01: Rembrandt, Autorretrato, 1669. Fonte: http://manuel.cerezo.name/archives/2006_08.html


Os modos de produção artística do autorretrato começam a se transformar, de
maneira mais visível, a partir das modificações sociais e tecnológicas ocorridas na
segunda metade do século XIX, responsáveis pelo advento fotográfico, o qual
alterou o modo com que o sujeito visualiza o mundo e a si mesmo. A fotografia
possui capacidade de reproduzir com suposta exatidão o que é visto pelo olho.
Dessa forma, libera a pintura do compromisso mimético com a realidade,
possibilitando ao artista operar alterações na imagem produzida de si mesmo e dos
outros. A fotografia, então, abre novos caminhos à pintura, cujo resultado consiste
nas vanguardas modernas, representadas por artistas de variadas nacionalidades,
os quais, em sua grande maioria, produziram, além de outros tipos de trabalhos,
autorretratos. Tais artistas desenvolveram deformações e ênfases formais que
afastavam o autorretrato da realidade física, mas serviam para demonstrar a
expressividade e a singularidade do artista, valorizados na arte moderna.

Autorretrato e arte contemporânea

Diferentemente do autorretrato produzido ao longo da história, os artistas
contemporâneos atribuem-lhe novos conceitos, construindo-o não mais com a
intenção de copiar a aparência física de seu autor, mas como forma de questionar a
identidade ou de produzir estranhamento no artista e/ou no público.

Segundo Freud (1996), pensamos que algo é estranho por não ser conhecido e
familiar, todavia, nem todo o desconhecido causa-nos desconforto. Para ele, o
3787



estranho é algo que nos remete ao conhecido e familiar, mas permanece oculto e,
de repente, vem à luz. Quando acontece em nossas vidas algo que parece confirmar
as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação de estranhamento; contudo,
para ele, a ficção oferece mais oportunidades para criar essa sensação do que a
vida real. Por isso, a arte, como forma de ficção, e o autorretrato, como uma das
maneiras de lidar com o familiar na arte contemporânea, acabam por englobar seu
aparente oposto: o estranhamento, em razão de o artista visualizar seu próprio
corpo, tão familiar, transmutado em imagem bidimensional. Além disso, essa
sensação        de     estranhamento,           contida      em      grande       parte     dos      autorretratos
contemporâneos, pode ocorrer porque, neles, o artista revela de si apenas o
oportuno, até mesmo forjando outra identidade ou assumindo várias.

Uma artista que assume várias identidades em seus autorretratos, os quais causam
estranhamento, é Cindy Sherman, em virtude de se relacionarem com a questão da
ficção/encenação.           Ela     fotografa-se        desde       os     anos      de     1970,      encenando
personagens, conforme constata-se na figura 03, na qual ela se fotografou em
estúdio com o uso de roupas, acessórios, peruca e maquiagem. O cenário
apresentado no plano de fundo foi fotografado separadamente e inserido
posteriormente em seu autorretrato, apontando para a falta de veracidade e
artificialidade da imagem fotográfica.




Figura 03: Cindy Sherman, Untitled #466, 2008. Fonte: http://www.culturaitalia.it/pico/modules/event/it/event_1408.html
3788



Com base em produções desse gênero, é possível concordar com Canton (2001), a
qual afirma que os artistas atuais utilizam o autorretrato na produção de sentido de si
e na subversão de sua tradição, recriando-o. Para a autora, se o autorretrato
reivindicar identidade, produzirá estranhamento, comparável à sensação de olhar o
rosto familiar no espelho e não o reconhecer.

Talvez, por esse motivo, a ideia de autorretrato, entendido como sinônimo de
veracidade, seja questionada por muitos artistas, pois, nem mesmo se pensarmos
que o autorretrato é produzido com base na imagem do artista refletida em espelhos,
nos depararemos com uma imagem verossímil do retratado. Tal afirmativa é
coerente com as concepções de Fabris (2004), a qual menciona que o espelho
parece revelar ao indivíduo sua própria identidade, mas, ao mesmo tempo,
confronta-o com a evidência de que a unidade do “eu” é ilusória. Em razão dessa
evidência, frente ao espelho, é criada no sujeito uma cisão entre o indivíduo refletido
na superfície especular e o sujeito que percebe essa imagem. Assim, para Fabris, o
espelho coloca em crise a crença numa identidade unitária e transforma-se num
objeto de conhecimento, fazendo com que o sujeito seja capaz de pensar sobre a
relação existente entre seu “eu” e a própria imagem refletida.

Essa situação ocorre, inclusive, porque nosso rosto, assim como as identidades,
está em constante estado de mutação, seja em decorrência da idade, das emoções
ou das variações luminosas às quais nossos traços ficam expostos. Nesse sentido,
Manguel (2001) aponta que cada célula do corpo humano renasce em ciclos de sete
anos, colocando-nos na condição de estarmos sempre em processo de tornarmo-
nos alguém. Para o autor, quando pensamos ter captado nossas feições num
reflexo, elas já se transformam em outra coisa que empurra o “eu” para o futuro.

De tal modo, o espelho revela a aparência do “eu” como algo diferente e externo. Ele
funciona como um “duplo” do sujeito ao repetir e duplicar sua imagem no momento
de refleti-la; todavia, não é produtor de uma réplica perfeita do sujeito que se olha,
por mostrar somente seu efeito luminoso espelhado numa superfície: a produção
efêmera da aparência de si mesmo, podendo constituir-se como “outro” de “si”. Esse
“outro” refletido num espelho origina-se a partir de um indivíduo, mas não adquire
autonomia em relação ao sujeito que fundamentou a sua gênese, pois o reflexo não
pode manter-se enquanto imagem sem a presença do sujeito que o fundou.
3789



Fabris (2004, p. 168), ao discorrer sobre esse outro refletido no espelho, comenta: “o
outro não é apenas o que se afirma como diferente do eu, exterior a ele. O outro faz
parte do eu que se coloca diante do espelho e que, por esse gesto, descobre ser
impossível uma visão direta da própria identidade (exterior)”. Portanto, tal como os
reflexos gerados em espelhos, o que se pode chamar de autorretrato é “um outro”,
pois a imagem de si, presente nessas produções, não apresenta exatidão em
relação ao sujeito externo ao espelho, que é transitório.

Esse processo também pode ocorrer porque um sujeito, como parte do mundo
tridimensional, ao transmutar-se em imagem na superfície plana do espaço
bidimensional, acaba colocando em cheque a ideia do autorretrato como cópia e
repetição incansável da imagem do artista. Conforme Aumont (2006), o duplo 3
perfeito não existe, por haver, entre duas fotocópias do mesmo documento,
diferenças que permitem distingui-las, embora pequenas. Isso aponta para a
capacidade de a imagem criar ilusão, sem o objetivo de gerar réplicas, mas imagens
duplicadoras das “aparências”. Assim, permanece uma impossibilidade de analogia
completa entre o autorretrato e a figura do artista.

Talvez por isso, para Canton (2001), o autorretrato contemporâneo não se construa
como mera representação narcísica de seu autor. Quando a autora expõe esse
afastamento do narcisismo no autorretrato contemporâneo, mesmo sabendo-se que
é impossível generalizar nossas considerações acerca dele, em razão da
diversidade das produções artísticas atuais, é possível concordarmos, em parte,
com ela, pois o termo narcisismo, advindo do campo psíquico e embasado no mito
grego de Narciso, possui diversas interpretações.

De acordo com o sentido proposto por Lasch (1983), o narcisista é alguém que
busca   viver   o   presente,   concentrando-se        no   seu   próprio   bem-estar   e
autossatisfação. Ele tenta fugir do anonimato que permeia a vida cotidiana,
sonhando com a fama. Trata-se de uma pessoa com repúdio ao espírito lúdico, o
qual pressupõe certo distanciamento do “eu”, que vai de encontro ao seu
egocentrismo. Portanto, o indivíduo narcisista permanece centrado somente em seu
reflexo, como um prisioneiro da paixão por si, ato capaz de levá-lo metaforicamente
à morte, já que considera seu “eu” como única realidade existente.
3790



Tal centralização do indivíduo em torno de si relaciona-se com o autorretrato, à
medida que aconteça, por parte do artista, uma busca por sua semelhança física na
construção do autorretrato. Isso difere, de certo modo, do ocorrido com grande parte
da produção contemporânea de autorretratos, pois, a partir do momento em que o
artista oculta sua aparência física ou forja outras identidades, ele distancia-se, quem
sabe, da vaidade, da ilusão das aparências e da superficialidade.

Muitos artistas contemporâneos trabalham suas próprias imagens, mas geralmente
não se seduzem por elas como o narcisista, deixando de permanecer somente
centrados nas aparências que demonstram a paixão por si. Nesse sentido, muitas
vezes, a imagem produzida não revela a identidade do sujeito retratado. Essa não
identificação pode ocorrer de variadas maneiras: uma delas é denominada por
Fabris (2004) de “autorretrato acéfalo”, produção na qual os artistas discutem a
noção de identidade a partir da ocultação daquilo que é mais próprio de todo retrato,
o rosto. Sem a presença do rosto, o espectador não consegue reconhecer o primeiro
sinal de uma identidade individual, conforme evidenciado na obra do artista norte-
americano John Coplans (figura 04), em que autorretrata elementos fragmentados
de seu corpo envelhecido.




Figura 04: John Coplans, Self-Portrait: Frieze, No. 4, 1994. Fonte: http://veronicaxlok.wordpress.com/mpm-33-b/


Grande parte dos autorretratos contemporâneos tenta subverter a representação do
rosto, talvez por ser a parte do corpo mais associada a traços psicológicos e definida
como lugar do narcisismo, na qual converge a visão que se tem de si e a que se
3791



deseja oferecer às outras pessoas. Logo, presume-se que a não identificação da
aparência física do sujeito torna-se aspecto motivador para a construção de um
autorretrato, pois permite ao artista reconfigurar-se nessas imagens.

Em face dessa perspectiva, a incapacidade de identificação com a imagem
produzida coloca o artista numa situação de alteridade. Assim sendo, na produção
contemporânea de autorretratos, muitos artistas tratam da relação entre o “eu” e o
“outro”, não centrando-se somente em seus traços fisionômicos e em aspectos
autobiográficos que aprisionam o autor à sua própria vida.

Além disso, muitos artistas não têm a atitude narcisista de repudiar o lúdico,
inserindo-o nos autorretratos e apreciando o distanciamento do “eu” que ele
possibilita. Canton (2004), ao abordar práticas contemporâneas de autorretratos,
salienta a inclinação dos artistas para “brincarem” com a própria imagem. Dessa
forma, o artista projeta-se no autorretrato com liberdade para fazê-lo como desejar.

No entanto, pode-se questionar se o autorretrato contemporâneo afasta-se
inteiramente do narcisismo, haja vista que, embora não procure espelhar a
fisionomia do autor, o ato de retratar-se é uma decisão do artista. Ademais, quando
o artista expõe o trabalho, colocando-o em confronto com o olhar de outras pessoas,
não está manifestando a vontade de inserção no mundo instituído da arte?

(Re)Configurações do eu: autorretratos fotográficos

A série (Re)configurações do eu é produto de uma investigação prático-teórica
desenvolvida por mim no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
Mestrado, da UFSM, fomentada pela CAPES (2008-2010). Trata-se de uma série de
autorretratos produzidos a partir de dois tipos de imagens diferentes: fotografias 3x4
de documentos (trabalhadas com a técnica da pintura-encáustica e, posteriormente,
digitalizadas) e fotografias encenadas em meu ambiente doméstico, manipuladas
em conjunto através de tratamento digital, resultando em trípticos e polípticos.

O interesse em trabalhar com a ideia de autorretrato começou a permear minha
produção artística desde uma proposta de aula, realizada durante intercâmbio na
Escuela Nacional de Bellas Artes, em Montevideo, Uruguay, em 2004. Nessa
ocasião, desenvolvi experimentações, retrabalhando fotocópias ampliadas de minha
própria fotografia de documento de identidade através de sua transferência ao
3792



suporte MDF (Placa de Fibra de Madeira de Média Densidade) e da técnica de
pintura-encáustica. Desse modo, ao investigar o autorretrato em minha pesquisa de
mestrado, busco aprofundar a prática artística iniciada no momento do intercâmbio.

Outro motivo, pelo qual desenvolvi autorretratos, foi a possibilidade de modificar e
questionar o significado inicial de minhas imagens fotográficas de documentos,
deslocando-as para a prática da arte. Tal prática pode transformar o sentido e a
função delas, as quais deixam de destinar-se à identificação fisionômica do
retratado. Soma-se a isso a relação estabelecida entre o autorretrato e as novas
percepções identitárias, provocadas pela encenação realizada frente à câmera, que
permite vivenciar novas experiências cotidianas pessoais, tanto ao posar para as
fotografias quanto ao manipulá-las, vendo-me convertida em imagem.

Ao longo do processo artístico de instauração desses autorretratos, percebi a
recorrência de alguns procedimentos repetidos em minha prática. Por isso, aos
poucos, tornei consciente essa persistência, que a princípio não era intencional. Um
exemplo desses procedimentos é o ato de usar véus na cabeça e vestir roupas de
outras pessoas durante a tomada fotográfica, pois as imagens produzidas sem
esses elementos não me causavam interesse visual para trabalhá-las.

Na produção dos primeiros autorretratos, instigou-me trabalhar o rosto, manuseando
alguns de seus elementos. Posteriormente, comecei a agrupar imagens produzidas
por tratamento pictórico/digital com fotografias de detalhes da encáustica, sem
alterações digitais, impressas em tamanhos maiores do que os das pinturas
originais, jogando com a escala inicial das fotografias 3x4. Tal procedimento levou-
me a produzir um grupo de trabalhos, nos quais passei a usar detalhes ainda
menores das encáusticas feitas a partir de fragmentos das fotografias 3x4 de
documentos, que, ao serem fotografados e ampliados, ganham novas proporções.
Esses   fragmentos   empregados     consistem    em   algumas   partes   do   corpo,
principalmente olhos, como exemplifica a figura 06.

Apesar de, em minha produção, as imagens de olhos terem como contexto de
origem as digitalizações de encáustica, criadas a partir de fotografias 3x4 de
documentos, elas tornam-se autônomas em relação à imagem da qual tiveram
proveniência, recombinando-se com outras que formam o todo de uma nova
3793



imagem, composta por peças separadas articuladas entre si. Dessa forma, os
fragmentos do corpo juntam-se para atribuir novos sentidos às imagens.




  Figura 06: Autorretrato IX. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona, 68x95cm, 2009.


O ato de fragmentar uma imagem, segundo Calabrese (1987), é divisório, uma
espécie de recorte, de isolamento de uma porção que não necessita da presença do
contexto do qual se originou para existir; constitui-se numa interrupção isolada do
todo de que fazia parte. Para o autor, o fragmento exprime intervalo e anula o
princípio de ordem; participa de um espírito de nosso tempo: o declínio da totalidade
e da inteireza. Talvez por isso, tive o interesse de trabalhá-lo nos autorretratos: por
operar com uma noção de identidade do sujeito inconclusa.

Na produção desses autorretratos, também passaram a instigar-me fotografias cuja
composição “corta” partes definidoras do rosto, como, por exemplo, os olhos,
ocultando traços fisionômicos. Assim, alguns trabalhos produzidos na série
“(Re)Configurações do eu” podem relacionar-se com o conceito de autorretrato
acéfalo, proposto por Fabris (2004), em razão das ocultações que foram orientando
meu interesse durante o processo de trabalho. Contudo, não extirpo a cabeça na
imagem de modo tão radical como John Coplans. Ele se autorretrata por meio de
outras partes do corpo, apresentadas de modo fragmentado; eu corto a cabeça até a
altura dos olhos, restando visíveis algumas partes do rosto, conforme a figura 07.

Em meus autorretratos, o interesse por essa fragmentação na região dos olhos,
pode ocorrer em razão de serem o órgão corporal responsável por identificar
3794



visualmente o mundo. Mas, ao mesmo tempo, são percebidos por outros olhos, que
buscam identificar o sujeito através da expressão transmitida por seu olhar. Logo,
esse órgão corporal identifica o sujeito em um duplo sentido: olha e é olhado.




  Figura 07: Autorretrato XII. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona, 63x120cm, 2009.


Didi-Huberman (1998) aponta esse paradoxo, pois, em sua concepção, o ato de ver
só manifesta-se ao abrir-se em dois: o que vemos vive em nossos olhos pelo que
nos olha. Nada se esgota no que é visto, nesse sentido, a expressão tautológica “o
que vemos é o que vemos” não tem relevância. Para o autor, olhar é sempre
inquietar o ver; é uma operação fendida, agitada, aberta, envolvendo o que olha e o
que é olhado. Por isso, o visto evoca outras questões, as quais nos invadem e
desassossegam, sendo algo não decifrável, mas que se revisita e reinventa.

Com base nessas concepções acerca do olhar, como a imagem não se esgota no
que é visto, minha identidade enquanto sujeito contemporâneo também não se limita
ao que minha aparência mostra. Talvez, por isso, nesses autorretratos, os olhos
deixam de ser parte de um corpo único, o qual aparece, em alguns momentos,
dividido e fragmentado. Assim, não posso ser identificada através dos olhos, em
virtude de aparecerem descontextualizados na imagem, por serem extirpados e
recolocados em dimensões e locais não correspondentes aos de origem.

Mesmo valendo-me de detalhes e fragmentos do rosto, também me interessei pelo
desenvolvimento de imagens de corpo inteiro, embora vestido e ocultado por véus.
Desse modo, mostra-se uma figura central e outras duas que, a princípio, eram a
mesma. Porém, é efetuado seu “rebatimento horizontal”, por meio de laboratório
digital, que a torna repetida, dando ênfase à imagem central (figura 08).
3795




Figura 08: Autorretrato XVI. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona envolta em tule 122x185cm, 2010.


O fato de meu corpo encontrar-se encoberto com vestimentas de outras pessoas e
véus acarreta um “ocultamento” da identidade, não sendo um comportamento
comum nas fotografias de estúdio, pois as pessoas, normalmente, posam com suas
melhores roupas. No entanto, nas imagens por mim produzidas, utilizo roupas
emprestadas         com      algum      significado       especial      para     seus      donos,      ficando,
frequentemente, grandes ou apertadas em mim. Tais roupas não revelam quem sou,
e a fotografia só registra a aparência sob a forma de disfarce. Por isso, considero
que as encenações, as vestimentas e as manipulações digitais apontam para a
questão da ficção e do artifício, suscitada pela fotografia.

Kossoy (2002) explica que a imagem fotográfica, apesar de atuar constantemente
como documento, contém em si ficções, em razão de construir outras realidades.
Além disso, o caráter ficcional e encenado da fotografia, proveniente das poses e
ações apresentadas pelo sujeito ao ser fotografado, põe em questão a veracidade
geralmente atribuída a ela. De tal modo, acredito que em meus autorretratos esse
caráter ficcional da fotografia acarreta relações com questões identitárias, devido à
possibilidade de ocultar e multiplicar minha identidade nas imagens.

Nesses autorretratos, ao mesmo tempo em que as imagens são parte do eu,
igualmente não o são. A relação entre o “eu” e esse outro, constituída pela imagem
bidimensional, abre espaço para diversas possibilidades de “eus” produzidos nos
autorretratos fotográficos, podendo indicar, por consequência, um “nós” formado por
identidades fictícias que provocam um estranhamento e uma disposição lúdica e
3796



momentânea de ser outra pessoa. Portanto, procuro estabelecer, nas imagens
produzidas, uma relação não de identidade comigo (no sentido de idêntico), mas de
diferença e alteridade, já que figuro uma reinvenção de mim enquanto outra pessoa
na intimidade do lar, tendo apenas a máquina fotográfica como testemunha.

Esses autorretratos, por serem ações registradas a partir da fotografia, como bem
aponta Barthes (1984) acerca do meio fotográfico, presumem sempre um momento
passado, que envolve a apreensão de instantes fragmentados, interagindo com o
tempo presente. Por apresentarem relação com o passado da captura fotográfica,
meus autorretratos indicam onde já estive, o que fui e já não sou, refletindo apenas
instantes de mim. Assim, eles não podem ser considerados imagens identificadoras,
pois o eu apreendido encontra-se paralisado, em oposição às identidades, que,
conforme Hall (2006) e Bauman (2005), estão em constante formação.

Considerações finais

Ao retomar as perguntas lançadas na introdução do presente texto, concluo que a
coincidência entre autorretrato, “identidade-idem” e espelho deixou de ser motivo de
apreensão para grande parte das produções contemporâneas do autorretrato. O
artista não se preocupa com a revelação de sua identidade física, utilizando-se de
diversos artifícios, como comprovam as encenações de Cindy Sherman ou as
fragmentações do corpo de John Coplans.

Na série de autorretratos “(Re)Configurações do eu”, busco problematizar o
subgênero do autorretrato. Desse modo, a ideia de autorretrato utilizada não é a
renascentista, na qual o sujeito era representado de modo realista, revelando a
aparência física de seu autor, mesmo que idealizada. Em sentido contrário,
interesso-me em realizar autorretratos para provocarem uma (re)configuração
corporal e identitária do “eu”, através de ocultações e multiplicações da imagem.

A “identidade-idem”, em meus autorretratos, foi subvertida em virtude de
contaminações na fotografia e do uso de roupas alheias e véus. Logo, a concepção
de identidade trabalhada nessa pesquisa não é aquela no sentido de “mesmidade”,
mas identidades múltiplas, cambiantes, contraditórias, instáveis, fragmentadas e
fluidas. Consequentemente, alguns autorretratos, em vez de revelarem identidade,
geram mais um estranhamento acerca de mim, permitindo a descoberta de outros
3797



“eus”, ou seja, alteridades. Isso porque, nesse processo, a autoidentidade é ocultada
e multiplicada, gerando uma infinidade de “eus” nos autorretratos produzidos.

Meus autorretratos são, portanto, matéria-prima para metamorfose do eu convertido
em imagem. Neles, os procedimentos de ocultação acarretam desidentificações
fisionômicas e corporais, pois a identidade do eu restante nas imagens consiste em
construções forjadas, cambiantes, ficcionais e encenadas. Igualmente, provocam
reconfigurações identitárias, já que o uso do véu, ao atribuir anonimato ao corpo,
revela algumas de suas ondulações e sinuosidades. Assim, o tipo de autorretrato
que se relaciona com a prática realizada, é o que, apesar de parecer buscar uma
afirmação identitária do artista, abre-se ao exterior, desvencilhando-se de
preocupações puramente pessoais. O resquício narcísico presente nos autorretratos
contemporâneos pode não ser o que suplanta outras questões, mas uma
autoexposição que parte do particular, mas é subjacente a outras questões. São
autorretratos que agregam um conteúdo crítico-reflexivo acerca da arte, do artista e
da sociedade, não havendo uma coincidência absoluta entre a imagem produzida e
a aparência real do artista.

Ao finalizar a pesquisa, percebo que os rostos das fotografias de documentos
desapareceram gradativamente da composição das últimas produções, embora
estejam presentes na imagem. Esse fato não integrava os objetivos desta
investigação, a qual pretendia explorar tanto o caráter padronizado contido nas
poses das fotografias 3x4 de documentos quanto a atitude ficcional e de encenação
latente na pose. Esta última acabou sendo o foco na produção das imagens, o que,
de alguma forma, mostra-se coerente com a proposta da pesquisa, pois foi possível
subverter a atitude padronizada assumida nas fotografias 3x4. Destarte, parti dos
documentos com um “eu” datado para atingir uma produção de múltiplos “eus”.

Mesmo diante dessa falta de coincidência entre a imagem do eu e a produzida em
autorretratos, acredito ser possível, ainda, denominar tanto a minha prática quanto a
de outros artistas contemporâneos de autorretratos. Entendo que elas podem ser
compreendidas desse modo se considerarmos que o conceito de autorretrato tem
sido ampliado em consonância com as mudanças ocorridas no discurso, referente à
concepção de sujeito contemporâneo, detentor de identidades fragmentadas e
múltiplas, as quais levam a noção de autorretrato às últimas consequências.
3798



1
 Este artigo envolve fragmentos da dissertação de mestrado intitulada “(Re)Configurações do eu: a produção de
autorretratos fotográficos como ficção/encenação”, defendida pela autora em março de 2010, no Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais, UFSM, sob orientação da Profª. Drª. Luciana Hartmann.
2
  A “identidade-idem” é compreendida por Ricoeur (1991) como sinônimo de “mesmidade”, ou seja, uma
identidade absoluta, simultânea e igual. Trata-se da identidade de um indivíduo idêntico a si mesmo, imutável.
3
    Para Aumont (2006), o duplo consiste numa réplica exata de um objeto.



Referências

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BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
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BOTTI, Mariana Meloni Vieira. Espelho, espelho meu? Auto-retratos fotográficos de
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CALABRESE, Omar. Pormenor e fragmento. In: A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70,
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2001.

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FREUD, Sigmund. O estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. 17, 1996.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3.ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2002.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças
em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.
3799




Karine Perez
É Professora Substituta do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal de
Santa Maria. Artista e Mestre em Artes Visuais pelo PPGART/UFSM (bolsista CAPES 2008-
2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela mesma Instituição. Realizou
estudos na Escuela Nacional de Bellas Artes, IENBA – UDELAR, em Montevideo – UY
(2004). Participa do Grupo de Pesquisa Arte e tecnologia/CNPQ e do LABart, da UFSM.

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  • 1. 3784 AUTORRETRATOS CONTEMPORÂNEOS: REVELANDO UMA “IDENTIDADE- IDEM” OU SUBVERTENDO A LÓGICA DO ESPELHO? Karine Gomes Perez – UFSM Resumo O presente texto1 aborda o subgênero do autorretrato, a partir de suas características no Renascimento, estabelecendo-se um contraponto entre essas produções e as práticas contemporâneas, as quais levam a ideia de autorretrato aos seus limites. Além disso, o texto menciona autorretratos de artistas legitimados para fundamentar e discutir esse tipo de produção. Por último, são tecidas considerações acerca da prática artística pessoal, resultante de pesquisa realizada no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – UFSM, a qual envolve a produção da série “(Re)Configurações do eu”, cuja proposta consiste em investigar o processo artístico de criação de autorretratos fotográficos, analisando as possibilidades de (re)configurações identitárias nele envolvidas. Palavras-chave: autorretrato; arte contemporânea; (re)configurações do eu. Resumen El texto trata sobre el autorretrato, comenzando por sus características en el Renascimiento y estableciendo un contrapunto entre estas producciones con las del arte contemporáneo. Por último, son hechas consideracion acerca de la práctica artística personal, cuya propuesta consiste en investigar el proceso de creación de autorretratos fotográficos, analizando las posibilidades de (re)configuraciones identitárias implicadas en el proceso. Palabras clave: autorretrato; arte contemporáneo; (re)configuraciones del yo. Introdução Autorretratar-se é um ato referente à produção da imagem do artista realizada por ele próprio. Se observarmos obras do Renascimento ao Neoclassicismo, percebemos que o foco de interesse, em grande parte dos autorretratos, centra-se na semelhança física do autor, principalmente nos aspectos do rosto. Por isso, nesse caso, metaforicamente, o ato de autorretratar-se pode ser comparado a um espelho fidedigno, ao refletir as peculiaridades e a “identidade-idem2” do retratado. Mas, essa coincidência entre autorretrato, “identidade-idem” e espelho continua regendo a produção contemporânea de autorretratos ou acaba por ser subvertida? Se a segunda hipótese for aceita, as produções contemporâneas, que tomam o autor como referente, continuariam a ser denominadas “autorretratos”? Como a série “(Re)Configurações do eu”, realizada por mim, aproxima-se da ideia de autorretrato?
  • 2. 3785 Breve percurso do autorretrato na arte: relações com o espelho e a identidade Na tentativa de responder às perguntas lançadas, é preciso rememorar que o subgênero do autorretrato apresenta uma tradição no percurso da História da Arte Ocidental, obtendo notoriedade a partir do Renascimento, mesmo que, desde a baixa Idade Média, artistas já houvessem incluído suas imagens em cenas religiosas. A consolidação do autorretrato no âmbito artístico, a partir do Renascimento, pode ter acontecido em decorrência do afastamento entre a atividade artística e os preceitos religiosos, valorizados no período medieval; assim, o ser humano e a noção de indivíduo tornam-se focos crescentes das preocupações sociais e do imaginário dos artistas. Por esse motivo, desde então, o retrato e o autorretrato passaram a ser amplamente produzidos pictoricamente de maneira realista ou idealizada, inclusive porque o advento da fotografia não havia ocorrido. No Renascimento, a difusão de retratos e autorretratos supriu os anseios da corte e da burguesia urbana. Tais necessidades consistiam, segundo Botti (2005), em lançar suas imagens como um símbolo de poder, já que a confecção de um retrato custava um valor alto. Por isso, os artistas eram contratados para pintar as pessoas ilustres de sua época, sendo o autorretrato produzido nos momentos em que o artista não tivesse modelos para retratar, com a finalidade de mostrar sua habilidade artística aos possíveis clientes. Além disso, o ato de retratar-se concede ao artista, antes mero artesão, certo status social, já que passa a figurar ao lado de pessoas importantes, a partir do momento em que ambos são retratados por meio da pintura. Destarte, percebe-se que, desde o contexto histórico Renascentista, o autorretrato operava como uma espécie de espelho, pois buscava refletir a identidade física do artista, assim como a sua visão da arte e do contexto no qual se inscrevia. O autorretrato tinha por objetivo mostrar as particularidades do artista, afirmando e identificando sua fisionomia em diversas configurações; é repleto de um sentimento de cumplicidade com o objeto fotografado. Essa característica motivou muitos artistas, sendo perceptível na obra do holandês Rembrandt (1606-1669), que realizou uma ampla gama de autorretratos. Suas produções envolviam a pintura, o desenho e a gravura, meios através dos quais retratou-se em diversos momentos da vida (figura 01), procurando apreender as expressões fisionômicas, quem sabe como forma de afirmar-se enquanto sujeito.
  • 3. 3786 Figura 01: Rembrandt, Autorretrato, 1669. Fonte: http://manuel.cerezo.name/archives/2006_08.html Os modos de produção artística do autorretrato começam a se transformar, de maneira mais visível, a partir das modificações sociais e tecnológicas ocorridas na segunda metade do século XIX, responsáveis pelo advento fotográfico, o qual alterou o modo com que o sujeito visualiza o mundo e a si mesmo. A fotografia possui capacidade de reproduzir com suposta exatidão o que é visto pelo olho. Dessa forma, libera a pintura do compromisso mimético com a realidade, possibilitando ao artista operar alterações na imagem produzida de si mesmo e dos outros. A fotografia, então, abre novos caminhos à pintura, cujo resultado consiste nas vanguardas modernas, representadas por artistas de variadas nacionalidades, os quais, em sua grande maioria, produziram, além de outros tipos de trabalhos, autorretratos. Tais artistas desenvolveram deformações e ênfases formais que afastavam o autorretrato da realidade física, mas serviam para demonstrar a expressividade e a singularidade do artista, valorizados na arte moderna. Autorretrato e arte contemporânea Diferentemente do autorretrato produzido ao longo da história, os artistas contemporâneos atribuem-lhe novos conceitos, construindo-o não mais com a intenção de copiar a aparência física de seu autor, mas como forma de questionar a identidade ou de produzir estranhamento no artista e/ou no público. Segundo Freud (1996), pensamos que algo é estranho por não ser conhecido e familiar, todavia, nem todo o desconhecido causa-nos desconforto. Para ele, o
  • 4. 3787 estranho é algo que nos remete ao conhecido e familiar, mas permanece oculto e, de repente, vem à luz. Quando acontece em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação de estranhamento; contudo, para ele, a ficção oferece mais oportunidades para criar essa sensação do que a vida real. Por isso, a arte, como forma de ficção, e o autorretrato, como uma das maneiras de lidar com o familiar na arte contemporânea, acabam por englobar seu aparente oposto: o estranhamento, em razão de o artista visualizar seu próprio corpo, tão familiar, transmutado em imagem bidimensional. Além disso, essa sensação de estranhamento, contida em grande parte dos autorretratos contemporâneos, pode ocorrer porque, neles, o artista revela de si apenas o oportuno, até mesmo forjando outra identidade ou assumindo várias. Uma artista que assume várias identidades em seus autorretratos, os quais causam estranhamento, é Cindy Sherman, em virtude de se relacionarem com a questão da ficção/encenação. Ela fotografa-se desde os anos de 1970, encenando personagens, conforme constata-se na figura 03, na qual ela se fotografou em estúdio com o uso de roupas, acessórios, peruca e maquiagem. O cenário apresentado no plano de fundo foi fotografado separadamente e inserido posteriormente em seu autorretrato, apontando para a falta de veracidade e artificialidade da imagem fotográfica. Figura 03: Cindy Sherman, Untitled #466, 2008. Fonte: http://www.culturaitalia.it/pico/modules/event/it/event_1408.html
  • 5. 3788 Com base em produções desse gênero, é possível concordar com Canton (2001), a qual afirma que os artistas atuais utilizam o autorretrato na produção de sentido de si e na subversão de sua tradição, recriando-o. Para a autora, se o autorretrato reivindicar identidade, produzirá estranhamento, comparável à sensação de olhar o rosto familiar no espelho e não o reconhecer. Talvez, por esse motivo, a ideia de autorretrato, entendido como sinônimo de veracidade, seja questionada por muitos artistas, pois, nem mesmo se pensarmos que o autorretrato é produzido com base na imagem do artista refletida em espelhos, nos depararemos com uma imagem verossímil do retratado. Tal afirmativa é coerente com as concepções de Fabris (2004), a qual menciona que o espelho parece revelar ao indivíduo sua própria identidade, mas, ao mesmo tempo, confronta-o com a evidência de que a unidade do “eu” é ilusória. Em razão dessa evidência, frente ao espelho, é criada no sujeito uma cisão entre o indivíduo refletido na superfície especular e o sujeito que percebe essa imagem. Assim, para Fabris, o espelho coloca em crise a crença numa identidade unitária e transforma-se num objeto de conhecimento, fazendo com que o sujeito seja capaz de pensar sobre a relação existente entre seu “eu” e a própria imagem refletida. Essa situação ocorre, inclusive, porque nosso rosto, assim como as identidades, está em constante estado de mutação, seja em decorrência da idade, das emoções ou das variações luminosas às quais nossos traços ficam expostos. Nesse sentido, Manguel (2001) aponta que cada célula do corpo humano renasce em ciclos de sete anos, colocando-nos na condição de estarmos sempre em processo de tornarmo- nos alguém. Para o autor, quando pensamos ter captado nossas feições num reflexo, elas já se transformam em outra coisa que empurra o “eu” para o futuro. De tal modo, o espelho revela a aparência do “eu” como algo diferente e externo. Ele funciona como um “duplo” do sujeito ao repetir e duplicar sua imagem no momento de refleti-la; todavia, não é produtor de uma réplica perfeita do sujeito que se olha, por mostrar somente seu efeito luminoso espelhado numa superfície: a produção efêmera da aparência de si mesmo, podendo constituir-se como “outro” de “si”. Esse “outro” refletido num espelho origina-se a partir de um indivíduo, mas não adquire autonomia em relação ao sujeito que fundamentou a sua gênese, pois o reflexo não pode manter-se enquanto imagem sem a presença do sujeito que o fundou.
  • 6. 3789 Fabris (2004, p. 168), ao discorrer sobre esse outro refletido no espelho, comenta: “o outro não é apenas o que se afirma como diferente do eu, exterior a ele. O outro faz parte do eu que se coloca diante do espelho e que, por esse gesto, descobre ser impossível uma visão direta da própria identidade (exterior)”. Portanto, tal como os reflexos gerados em espelhos, o que se pode chamar de autorretrato é “um outro”, pois a imagem de si, presente nessas produções, não apresenta exatidão em relação ao sujeito externo ao espelho, que é transitório. Esse processo também pode ocorrer porque um sujeito, como parte do mundo tridimensional, ao transmutar-se em imagem na superfície plana do espaço bidimensional, acaba colocando em cheque a ideia do autorretrato como cópia e repetição incansável da imagem do artista. Conforme Aumont (2006), o duplo 3 perfeito não existe, por haver, entre duas fotocópias do mesmo documento, diferenças que permitem distingui-las, embora pequenas. Isso aponta para a capacidade de a imagem criar ilusão, sem o objetivo de gerar réplicas, mas imagens duplicadoras das “aparências”. Assim, permanece uma impossibilidade de analogia completa entre o autorretrato e a figura do artista. Talvez por isso, para Canton (2001), o autorretrato contemporâneo não se construa como mera representação narcísica de seu autor. Quando a autora expõe esse afastamento do narcisismo no autorretrato contemporâneo, mesmo sabendo-se que é impossível generalizar nossas considerações acerca dele, em razão da diversidade das produções artísticas atuais, é possível concordarmos, em parte, com ela, pois o termo narcisismo, advindo do campo psíquico e embasado no mito grego de Narciso, possui diversas interpretações. De acordo com o sentido proposto por Lasch (1983), o narcisista é alguém que busca viver o presente, concentrando-se no seu próprio bem-estar e autossatisfação. Ele tenta fugir do anonimato que permeia a vida cotidiana, sonhando com a fama. Trata-se de uma pessoa com repúdio ao espírito lúdico, o qual pressupõe certo distanciamento do “eu”, que vai de encontro ao seu egocentrismo. Portanto, o indivíduo narcisista permanece centrado somente em seu reflexo, como um prisioneiro da paixão por si, ato capaz de levá-lo metaforicamente à morte, já que considera seu “eu” como única realidade existente.
  • 7. 3790 Tal centralização do indivíduo em torno de si relaciona-se com o autorretrato, à medida que aconteça, por parte do artista, uma busca por sua semelhança física na construção do autorretrato. Isso difere, de certo modo, do ocorrido com grande parte da produção contemporânea de autorretratos, pois, a partir do momento em que o artista oculta sua aparência física ou forja outras identidades, ele distancia-se, quem sabe, da vaidade, da ilusão das aparências e da superficialidade. Muitos artistas contemporâneos trabalham suas próprias imagens, mas geralmente não se seduzem por elas como o narcisista, deixando de permanecer somente centrados nas aparências que demonstram a paixão por si. Nesse sentido, muitas vezes, a imagem produzida não revela a identidade do sujeito retratado. Essa não identificação pode ocorrer de variadas maneiras: uma delas é denominada por Fabris (2004) de “autorretrato acéfalo”, produção na qual os artistas discutem a noção de identidade a partir da ocultação daquilo que é mais próprio de todo retrato, o rosto. Sem a presença do rosto, o espectador não consegue reconhecer o primeiro sinal de uma identidade individual, conforme evidenciado na obra do artista norte- americano John Coplans (figura 04), em que autorretrata elementos fragmentados de seu corpo envelhecido. Figura 04: John Coplans, Self-Portrait: Frieze, No. 4, 1994. Fonte: http://veronicaxlok.wordpress.com/mpm-33-b/ Grande parte dos autorretratos contemporâneos tenta subverter a representação do rosto, talvez por ser a parte do corpo mais associada a traços psicológicos e definida como lugar do narcisismo, na qual converge a visão que se tem de si e a que se
  • 8. 3791 deseja oferecer às outras pessoas. Logo, presume-se que a não identificação da aparência física do sujeito torna-se aspecto motivador para a construção de um autorretrato, pois permite ao artista reconfigurar-se nessas imagens. Em face dessa perspectiva, a incapacidade de identificação com a imagem produzida coloca o artista numa situação de alteridade. Assim sendo, na produção contemporânea de autorretratos, muitos artistas tratam da relação entre o “eu” e o “outro”, não centrando-se somente em seus traços fisionômicos e em aspectos autobiográficos que aprisionam o autor à sua própria vida. Além disso, muitos artistas não têm a atitude narcisista de repudiar o lúdico, inserindo-o nos autorretratos e apreciando o distanciamento do “eu” que ele possibilita. Canton (2004), ao abordar práticas contemporâneas de autorretratos, salienta a inclinação dos artistas para “brincarem” com a própria imagem. Dessa forma, o artista projeta-se no autorretrato com liberdade para fazê-lo como desejar. No entanto, pode-se questionar se o autorretrato contemporâneo afasta-se inteiramente do narcisismo, haja vista que, embora não procure espelhar a fisionomia do autor, o ato de retratar-se é uma decisão do artista. Ademais, quando o artista expõe o trabalho, colocando-o em confronto com o olhar de outras pessoas, não está manifestando a vontade de inserção no mundo instituído da arte? (Re)Configurações do eu: autorretratos fotográficos A série (Re)configurações do eu é produto de uma investigação prático-teórica desenvolvida por mim no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Mestrado, da UFSM, fomentada pela CAPES (2008-2010). Trata-se de uma série de autorretratos produzidos a partir de dois tipos de imagens diferentes: fotografias 3x4 de documentos (trabalhadas com a técnica da pintura-encáustica e, posteriormente, digitalizadas) e fotografias encenadas em meu ambiente doméstico, manipuladas em conjunto através de tratamento digital, resultando em trípticos e polípticos. O interesse em trabalhar com a ideia de autorretrato começou a permear minha produção artística desde uma proposta de aula, realizada durante intercâmbio na Escuela Nacional de Bellas Artes, em Montevideo, Uruguay, em 2004. Nessa ocasião, desenvolvi experimentações, retrabalhando fotocópias ampliadas de minha própria fotografia de documento de identidade através de sua transferência ao
  • 9. 3792 suporte MDF (Placa de Fibra de Madeira de Média Densidade) e da técnica de pintura-encáustica. Desse modo, ao investigar o autorretrato em minha pesquisa de mestrado, busco aprofundar a prática artística iniciada no momento do intercâmbio. Outro motivo, pelo qual desenvolvi autorretratos, foi a possibilidade de modificar e questionar o significado inicial de minhas imagens fotográficas de documentos, deslocando-as para a prática da arte. Tal prática pode transformar o sentido e a função delas, as quais deixam de destinar-se à identificação fisionômica do retratado. Soma-se a isso a relação estabelecida entre o autorretrato e as novas percepções identitárias, provocadas pela encenação realizada frente à câmera, que permite vivenciar novas experiências cotidianas pessoais, tanto ao posar para as fotografias quanto ao manipulá-las, vendo-me convertida em imagem. Ao longo do processo artístico de instauração desses autorretratos, percebi a recorrência de alguns procedimentos repetidos em minha prática. Por isso, aos poucos, tornei consciente essa persistência, que a princípio não era intencional. Um exemplo desses procedimentos é o ato de usar véus na cabeça e vestir roupas de outras pessoas durante a tomada fotográfica, pois as imagens produzidas sem esses elementos não me causavam interesse visual para trabalhá-las. Na produção dos primeiros autorretratos, instigou-me trabalhar o rosto, manuseando alguns de seus elementos. Posteriormente, comecei a agrupar imagens produzidas por tratamento pictórico/digital com fotografias de detalhes da encáustica, sem alterações digitais, impressas em tamanhos maiores do que os das pinturas originais, jogando com a escala inicial das fotografias 3x4. Tal procedimento levou- me a produzir um grupo de trabalhos, nos quais passei a usar detalhes ainda menores das encáusticas feitas a partir de fragmentos das fotografias 3x4 de documentos, que, ao serem fotografados e ampliados, ganham novas proporções. Esses fragmentos empregados consistem em algumas partes do corpo, principalmente olhos, como exemplifica a figura 06. Apesar de, em minha produção, as imagens de olhos terem como contexto de origem as digitalizações de encáustica, criadas a partir de fotografias 3x4 de documentos, elas tornam-se autônomas em relação à imagem da qual tiveram proveniência, recombinando-se com outras que formam o todo de uma nova
  • 10. 3793 imagem, composta por peças separadas articuladas entre si. Dessa forma, os fragmentos do corpo juntam-se para atribuir novos sentidos às imagens. Figura 06: Autorretrato IX. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona, 68x95cm, 2009. O ato de fragmentar uma imagem, segundo Calabrese (1987), é divisório, uma espécie de recorte, de isolamento de uma porção que não necessita da presença do contexto do qual se originou para existir; constitui-se numa interrupção isolada do todo de que fazia parte. Para o autor, o fragmento exprime intervalo e anula o princípio de ordem; participa de um espírito de nosso tempo: o declínio da totalidade e da inteireza. Talvez por isso, tive o interesse de trabalhá-lo nos autorretratos: por operar com uma noção de identidade do sujeito inconclusa. Na produção desses autorretratos, também passaram a instigar-me fotografias cuja composição “corta” partes definidoras do rosto, como, por exemplo, os olhos, ocultando traços fisionômicos. Assim, alguns trabalhos produzidos na série “(Re)Configurações do eu” podem relacionar-se com o conceito de autorretrato acéfalo, proposto por Fabris (2004), em razão das ocultações que foram orientando meu interesse durante o processo de trabalho. Contudo, não extirpo a cabeça na imagem de modo tão radical como John Coplans. Ele se autorretrata por meio de outras partes do corpo, apresentadas de modo fragmentado; eu corto a cabeça até a altura dos olhos, restando visíveis algumas partes do rosto, conforme a figura 07. Em meus autorretratos, o interesse por essa fragmentação na região dos olhos, pode ocorrer em razão de serem o órgão corporal responsável por identificar
  • 11. 3794 visualmente o mundo. Mas, ao mesmo tempo, são percebidos por outros olhos, que buscam identificar o sujeito através da expressão transmitida por seu olhar. Logo, esse órgão corporal identifica o sujeito em um duplo sentido: olha e é olhado. Figura 07: Autorretrato XII. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona, 63x120cm, 2009. Didi-Huberman (1998) aponta esse paradoxo, pois, em sua concepção, o ato de ver só manifesta-se ao abrir-se em dois: o que vemos vive em nossos olhos pelo que nos olha. Nada se esgota no que é visto, nesse sentido, a expressão tautológica “o que vemos é o que vemos” não tem relevância. Para o autor, olhar é sempre inquietar o ver; é uma operação fendida, agitada, aberta, envolvendo o que olha e o que é olhado. Por isso, o visto evoca outras questões, as quais nos invadem e desassossegam, sendo algo não decifrável, mas que se revisita e reinventa. Com base nessas concepções acerca do olhar, como a imagem não se esgota no que é visto, minha identidade enquanto sujeito contemporâneo também não se limita ao que minha aparência mostra. Talvez, por isso, nesses autorretratos, os olhos deixam de ser parte de um corpo único, o qual aparece, em alguns momentos, dividido e fragmentado. Assim, não posso ser identificada através dos olhos, em virtude de aparecerem descontextualizados na imagem, por serem extirpados e recolocados em dimensões e locais não correspondentes aos de origem. Mesmo valendo-me de detalhes e fragmentos do rosto, também me interessei pelo desenvolvimento de imagens de corpo inteiro, embora vestido e ocultado por véus. Desse modo, mostra-se uma figura central e outras duas que, a princípio, eram a mesma. Porém, é efetuado seu “rebatimento horizontal”, por meio de laboratório digital, que a torna repetida, dando ênfase à imagem central (figura 08).
  • 12. 3795 Figura 08: Autorretrato XVI. Encáustica e fotografia digital impressas sobre lona envolta em tule 122x185cm, 2010. O fato de meu corpo encontrar-se encoberto com vestimentas de outras pessoas e véus acarreta um “ocultamento” da identidade, não sendo um comportamento comum nas fotografias de estúdio, pois as pessoas, normalmente, posam com suas melhores roupas. No entanto, nas imagens por mim produzidas, utilizo roupas emprestadas com algum significado especial para seus donos, ficando, frequentemente, grandes ou apertadas em mim. Tais roupas não revelam quem sou, e a fotografia só registra a aparência sob a forma de disfarce. Por isso, considero que as encenações, as vestimentas e as manipulações digitais apontam para a questão da ficção e do artifício, suscitada pela fotografia. Kossoy (2002) explica que a imagem fotográfica, apesar de atuar constantemente como documento, contém em si ficções, em razão de construir outras realidades. Além disso, o caráter ficcional e encenado da fotografia, proveniente das poses e ações apresentadas pelo sujeito ao ser fotografado, põe em questão a veracidade geralmente atribuída a ela. De tal modo, acredito que em meus autorretratos esse caráter ficcional da fotografia acarreta relações com questões identitárias, devido à possibilidade de ocultar e multiplicar minha identidade nas imagens. Nesses autorretratos, ao mesmo tempo em que as imagens são parte do eu, igualmente não o são. A relação entre o “eu” e esse outro, constituída pela imagem bidimensional, abre espaço para diversas possibilidades de “eus” produzidos nos autorretratos fotográficos, podendo indicar, por consequência, um “nós” formado por identidades fictícias que provocam um estranhamento e uma disposição lúdica e
  • 13. 3796 momentânea de ser outra pessoa. Portanto, procuro estabelecer, nas imagens produzidas, uma relação não de identidade comigo (no sentido de idêntico), mas de diferença e alteridade, já que figuro uma reinvenção de mim enquanto outra pessoa na intimidade do lar, tendo apenas a máquina fotográfica como testemunha. Esses autorretratos, por serem ações registradas a partir da fotografia, como bem aponta Barthes (1984) acerca do meio fotográfico, presumem sempre um momento passado, que envolve a apreensão de instantes fragmentados, interagindo com o tempo presente. Por apresentarem relação com o passado da captura fotográfica, meus autorretratos indicam onde já estive, o que fui e já não sou, refletindo apenas instantes de mim. Assim, eles não podem ser considerados imagens identificadoras, pois o eu apreendido encontra-se paralisado, em oposição às identidades, que, conforme Hall (2006) e Bauman (2005), estão em constante formação. Considerações finais Ao retomar as perguntas lançadas na introdução do presente texto, concluo que a coincidência entre autorretrato, “identidade-idem” e espelho deixou de ser motivo de apreensão para grande parte das produções contemporâneas do autorretrato. O artista não se preocupa com a revelação de sua identidade física, utilizando-se de diversos artifícios, como comprovam as encenações de Cindy Sherman ou as fragmentações do corpo de John Coplans. Na série de autorretratos “(Re)Configurações do eu”, busco problematizar o subgênero do autorretrato. Desse modo, a ideia de autorretrato utilizada não é a renascentista, na qual o sujeito era representado de modo realista, revelando a aparência física de seu autor, mesmo que idealizada. Em sentido contrário, interesso-me em realizar autorretratos para provocarem uma (re)configuração corporal e identitária do “eu”, através de ocultações e multiplicações da imagem. A “identidade-idem”, em meus autorretratos, foi subvertida em virtude de contaminações na fotografia e do uso de roupas alheias e véus. Logo, a concepção de identidade trabalhada nessa pesquisa não é aquela no sentido de “mesmidade”, mas identidades múltiplas, cambiantes, contraditórias, instáveis, fragmentadas e fluidas. Consequentemente, alguns autorretratos, em vez de revelarem identidade, geram mais um estranhamento acerca de mim, permitindo a descoberta de outros
  • 14. 3797 “eus”, ou seja, alteridades. Isso porque, nesse processo, a autoidentidade é ocultada e multiplicada, gerando uma infinidade de “eus” nos autorretratos produzidos. Meus autorretratos são, portanto, matéria-prima para metamorfose do eu convertido em imagem. Neles, os procedimentos de ocultação acarretam desidentificações fisionômicas e corporais, pois a identidade do eu restante nas imagens consiste em construções forjadas, cambiantes, ficcionais e encenadas. Igualmente, provocam reconfigurações identitárias, já que o uso do véu, ao atribuir anonimato ao corpo, revela algumas de suas ondulações e sinuosidades. Assim, o tipo de autorretrato que se relaciona com a prática realizada, é o que, apesar de parecer buscar uma afirmação identitária do artista, abre-se ao exterior, desvencilhando-se de preocupações puramente pessoais. O resquício narcísico presente nos autorretratos contemporâneos pode não ser o que suplanta outras questões, mas uma autoexposição que parte do particular, mas é subjacente a outras questões. São autorretratos que agregam um conteúdo crítico-reflexivo acerca da arte, do artista e da sociedade, não havendo uma coincidência absoluta entre a imagem produzida e a aparência real do artista. Ao finalizar a pesquisa, percebo que os rostos das fotografias de documentos desapareceram gradativamente da composição das últimas produções, embora estejam presentes na imagem. Esse fato não integrava os objetivos desta investigação, a qual pretendia explorar tanto o caráter padronizado contido nas poses das fotografias 3x4 de documentos quanto a atitude ficcional e de encenação latente na pose. Esta última acabou sendo o foco na produção das imagens, o que, de alguma forma, mostra-se coerente com a proposta da pesquisa, pois foi possível subverter a atitude padronizada assumida nas fotografias 3x4. Destarte, parti dos documentos com um “eu” datado para atingir uma produção de múltiplos “eus”. Mesmo diante dessa falta de coincidência entre a imagem do eu e a produzida em autorretratos, acredito ser possível, ainda, denominar tanto a minha prática quanto a de outros artistas contemporâneos de autorretratos. Entendo que elas podem ser compreendidas desse modo se considerarmos que o conceito de autorretrato tem sido ampliado em consonância com as mudanças ocorridas no discurso, referente à concepção de sujeito contemporâneo, detentor de identidades fragmentadas e múltiplas, as quais levam a noção de autorretrato às últimas consequências.
  • 15. 3798 1 Este artigo envolve fragmentos da dissertação de mestrado intitulada “(Re)Configurações do eu: a produção de autorretratos fotográficos como ficção/encenação”, defendida pela autora em março de 2010, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, UFSM, sob orientação da Profª. Drª. Luciana Hartmann. 2 A “identidade-idem” é compreendida por Ricoeur (1991) como sinônimo de “mesmidade”, ou seja, uma identidade absoluta, simultânea e igual. Trata-se da identidade de um indivíduo idêntico a si mesmo, imutável. 3 Para Aumont (2006), o duplo consiste numa réplica exata de um objeto. Referências AUMONT, Jacques. A imagem. 11 ed. Campinas: Papirus, 2006. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BOTTI, Mariana Meloni Vieira. Espelho, espelho meu? Auto-retratos fotográficos de artistas brasileiras na contemporaneidade. 2005, 172f. Dissertação (Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. CALABRESE, Omar. Pormenor e fragmento. In: A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987. CANTON, Kátia. Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras, 2001. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed.34, 1998. FABRIS, Annateresa. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2004. FREUD, Sigmund. O estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. 17, 1996. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.
  • 16. 3799 Karine Perez É Professora Substituta do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria. Artista e Mestre em Artes Visuais pelo PPGART/UFSM (bolsista CAPES 2008- 2010). Bacharel e Licenciada em Desenho e Plástica pela mesma Instituição. Realizou estudos na Escuela Nacional de Bellas Artes, IENBA – UDELAR, em Montevideo – UY (2004). Participa do Grupo de Pesquisa Arte e tecnologia/CNPQ e do LABart, da UFSM.