O documento discute como temas e personagens da literatura grega clássica, como mitos, são revisitados em obras modernas. Apresenta exemplos de elementos estruturais de uma boa história segundo Aristóteles e discute como mitos como o de Deméter e Perséfone tentavam explicar fenômenos naturais. Também analisa como os mitos ajudam as pessoas a lidar com questões existenciais através da catarse proporcionada pela arte.
MESTRES DA CULTURA DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
Imagens da literatura grega clássica nos textos contemporâneos
1. IMAGENS DA LITERATURA GREGA CLÁSSICA EM TEXTOS DIVERSOS
A literatura grega clássica é uma fonte riquíssima de histórias e personagens, porém, em
alguns meios (geralmente fora do ambiente acadêmico), ainda há a impressão de que
tudo o que se refere à antiguidade clássica é difícil, complicado e até pedante. Mas não
é. Nós temos contato com temas, mitos, valores clássicos a todo momento sem perceber.
Nosso objetivo, neste texto, é mostrar que algumas características que fazem uma boa
história são as mesmas desde a antiguidade, assim como alguns mitos e temas da
literatura grega clássica, são revisitados até hoje.
O que faz uma boa história? De que material é feito um bom roteiro? O que prende a
atenção de um leitor ou espectador? Segundo Aristóteles, filósofo grego que viveu no
séc. IV a.C., uma boa história deve conter bons personagens, que sejam coerentes
consigo mesmo e com sua realidade, sendo apropriados ao que se espera deles. Dentre
outras várias observações que ele faz sobre a estrutura de uma boa obra, chamamos a
atenção para o que ele nomeia de “elementos de ação complexa”, que são:
Peripécia: do grego περιπέμπω, peripempoo, “lançado ao redor”; περιπετέια,
peripetéia, “um revés”, que vem a ser uma alteração da ação em sentido contrário ao
indicado, ao que parecia ser. Um exemplo em “Édipo Rei”, peça de Sófocles, a
peripécia ocorre no ato da entrega da notícia do mensageiro a Édipo: ele poderia ir
tranquilo à Corinto para o funeral de Políbio. Édipo não queria ter contato com Políbio
por se pensar filho legítimo do mesmo, e não queria matá-lo, conforme a previsão do
oráculo. O mensageiro, ao falar que Édipo era filho adotado, acaba por descortinar uma
verdade trágica: que Édipo, sendo filho adotado de Políbio, tinha na verdade como pai
Laio, a quem assassinara.
Reconhecimento: é a passagem do “não-saber” para o “saber”; tanto para o bem quanto
para o mal. Segundo Aristóteles, o reconhecimento mais belo é o que acontece junto
com a peripécia, como no trecho de “Édipo Rei” descrito acima. Outro exemplo está na
“Odisseia”, de Homero: quando Ulisses volta para casa, não é reconhecido a princípio,
por estar propositalmente vestido de mendigo, a não ser por seu cão. Mais tarde, uma
criada ajuda o herói a banhar-se e o reconhece por uma cicatriz. Uma das cenas de
reconhecimentos mais famosas do cinema é o do filme “Star Wars”, em que Darth
Vader dá-se a conhecer a Luke, com a célebre frase: “Luke, I’m your father”.
Catástrofe: do grego καταστροφή, “derrubada”, algo que vai ladeira abaixo. Ação da
qual resultam danos, sofrimentos, ferimentos, dores, as mortes em cena etc.
Essas são algumas características básicas que Aristóteles apontou em sua obra
“Poética”, e que foram (e ainda são) muito utilizadas tanto na literatura quanto nas artes
cênicas; mostrando que na antiguidade já havia uma atenção para as artes em geral.
2. Os mitos
Muitos consideram o mito como um conto de fadas, uma fábula, uma lenda. Há ainda a
visão psicanalítica, que diz ser o mito uma representação de arquétipos, que por sua vez
são imagens primordiais, modelos repetidos por muitas gerações e armazenados no
inconsciente coletivo, podendo ou não carregar um caráter religioso. Segundo o
pensamento de Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, discípulo de Freud,
todos somos feitos do mesmo material, e estamos ligados uns aos outros por um
inconsciente coletivo. Dessa forma, todos temos necessidades, emoções, símbolos e
histórias em comum, independente da cultura, do lugar, da época etc. Isso pode explicar
a força do mito, e porque recorremos a eles, ainda que inconscientemente.
O mito também pode ser pensado como uma “representação coletiva, transmitida
através de várias gerações, e que relata uma explicação de mundo” (BRANDÃO, 1997,
vol I, pg 36). O mundo, com seus fenômenos climáticos, os animais e plantas, e o
universo –os astros, os fenômenos astrológicos como eclipses etc- sempre foram os
mesmos, com poucas variações (de acordo com a época e o lugar) para seus habitantes,
oferecendo as mesmas experiências para qualquer ser humano. Como os povos antigos
se relacionavam com todos os acontecimentos, sem o conhecimento que temos hoje?
Através de representações, símbolos, enfim, mitos, que tentavam explicar de forma que
fossem plausíveis eventos como eclipses, terremotos, tempestades, períodos de seca,
entre outros. Um exemplo é o mito de Deméter, deusa grega da fertilidade, e de sua
filha, Perséfone, que foi raptada e casou-se com Hades, deus dos ínferos. Deméter,
então, entra em acordo com Hades: seis meses por ano a filha passa com a mãe, seis
meses com o marido. No tempo que Perséfone fica sobre a terra, esta é cultivada, há
grandes fertilidade, pois Deméter está feliz. Nos demais meses, a terra produz pouco,
pois a deusa está saudosa da filha.
-Deméter e Perséfone
3. Segundo Ricoeur (2006), o mito cumpre também a função de contar como surgiram as
pessoas, os deuses, as sociedades, os ritos sociais e religiosos (e qual a função deles)
etc. É preciso pontuar que “o mito só existe quando o acontecimento fundador não tem
lugar na história, mas situa-se num tempo antes de toda história” (RICOEUR, 2006, pg
248). Nesse sentido, a função do mito é relatar os acontecimentos fundadores, relatos
esses que servirão de resposta às mais diversas questões existenciais e filosóficas tais
como os sofrimentos, a morte, a miséria humana, entre outras.
Ora, considerando a hipótese de Jung, nosso inconsciente coletivo é o mesmo, na
essência não mudamos; ainda buscamos explicações para as mesmas questões
existências e filosóficas. Por isso os mitos e seus temas estão presentes em todas as
épocas e em todos os povos de quem se tem registro.
Uma das formas de buscar explicações para essas questões é através da catarse (do
grego καθάρσις, “purificação”, “purgação”), e é o mito que vem satisfazer essa
necessidade de catarse do ser humano: vivendo novamente as grandes questões
existenciais, se solidarizando através de símbolos, ainda que sob nova roupagem.
Como alcançamos a catarse? O mito é representado de uma forma artificial, através da
arte, para que possamos lidar com questões difíceis, trágicas, sem precisar passar pelas
situações de fato. O motivo pelo qual histórias de sofrimento (doenças, mortes, guerra
etc) fazem sucesso é esse: a oportunidade de lidar com as questões sem vivê-las. De
acordo com Aristóteles, ao colocar o sofrimento, a piedade, o terror em uma obra
ficcional, há um alívio real destes mesmos sentimentos, porque ao tirá-los do real e
incluí-los na arte, eles tornam-se “esteticamente operantes”, viáveis. São, por assim
dizer, filtrados. Dessa maneira, acontece a catarse, a purgação desses mesmos
sentimentos, que se purificam quando desvinculados do real vivido. Por isso choramos
com livros, filmes de histórias tristes. Vivemos situações dolorosas através de outras
histórias, e dessa forma nos purificamos. Quantas vezes não saímos do cinema nos
sentindo com a ‘alma lavada’? É uma experiência “catártica”.
Mitos e temas escolhidos
Procuramos trazer alguns mitos e temas gregos significantes que aparecem na literatura
e nas artes cênicas, seguidos de comentários (quando houver necessidade) a respeito do
mito/tema, suas vertentes e como ele pode aparecer em outras obras literárias ou
cênicas. É importante dizer que, apesar deste trabalho procurar trazer imagens da
literatura grega clássica, os mitos e seus temas não foram criação do povo helênico. Há
vários relatos de mitos similares aos gregos vindos de outros povos -às vezes de épocas
próximas, às vezes não- e até mesmo os mitos gregos muitas vezes são uma amálgama
de mitos de povos anteriores aos gregos. Fato é que, obstáculos ao casal apaixonado,
herói e anti-herói, adivinhos e videntes, o poder do destino são tópicos que
proporcionaram, e ainda proporcionam, a criação de boas histórias, desde a antiguidade
até os dias atuais.
4. - Eros e Psiqué: Afrodite, deusa do amor e da beleza, se aborrece ao saber que Psiqué
começava a receber adoração das pessoas pela sua beleza, que é o mais importante
atrativo de Afrodite. Para eliminar a concorrência, ela manda Eros, seu filho, fazer com
que Psique se apaixone por um monstro. Mas acidentalmente, quem se apaixona é Eros,
e por Psique. Aqui podemos identificar: a) castigo por inveja, como no conto de fadas
“A Gata Borralheira”, 2) reviravolta na história, a paixão de Eros, 3) paixão por
monstro, como em outro conto de fadas, “A Bela e a Fera”(ainda que, no mito, não
tenha acontecido de fato). Eros toma Psiqué por esposa, mas não permite que ela o veja,
para que não perceba ser ele um deus. Ele a leva para morar num lugar maravilhoso, e
Psiqué vive muito feliz, exceto pelo fato de que eles só se encontram de noite, na
penumbra, e ela não pode vê-lo. As duas irmãs de Psique querem visitá-la, e Eros a
avisa que esse será o fim dela. Ela, porém, ignorando o aviso do amado, decide por
receber as irmãs, que, à medida que vão vendo a vida maravilhosa que Psiqué leva, são
tomadas pela inveja e decidem por matá-la (mais uma vez um eco de “A Gata
Borralheira”). Eros, mais tarde, dá outro aviso, mas Psique se deixa levar pelas irmãs,
que a convencem de que Eros não se deixa ver por ser ele uma serpente, e que vai
acabar por matá-la. Sendo assim, ela decide matar Eros primeiro e, numa noite, com um
candeeiro numa mão e um punhal em outra, entra no quarto. Porém, consegue vê-lo e,
sem querer, se machuca na ponta de uma das suas flechas. Apaixona-se duplamente por
ele: por ter visto como é belo, e pela flecha. Eros acorda com um pingo de óleo do
candeeiro e, ao ver-se descoberto, diz que o castigo de Psiqué será a ausência dele,
deixando-a. Ela sai em busca de seu amado, ao mesmo tempo em que Afrodite quer
achá-la para castigá-la do ferimento de Eros. Enfim, Psiqué se entrega à sogra, que a
humilha de todas as formas e dá a ela quatro tarefas, certa de que ela morreria tentando
cumpri-las. Mas Psiqué consegue chegar ao fim das tarefas com vida, sendo ajudada
pelos deuses, que capacitam animais e até uma torre para auxiliar a jovem. Eros
intervem junto a Zeus por Psique; Zeus acalma Afrodite e finalmente Eros aceita
Psique. Eles se unem novamente em núpcias no Olimpo. Podemos observar alguns
temas, como a sogra ciumenta, que persegue a esposa do filho, e vários obstáculos para
que se concretize o amor do casal.
5. -Oráculos e adivinhos: o mais conhecido é o Oráculo de Delfos. Havia um lugar em
Delfos que, segundo o mito, era o centro do mundo. Sinalizado por uma pedra, ficava
dentro de uma cavidade, da qual saíam vapores inalados pela sacerdotisa -a pitonisa. Ela
entrava em êxtase: estava possuída pelo deus Apolo, deus da mântica (ciência da
adivinhação). Balbuciava algumas palavras, que eram interpretadas por exegetas a dadas
como resposta às questões dos consulentes. Esses, por sua vez, tinham o direito a
consulta mediante pagamento de taxa aos sacerdotes do templo. Um filme muito
conhecido e que fez muito sucesso com o esse tema foi “Ghost”, em que a atriz Whoopi
Goldberg interpreta Oda Mae Brown, uma golpista que se descobre sensível aos
espíritos, agindo como uma pitonisa contemporânea.
-Pitonisa, no Oráculo de Delfos
Os mais conhecidos adivinhos da antiguidade foram Cassandra e Tirésias. Cassandra era
filha de Príamo, rei de Troia. Diz o mito que, quando pequenos, ela e seu irmão gêmeo
Heleno foram brincar no templo e, já sendo tarde para voltarem, passaram a noite nesse
lugar. Na manhã seguinte, a criada que foi buscá-los se deparou com 2 serpentes
passando a língua em suas orelhas e, por isso, tornaram-se sensíveis à voz dos deuses.
Quando cresceu, Apolo se encantou por Cassandra, e lhe ofereceu o dom da profecia se
ela se entregasse a ele. Ela recebeu o dom, mas não quis entregar-se. Como Apolo não
podia retirar-lhe o dom, tirou dela a credibilidade, cuspindo na boca dela e, assim, ela
profetizava, mas ninguém acreditava no que ela dizia. Prova disso se dá na “Ilíada”,
quando a profetiza fala ao povo sobre os horrores que a guerra trará ao reino, mas todos
a reputam como louca. Sobre Tirésias, diz o mito que, passeando num monte, ele viu 2
serpentes copulando e, ao separá-las, foi ferido (outra vertente diz que ele tocou a
fêmea), transformando-se em mulher. Sete anos depois, no mesmo local, viu a mesma
cena e foi ferido ou tocou o macho, e transformou-se de novo em homem. Foi cegado
por Hera ou por Atena, segundo diferentes vertentes do mito, mas Zeus compensou-o
com o dom da profecia. No mito de Édipo é Tirésias que, sem citar nomes, diz que o rei
6. matou o pai e casou-se com a mãe. Tirésias foi pai de Mantô, que por sua vez, teve um
filho com Apolo, chamado Mopso, ambos mântis, isto é, adivinhos.
-Tirésias e Odisseu
-Herói: ser supra-humano (mas não divino). Não se sabe a origem desta figura, mas
especula-se que seja um arquétipo, pois basicamente todas as culturas antigas
apresentam um herói, com pequenas variações. A figura do herói não é,
obrigatoriamente, a daquele personagem típico; o herói de ‘atos heroicos’: tanto na
literatura grega quanto em outras histórias, essa figura pode aparecer como personagem
principal ou com destaque em alguma parte do enredo, não sendo necessariamente o
protagonista, podendo ser homem ou mulher, como na peça “Antígona”, de Sófocles,
cuja heroína é uma das filhas de Édipo. Algumas características comuns encontradas na
figura do herói são:
- ele descende de ancestrais famosos ou nobres; geralmente é filho de reis -como
Héracles, filho de Zeus e Alcmena, mortal;
- antes ou durante sua gestação surge uma profecia, um sonho ou oráculo, falando sobre
o perigo do nascimento dessa criança, que ameaça a vida do pai ou representante;
- seu nascimento é precedido de muitas dificuldades, tais como esterilidade (Isaque,
herói bíblico, cuja mãe Sara era estéril), coito secreto dos pais, proibição ou ameaça de
oráculo (Príamo, rei de Troia, foi advertido por sonho a respeito de seu filho Páris,
assim como Laio, rei de Tebas, recebeu uma profecia a respeito de Édipo), castigo que
pesa sobre a família (o ghénos maldito por excelência da antiguidade clássica: Etéocles,
Polinice, Antígona e Ismene, filhos de Édipo e Jocasta);
-quando criança, é exposto, isto é, deixado num monte (como Páris, que foi exposto no
monte Ida, e mais tarde, tendo sido reconhecido por sua irmã Cassandra, foi aceito de
volta por Príamo e Hécuba, e Édipo, abandonado no monte Citéron), ou em um
7. recipiente (cesto, pote, urna, barco) e abandonado nas águas (como Moisés, do velho
testamento bíblico);
-após exposição, é recolhido e salvo por pessoas humildes, como pastores, pescadores,
ou ainda por animais, e amamentado por uma mulher modesta, ou ainda pela fêmea de
algum animal como loba, cabra (Páris, filho de Príamo, foi amamentado por uma ursa);
-na sua infância e adolescência, dá mostras de uma condição superior e, nessa época,
sua origem é descoberta (Héracles, com 8 meses estrangulou 2 serpentes no berço;
Teseu, aos 16 anos ergueu um rochedo, Rei Artur, o único que conseguiu retirar a
espada da rocha);
-seu retorno ao reino ou tribo de origem é marcado pela realização de façanhas
memoráveis; vinga-se do pai, casa-se com uma princesa e consegue o posto merecido,
mas tem um fim trágico e sua glória vem somente após a morte
-Héracles e a Hidra de Lerna
É educado fora do lar, geralmente por tutores. Atravessa alguns ritos de passagem, que
marcam importantes mudanças de um estágio de vida:
-passagem pela água ou fogo, mergulho ritual no mar, com intuito de purificação, tal
qual o batismo de Jesus, no novo testamento bíblico;
-passagem pelo labirinto, como Teseu, no mito do Minotauro;
-descida ao inferno, como fez Héracles, em busca do Cérbero, o cão de três cabeças,
guardião do reino de Hades;
-mudança de nome, com o significado de nova vida, como Héracles, que se chamava
Alcides, e como Pedro e Paulo, do novo testamento, que chamavam-se,
respectivamente, Simão e Saulo. Hoje em dia, quando alguém se casa, pode assumir o
sobrenome do cônjuge;
-corte de cabelo, que pode ser um rito de passagem ou de separação do profano para
entrar no sagrado, como em algumas religiões que exigem que a cabeça seja totalmente
8. raspada (monges, adeptos da umbanda). Em outras circunstâncias e/ou culturas, quando
o rapaz vai casar, quando a mulher fica viúva, e em algumas passagens da bíblia,
quando se lamentava por algo, os cabelos também eram raspados. Ainda na bíblia,
Sansão perdeu sua força ao ter seus cabelos cortados. Hoje em dia, ao passar na prova
do vestibular, o jovem também tem sua cabeça raspada;
-travestismo, que pode ser tanto um rito de passagem quanto uma maneira de fugir do
destino ou de inimigos, como Aquiles, que por força de sua mãe viveu como moça na
corte do rei Licomedes, para fugir do seu destino (morrer jovem), e Héracles, que usou
desse artifício para fugir de inimigos. Há uma lenda chinesa que conta a história de uma
heroína que se vestiu de homem para lutar na guerra, no lugar de seu pai, já idoso. Essa
lenda, de Hua Mulan, deu origem à animação “Mulan”, da Disney;
-mudança de sexo, tendo como exemplo o adivinho Tirésias, que foi mulher e homem.
Cabe aqui uma observação: na comédia grega também havia travestismo. Um dos
motivos era a proibição da atuação de mulheres, logo, atores homens vestiam-se de
mulher para dar vida a uma personagem feminina. Na peça “As Tesmoforiantes”, de
Aristófanes, um dos personagens veste-se de mulher para poder ir à uma assembleia,
cuja entrada era permitida só para mulheres;
-casamento sagrado, que era o fim de uma busca pela esposa ideal, em que o herói
enfrentava grandes obstáculos. Héracles lutou com o rio Aquelôo por Dejanira, Admeto
teve que parelhar um leão e um javali e colocá-los numa carruagem, pelo amor de
Alceste, na peça de nome homônimo da autoria de Eurípides. Dentro desse tópico há o
que o autor Junito de Souza Brandão chama de ‘motivo Potifar’, que é uma acusação
mentirosa de adultério, planejada por uma mulher, com a qual o herói recusou-se a ter
relações: Hipólito repeliu a madrasta Fedra e acabou sendo cegado; Peleu repeliu
Astidamia, esposa de seu amigo Acasto, José repeliu a mulher do Faraó, e foi castigado,
no velho testamento.
A vida do herói é marcada por muitas luta, batalhas e/ou trabalhos: como a guerra de
Troia da Ilíada, que nos apresenta os heróis Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Heitor,
Ulisses etc. Já Héracles, Teseu, Perseu tiveram que passar por trabalhos.
Heróis geralmente apresentam aspectos físicos que os distinguem dos demais
personagens de uma história. Eles podem ser:
–gigantes: como Héracles, que tinha mais ou menos três metros de altura, ou Orestes,
com mais de quatro metros (segundo Heródoto);
-de baixa estatura: como Ulisses, que era baixo, segundo a fala do ciclope Polifemo, que
disse ter recebido de um adivinho a profecia de que ele ficaria cego pelas mãos dum
homem alto e belo, e era isso que ele aguardava. Na Ilíada, chamavam Ulisses de νανός,
“nanós”, pequeno (canto III, v.210);
9. -representados/ transformados em animais: Lico transformava-se em lobo, Egeu, em
cabra, Hécuba em cadela (em Eurípedes, v.1205 em diante), Io em vaca. Outros tantos
eram polioftalmos, acéfalos, corcundas, coxos, gagos etc. Outros eram feridos, como
Édipo, que tinha os pés machucados e posteriormente viria a se cegar, e Aquiles, com
seu calcanhar. Um dos temas mais simbólicos é o da cegueira: Tirésias, Édipo e
Homero, que alguns estudiosos afirmam ser seu nome um espelho da sua condição: ό μή
οράω, “hó mée oráoo”, ou “o que não vê.
O herói não é necessariamente aquele que pratica boas ações; muitas vezes ele apresenta
um comportamento moral e eticamente diverso do esperado. Heróis podem ser:
-glutões, como Héracles, que fazia concurso de quem conseguia comer um boi inteiro, e
ganhava; Ulisses, citado por Platão em sua ‘República’,
-beberrões, como Héracles;
-sexualmente desequilibrados, o que traduzia-se em rapto de mulheres, como Helena,
estupros, incestos e adultérios numerosos;
-homicidas, como muitos heróis na Ilíada; Héracles, que matava aqueles que se
colocavam em seu caminho. Outros muitos mataram sem querer também, e dentre os
mortos, muitos eram parentes;
-astutos e ladrões, exemplo de Héracles, que furtou uma manada de éguas de um dos
seus hospedeiros e, quando este foi procurar o ladrão, acabou sendo morto por Héracles;
Ulisses, na “Odisseia”, foi astuto algumas vezes, para se proteger e escapar de inimigos.
Daí apresentamos os conceitos de “métron”, “hamartía”, “híbris”, muito ligados ao mito
do herói. Os heróis não eram exatamente um primor de ética e moral e, muitas vezes,
passavam do limite. Esse ‘limite’ é o conceito de “métron”. Quando isso acontecia, o
herói incorria numa ‘ação desmedida’-um orgulho, uma insolência-, numa violência,
enfim, que é a “híbris”. E isso era a “hamartía”, o erro. Como eles eram superiores aos
homens e estavam mais perto dos deuses, tinham mais espaço para agir. E isso os
colocava continuamente numa situação de limite de transgressão do “métron” porque,
apesar de virtuosos, não eram moralmente perfeitos.
-A morte do herói é trágica, dolorosa ou em solidão. Uns se matam, como Antígona,
Jocasta, Ájax; outros são assassinados, como Agamêmnon, pela esposa Clitemnestra;
outros são esquartejados por homens ou animais. Temos também as vítimas de
acidentes, como Héracles: Dejanira, enciumada, mandou um manto envenenado pelo
sangue da Hidra de Lerna, monstro derrotado por ele. Outra vertente do mito diz que
Dejanira enganou-se e, em vez de embeber o manto com um filtro amoroso, o fez com
veneno. Héracles vestiu, o veneno fez efeito e queimava a pele de tal modo que ele se
jogou numa fogueira. Aquiles morreu pela flechada no calcanhar (quando pequeno, sua
mãe, Tétis, o banhou nas águas do rio Estige, para que ele fosse invunerabilizado). Já
Édipo morreu em absoluta solidão. Depois de morto, o herói transforma-se num
daímon, uma entidade que protege a polis de ataques inimigos.
10. -Moira, ou o Destino: o que não pode ser mudado, por mais força que se faça, era uma
abstração que, com o tempo, tornou-se divindade. Na mitologia grega, é personificada
em três velhas: Átropos, Clotó e Láquesis. A duração da vida de cada pessoa era fixada
por um fio, que uma fiava, outra enrolava e a última cortava, quando chegava o fim da
vida.
Na literatura grega, o destino quase sempre está presente: Tétis, a mãe de Aquiles,
recebeu uma profecia dizendo que seu filho morreria jovem, guerreando. Querendo
ludibriar o destino, primeiro ela o banhou no rio Estige, para que ele fosse
invulnerabilizado. Não satisfeita, quando Aquiles se tornou um rapaz, ela o mandou,
travestido, para servir com as moças na corte do rei Licomedes. Ainda assim, mais tarde
o herói vai lutar na Guerra de Troia, quando morre por uma flechada no calcanhar,
único lugar que ficou descoberto da proteção das águas do Estige. Hécuba, mulher de
Príamo, sonha que o filho trará a ruína ao reino de Troia. Assim, quando Páris nasce, é
exposto no monte Ida. Mais tarde, quando já moço, ele é reconhecido por sua irmã
Cassandra, e os pais o aceitam de volta. Como sabemos, Páris raptou Helena, o que
provocou a Guerra de Troia, levando o povo troiano à ruína. Mas o Mito de Édipo é o
maior exemplo da força das Moiras. Jocasta, mulher de Laio, rei de Tebas, engravida e
vai ao oráculo perguntar pela criança. O oráculo diz que o filho vai matar o pai e casar
com a mãe. Horrorizados, os pais, quando nasce o bebê, o entregam na mão de um
empregado, com ordem de ‘dar um jeito’ na criança. O empregado, segundo uma
vertente do mito, expõe o bebê num monte, com os pés atados e, de acordo com outra
vertente, entrega a criança para um pastor. Fato é que esse bebê é entregue a Políbio, rei
de Corinto, que o cria como filho. Quando cresce, Édipo sai da casa dos pais e, num
banquete, um bêbado o chama de ‘filho postiço’. Procurando a verdade, ele vai ao
oráculo de Delfos e lá, a sacerdotisa o expulsa, dizendo que ele estava condenado a
matar o pai e casar com a mãe. Assustado, Édipo decide não voltar para casa, em
Corinto, com medo de cometer esses crimes: não queria ser o assassino de Políbio, que
acreditava ser seu pai. Indo pela estrada, encontra com uma comitiva real que trava o
caminho numa encruzilhada. Os empregados desta comitiva mandam que Édipo saia do
caminho para que o rei passe mas ele, nervoso, mata todos, menos um escravo que
consegue fugir. Quase chegando a Tebas, cruza com a Esfinge, um monstro de corpo de
leão, asas de águia e rosto de mulher, que estava aterrorizando a população das
cercanias da cidade; tanto que o prêmio para quem conseguisse derrotá-lo era casar com
11. Jocasta, rainha de Tebas, e ser coroado rei. A Esfinge, então, propõe um enigma a
Édipo: qual animal que no começo da vida anda com quatro patas, no meio da vida com
duas e no fim da vida com três? Édipo acerta, dizendo ser o homem este animal, que
quando bebê engatinha, quando cresce anda sobre suas pernas e, ao envelhecer, tem o
auxílio de um cajado. O monstro, desapontado, joga-se de um penhasco, e Édipo é
coroado rei de Tebas, casando com a rainha viúva, Jocasta, sua mãe. Dessa forma, a
profecia do oráculo é cumprida, ainda que tanto Laio e Jocasta, quanto o próprio Édipo
tenham tentado fugir do destino.
-Édipo e a Esfinge
Apresentamos, então, ainda que de forma concisa, alguns conceitos sobre a construção
de boas histórias, uma breve explicação sobre o mito e a catarse e alguns mitos e temas
que, desde a antiguidade, são recorrentes nas mais diversas culturas. É possível notar
como eles permeiam as artes em geral ainda nos dias de hoje, provando a força e a
contemporaneidade dos mitos, ainda que alguns tenham a ideia errônea de que
mitologia e literatura antigas –grega e de outras culturas- sejam assuntos ultrapassados e
de difícil compreensão.
12. BIBLIOGRAFIA
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