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METAMORFOSES NA POESIA
   DE PÉRICLES PRADE




   Mirian de Carvalho
São Paulo - 2006
© Mirian de Carvalho

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                   Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda.

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ISBN nº 85-89866-04-1

Na capa, reproduz-se, em destaque,
detalhe de obra de Marola Omartem.

Revisão de texto: Viviam Silva Moreira

Projeto (miolo)/Editoração Eletrônica: Mars

Fotolito da Capa: Duble Express




  Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
           (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

   Carvalho, Mirian de
        Metamorfoses na poesia de Péricles Prade /
   Mirian de Carvalho. -- São Paulo : Quaisquer,
   2006.


        Bibliografia.
        ISBN 85-89866-04-1

        1. Crítica literária 2. Prade, Péricles, 1942-
   - Poesia - Crítica e interpretação I. Título.




 06-3502                                      CDD-869.9109

              Índices para catálogo sistemático:
      1. Poesia : Literatura brasileira : História e
           crítica     869.9109
Foi nutrido sem grão, sem transtorno;
          só com a possibilidade de ser
E esta deu-lhe tanta força e poder (...).
                                  Rilke
7



                             Índice

                         Introdução
              Metamorfoses do Unicórnio poético, 9
                                1
        Das serpentes alegres à errância do Unicórnio, 14
              1.1. A poética das metamorfoses, 14
      1.2. A questão técnico-poética na poesia de Prade, 18

                                 2
                  Panbarroco e endobarroco, 24
        2.1. Elementos “barrocos” na escrita hodierna, 24
2.2. O fusionismo e as instâncias ideativas na poética de Prade, 29

                                 3
            Eterno barroco, barroco e endobarroco, 33
    3.1. O “eterno barroco” na filosofia de Eugenio d’Ors, 33
     3.2. Digressões e reflexões sobre o “eterno barroco”, 34
     3.3. O barroco cíclico e sua transposição à literatura, 40
                                 4
              A amplitude do “barroco” literário, 44
    4.1. Os critérios de Hatzfeld na abordagem do barroco, 44
          4.2. O barroco no Brasil: um endobarroco, 47

                                5
   O universo da imaginação na poética das metamorfoses, 54
                5.1. A desconstrução do mito, 54
           5.2. A imaginação e o espaço poético, 59

                                 6
            O tempo na poética das metamorfoses, 63
           6.1. O instante poético e o lugar poético, 63
                      6.2. O carpe diem, 67

                               7
     A imaginação poética e as variações dos elementos, 76
                  7.1. Variações da água, 76
                  7.2. Variações do fogo, 82
8                              Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



                               8
                 Contemplações do Unicórnio, 86
        8.1. O Unicórnio da chama-em-forma-de-corno, 86
                8.2. Contemplações do instante, 91
                               9
      Do binarismo alquímico às metamorfoses poéticas, 95
                 9.1. O Unicórnio poético, 95
        9.2. Os nove espelhos do anel de Mercúrio, 100

                                10
              A superação do Uno e do múltiplo, 105
    10.1. A desconstrução do Uno na poética do Unicórnio, 105
                 10.2. Do amor ao Unicórnio, 110
                       10.3. Proposição, 113

                                11
               Invocação, ofertório e narrativa, 115
                      11.1. Invocação, 115
                      11.2. Ofertório, 118
                      11.3. Narrativa, 120

                           Conclusão
                  O código dos não-ditos, 127
                          Epílogo, 127
                A superação das dualidades, 130
           Alcance social da poética do Unicórnio, 133

        Referências bibliográficas e obras consultadas, 137
9



                      Introdução
           Metamorfoses do Unicórnio Poético

      Rinoceronte. Búfalo. Peixe. Escaravelho. Animal das metamorfo-
ses, ao Unicórnio pertencem diversos corpos. Acompanhando-lhe as
variações do corpo, insurgem-se variações do nome: Mercúrio. K’i-Lin.
Og. Adão. Sofia. Do Unicórnio sabem-se muitas diferenças. Qualidades.
Estados anímicos. E andanças. Errante, ele muda de lugar e transforma-
se. Renasce de si mesmo. Renasce em outras terras. Renasce diverso.
Benfazejo. Primogênito. Domado. Maléfico (muito raramente). Consa-
grado. Perfeito. Em fuga. Ao Unicórnio - inúmeras atribuições. Ao Uni-
córnio do chifre-em-forma-de-chama cabem leituras e leituras. Esta que
aqui se inicia faz-se por adesão às imagens deflagradas pelas metamor-
foses desse animal encantado. E, seguindo-lhe os movimentos, ante as
variações do corpo, o chifre único desmente idéia e atributos da unida-
de. Chama. Vulva. Falo. Aura. Elixir. O solitário chifre não se reporta
ao Uno. Referenda o diverso e a transformação - em desvio do absoluto.
      Multiforme, o Unicórnio visita o mundo. Atravessa continentes.
Rios. Mares. Terras. Lagos. Em errância, ele se transforma. Luminoso.
Fluido. Telúrico. E etéreo. O Unicórnio integra-se e completa-se nos
elementos primordiais e oníricos da cosmogonia remota. Encarnando a
vida do elemento que o substancia - e transforma - o eu poético exalta
no Unicórnio o chifre em forma de chama. Exalta o fogo. E as qualida-
des do fogo - substância primeira que ilumina o fabuloso animal. Mas,
igualmente, a poesia comemora a água que acolhe o Unicórnio. No per-
curso desse animal encantado, a ele se revela sua origem metamórfica,
refletida e realizada no espelho d’água - na matéria que o acolhe entre
ambivalências e paradoxos. Eis na poesia de Péricles Prade a visão pri-
meira das Variações sobre o Unicórnio.
      Atravessando os séculos, o Unicórnio surge e ressurge nos mitos
e na poesia dos povos. Igualmente metamórfico no ideário alquímico, e
representado nas lendas orientais e ocidentais através de outros seres
quiméricos, ao Unicórnio atribuem-se poderes benfazejos relacionados
ao chifre único: “órgão” e “objeto” simbólico. Tal como nos relatos dos
estudiosos que visitaram as lendas, há Unicórnios em forma de cavalo,
peixe, asno, escaravelho, pássaro, dentre inúmeras outras configurações.
Através dos tempos, o Unicórnio integrou-se à simbologia do paganis-
mo e à do cristianismo, identificando-se com a divindade em várias ins-
10                                 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



tâncias. Das figurações do Cristo ao lápis primordial, o Unicórnio tran-
sita pelos símbolos da liturgia religiosa. E percorre os símbolos da tran-
substanciação alquímica, simbolizando Mercúrio.
      Para compor versão poética da fábula e da Alquimia, Prade percor-
reu estórias do Unicórnio. Percorreu figurações no campo das Artes Plás-
ticas, que aparecem referidas em alguns poemas. E teceu articulações
desse animal com outros seres do bestiário mítico. Visitando a obra li-
terária de Prade, seja na ficção, seja na poesia, encontramos o Unicór-
nio inserido no rol dos animais fantásticos que percorrem o imaginário
do autor. Nesse percurso pelo encantatório, “filho de uma abelha gigan-
te”, ele surge na obra Alçapão para Gigantes, como tema do conto “O
Unicórnio Voador”. Imagem da fábula transformada pelo poético, o fa-
buloso animal reaparece na poesia de Prade, inscrevendo-se em diferen-
tes poemas, e ressurge como imagem fundamental na obra Em Forma
de Chama: Variações sobre o Unicórnio, centralizada neste ensaio, a
partir das imagens e do logos em desvio do signo lingüístico e da tradi-
ção cultural.
      Mas constituiria lugar comum afirmar que a poesia de Prade reve-
la-se desvio do signo lingüístico e da cultura enquanto tradição, por ser
da natureza do poético o desviar-se do discurso e da verossimilhança.
Partindo das metamorfoses do Unicórnio, nossa meta consistiu em lo-
calizar o diferencial na poética de Prade. Buscando esse diferencial,
detectamos ordenações semânticas, que, intrínsecas à imagística, se exa-
cerbam na obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio, em
sendo próprias da poesia desse autor desde os primeiros poemas. Porém,
transcendendo à mera descrição de ordem estilística, localizamos nesse
viés imagético-semântico o ponto-chave do desvio das amarras do sig-
no e da cultura, a partir da dinâmica das imagens marcadas por fortes
contrastes: contrastes ideativos que, reunindo oposições e diferenças, se
lançam à desconstrução de antíteses, a partir do trabalho da imaginação
dando qualidades aos elementos característicos da poesia de Prade.
Conduzindo figurações de cunho fantástico, na poesia de Prade as ima-
gens transcendem aos sentidos do símile e da metáfora.
      Reunindo opostos e diferenças, na poética de Prade as imagens
assumem paradoxos, e algumas vezes tangenciam oximoros, criando
plurivocidade que desmonta os indicativos antitéticos de cunho binário.
E desfaz a demarcação territorial do absoluto. Desse modo, criam-se
jogos de palavras e de idéias sugerindo latência semântica a ser desve-
lada, predominantemente nos não-ditos, ou seja, a ser desvelada nos
endossentidos pertinentes às tensões imagísticas e ao logos: a “palavra”
Mirian de Carvalho                                                    11



primeira “dizendo” a experiência primeira. Desviando-se de modelos,
essas tensões se intensificam na poética do Unicórnio a partir das varia-
ções que o concebem diverso. Diverso de corpo e alma. Diverso de nome
e chama. Mas, nas Variações que assim o envolvem, o Unicórnio existe
também em estados indiferenciados. Mostra-se transitivo, ao fluxo das
metamorfoses. Mostra-se transitivo no âmago das tensões imagísticas.
Essa dinâmica é dita por um logos que referenda a base imagético-se-
mântica da poesia de Prade na linha de um Endobarroco. Porém, não
se trata de retomada do Barroco através de um Neobarroco. Nem de um
“eterno barroco” de expressão universal, tal como concebido pelo pen-
samento de Eugenio d’Ors: autor que, no plano das Artes Plásticas, trans-
porta o “barroco” à Pré-história, inclusive.
      Neste ensaio, o nome Endobarroco compreende traços comuns à
Literatura e às Artes, abrangendo características subjacentes a estratos
imagísticos e ideativos, que, passando por transformações e períodos
diversos, se insurgem nos dias de hoje. Na poesia, trata-se da convivên-
cia de oposições e diferenças afetas a palavras e idéias, deixando trans-
parecer tensões intrínsecas ao nascedouro das imagens, no plano da
imaginação poética. Trata-se de dinâmica refletida no logos, que nasce
junto à imagística, e subsume contrastes no plano do dizer. Porém, nes-
sa fusão, o conceito de Endobarroco refere-se a uma dinâmica perten-
cente não só às imagens e à semântica, mas extensiva a estratos morfos-
sintáticos e sonoros, caracterizados por oposições e/ou diferenças. Abar-
cando e insuflando ambivalências, paradoxos e oximoros, dentre outras
possibilidades imagísticas, o Endobarroco revela como característica
básica o desvio do princípio de identidade, afluindo na instância ima-
gético-semântica da poesia. Caracterizando uma poética desconstruto-
ra de modelos, em certo sentido esse desvio deixa transparecer insurgên-
cia de pensamento divergente quanto ao plano sociocultural.
      Ao Endobarroco relacionam-se jogos de idéias e palavras, ou seja,
entrelace do pensar e do dizer, articulados predominantemente pela ima-
ginação - origem e força movente das instâncias imagético-semânticas
na poesia. Diferenciando-se em escalas e estágios diversos, o Endobar-
roco congrega traços que se insurgem desde os alvores da Cultura Mo-
derna e chegam aos nossos dias, repetimos, traduzindo-se em manifes-
tações de um “barroco” gerundivo - de um “barroco” em processo. Não
estritamente estilístico. Não fixado no Seiscentismo. E com lastro sin-
gular na Literatura Brasileira. À definição do Endobarroco partimos dos
estudos de Ivan Cavalcanti Proença, que identificou elementos singula-
res nas Literaturas Brasileira e Portuguesa, e metodizou técnicas de uma
12                                Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



escrita característica, a que denominou panbarroca, no âmbito da pro-
dução literária hodierna. A partir das observações desse autor, realiza-
mos estudos abrangentes das Artes Plásticas e da Poesia, com base nos
textos de vários teóricos que se debruçaram sobre questões atinentes ao
Barroco, seja enquanto mundivisão, seja enquanto estilo, destacando-se
dentre eles: Eugenio d’Ors, Heinrich Wölfflin e Helmut Hatzfeld.
      Mas ao abordarmos o Endobarroco na poesia de Prade, tangencia-
mos outras questões. Dando continuidade à fundamentação dos argu-
mentos aqui apresentados, recorremos a vários outros autores, além dos
já mencionados, cujas idéias traduzem neste ensaio base filosófico-epis-
temológica, adequando-se a temáticas e questões próprias da poética de
Prade. Para compreender sua poética como desvio do discurso, recor-
remos ao pensamento de Jacques Derrida, visitando a noção de descons-
trução. Mas interpretando-a através de desdobramentos. E, para tratar a
questão da poesia como desvio da cultura, recorremos à filosofia de
Gaston Bachelard, igualmente através de desdobramentos. Na Poética
bachelardiana, enfatizamos as noções de matéria, imagem, imaginação,
espaço e tempo poéticos. Considerando essas instâncias, localizamos na
poesia de Prade tensões endobarrocas a partir das matérias que lhes ser-
vem de estofo imaginativo: o fogo e a água. Intensificando-se nas trans-
formações do Unicórnio, esses elementos dinamizam imagens que se
tangenciam através do diverso, enfatizando variações do corpo e do
nome do fabuloso animal. Outros nomes. Outros corpos. Outros senti-
dos. Tais variações podem chegar à reversibilidade, tal como nas trans-
formações do fogo e da água - que se correspondem. Que se misturam.
Que se transubstanciam, transubstanciando o Unicórnio em outro. Con-
cebendo-o em estados indiferenciados. E intermediários.
      Nessas Variações, ressalte-se: reluzente corno em forma de chama
coroa a cabeça do Unicórnio. E haverá mobilidade maior que a da cha-
ma transformando-se ante o olhar? Transformando-se no tempo? Haverá
transformação maior que a do fogo movendo-se - para nascer de si mes-
mo? Para nascer outro? Entre metamorfoses poéticas, o chifre único
perde seus contornos precisos. Refletindo espaços metamórficos, mate-
rial e ideativamente a unidade se desfaz. Em sendo variacional, o soli-
tário chifre não encarna qualidades do Uno.
      Do ponto de vista do gênero, guardando afinidades com alguns
trabalhos do autor, a obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Uni-
córnio caracteriza-se por implicações épicas, desvelando episódios da
vida desse animal encantado, ao fluxo das metamorfoses. Por caber a
metáfora, denominamos poética das metamorfoses às singularidades
Mirian de Carvalho                                                    13



técnico-poéticas intrínsecas à poesia de Prade. Tais singularidades ca-
racterizam-se pela desconstrução da estrutura do signo e pelo desvio da
tradição, através de recursos imagísticos com acentos hiperbólicos, de-
senraizados de qualquer resquício de verossimilhança externa. Nas trans-
formações do Unicórnio há convergências e desdobramentos do corpo
e do nome desse animal fantástico, desfazendo figurações duais, por
meio de uma perspectiva ideativa que transcende à bipolaridade do Uno
e do múltiplo, na passagem da lenda à poesia. Nessa passagem, o poeta
desenvolve jogos de palavras e de idéias confluindo em diferenças, que
mostram o Unicórnio em escorço e/ou sob visão prismática. Lançando-
se à desconstrução da antítese Uno/múltiplo nas figurações do Unicór-
nio, bem como tangenciando a desconstrução de outras antíteses, a poe-
sia de Prade induz o leitor à apreensão de estrato semântico que desmon-
ta a raiz do pensamento ancorado na razão como critério da verdade.
Trata-se então de ler os não-ditos. E perscrutá-los à escuta das metamor-
foses, conduzindo o eu poético à Cidade do Homem.
      Mas na obra de Prade, o poético percorre caminhos do espaço e do
tempo. À sincronia das transformações do Unicórnio trazido ao instan-
te poético, o autor concebe o fabuloso animal na instância do espaço
onírico, inaugurando lugares intrínsecos à poesia. Lugares de acolhi-
mento do Unicórnio em estado de amorosidade. E no tempo das trans-
formações. E, em esquiva da razão absoluta, o eu poético abandona o
tempo cronológico - ou seja, o tempo do discurso e das sucessões - para
lançar-se ao tempo da poesia. Temporalidade imagística. Instante em
fuga. Aos caminhos do Unicórnio, a temporalidade referenda o topos
carpe diem. Na poesia de Prade, o carpe diem desvela-se tempo do “ago-
ra”, atualizando-se enquanto tempo das imagens e do logos. E fazendo-
se tempo dos desdobramentos intuídos na poética das metamorfoses.
Realizando Variações sobre o Unicórnio, o autor inaugura semântica
desviante da narrativa lendária, ao apreender o fabuloso ser através de
amoroso sentimento. Para detê-lo na trama do poema, Prade visitou o
nascedouro do Unicórnio, ou seja, a imaginação que o traz à vida trans-
formando-se. Iluminado pela chama, o Unicórnio adquire propriedades
da chama. Que sempre renasce outra.
      Quimérico, o Unicórnio revela-se animal das nuvens. Cidadão do
mundo, o Unicórnio visita os quatro cantos da Terra. Encantado e hu-
mano, habita os elementos. Cavalga pelo Universo. Desviando-se do
Uno, o fabuloso ser vive encantatório tempo poético. Vive o instante
paradoxal. Chama. Vida. Transformação. Vive o intimismo do eu entre-
laçando-se ao kósmos.
14



    1 - Das Serpentes Alegres à Errância do Unicórnio

        Perto do laranjal as serpentes tranqüilas voltam o rosto
        para este ser que se alonga com seus pés mordidos na noite1.

        Convertido em pomba branca
        giro agora & sempre
        à sombra das coisas do mundo2

1.1. A Poética das Metamorfoses
      Situados em obras de períodos distintos, os versos que compõem
as duas epígrafes deste capítulo assinalam a presença do encantatório na
obra de Péricles Prade. Nascedouro das serpentes alongando-se nos pri-
meiros versos acima mencionados, o encantatório percorre outros tra-
balhos do poeta nas décadas de 60, 70, 80 e 90, e conduz o leitor à obra
Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. Na segunda epígra-
fe, pertencente à obra nomeada, encontramos o fabuloso animal conver-
tido em pomba branca, conduzido por asas na simbologia do Espírito
Santo. E, no referido trabalho, captando-lhe a existência transforma-
cional, o autor segue rastro e transformações do fabuloso animal de chi-
fre único, que, entre constantes variações, salta do mito para a poesia,
convertendo-se em touro sagrado, escaravelho, divindade desmembra-
da, seguindo o fluxo de tantas e inúmeras outras mutações, que subsu-
mem o indiferenciado e as qualidades das substâncias gerando imagens.
Refletindo resíduos de fábula e ironia, a poesia de Prade traz ao leitor
um Unicórnio errante, capturado nas malhas do poético. Eis que o Uni-
córnio encarna a fábula da solidão. E a fábula do tempo poético.
      Eclodindo nos idos de 1960, já àquela época a poesia de Prade
revelava-se original, lançando-se ao que chamamos poética das meta-
morfoses: trata-se de veio poético que, através de concepção hiperbóli-
ca da imagem, adere ao encantatório em esquiva do princípio de identi-
dade. Nessa adesão, realiza-se um logos desviante da armadura do sig-
no lingüístico e da tradição cultural. Desviando-se da linearidade do
discurso, o poeta distancia-se da tradição, por meio de imagística desti-

1
     PRADE, Péricles. “Perto do Laranjal”. Este Interior de Serpentes Alegres. Florianó-
     polis: Roteiro, 1963, p. 11.
2
     PRADE, Péricles. “Pomba Alquímica”. Em Forma de Chama: Variações sobre o
     Unicórnio. São Paulo: Quaisquer, 2005, p. 12.
Mirian de Carvalho                                                               15



tuída de qualquer verossimilhança externa, transcendendo aos sentidos
da metáfora e da similitude. Ultrapassando os recursos imagéticos usuais,
Prade nega o discurso, bem como o espaço e o tempo atrelados à obje-
tividade e à medida, para tangenciar a dimensão da experiência primei-
ra captada pelas metamorfoses, recriando o mundo a partir da matéria
imaginada. Originárias da imaginação poética, as metamorfoses se al-
çam ao plano do dizer e do pensar, não afeitos à forma ou à estrutura
lingüística, nem à tradição cultural. Distanciando-se do discurso e da
tradição, por fim o poeta desvia-se do símbolo, para demarcar seu dife-
rencial poético nas circunscrições do paradoxo.
      Partindo do princípio de que a obra poética requer leitura e análi-
se concernentes a valores intrínsecos, ao visitar a poesia de Prade tan-
genciamos questões afetas à imagem e à linguagem compreendidas
como instâncias criadas pela imaginação. Para encaminhar a questão que
norteia este ensaio, ou seja, para estabelecer o diferencial instaurado pela
poética das metamorfoses na obra Em Forma de Chama: Variações so-
bre o Unicórnio, rastreamos o trabalho do poeta desde os primeiros ver-
sos, buscando uma realidade intrínseca à sua poesia, realidade essa que
se inicia nas circunscrições da imaginação da matéria3. Nessa busca,
chegamos à dinâmica da imaginação criando imagens a partir dos ele-
mentos fundadores da poesia de Prade: o fogo e a água. Mas, em sendo
poéticas, as imagens surgem desvinculadas das referências objetivas da
matéria, tornando-se relevantes para o leitor, enquanto sentido originá-
rio de algo captado pela primeira vez, e relevantes para o poeta, que as
acolheu no nascedouro e as engendrou no logos poético.
      As imagens poéticas não preenchem lacunas no teatro do mundo.
E a poesia de Prade encarna o próprio teatro do mundo - lugar dos acon-
tecimentos vividos pela primeira vez. Lugar dos despertares vividos ante
a solidão primeva, quando se revelam sentidos originários das coisas
pulsantes antes do verbo. Nas Variações sobre o Unicórnio, criam-se
sentidos da solitude primeira. A solidão veste o Unicórnio. Sozinho, ele
realiza travessias. Ante a solitude, ele se tinge de múltiplo. Mas renasce
diverso. Em sendo diversidade, ele atua na imaginação, desmontando a
antítese Uno/múltiplo. Em sendo logos, ele se mostra chama. E olha-se
nas águas noturnas. Como se não houvesse solidão. E finge que é soli-
dão, a solidão que deveras o acompanha. Mas, estado anímico do eu

3
    Questão que se encontra presente nas chamadas Poéticas de Bachelard: obras dedi-
    cadas ao estudo da imaginação dos quatro elementos. Ver Referências Bibliográfi-
    cas.
16                                          Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



poético, a solidão referenda desígnio de solidariedade. Nesse encontro
com a solidão, o Unicórnio encontra o tempo. E, à companhia do desa-
companhado, o tempo reveste-se do carpe diem - a realidade possível
ante o desvio do absoluto. Viver o “agora” torna-se máxima a impulsio-
nar as metamorfoses do Unicórnio. Na poética de Prade, do possível se
faz a realidade. Da água chegamos ao fogo. E vice-versa. As antíteses
que compreendem a água e o fogo desconstroem-se nas variações des-
se fabuloso animal. Do fogo à água desvelam-se oposições. Diferenças.
Mas não há binarismo. Nem exclusões.
      Trazendo ao leitor um vasto universo de seres imaginários e crian-
do linguagem para designar seus nomes e feitos, o poeta cria uma reali-
dade singular - sem a mediação do conceito e/ou da linguagem discur-
siva. Na poesia de Prade, o dizer surge realizante. Realizante de seres
de imagem. Diversos dos seres de razão concebidos na esfera abstrata -
afeta ao plano metafísico e/ou afeta à episteme -, os seres de imagem
possuem colorido. Voz. Textura. E outras qualidades sensíveis. Animi-
zam-se. Personificam-se. Encarnando qualidades sensíveis, os seres
imagísticos são regidos por um tempo intrínseco à poesia e habitam lu-
gares propícios à sua existência - lugares criados pela imaginação4 -,
dando outra ordem ao mundo e ao kósmos. Substancializando e dessubs-
tancializando a matéria. Criando imagens que implicam espaços e tem-
pos poéticos, a poesia funda semântica alheia aos campos da presença
e da ausência, ao desatrelar-se do binarismo que caminha com a lingua-
gem discursiva.
      Por enraizar-se em jogos imagéticos, à abordagem da poesia de
Prade não caberia método ancorado em princípio atrelado às causalida-
des formal e eficiente, visto que, ao elaborar as metamorfoses do Uni-
córnio, o poeta transporta ao plano lúdico as instâncias do Uno e do
múltiplo, desencadeando paradoxos. Desviando-se da repetição, Prade
traz as imagens e a linguagem ao campo das diferenças. Mas o percur-
so pelas diferenças torna-se roteiro da solitude. Desviando-se do Uno,
a solidão apresenta-se como dúvida. Atravessa o mito. Consubstancia-
se nas várias imagens do Unicórnio. Apresenta-se como possibilidade.
Em sendo possibilidade, a solidão revela-se percurso. Seguindo a trilha
das metamorfoses, o Unicórnio desgarra-se da lenda, para renascer ima-


4
     A questão do tempo e do espaço na poesia foi tratada neste trabalho a partir das idéias
     bachelardianas desenvolvidas nos escritos do filósofo sobre a imaginação poética,
     conforme Referências Bibliográficas constantes deste trabalho.
Mirian de Carvalho                                                            17



gem primeira. E possibilidade do logos, ante solidão da experiência pri-
meira.
      Ao surgir como realidade poética, esse animal não referenda o jogo
ilusório do par ausente/presente, jogo esse que, ao longo da história do
pensamento ocidental, quase sempre se norteou por um recorte afeito a
uma razão que desconstrói “todas as significações que brotam da signi-
ficação do logos”, como observa Derrida5, ao apontar para a escrita
como desconstrução das instâncias do logos afeto ao primeiro referen-
te. Tirando ilações dessa afirmativa, acrescentamos: se concebido esse
logos como existência primeira, o discurso pode ser considerado afas-
tamento da experiência originária. Como conseqüência desse fenôme-
no, localizam-se no discurso lacunas aderentes ao signo lingüístico, uma
vez que a noção de signo, ao mesmo tempo em que implica separação
do significante e do significado, implica também convenção entre am-
bos. Sob esse prisma, havendo separação e convenção no plano do sig-
nificado, tal circunstância posiciona o signo em distanciamento do mun-
do sensível, distância que maior e mais intensa se faz com relação ao
encantatório - acessível somente à linguagem poética.
      Habitando espaços e tempos quiméricos, na poesia de Prade o eu
poético desconstrói o signo. Mas o termo desconstrução, ainda que se
referindo ao texto de Derrida, surge neste ensaio em acepção diversa.
Ganha sentido de ontogênese afeta às imagens e ao logos, desviando-
se do estabelecido e do absoluto. Nesse sentido, a desconstrução indica
diferença e diferencial instaurados pela poesia. Diferença e diferencial
regidos pelo trabalho da imaginação posicionando-se como desvio, ou
esquiva, ou desmonte, ou transgressão, porque, negando-se à repetição,
a poesia de Prade se desvia do discurso, da cultura e do mundo objeti-
vo, através do encantatório. Mas, de modo paradoxal, dirige-se aos mean-
dros da urbe. Assim sendo, neste escrito o termo desconstrução relacio-
na-se aos processos criativos na poética das metamorfoses, produzindo
as imagens e o logos, em esquiva do estabelecido.
      Na poesia de Prade, as desconstruções tangenciam a origem das
imagens e do logos. Em esquiva do plano do conceito, essas descons-
truções vão à raiz da experiência primeira. Por tratar-se de um logos
aderente à imagística, reportamo-nos às imagens desde as sensações,
quando, nos poemas, os estratos imagético-semânticos deixam transpa-


5
    Gramatologia. Trad. de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
    Perspectiva, 2004, p. 15.
18                                Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



recer movimentos da imaginação trabalhando a matéria. Em movimen-
to inventivo, a poesia de Prade desvia-se do discurso para acolher o lu-
gar e o tempo do logos originário. Para receber o logos dizente dos fe-
nômenos poéticos, traduzindo-se em estados anímicos. Mas não se tra-
ta de psicologismo. Trata-se de sentimentos intrínsecos à poesia. Senti-
mentos que nascem nas propriedades e qualidades da matéria transfor-
mada pelo poético. E fluem - tal como se fossem nossos sentimentos.
       Em errância, o Unicórnio se faz acompanhar de sentimentos e es-
tados anímicos advindos das impressões das substâncias originárias. Ao
fogo, a luminosidade. À água, o intimismo. Ao encontro do fogo e da
água, a solidão. O amor. O difuso. Os estados indiferenciados. As me-
tamorfoses. Com vida imagética, a solidão do Unicórnio não significa
solidão. Às diversas atribuições do solitário osso do Unicórnio, a soli-
tude se transforma. Ganha poderes de doação. Nos limites e desdobra-
mentos do chifre único transformado em chama, ocorrem jogos imagé-
ticos. Aos efeitos lúdicos das idéias e palavras, nesse fabuloso animal
emergem variações do solitário chifre. Fogo de uma chama benfazeja,
nesse órgão e objeto de variações, a solidão pulsa. Ilumina-se. Ilumina-
da, oferece ao eu poético a ambivalência que lhe sustenta a vida, nesse
movimento do signo desconstruindo-se. Na poética do Unicórnio a so-
litude adere a outros sentidos. Substancializa-se. Transforma-se em ou-
tras imagens a serem pronunciadas. Ou mantidas em silêncio pelo lo-
gos poético. Palavra primordial. Tangenciando o encantatório e o fantás-
tico, a poética das metamorfoses revela singularidades técnicas e poéti-
cas no trabalho de Prade.

1.2. A Questão Técnico-poética na Poesia de Prade
      Seguindo o rumo do Unicórnio, das serpentes alegres, das coisas,
das paisagens e interiores, que se animizam ou personificam nos versos
de Prade, encontramos um verdadeiro universo de seres fantásticos per-
correndo sua poesia. Inseridos na imagística do poeta, em ambiência
onírica esses seres são ditos pelo logos, que conduz elementos tensio-
nais, desconstruindo antíteses e ressaltando paradoxos afetos às diferen-
ças e ao diferencial técnico e poético na obra do autor. Quanto às sin-
gularidades técnico-poéticas na obra de Prade, seus comentaristas regis-
tram diretrizes e enfoques diversos entre si, mencionando, por exemplo,
vínculos com o Expressionismo, com o Surrealismo e com o Barroco.
Atendo-nos à poesia de Prade, ao refletir sobre tais liames, identifica-
mos insurgência de traços que se negam às técnicas expressionistas e
surrealistas. Quanto aos vínculos barrocos, observe-se, eles existem
Mirian de Carvalho                                                                 19



numa acepção própria. Conforme o mencionado, na obra de Prade a
poética das metamorfoses indica relação imagético-semântica e outras
implicações que envolvem a noção de Endobarroco, tal como definida
neste ensaio.
      Desse modo, no curso da poética das metamorfoses, não há, na
poesia de Prade, liames afetos à escrita expressionista, que se define,
dentre outras características, por marcantes estruturas de subordinação,
o que não ocorre na poética do autor. Caracterizando-se, salvo raras
exceções, por escrita ordenadamente caótica, a poesia de Prade revela
ausência de subordinações e subsume outras origens. Observe-se ainda
que, no bojo das técnicas expressionistas, as imagens caminham pela
metáfora, com resquícios de verossimilhança externa, acrescentamos,
enquanto na poesia de Prade os recursos imagéticos enveredam pelo
encantatório. Por outro lado, alguns recursos morfossintáticos, tais como
anáforas, paralelismos, refrão - comuns aos procedimentos expressio-
nistas6 -, não se mostram numericamente suficientes para assim carac-
terizar a poesia de Prade. Quanto à interpretação do mundo, nos textos
expressionistas quase sempre se percebe posicionamento social, de certa
forma particularizado. De modo diverso, na poesia desse autor a adesão
à problemática social não se particulariza, estende-se a todo um povo7.
E, acrescentamos, realizando-se pelos não-ditos, volta-se para visão da
existência como questionamento dos limites da vida e do Homem. Como
questionamento dos limites que se impõem à liberdade, no sentido de
livre-arbítrio, bem como no sentido de atuação do animal político.
      Sob esse prisma, a crítica à sociedade e às convenções viabiliza-
se pelas imagens desviando-se da cultura, através do logos esquivando-
se do signo e por meio da desconstrução dos dados objetivos e/ou das
convenções na esfera social, enfocados sob prisma encantatório. Acres-
cente-se a esse movimento a desconstrução da subjetividade centrada em
si mesma, a dar outra ordem ao mundo. Assim sendo, Prade não se lan-
ça ao psicologismo, tal como este se relaciona às técnicas da escrita
expressionista hoje, como herança do Expressionismo8. Ressalte-se que

6
    Mencionamos aqui algumas observações de Proença, quanto às estruturas de subor-
    dinação e quanto aos recursos morfossintáticos, na escrita expressionista hodierna
    (notas de aulas).
7
    GIUDICE, Maria del. Realismo Simbolico e Surrealismo Paradossale. In FIGUEI-
    REDO, Guilherme e PRADE, Péricles. Palermo: Italo-Latino-Americana, 1980, p.
    35.
8
    COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ci-
    vilização Brasileira, 1976, p. 241.
20                                        Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



na poética das metamorfoses, a bem dizer, não há subjetividade em opo-
sição à objetividade. As duas esferas ultrapassam-se, em busca de um
pensamento aberto a outras possibilidades poéticas e lógicas, sem per-
der de vista o mundo. Sem arredar o pé do chão, para reunir o quiméri-
co e o corpo. Com visão aguçada dirigindo-se à realidade, no poema
“Viagem do Enforcado além da Corda”9, que alude ao caso Wladimir
Herzog, o poeta não se prendeu aos fatos de modo descritivo ou panfle-
tário: “verifica-se que Péricles Prade se esquivou brilhantemente de to-
das as tentações à grandiloqüência e à retórica, tão freqüentes no trata-
mento dessa temática”10. Por outro lado, acentua Willer, o tema do en-
forcamento aparece em obras ficcionais anteriores, imbricado em simbo-
logias diversas11 - o que não exclui de seu trabalho a dimensão social -,
não se perdendo ele da realidade nem da consciência política afetas ao
acontecimento, ao universalizar a referida temática, inserindo-a com
destaque em sua poesia.
       No trabalho de Prade, o único traço que poderia rememorar pro-
cedimentos expressionistas seria a presença das antíteses, simbolizan-
do contrastes entre luz e sombra, e acentuando oposições. Mas lembre-
mo-nos de que na poética das metamorfoses as antíteses se descons-
troem, desmontando o discurso e criando referentes de natureza poéti-
ca. Quanto aos teóricos que qualificam a obra de Prade como surrealis-
ta, talvez essa observação se deva às referências ao mito e a seus con-
gêneres constantes da poesia desse autor, bem como à presença do fan-
tástico inserindo-se em sua imagística. Mas a poesia de Prade não se co-
aduna com as técnicas surrealistas. Ainda que, sob os aspectos analíti-
co e interpretativo, tenhamos enfatizado neste ensaio a imagística e o lo-
gos, em sentido genérico não se faz possível, com relação à poesia, uma
leitura que se afaste totalmente das questões morfológicas, bem como
não se faz possível uma análise que ignore a interação dos traços semân-
ticos e imagísticos que, na poesia do autor, marcam um diferencial téc-
nico-poético não pertinente ao Surrealismo. Para refletir sobre o veio
surrealista na poética das metamorfoses, iniciamos por um argumento
que, embora se refira à ficção, julgamos adequado ao campo da poéti-

9
     In PRADE, Péricles. Os Faróis Invisíveis. São Paulo: Massao Ohno, 1980, pp. 9-15.
10
     WILLER, Cláudio. “Posfácio”. In PRADE, Péricles. Os Faróis Invisíveis. São Pau-
     lo: Massao Ohno, 1980, p. 49.
11
     Idem.
12
     RONALD, C. “A Aventura Criadora de Péricles Prade” (Prefácio). In PRADE, Péri-
     cles. Os Milagres do Cão Jerônimo. 5ª ed. Florianópolis: Letras Contemporâneas,
     1999, p. 11.
Mirian de Carvalho                                                         21



ca, ao observar-se que Prade “não automatizou a linguagem”12. Sabemos
que no Surrealismo, e entre os que adotaram técnicas surrealistas em
momentos posteriores, a escrita automática não é uma regra. Mas há um
pressuposto que se relaciona à escrita surrealista. Seja ela automática ou
não, no tocante à captação e ao registro dos temas e motivos, no Surrea-
lismo a escrita deixa transparecer recorrência ao irracionalismo.
      Assim sendo, considerando-se aspectos imagísticos e semânticos
advindos do fazer literário, observamos que a escrita surrealista relacio-
na-se a sintaxes que apresentam disjunções próprias dos estados aními-
cos puros, numa tentativa de apreendê-los, tal como ocorreriam no ho-
mem primitivo, na loucura, no esoterismo, ou em instâncias similares,
através de registros inconscientes. Realizando ou não escrita automáti-
ca, os poetas surrealistas tendem a registros que se opõem à razão cog-
noscitiva13, tendência não verificada na poesia de Prade. Observe-se
que em sua poética a dimensão cognoscitiva ganha outros rumos, que
se traduzem em pensamento divergente, deflagrando estratos ideativos.
Corroborando esse dado, verificamos acurado trabalho na poesia de
Prade, trabalho esse que se relaciona a técnicas não calcadas no aleató-
rio e/ou no acaso captando fluxos mentais próprios do registro incons-
ciente. Relembremos que nos alvores do Surrealismo, assim como em
períodos posteriores, alguns poetas se lançaram à captação direta do
psiquismo inconsciente ou subconsciente, numa prática que se traduzia
na desordenação ideativa e sintática do poema. Nessa circunstância, com
antecedentes dadaístas, devem ser mencionados casos de recorrência a
estados mentais livres das amarras sociais e de outras convenções, per-
mitindo criações coletivas, tal como a famosa experiência que gerou “le
cadavre exquis”: técnica de trabalho coletivo em que vários autores es-
creviam ou desenhavam algo num pedaço de papel, sem saber o que os
outros haviam registrado14, cujo exemplo mais conhecido registra o es-
crito: “Le cadavre exquis boira le vin nouveau.”
      Prade tangencia o nonsense. Sua poesia alcança as paragens do
onirismo. Porém, em seus versos tais instâncias diversificam-se entre
ironia, sátira e até mesmo em incursões burlescas, que, entretanto, não
se revelam antíteses da razão, mas apenas se esquivam de uma “certa
razão”, que se assume antítese do poético. Se o fantástico demarca pon-
tos nodais na poesia de Prade, note-se, porém, que, não restrito ao Sur-

13
     DUROZOI, Gerard; LECHERBONNIER. Le Surréalisme. Paris: Larousse, 1972, p.
     12.
14
     Ibidem, p. 122.
22                                          Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



realismo, o material onírico e o devaneio15 compõem o universo poéti-
co de modo amplo e diversificado. Em contrapartida, conduzindo pro-
postas estéticas que se distanciam da razão cognoscitiva, o Surrealismo
não se reduz ao plano do onirismo imagístico. Ainda que sua tônica seja
o irracionalismo, os surrealistas tangenciaram “projeto político”, tal
como se depreende dos Manifestos. Ao descartarmos na poética de Prade
o veio surrealista, deve ser notado que, no Brasil e no restante da Amé-
rica Latina, muitas das manifestações poéticas “classificadas” como
surrealistas relacionam-se ao Endobarroco, e, em alguns casos, são
transposições do realismo mágico ao plano da poesia - questões essas
que carecem de conceituação e, como tal, merecem ser estudadas.
      Ainda que relacionada ao simbolismo mítico e receptiva ao oniris-
mo subjacente aos mitos, a poesia de Prade conduz o leitor a ilações
sugestivas de um pensar autônomo, por meio de uma razão aberta e dia-
lógica16, isto é, como enfrentamento da razão centrada em si mesma.
Como desvio da razão ordenada como limite e unidade. Como desvio
da razão absoluta. E como desvio de uma razão pura. No trabalho do
poeta, a razão não se mostra antítese do poético, repetimos. Condizente
com uma razão aberta - em virtude dos elos endobarrocos que permi-
tem contradições -, a poesia de Prade sugere caminhos em esquiva do
princípio lógico de identidade. Lembremos quanto a isso que, na tradi-
ção ocidental, pautada na identidade, a ordem do pensar tem sido quase
sempre concebida como busca do Uno, seja ele: eidos, arquê, telos, ener-
geia, ousia, alétheia, etc.17 Os surrealistas igualmente negaram essa ra-
zão fechada e centralizadora. Porém, enfrentando-a através de um irra-
cionalismo que admite o acaso na criação poética. Afastando-se dos es-
quemas centralizadores, na obra poética de Prade, sobretudo nas Varia-
ções sobre o Unicórnio, o afastamento da estrutura sígnica exacerba-se
em virtude das metamorfoses que integram imagem e logos. Ao fazer
alusões ao Uno e ao múltiplo, mormente na concepção do Unicórnio,
Prade conduz as imagens e a linguagem ao campo das diferenças nos
planos existencial e ideativo, e não na instância do princípio de identi-

15
     Trata-se da imaginação poética, denominada igualmente devaneio, na filosofia de
     Bachelard. Consulte-se especificamente A Poética do Devaneio. Trad. de Antonio de
     Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
16
     Questão que pode ser estudada a partir de O Novo Espírito Científico (trad. de Juve-
     nal Hahne Júnior. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968), de Bachelard, com des-
     dobramentos que, sob outros ângulos e temáticas, foram realizados por outros
     filósofos, dentre eles Derrida, no tocante à linguagem. Ver Referências Bibliográficas.
17
     DERRRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Trad. de Maria Beatriz Marques
     Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 231.
Mirian de Carvalho                                                             23



dade. Seguindo essa dinâmica, o trabalho do autor deflagra jogos de
idéias desviantes do irracionalismo, bem como dos esquemas fixos da
racionalidade e do dogma. A imagística de Prade sugere um pensar des-
pido de abstrações:

        O gato é a razão impura
                        Olhos verdes de Kant
                        sobre as mesas
                        onde o que fica não se situa18

      Nestes versos reveladores de ironia incontida no título do poema
“Esboço de um Gato enquanto penso”, o poeta sugere uma razão anco-
rada no mundo, tônica que abrange sua poesia como um todo, ao guiar-
se por perspicácia voltada para as falácias do pensamento direcionado
à abstração pura. Desmontando o gradio das jaulas amorosas19, onde
homem e animal se vêem em espelho, a razão que se aceita impura sol-
ta-se ao pisar no chão. Sem bagagem irracionalista, ela anda pela cida-
de, desdobrando-se em reflexões sobre o estabelecido. Desviando-se das
verdades absolutas, dos esquemas de pura abstração, bem como da estru-
tura do signo, as imagens poéticas criam suas direções e abrem-se ao lo-
gos, recortando-se como olhar agudo sobre o mundo, revendo-se ante
as metamorfoses que culminam nas variações do Unicórnio. As imagens
afloram no momento áureo desse ser gerado nas obras anteriores, nas
cercanias do espaço e do tempo das serpentes, dos pássaros e dos ani-
mais ferozes, conduzindo o pensamento ao paradoxo. Paradoxais, as
metamorfoses desordenam e ordenam o mundo. Ordenam. E desorde-
nam. Na tessitura do logos poético.
      Desconstruindo-se, as antíteses deflagram invenções e desdobra-
mentos imagísticos e lingüísticos. Desconstruindo-se, os pólos antitéti-
cos geram por vezes figurações reversíveis. Geram imagens em proces-
so. E imagens transientes. Realizando-se em variações, o corpo do Uni-
córnio não se define como forma. Não é alvo de conceitos. O Unicór-
nio integra o absurdo e o fantástico à razão alerta ao mundo. Alerta à
urbe. No conjunto, esses traços afetos a estratos imagético-semânticos
na poética das metamorfoses revelam no trabalho de Prade vínculos
endobarrocos - tópico que mereceu especial análise no decorrer deste
ensaio.
18
     PRADE, Péricles. “Esboço de um Gato enquanto penso”. Jaula Amorosa. Florianó-
     polis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 87.
19
     Referência à obra Jaula Amorosa, op. cit.
24



                   2 - Panbarroco e Endobarroco

        Sou
        e não sou
        mal crescente, monstro generoso, animal
        opositor de cabeça purpúrea, metáfora
        de um Deus de intenções ambíguas1

2.1. Elementos “Barrocos” na Escrita Hodierna
      Dando prosseguimento à identificação das características de cunho
imagético-ideativo na poética de Prade, percebemos que nas metamor-
foses do Unicórnio as oposições eclodem em simultaneidades. Multifa-
cetas, as oposições tornam-se ambivalentes ou plurívocas. Nos nomes
e no corpo do Unicórnio, e nas qualidades e atribuições do seu chifre,
as variações referendam a antelinguagem, valorizando semânticas an-
teriores ao discurso, e de origem diversa do discurso: trata-se dos senti-
dos das imagens primeiras captadas pela imaginação, acolhendo estra-
tos ideativos de aguçado pensar através das imagens reunidas ao logos.
Insurgindo-se como questionamento da razão fechada e centrada em si
mesma, a poesia de Prade enraíza-se nos desdobramentos do pensamen-
to contemporâneo. Em transformação e em escorço, o Unicórnio induz
o leitor a pensar o mundo, através das diferenças afeitas às metamorfo-
ses, deflagrando imagens inusitadas, tais como “A cabeça é a de Osíris:
o acéfalo antigo”, “parafuso faminto”, “antes do primeiro coito alado”,
“carne espiritual”, “chave cifrada”, que, sugerindo outras possibilidades
lógicas, atingem contradições afetas ao ser e ao não-ser, nas figurações
do Unicórnio:

        Sou
        e não sou2

     Entre possibilidades afetas à diversificação das imagens e do pen-
samento, a poesia de Prade encarna o onirismo em vigília. Origina-se
nos olhos despertos. Voltados para os sentidos. Conjugando articulações

1
     PRADE, Péricles. “Representações”. Em Forma de Chama: Variações sobre o Uni-
     córnio. São Paulo: Quaisquer, 2005, p. 20.
2
     Idem.
Mirian de Carvalho                                                                      25



singulares, o poeta busca instâncias semânticas que transcendem às su-
bordinações gramaticais. E, reconhecendo o liame endobarroco no tra-
balho do autor, torna-se necessário fundamentar tal afirmativa, observan-
do-se que, em afastamento do Modernismo, marcadamente a partir de
1970, mas com alguns recuos significativos na década de 60, alguns
artistas3 e escritores vêm buscando padrões auto-referentes. Nessa bus-
ca, torna-se possível identificar manifestações estético-artísticas singu-
lares que extrapolam a denominação Pós-Modernismo, cuja abrangên-
cia é muito ampla, e meramente cronológica. Face às atuais diferenças
no campo da ficção e da poesia, segundo o professor e ensaísta Ivan
Cavalcanti Proença, verifica-se a partir dos anos 90 uma exaustão do
modernismo no campo da Literatura, com a insurgência de poetas que
recorrem à forma fixa e à isometria, mas sem conotações passadistas de
cunho parnasiano4, convivendo com autores que continuam adotando o
verso livre, porém interpretando e transgredindo certos recursos moder-
nistas, como a escrita sincopada e a inexistência de adjetivação.
      No bojo desse momento poético que admite grande flexibilidade
formal e revisão de recursos atinentes à linguagem e ao gênero, define-
se clima propício a incursões endobarrocas, tal como ocorre na poesia
de Prade. Para definir tais incursões, consideramos importante visitar
teorias relacionadas ao Barroco, em acepções diversas, mas considera-
das relevantes para o entendimento da noção de Endobarroco, engloban-
do as seguintes abordagens: a noção de eterno barroco no pensamento
de Eugenio d’Ors; a concepção cíclica de Heinrich Wölfflin transposta
ao plano da Literatura; os estudos de Helmut Hatzfeld referentes aos
traços barrocos em períodos que vão do Renascimento ao Rococó; e
alguns tópicos do pensamento de Arnold Hauser. Mas para caracterizar
os caminhos do Endobarroco, vamos iniciar pelos estudos de Proença,
que, em substituição ao nome Neobarroco, que conota estilo, optou pela
denominação Panbarroco - mencionada igualmente por Afrânio Couti-
nho5, ainda que em sentido diverso. Assim como a noção de “eterno
barroco” no pensamento de Ors abrange as Artes e a Arquitetura atra-
vés dos tempos, a noção de Panbarroco nos estudos de Proença abran-


3
    Encontra-se em fase de preparo editorial texto de nossa autoria sobre o Endobarro-
    co na pintura de César Romero.
4
    Como exemplo destaque-se a poesia de Maria Theresa Noronha, O Verso Implume.
    Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 2005.
5
    Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976,
    p. 96.
26                                Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



ge a Literatura através dos tempos. Sob esse prisma, ressalte-se, do
mesmo modo, o Endobarroco não se refere a estilo de época. Engloban-
do interpretação das Artes e da Literatura, neste ensaio o nome Endo-
barroco abrange traços “barrocos” diferenciados, eclodindo em diferen-
tes obras e épocas, do Renascimento aos dias atuais.
       Para caracterizar o Endobarroco no tocante à escrita, conforme o
mencionado, buscamos subsídios nos estudos de Proença, que localizou
procedimentos panbarrocos em autores do século XX e em autores con-
temporâneos, e metodizou técnicas da escrita no âmbito do fazer literá-
rio hodierno. Ao delinear o perfil dos recursos pertinentes ao Panbarro-
co, Proença define-os em várias instâncias da ficção e da poesia. Em seus
estudos, o ensaísta enfatiza a freqüente transgressão da ordem direta do
discurso, em alguns casos gerando escrita densa - recurso esse que, do
ponto de vista da poesia, pode resultar no verso longo. Notando-se que
o Panbarroco abrange traços formais, morfossintáticos, sonoros, semân-
ticos e imagísticos, Proença ressalta na poesia a presença de “jogos an-
titéticos, inversões, paradoxos, oximoros, jogos de palavras usadas em
sentido lúdico, massas fônicas, paralelismos sintáticos e semânticos,
quiasmos, etc.”6 Ainda quanto a essa tendência no fazer literário hodier-
no, Proença afirma: “No Panbarroco, cultismo e conceptismo se apro-
ximam enquanto jogo de palavras e jogo de idéias, respectivamente.
Brincar com as palavras, inclusive associadas às construções antitéticas,
é bem-vindo, admitindo-se ainda as construções hiperbólicas, metáfo-
ras e símiles.”7
       Porém, observemos, uma vez que o Panbarroco não representa re-
tomada do estilo seiscentista, à escrita literária atual não cabem exage-
ros na elaboração de escritos, qual fossem feitos àquela época: “Já não
se confundem os textos literários com os trocadilhos e jogos de palavras
gratuitos, presentes no Barroco. No entanto, as perífrases e repetições
simétricas de palavras e massas fônicas ocorrem no Panbarroco hoje.”8
Ao identificar essa tendência no plano da Literatura, a par dos jogos
verbais, Proença ressalta figurações relativas à angústia do homem e a
recorrência ao topos carpe diem9. O ensaísta destaca também, como tra-
ço da escrita panbarroca, as oposições, tais como: “céu e terra, virtude


6
     Notas de aulas.
7
     Notas de aulas.
8
     Notas de aulas.
9
     Notas de aulas.
Mirian de Carvalho                                                      27



e pecado, crença e descrença, paixão e ódio, luz e trevas, etc.”10 Ao iden-
tificar escritores cujas obras, em parte ou no todo, apresentam as carac-
terísticas mencionadas, Proença relaciona ao Panbarroco a narrativa de
Guimarães Rosa e a poesia de Carlos Pena Filho, dentre inúmeros ou-
tros exemplos, incluindo autores contemporâneos. Em virtude da afini-
dade lingüística, Proença igualmente localiza tais procedimentos em
autores portugueses, dentre eles José Saramago. Nesse sentido, não cabe
ao Panbarroco qualificativo de imprecisão quanto à validade crítica e
histórica, como menciona Coutinho11, uma vez que sua validade não se
atém a critérios estilísticos relacionados à abordagem do Barroco.
       Do mesmo modo, deve ser ressaltado que ao Endobarroco não se
adequam critérios de análise puramente estilística, posto ter ele impli-
cações ideativas abrangentes de uma dinâmica sociocultural, marcando-
se na Poesia e nas Artes através de estratos imagético-semânticos em
esquiva do princípio de identidade. Quanto à insurgência do Endobar-
roco, seja de modo parcelar ou mais abrangente, variando em gradações,
seus traços desdobram-se de modo diverso na poética de diferentes au-
tores. Assim sendo, ressalte-se que a diferença entre o Endobarroco e o
Panbarroco metodizado por Proença não se situa no plano da escrita li-
terária, mas no plano da concepção filosófico-cultural, que se insere no
Endobarroco, tendo como princípio a imagística hiperbólica conduzin-
do vínculo ideativo intrínseco, que, em desvio do princípio de identida-
de, atua desconstruindo antíteses e revelando, de modo explícito ou
implícito, instâncias de um pensamento divergente, relacionado a algum
plano da cultura.
       Compondo a poética das metamorfoses, convergem na poesia de
Prade essas características afetas à imagística e os traços do fazer lite-
rário aqui mencionados, interagindo com outros aspectos analisados ao
longo deste texto. Ainda que não pautada esta leitura em visão forma-
lista, destacamos na produção poética do autor elementos endobarrocos
explicitados, sobretudo, por estratos imagéticos, privilegiando “oposi-
ções” e diferenças, gerando paradoxos e oximoros, que se intensificam
em vários poemas em virtude das sonoridades. Assim sendo, na poesia
de Prade igualmente merecem destaque os estratos sonoros, que, diver-
sificando-se em sintagmas diacríticos, vocalizações, aliterações, colite-
rações, algumas poucas rimas e outros recursos fônicos, intensificam


10
     Notas de aulas.
11
     Op. cit., pp. 95-96.
28                                      Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



contrastes imagéticos e ritmos gerados por liames morfossintáticos. Mas,
atuando por meio de jogos verbais e ideativos e alçando-se às diversifi-
cações semânticas, o Endobarroco na poética de Prade lança-se à iro-
nia, à sátira e ao burlesco, intrínsecos ao percurso poético do autor.
      Além dos traços já mencionados, para compreender o Endobarro-
co na poética de Prade, do mesmo modo analisamos e valorizamos, de
acordo com uma visão contemporânea, aspectos morfológicos e ideati-
vos descritos por autores que visitaram o Barroco em diversos estudos
e linhas. Revisitados, esses aspectos foram analisados na perspectiva
endobarroca, com ênfase na obra Em Forma de Chama: Variações so-
bre o Unicórnio, dando-se destaque ao trabalho da imaginação, trans-
formando o nome e o corpo desse ser fantástico, em face das metamor-
foses que se iniciam nos elementos postos em relevo na poética de Pra-
de: o fogo e a água. Do ponto de vista de uma incursão endobarroca na
poesia de Prade, enfatizamos na poética das metamorfoses, sobretudo,
as seguintes características: a imagística hiperbólica, que, ultrapassan-
do a metáfora e o símile, conduz ambivalências e paradoxos; a descons-
trução de antíteses; a escrita caótica e/ou paratática; os jogos de pala-
vras e de idéias; e a insurgência do topos carpe diem. E primordialmente
o encantatório, mobilizando jogos ideativos em desvio do princípio de
identidade.
      Tais características evidenciam no trabalho de Prade processos da
imaginação, produzindo estratos imagético-semânticos, seja na prosa
poética, seja no verso livre, ou na forma fixa. Destacando qualidades
rítmico-sonoras, ao valer-se da forma fixa, Prade não se prende à rigi-
dez. Quanto às variações formais, a par do verso livre, o poeta igualmen-
te recorre ao soneto, às quadras, aos tercetos, aos dísticos, porém sem
esquema rímico. Quanto à isometria, esta se faz recurso raro, ainda que
se insurgindo em alguns trabalhos do poeta, para manter regularidades
rítmicas afetas a alguns versos, como, por exemplo, em Ciranda Anda-
luz, observando-se ainda que, em determinadas obras, contracenam for-
mas fixas e versos livres: “Em realidade, Péricles Prade realiza com essa
miscigenação de ritmos a fusão da tradição e da modernidade.”12 Nessa
miscigenação, Prade desconstrói formas tradicionais, bem como des-
constrói os preceitos do Modernismo, cabendo aludir a um movimento
intrínseco ao Endobarroco, atuando como desvio de padrões. Em sen-
do as potencialidades imagéticas ponto áureo na poesia de Prade, ul-
trapassando metáforas, alegorias e símiles, elas se exacerbam através da

12
     GOMES, Álvaro Cardoso. “Orelha I”. In PRADE, Péricles. Além dos Símbolos. Flo-
     rianópolis: Letras Contemporâneas, 2003.
Mirian de Carvalho                                                                   29



personificação, da animização, da hipálage, da hipérbole e de outras pos-
sibilidades desviantes da verossimilhança externa.
      De acordo com esse desvio, em certos poemas ocorre enumeração
caótica, articulando imagens inusitadas e costurando o logos poético por
meio do paradoxo: “Assim, a um poema anterior, liga-se umbilicalmente
o poema seguinte ou os versos de um poema ao título do mesmo, de sorte
que, permanentemente, há uma tensão cuja leitura (percepção e tradu-
ção) exige do leitor uma constante atenção e adesão ao texto.”13 Desse
modo, na poética de Prade, o verso curto não significa facilidade ou pres-
sa. Estabelecendo articulações intrínsecas à totalidade da obra em que
se insere, o verso curto pontua e interliga lugares e tempos poéticos. E
interliga oposições e diferenças, por meio de articulações singulares.
Assim como no Barroco estilístico, no Endobarroco as imagens asso-
ciam jogos díspares de palavras e idéias, mas tais jogos não repetem exa-
tamente as mesmas figurações barrocas. Eles se renovam de acordo com
o pensamento característico de cada época. E diversificam-se na poéti-
ca de Prade, renovando traços do fusionismo, que se caracteriza pelo
encontro de opostos nas instâncias semânticas intrínsecas às imagens.
Essas instâncias revelam-se como endossentidos, ou seja, trazem senti-
dos implícitos às imagens indicando oposições, diferenças e contrastes,
que se reúnem sob vários aspectos na poética das metamorfoses.

2.2. O Fusionismo e as Instâncias Ideativas na Poética de Prade
      Na poesia de Prade, detectamos vários traços endobarrocos que,
articulando-se a instâncias semânticas, se desdobraram da estilística
barroca, e, renovando-se nos dias atuais, foram mencionados e/ou ana-
lisados com referência ao todo da poética do autor, dentre outros que
agora complementam esta leitura. Esses traços decorrem primordial-
mente de um fusionismo, ou seja, de uma harmonia entre os opostos,
questão essa estudada pelos teóricos do Barroco literário e mencionada
nos textos de Hatzfeld14. Igualmente descritas por diversos autores e
relacionando-se, diretamente ou não, ao fusionismo, no Endobarroco
detectam-se inúmeras outras características comuns à escrita “barroca” -
características essas que, guardadas as diferenças relativas à poesia ho-
dierna, surgem modificadas e relacionam-se ao percurso poético de Pra-

13
     HOHLFELDT, Antônio. “Pequeno Tratado Poético das Asas: Exegese” (Posfácio).
     In PRADE, Péricles. Pequeno Tratado Poético das Asas. Florianópolis: Letras Con-
     temporâneas, 1999, p. 76.
14
     Estudos sobre o Barroco. Coleção Stylus. Trad. de Célia Barretini. São Paulo: Pers-
     pectiva, 2002, p. 89.
30                                         Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



de, em ramificações semânticas aqui descritas, com ênfase nas metamor-
foses do Unicórnio:
        a - Ordem desordenada15: em oposição à clareza do texto “clás-
        sico”, a configuração da escrita endobarroca muitas vezes apre-
        senta enumeração caótica, inversões, adornos, inexistência de
        conectivos, etc., dentre outros indícios. Quanto à ordenação em
        desordem, destaque-se que esse modo de concepção do poema
        acompanha a poesia de Prade desde os primeiros versos, em
        desvio da ordenação lógica, com grande ênfase na obra Em For-
        ma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. Nesse trabalho, as
        imagens sofrem variações e renovam-se sob diferentes circuns-
        tâncias, explicitando sentidos afetos à linguagem, que se articula
        de modo desordenado em virtude da quase total inexistência de
        conectivos e em virtude de muitas inversões. Seguindo essa es-
        crita ordenadamente caótica, o poeta recriou o corpo e o nome
        desse animal fabuloso, vivendo existência de variações, que
        abrangem estados indiferenciados. E transitivos.
        b - Perspectivismo16: enfoque singular do mundo, do kósmos e
        da vida, captados pelo eu poético. Tal angulação realiza-se numa
        paisagem abrangente de coisas e seres apreendidos em ângulos
        singulares e até particulares. Trata-se de espécie de aura envol-
        vendo o personagem, a cena ou a imagem, ou simultaneamente
        todos eles, conforme a natureza do texto. Sob esse ângulo, ao
        descentrar o signo, o Unicórnio revela-se em errância, por des-
        locar-se ele abandonando o centro e a angulação privilegiada
        para revelar-se heteróclito. Para revelar-se “eu” e outro, encar-
        nando diferença e diferencial entre corpos e nomes, e deflagran-
        do outras possibilidades de existência, tal como se fosse ele
        concebido em escorço17, rememorando a perspectiva de ponto
        múltiplo, própria do Barroco. Assim apreendido o Unicórnio,
        como que surpreendido numa visão singular, realizam-se no
        poema imagens e ideação em esquiva do Uno e do absoluto.
        Intimamente relacionado ao perspectivismo, deve ser então con-
        siderado o estilo prismático renovando-se enquanto faceta en-
        dobarroca.
15
     O tema remete a Casalduero apud Hatzfeld, op. cit., p. 91.
16
     Esse tema remete a comentários de Galileu sobre os escritos de Tasso, através da
     abordagem de dois autores. Cf. Spoerri e Toffanin apud Hatzfeld, op. cit., p. 91.
     Hatzfeld, (loc. cit., nota nº 38) refere-se também a Aristóteles, mencionando na Po-
     ética do filósofo passagem alusiva a afinidades entre a Epopéia e a Tragédia.
17
     Expressão atribuída a Toffanin apud Hatzfeld, op. cit., p. 91.
Mirian de Carvalho                                                                      31



           c - Estilo prismático18: trata-se do enfoque de ações de um he-
           rói ou anti-herói refletindo-se na consciência de outros perso-
           nagens com os quais interage e aos quais se remete entre ações
           e pensamentos - circunstância cabível à poesia épica. Analisa-
           da neste ensaio como Epopéia, a instância ou “refração” pris-
           mática, ou seja, a referência a um ato com possibilidades de
           desdobramentos, adequa-se a outros momentos épicos da obra
           de Prade. Mas relaciona-se em especial à obra Em Forma de
           Chama: Variações sobre o Unicórnio, poema em que o fabulo-
           so animal ganha luzes de herói, cujos feitos, ações, afetos e atri-
           buições refletem-se em outros “personagens” referidos pelos
           estados anímicos do Unicórnio. Tal como ocorre na pintura bar-
           roca, em que os planos se entrelaçam, observamos que, através
           das metamorfoses, ao fabuloso animal imbricam-se muitos cor-
           pos e nomes - atuando como espelho e diferencial. O espelho
           mostra diferenças. Nunca a mesma imagem. E o diferencial se
           explicita a cada nova imagem que se cria para trazer ao mundo
           o Unicórnio, através de prismas espaciais e temporais, em ho-
           ras e circunstâncias diversas, que, por sua vez, se relacionam ao
           elemento água: espelho e reflexo das variações do Unicórnio.
           Espelho e reflexo do fogo, em visão prismática.
           d - Claro-escuro19: aspecto que, trazido metaforicamente das Ar-
           tes Plásticas, revela tensões comuns ao Endobarroco por meio
           de contrastes. Assim como nas Artes e na Arquitetura, esse cla-
           ro-escuro concentra tensões entre luz e sombra, atribuindo à
           poesia certa tragicidade, entre oposições e relações do claro e
           do escuro em contrastes abruptos. Na poesia de Prade, esse en-
           contro abrange os estratos sonoro, morfossintático e imagético,
           apresentando-se por meio de graduais diferenciações, no percur-
           so da produção poética do autor, vindo a integrar oposições que
           se intensificam e acompanham a Epopéia do Unicórnio, entre
           figurações simbólicas da chama.
           e - Amálgama paradoxal do racional com o irracional20: trata-
           se de recorrência ao encontro do racional e do irracionalismo no

18
     Esse tópico se reenvia a Ortega y Gasset e Spitzer apud Hatzfeld, op. cit., pp. 91-93.
19
     Relacionando-se às oposições entre luz e sombra, esse tema remete aos estudos de
     Spoerri e de Grilo apud HATZFELD, op. cit.
20
     A questão da complementaridade do racional e do irracional remete-se ao trabalho
     de Schmarsow apud HATZFELD, op. cit., p. 97.
32                                    Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



         plano literário, admitindo o paradoxo como raiz do pensamen-
         to. Esse traço se revelou no Barroco, refletindo nas imagens in-
         cursões do pensar e do imaginar, lançando-se à fantasia, ao len-
         dário, ao mito e seus congêneres. De modo similar, no Endobar-
         roco esse liame com o onirismo determina-se pela imaginação,
         revisitando e recontando lendas e mitos. E desviando-se da nar-
         rativa. Na errância do Unicórnio, esse amálgama paradoxal
         abrange a matéria imaginada de onde nascem seres fantásticos,
         como o Unicórnio coroado pelo fogo.
      Na confluência dessas instâncias endobarrocas, algumas delas re-
lacionadas ao fusionismo, o Unicórnio modifica-se como o movimento
da chama, gerando outros animais fabulosos que com ele convivem.
Dragões. Serpentes. Búfalos. Touros. Ou tantos outros, desdobrando-se
em atos e nomes. E trazendo à tona irradiações dos não-ditos. Torna-se
então possível transpor ao Unicórnio a frase que originariamente se re-
fere ao surgimento da Fênix nas obras poéticas: “é essencialmente uma
imagem tornada Verbo”21. Assim como a Fênix, o Unicórnio torna-se
verbo originário. Esse verbo se inicia nas mutações do fabuloso cavalo
coroado pelo chifre-em-forma-de-chama. Adornado pelo fogo, o Uni-
córnio revela sua origem na matéria imaginada. Mas ante as singulari-
dades endobarrocas intrínsecas à poética de Prade e considerando que
nenhum estilo se repete, não realizamos mera descrição de traços mor-
fológicos constantes da poesia desse autor. Ainda que através de digres-
sões e desdobramentos, visitamos o pensamento de alguns autores, cu-
jas idéias corroboram as diretrizes do Endobarroco.
      Como foi mencionado, para fundamentar a noção de Endobarro-
co recorremos a alguns aspectos do pensamento de Eugenio d’Ors no
que tange a uma leitura da questão do “barroco” através dos tempos,
opondo-se à concepção do Barroco enquanto estilo de época. Assim
sendo, observando-se que, no terceiro e no quarto capítulos deste tra-
balho, a partir do pensamento de Eugenio d’Ors, Heinrich Wölfflin e
Helmut Hatzfeld foram enfatizadas questões gerais atinentes ao Barro-
co estilístico ou não, caso o leitor não queira se deter em tais referên-
cias, poderá dar continuidade à sua leitura a partir do quarto capítulo,
que se remete à abordagem da poesia de Prade enfocada do ponto de
vista da imaginação criadora.


21
     BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma Poética do Fogo. Trad. de Norma Tel-
     les. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 52.
33



        3 - Eterno Barroco, Barroco e Endobarroco

       Deus mutante, as vestes
       da terra são as do paraíso
       mas Adão continua nu, a costela
                              quebrada1

3.1. O “Eterno Barroco” na Filosofia de Eugenio d’Ors
      Reconhecendo singularidades imagético-ideativas na poética de
Prade, chegamos à noção de Endobarroco, a partir dos traços da escrita
panbarroca, tal como descrita por Proença, bem como por meio de as-
pectos ideativos marcadamente explicitados pelas imagens encantató-
rias, e ao logos poético em desvio do princípio de identidade, descons-
truindo antíteses para criar possibilidades semânticas. Sob esse aspec-
to, sem vincular a noção de Endobarroco a instâncias meramente esti-
lísticas, não descartamos de todo a importância dos referenciais morfo-
lógicos. Mas, ao tangenciá-los na poesia de Prade, consideramos alguns
aspectos do pensamento de Eugenio d’Ors e destacamos certos conteú-
dos que tangenciam a noção de eterno barroco, ainda que através de
digressões, ressaltando-se que Ors inaugurou importante vertente de
pensamento sobre o Barroco, vertente essa que abarca o domínio meta-
físico trazido ao plano sensível. Realizando articulação entre o arquetí-
pico e o cultural, o autor remete seu pensamento à Escola de Alexandria,
cujos princípios filosóficos se pautam na noção de éon.
      Segundo Ors, o éon implica constância arquetípica aflorando no
plano cultural. Com relação ao Barroco, verifica-se uma constante, eclo-
dindo em manifestações múltiplas e variacionais - nunca por meio da
repetição. Nessa constante, a base arquetípica não lhe confere rigidez
categórica, porque o éon barroco se revela diversificado através dos tem-
pos, mostrando-se singular nas Artes e nas demais manifestações da
cultura. Segundo o referido filósofo, o éon abarca as constantes barro-
cas com abrangência universal, diferenciadas das constantes clássicas
inseridas em certas expressões artísticas. Mas Ors não se prende à aná-
lise formal da Arte: trata-se de entender o “barroco” enquanto concep-
ção de mundo. Enquanto estilo de cultura. Quanto à eclosão barroca,

1
    PRADE, Péricles. “Osíris”. Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. São
    Paulo: Quaisquer, 2005, p. 26.
34                                       Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



segundo esse autor, em que pese a insurgência de uma constante tangen-
ciando o domínio metafísico, o éon sempre ressurge em transformação.
Do ponto de vista das expressões plástico-artísticas, o “barroco” assim
concebido localiza-se inclusive na Pré-história, e, alcançando diversifi-
cações em tempos históricos, abarca o Oriente e o Ocidente. Ao curso
de tal abordagem, o autor não se ocupou da classificação de espécies,
nem de tipologias, nem de elementos no plano das Artes, uma vez que
a constante barroca é variacional, observemos.
      Seguindo diretriz filosófico-cultural, Ors esquadrinhou no “barro-
co” manifestações estéticas caracterizadas por tensões e contrastes, tal
como a natureza explodindo viva e lúdica. Explodindo livre. Trazendo
sentido libertário, no campo das Artes o éon congrega eventos “polimor-
fos”2, ainda que guardando uma referência arquetípica. Aqui, o arquéti-
po refere-se a um dinamismo intrínseco aos fenômenos culturais, ou
seja, trata-se de movimentos vitais, inscrevendo o Barroco em várias
circunscrições da experiência humana do pensar e do fazer - inclusive
na esfera política. De acordo com a filosofia de Ors, seguindo fluxo di-
ferencial, o “barroco” insurge-se contra o estabelecido. Questiona o
definitivo. Desestabiliza o absoluto. Recriando-se, o “barroco” conce-
bido fora das diretrizes estilísticas “pode renascer e traduzir a mesma
inspiração através de formas novas, sem a necessidade de copiar literal-
mente”3. Em esquiva do conceito de evolução, Ors analisa essa constante
na perspectiva de um eterno barroco4: um princípio universal cujo “mo-
delo” originário é a natureza caracterizada pelo movimento5 - a nature-
za relacionada à vida e à renovação.

3.2. Digressões e Reflexões sobre o “Eterno Barroco”
      De acordo com o entendimento do “barroco” como polimorfia e
como negação do absoluto, e de acordo com as características da escri-
ta panbarroca, aspectos que respectivamente se referem aos estudos de
Ors e de Proença, identificamos características endobarrocas na poesia
de Prade. E do mesmo modo as identificamos em obras de outros auto-
res e artistas contemporâneos, bem como localizamos tais característi-


2
     ORS, Eugenio d’. Du Baroque. Trad. de Agathe Rouart-Valéry. Paris: Gallimard,
     2000, p. 70.
3
     ORS, Eugenio d’. Op. cit., p. 91.
4
     DASSAS. “Présentation”. In ORS, Eugenio d’. Du Baroque. Trad. de Agathe Rouart-
     Valéry. Paris: Gallimard, 2000, p. XI.
5
     ORS, Eugenio d’. Op. cit., p. 103.
Mirian de Carvalho                                                            35



cas em vários outros períodos anteriores e posteriores ao século XVII,
de acordo com diferenciações próprias desses períodos. Assim sendo,
torna-se viável admitir, de acordo com a teoria de Ors, analogias esté-
ticas relacionadas ao Barroco, em momentos não pertinentes ao Seiscen-
tismo. Porém, enfatizando-se que esse autor destacou em seus estudos
o campo Artes, tecemos algumas reflexões sobre suas idéias nesse cam-
po, considerando-se que elas conduzem questões implicitamente afetas
à Literatura, do ponto de vista do trabalho da imaginação criando ima-
gens. Sob esse prima, seja na instância das Artes ou na instância da Li-
teratura, relembramos que as imagens, conforme o mencionado na In-
trodução, e tal como objeto de estudo ao longo deste ensaio6, não se re-
lacionam à representação, nem guardam vestígios de verossimilhança
externa.
      A imaginação poética produz imagens não calcadas na objetivida-
de. Atuando como desvio dos padrões da repetição, no Endobarroco as
imagens trazem princípios ideativos, isto é, instauram semânticas que
implicam pensamento divergente. Sendo fonte primeira do Seiscentis-
mo, a imaginação igualmente se explicita de modo singular nas Artes e
na Poesia de cunho endobarroco. Em sendo impossível nesta análise
descartar inteiramente os aspectos morfológicos, deve ser valorizada, no
tocante às Artes e à Arquitetura, uma dinâmica relacionada à linha cur-
va, gerando ou sugerindo contracurvas, o que sinaliza oposições e con-
trastes, expressando-se em fluxos simultâneos, seja nas superfícies, seja
nos volumes. Tal fenômeno, guardadas as devidas diferenças, pode ser
estendido a muitas das expressões artísticas orientais, enraizando-se em
concepções ideativas, que, em curso diverso das causalidades formal e
eficiente, aglutinam elementos díspares, algumas vezes em virtude de
recorrência ao encantatório. Trata-se de mundivisão e cosmovisão que
admitem relações espaciais e temporais fora dos parâmetros do espaço
geométrico e do tempo seqüencial, levando às expressões artísticas so-
luções espaciais e temporais correspondentes a esquemas mentais que
admitem contradição, bem como outras possibilidades paradoxais.
      Quando Ors menciona um “barroco búdico”7, atribuindo-o a um
éon, em contraposição a esse argumento metafísico e em favor da nos-
sa argumentação, deve ser lembrado que no Budismo se inscreve a ins-
tância do Caminho do Meio - instância cognoscitiva que se explicita por
um pensar não afeito nem ao princípio de identidade, nem ao princípio

6
    Temática abordada neste ensaio de acordo com o pensamento de Bachelard.
7
    Op. cit., p. 123.
36                                      Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



de contradição, deflagrando outros esquemas possíveis na condução do
pensamento. Esquemas correspondentes podem ser detectados no Taoís-
mo e no Hinduísmo8. Nesta breve menção às filosofias orientais, devem
ser lembrados processos não regidos pelas noções de ser e não-ser, nem
pela identificação do ser com a presença - questões que só recentemen-
te se insurgem no pensamento ocidental, levando à Estética possibilida-
des de acesso às Artes e à Literatura, por meio de valores intrínsecos,
desviantes de uma episteme conduzida pelo pensamento girando em
torno do Uno.
       Relembrando que a análise orsiana volta-se para as Artes, obser-
ve-se que em suas variáveis as expressões plásticas podem apresentar
contrastes imagísticos, deixando transparecer alicerces não afetos a pa-
drões preestabelecidos. Assim sendo, observamos, as analogias referi-
das por Ors relacionam-se a sistemas ideativos diversos, gerando expres-
sões plásticas diferenciadas entre si. Tais expressões têm como ponto
comum o desvio do princípio de identidade: princípio pertinente ao equi-
líbrio clássico, que, por sua vez, implica analogias formais próprias do
Classicismo, em momentos histórico-culturais diversos. E pode ser ob-
servado que, em maior ou menor escala, os processos mentais regidos
pelo princípio de identidade admitem antíteses, a serem transpostas ou
superadas por um equilíbrio estático e harmônico, tal como ocorreu no
Renascimento e nos demais Classicismos, através da síntese das oposi-
ções, amenizando e/ou eliminando contrastes atinentes à cor, à linha, ao
volume, dentre outros. Porém, no Barroco, as antíteses desconstroem-
se, e as oposições ganham equivalências e correspondências, observan-
do-se que o pensamento seiscentista conviveu com inúmeras oposições.
Não só morfológicas. No Barroco, oposições de toda ordem articularam-
se em simultaneidades, permeando concepções diversas, como: mundo
cristão e mundo laico; finitude e infinitude; centro e descentro; Refor-
ma e Contra-Reforma; terra e cultura européias e terra e cultura da Co-
lônia.
       Essas oposições, ainda que antecedentes ao Seiscentismo, inten-
sificaram-se no Barroco, deixando lastro deflagrador de outras oposições
e/ou diferenças. Ante tal complexo de ambivalências, acentuavam-se
contrastes, que, por sua vez, se articulavam a fatores sociopolíticos, cul-
turais e religiosos, refletindo-se nas manifestações artísticas e literárias


8
     Quanto ao pensamento oriental consultem-se as obras indicadas nas Referências
     Bibliográficas.
Mirian de Carvalho                                                           37



representativas do mundo laico. E, em que pese uma faceta religiosa
relacionando o Barroco à Contra-Reforma, esboçava-se àquele período
outro modo de pensamento, como se depreende dessa pergunta seguida
de resposta: “Isso quer dizer que a arte barroca, tão freqüentemente acu-
sada de ser conformista e hipocritamente devota, foi uma arte laica? Foi
laica mesmo tendo servido à Igreja: já naquela época era possível que o
zelo devoto encorajasse a religião a converter-se em política.”9 Já à época
do Seiscentismo, junto às vertentes religiosas do Barroco inauguraram-
se vertentes laicas, cujos desdobramentos ganharam no Brasil dimensões
híbridas e sincréticas, que hoje se refletem nas Artes e na Literatura,
gerando singularidades afetas ao Endobarroco.
      Refletindo sobre o pensamento de Ors, observe-se que, se há nas
Artes uma constante barroca, ela nem se deve à dimensão metafísica,
nem se revela universal, mas advém do trabalho da imaginação criado-
ra dinamizando o percurso das curvas, que se direcionam à diagonal,
congregando linha e massa em movimento. Essa dinâmica, em verdade
uma dinamogênese criando qualidades espaciais, incide numa conver-
gência de forças contrárias, assinalando polimorfias no plano estético e
sinalizando um pensar divergente, em alguma instância cultural. Por
manifestar-se circunscrito à cultura, o “eterno barroco” de Ors pode ser
entendido como desvio de normas estéticas e, potencialmente, de outras
normas, ao ressurgir sempre renovado. Esse aspecto torna-se comum à
noção de Endobarroco, enfatizando-se que este não traz a extensão uni-
versal do conceito orsiano. Quanto ao Endobarroco, ressaltem-se do
Renascimento aos nossos dias contrastes e ambivalências que abarcam
manifestações multifárias, bem como matérias e simbolismos efeitos
tanto às expressões plásticas quanto às literárias. Nas Artes, assim como
na Literatura, matéria e imaginação interagem. Do ponto de vista plás-
tico, matéria e simbolismo vivem o dinamismo das curvas. Em especial
na Poesia, matéria e simbolismo vivem jogos de palavras e idéias defla-
grando tensões imagéticas.
      Se, de acordo com o pensamento de Ors, nas Artes e na Arquitetu-
ra de diferentes períodos “barrocos” se faz possível detectar certa ana-
logia, esta se constitui em diferenças que afloram como desvio do esta-
belecido, enquanto negação do definitivo e do absoluto - argumento que
aceitamos com referência às idéias desse autor. Mas refutamos em sua


9
    ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão. Trad. de Maurício Santana Dias. São
    Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 10.
38                                Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



teoria a idéia de uma constante metafísica e a universalidade do “barro-
co”, repetimos. Considerando, por exemplo, períodos como o Helenís-
tico, o Gótico e o Romântico, dentre inúmeros outros, bem como abran-
gendo expressões artísticas e arquitetônicas orientais, torna-se possível
pensar que as analogias referidas por Ors relacionam-se à imaginação
criando contrastes implícitos às imagens. E, desdobrando o pensamen-
to de Ors, observe-se que o “barroco” se explicita pela exceção e pela
diferença. Se o modelo de Ors foi a Natureza, ela pode ser concebida
como dinamogênese. Note-se que a Natureza mostra-se como transfor-
mação, através de diversidades apreensíveis no plano sensível. A olho
nu, captamos mudanças entre o dia e a noite. Entre a vida e a morte.
Acompanhamos semente e floração. Percebemos as águas movendo-se
às oscilações das marés. E hoje, torna-se possível captar outras diferen-
ças sutis - não perceptíveis no plano sensível -, ou seja, fenômenos que
podem ser objeto de experimentação no campo da ciência. Mas as re-
gularidades por nós sistematizadas, seja no plano sensível, seja no pla-
no teórico, advêm de algo que se revela como diferença.
      Ao relacionar a dinâmica barroca aos movimentos da Natureza,
Ors possivelmente foi atraído pela transformação. O “barroco” assim
concebido encarna e/ou admite contradição. Possibilidades. Admite
multiplicidade interpretativa. Encarna ruptura com o conceito. Recorta-
se nos acontecimentos eventuais e nos grandes acontecimentos relacio-
nados à cultura, bem como relacionados ao espaço e ao tempo. Situan-
do o “barroco” como mundivisão e cosmovisão, Ors transporta-o ao
plano ético, reconhecendo nas expressões barrocas sentido de liberda-
de, questão que pode ser relacionada a vários planos de atuação do Ho-
mem, sobretudo ao campo das Artes e da Literatura. Refletindo sobre
as idéias de Ors, e reconhecendo tal dinâmica, pode ser inferido que,
resguardadas as diferenças culturais, as instâncias endobarrocas, tal
como definidas neste ensaio, atravessam fronteiras e chegam aos dias de
hoje assinalando-se como desvio do estabelecido. Nessas circunscrições,
no Endobarroco a imaginação aflora nas imagens reunindo animus e
anima - forças intensas e forças tênues -, numa complementaridade que,
assim como na vida, se opõe ao imobilismo. E a vida se revela fuga de
algo que a quer perecimento.
      A partir do pensamento de Ors, pode ser inferido que a insurgên-
cia “barroca” mobiliza forças renovadoras do pensamento e da ação,
quando a vida se faz ato. E energia. Energia, tal como esse filósofo a
concebeu: como impulso. Impulso que enfatiza o valor da vida. E a vida
como valor. E como liberdade. Liberdade essa que induz o pensamento
Mirian de Carvalho                                                     39



à busca do diferencial nas manifestações “barrocas”, vistas como fenô-
menos não datados no Seiscentismo. Desse modo, se analisadas no Bar-
roco as antíteses do ponto de vista de uma ordenação ideativo-semânti-
ca, elas não implicam síntese: acepção que pode ser metaforicamente
transposta ao equilíbrio clássico, que, sob a ótica pictórica, advém de
uma síntese do claro-escuro ou chiaroscuro. No Barroco insurgem-se
luzes e sombras. Prevalecem o claro e o escuro. Encontram-se o dia e a
noite. Os opostos convivem em simultaneidade.
      Porém, observando que o pensamento orsiano volta-se para as ex-
pressões plásticas, ao refletirmos sobre o “eterno barroco” no plano li-
terário, torna-se impossível encontrar traços e liames que, em sentido tão
amplo, possam abranger aproximações entre Ocidente e Oriente, englo-
bando todos os tempos históricos. Entre diferenciações que vão da es-
crita alfabética ao ideograma, torna-se inviável uma abrangência que
compreenda e localize traços barrocos em expressões lingüísticas tão
díspares. E, ao ser traduzida, a poesia é reescrita. Um hai-kai traduzido
perde todos os liames semântico-filosóficos e simbólicos que o origina-
ram - sem mencionar a ordem das sonoridades. Quanto à insurgência do
Endobarroco no fazer literário, procuramos estabelecer convergências
geográficas e culturais que o definem a partir de textos renascentistas,
chegando aos dias de hoje com fisionomia própria, mas sempre guardan-
do vínculos com contrastes afetos às imagens e aos aspectos ideativos,
gerando desvios relativos ao estabelecido. Porém, mesmo aceitando al-
guns princípios ideativos da teoria de Ors, ressalve-se: se o “eterno bar-
roco” orsiano tem abrangência universal, o Endobarroco circunscreve-
se a um espectro temporal que chega à contemporaneidade, mas com
início no Renascimento, repetimos.
      Voltando ao “eterno barroco”, lembremos: essa noção que privi-
legia o dinamismo nas Artes permitiu a Ors afastar-se das abordagens
formalistas do Barroco, tal como o fizeram vários teóricos. Diferencian-
do-se das concepções cíclico-evolutivas, e voltado para as diferenças no
plano estético, o estudo de Ors concebe “uma entidade cuja materializa-
ção pode se revestir de diversos aspectos”10, em momentos históricos di-
ferenciados, e bem diversa do “barroco cíclico” concebido por Wölfflin,
uma vez que as manifestações barrocas não advêm do desaparecimento
de um estilo, tal como na concepção desse teórico. Mas, ainda que se-
guindo orientação diversa da de Wölfflin, tornou-se necessário revisi-


10
     DASSAS. Op. cit., p. XI.
40                                       Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



tar as idéias do autor, por terem sido elas transpostas ao plano literário,
nas primeiras tentativas de identificação de uma Literatura Barroca.

3.3. O Barroco Cíclico e sua Transposição à Literatura
      De etimologia incerta, e a princípio rechaçado por vários estudio-
sos, o Barroco traz um estranhamento intrínseco, e não foi objeto de
apreciação teórica por parte de seus contemporâneos. Tendo sido clas-
sificado como exotismo por teóricos de visão atrelada aos parâmetros
clássicos, esse estilo foi gradativamente aceito, e relacionado à beleza
em sentido amplo, ao ser referido por adjetivos tais como: bizarro, ca-
prichoso, voluntarioso, extravagante11, não mais em sentido pejorativo.
Com traços morfológicos e ideativos bem definidos, em virtude de sua
plasticidade o Barroco congregou sentidos e olhares específicos, sendo
por fim reconhecido como estilo no plano das Artes e da Literatura, com
diferenças marcantes nos países europeus. Mas em sendo diversas as
interpretações do Barroco, e uma vez aceitas neste estudo algumas idéias
de Eugenio d’Ors, torna-se necessário mencionar outras visões sobre o
tema, remarcando-se que a referência a um “barroco” não estritamente
seiscentista, ou seja, a identificação de um “barroco” extensivo a outros
períodos históricos, não é exclusividade do pensamento de Ors.
      Ao atribuir perspectiva cíclica ao Barroco, Wölfflin buscou refe-
rências em outros historiadores, e procurou vestígios que pudessem re-
ferendá-lo em períodos antecedentes ao Seiscentos, remontando, por
exemplo, a Michelangelo. Nos escritos de Wölfflin12 encontram-se re-
ferências a características visuais das Artes vinculadas a certa morfolo-
gia cíclica situada em outros períodos históricos, vindo a constituir na
Antiguidade um fenômeno paralelo ao Barroco, inclusive pontuado por
outros autores através do termo Barroco13. Tal denominação abrange o
fenômeno de decadência da Arte antiga, compreendida como fenôme-
no cíclico: “A arte ‘morre’ apresentando sintomas semelhantes aos da
Renascença”14, observação que conduziu o Barroco à condição de esti-
lo, quando Wölfflin o sistematizou do ponto de vista plástico em con-
traponto às formas renascentistas. Apercebendo-se das amplas questões
formais implícitas ao Barroco, esse autor estabeleceu como meta o re-

11
     WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. Trad. de Mary Amazonas Leite de
     Barros e Antonio Steffen. Coleção Stylus. São Paulo: Perspectivas, 2000, p. 34.
12
     Trata-se de Renascença e Barroco, op. cit.
13
     Sybel apud WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 26.
14
     WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 26.
Mirian de Carvalho                                                              41



gistro dos sintomas relativos ao desaparecimento da Arte Renascentis-
ta15.
      Para desenvolver tais estudos, que se voltavam para a visualidade
- como era comum à metodologia àquela época -, Wölfflin enfatizou na
referida obra as transformações dos elementos clássicos em sua evolu-
ção para o Barroco, dando destaque à arquitetura romana, porque em
Roma as expressões clássicas favorecem exemplos de acentuados con-
trastes na passagem para as formas barrocas. Wölfflin ocupou-se de uma
tipologia que abrange os dois períodos, de acordo com características
atinentes aos elementos plásticos, tais como linha, plano, abertura, fe-
chamento, luz e sombra, cor, massa, chegando ao estudo dos elementos
projetados no espaço, dentre eles: pilastras, colunas, cúpulas, frontões,
todos dimensionados por efeitos visuais determinantes de uma oposição
entre a beleza tranqüila e a emoção avassaladora16. Sua preocupação com
os elementos visuais mais tarde se aprofunda na obra Conceitos Funda-
mentais da História da Arte, em que, diferenciando as formas clássicas
e as barrocas, ele estabeleceu os famosos padrões antitéticos que podem
assim ser resumidos: 1) evolução do linear ao pictórico; 2) evolução do
plano à profundidade; 3) evolução da forma fechada à forma aberta; 4)
evolução da pluralidade para a unidade; 5) clareza absoluta e relativa do
objeto17.
      Wölfflin descreveu oposições marcantes entre as tipologias clás-
sica e barroca, vendo-as como confronto e evolução cíclica. Esboçando
diretrizes diversas, ressaltem-se em Wölfflin e Ors enfoques voltados,
respectivamente, para a morfologia e para a dinâmica intrínseca às ma-
nifestações barrocas. Mas tanto a ênfase na visualidade explicitada por
Wölfflin quanto o dinamismo do Barroco no pensamento de Ors enfati-
zam as Artes Plásticas e a Arquitetura, lembremos. E a transposição dos
elementos barrocos ao plano literário foi realizada progressivamente por
outros autores que, com base nos princípios de Wölfflin, abordaram di-
ferentes Literaturas e dimensionaram questões morfológicas voltadas
para a oposição entre as formas clássicas e as barrocas, vistas como
antíteses. Ainda que em princípio relacionada aos elementos formais, a
aplicação do conceito de Barroco à Literatura “esclarece, precisamen-
te, a posição daquele estágio intermediário entre o Renascimento (até

15
     Idem.
16
     WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 47.
17
     WÖLFFLIN, Heinrich. Princípios Fundamentais de História da Arte. Trad. de João
     Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 18-20.
42                                          Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade



1580 mais ou menos) e a fase neoclássica (depois de 1680)”18, clarifi-
cando nesse período uma etapa não classificada no âmbito literário do
ponto de vista do estilo, e de um espírito de época refletindo ideologias
e conceitos.
      Rastreando características literárias relacionadas ao Endobarroco,
torna-se relevante uma visitação a questões gerais que se dirigem à idéia
de um espírito de época. Mencionado por vários autores, e com raízes
várias, trata-se de tensões implícitas à linguagem e à Literatura seiscen-
tistas, refletindo grandes mudanças que, passando pela religião e pela
cosmologia, situam a perplexidade do Homem ante a finitude e a infi-
nitude. Ante o mundo laico e o mundo religioso. E ante outras diferen-
ças marcantes no pensamento da época. Para alguns autores, vislumbra-
se nesse período mundivisão e cosmovisão que integram um espírito
barroco voltado para as oposições: “Como elemento geral do estilo bar-
roco, aponta-se a preferência pelo ‘wit’, agudeza, ‘concetti’, combina-
ções de imagens dissimilares ou revelação de semelhanças ocultas em
coisas aparentemente díspares.”19 Exibindo ordem diversa daquela do
Classicismo, ao Barroco visto como estilo de época inseriram-se elemen-
tos díspares, em várias combinações, trazendo ao texto jogos de palavras
e/ou de idéias, em expressões literárias conduzindo sentidos em aberto,
contrapondo-se ao significado.
      Tais sentidos em aberto traduzem fortes oposições entre sombra e
luz, nos textos ficcionais ou poéticos, se comparados com a disciplina
pautada nas simetrias, gradações tênues e harmonias, que delineiam a
Literatura Renascentista. Conduzindo aspectos semânticos que lhes são
intrínsecos, as imagens no Barroco completam-se numa afluência de
idéias que revelam pensamento divergente, tal como ocorreu no campo
filosófico, marcadamente no pensamento de Giordano Bruno20 e de
Copérnico, que, do ponto de vista cronológico, anteciparam questões
afetas ao Seiscentos. Abrangendo questões relacionadas às noções de
infinitude e finitude, à sua época ambos tangenciaram, de modos diver-
sos, oposições afetas à tradição filosófico-científica e à tradição religio-
sa. Correspondendo a esse desvio, que se enraíza no plano ideativo, no


18
     COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ci-
     vilização Brasileira, 1976, p. 92.
19
     COUTINHO, Afrânio. Op. cit., p. 109.
20
     In CARVALHO, Mirian de. “Entre Sombras e Sombras: as Chamas do Desvelamen-
     to em Giordano Bruno de Montaldo”. Dialoghi: Rivista di Studi Italici vol. IV, nos 1-2,
     Rio de Janeiro: Proita/UERJ, 2001, pp. 45-56.
Metamorfoses na poesia de Péricles Prade
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Metamorfoses na poesia de Péricles Prade

  • 1. METAMORFOSES NA POESIA DE PÉRICLES PRADE Mirian de Carvalho
  • 2.
  • 3.
  • 5. © Mirian de Carvalho é marca registrada de Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda. Todos os direitos desta edição reservados a Oliveira Rocha - Comércio e Serviços Ltda. Rua Sena Madureira, 34 CEP 04021-000 - São Paulo - SP e-mail: atendimento@dialetica.com.br Fone/Fax (0xx11) 5084-4544 www.dialetica.com.br ISBN nº 85-89866-04-1 Na capa, reproduz-se, em destaque, detalhe de obra de Marola Omartem. Revisão de texto: Viviam Silva Moreira Projeto (miolo)/Editoração Eletrônica: Mars Fotolito da Capa: Duble Express Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Carvalho, Mirian de Metamorfoses na poesia de Péricles Prade / Mirian de Carvalho. -- São Paulo : Quaisquer, 2006. Bibliografia. ISBN 85-89866-04-1 1. Crítica literária 2. Prade, Péricles, 1942- - Poesia - Crítica e interpretação I. Título. 06-3502 CDD-869.9109 Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia : Literatura brasileira : História e crítica 869.9109
  • 6. Foi nutrido sem grão, sem transtorno; só com a possibilidade de ser E esta deu-lhe tanta força e poder (...). Rilke
  • 7.
  • 8. 7 Índice Introdução Metamorfoses do Unicórnio poético, 9 1 Das serpentes alegres à errância do Unicórnio, 14 1.1. A poética das metamorfoses, 14 1.2. A questão técnico-poética na poesia de Prade, 18 2 Panbarroco e endobarroco, 24 2.1. Elementos “barrocos” na escrita hodierna, 24 2.2. O fusionismo e as instâncias ideativas na poética de Prade, 29 3 Eterno barroco, barroco e endobarroco, 33 3.1. O “eterno barroco” na filosofia de Eugenio d’Ors, 33 3.2. Digressões e reflexões sobre o “eterno barroco”, 34 3.3. O barroco cíclico e sua transposição à literatura, 40 4 A amplitude do “barroco” literário, 44 4.1. Os critérios de Hatzfeld na abordagem do barroco, 44 4.2. O barroco no Brasil: um endobarroco, 47 5 O universo da imaginação na poética das metamorfoses, 54 5.1. A desconstrução do mito, 54 5.2. A imaginação e o espaço poético, 59 6 O tempo na poética das metamorfoses, 63 6.1. O instante poético e o lugar poético, 63 6.2. O carpe diem, 67 7 A imaginação poética e as variações dos elementos, 76 7.1. Variações da água, 76 7.2. Variações do fogo, 82
  • 9. 8 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade 8 Contemplações do Unicórnio, 86 8.1. O Unicórnio da chama-em-forma-de-corno, 86 8.2. Contemplações do instante, 91 9 Do binarismo alquímico às metamorfoses poéticas, 95 9.1. O Unicórnio poético, 95 9.2. Os nove espelhos do anel de Mercúrio, 100 10 A superação do Uno e do múltiplo, 105 10.1. A desconstrução do Uno na poética do Unicórnio, 105 10.2. Do amor ao Unicórnio, 110 10.3. Proposição, 113 11 Invocação, ofertório e narrativa, 115 11.1. Invocação, 115 11.2. Ofertório, 118 11.3. Narrativa, 120 Conclusão O código dos não-ditos, 127 Epílogo, 127 A superação das dualidades, 130 Alcance social da poética do Unicórnio, 133 Referências bibliográficas e obras consultadas, 137
  • 10. 9 Introdução Metamorfoses do Unicórnio Poético Rinoceronte. Búfalo. Peixe. Escaravelho. Animal das metamorfo- ses, ao Unicórnio pertencem diversos corpos. Acompanhando-lhe as variações do corpo, insurgem-se variações do nome: Mercúrio. K’i-Lin. Og. Adão. Sofia. Do Unicórnio sabem-se muitas diferenças. Qualidades. Estados anímicos. E andanças. Errante, ele muda de lugar e transforma- se. Renasce de si mesmo. Renasce em outras terras. Renasce diverso. Benfazejo. Primogênito. Domado. Maléfico (muito raramente). Consa- grado. Perfeito. Em fuga. Ao Unicórnio - inúmeras atribuições. Ao Uni- córnio do chifre-em-forma-de-chama cabem leituras e leituras. Esta que aqui se inicia faz-se por adesão às imagens deflagradas pelas metamor- foses desse animal encantado. E, seguindo-lhe os movimentos, ante as variações do corpo, o chifre único desmente idéia e atributos da unida- de. Chama. Vulva. Falo. Aura. Elixir. O solitário chifre não se reporta ao Uno. Referenda o diverso e a transformação - em desvio do absoluto. Multiforme, o Unicórnio visita o mundo. Atravessa continentes. Rios. Mares. Terras. Lagos. Em errância, ele se transforma. Luminoso. Fluido. Telúrico. E etéreo. O Unicórnio integra-se e completa-se nos elementos primordiais e oníricos da cosmogonia remota. Encarnando a vida do elemento que o substancia - e transforma - o eu poético exalta no Unicórnio o chifre em forma de chama. Exalta o fogo. E as qualida- des do fogo - substância primeira que ilumina o fabuloso animal. Mas, igualmente, a poesia comemora a água que acolhe o Unicórnio. No per- curso desse animal encantado, a ele se revela sua origem metamórfica, refletida e realizada no espelho d’água - na matéria que o acolhe entre ambivalências e paradoxos. Eis na poesia de Péricles Prade a visão pri- meira das Variações sobre o Unicórnio. Atravessando os séculos, o Unicórnio surge e ressurge nos mitos e na poesia dos povos. Igualmente metamórfico no ideário alquímico, e representado nas lendas orientais e ocidentais através de outros seres quiméricos, ao Unicórnio atribuem-se poderes benfazejos relacionados ao chifre único: “órgão” e “objeto” simbólico. Tal como nos relatos dos estudiosos que visitaram as lendas, há Unicórnios em forma de cavalo, peixe, asno, escaravelho, pássaro, dentre inúmeras outras configurações. Através dos tempos, o Unicórnio integrou-se à simbologia do paganis- mo e à do cristianismo, identificando-se com a divindade em várias ins-
  • 11. 10 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade tâncias. Das figurações do Cristo ao lápis primordial, o Unicórnio tran- sita pelos símbolos da liturgia religiosa. E percorre os símbolos da tran- substanciação alquímica, simbolizando Mercúrio. Para compor versão poética da fábula e da Alquimia, Prade percor- reu estórias do Unicórnio. Percorreu figurações no campo das Artes Plás- ticas, que aparecem referidas em alguns poemas. E teceu articulações desse animal com outros seres do bestiário mítico. Visitando a obra li- terária de Prade, seja na ficção, seja na poesia, encontramos o Unicór- nio inserido no rol dos animais fantásticos que percorrem o imaginário do autor. Nesse percurso pelo encantatório, “filho de uma abelha gigan- te”, ele surge na obra Alçapão para Gigantes, como tema do conto “O Unicórnio Voador”. Imagem da fábula transformada pelo poético, o fa- buloso animal reaparece na poesia de Prade, inscrevendo-se em diferen- tes poemas, e ressurge como imagem fundamental na obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio, centralizada neste ensaio, a partir das imagens e do logos em desvio do signo lingüístico e da tradi- ção cultural. Mas constituiria lugar comum afirmar que a poesia de Prade reve- la-se desvio do signo lingüístico e da cultura enquanto tradição, por ser da natureza do poético o desviar-se do discurso e da verossimilhança. Partindo das metamorfoses do Unicórnio, nossa meta consistiu em lo- calizar o diferencial na poética de Prade. Buscando esse diferencial, detectamos ordenações semânticas, que, intrínsecas à imagística, se exa- cerbam na obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio, em sendo próprias da poesia desse autor desde os primeiros poemas. Porém, transcendendo à mera descrição de ordem estilística, localizamos nesse viés imagético-semântico o ponto-chave do desvio das amarras do sig- no e da cultura, a partir da dinâmica das imagens marcadas por fortes contrastes: contrastes ideativos que, reunindo oposições e diferenças, se lançam à desconstrução de antíteses, a partir do trabalho da imaginação dando qualidades aos elementos característicos da poesia de Prade. Conduzindo figurações de cunho fantástico, na poesia de Prade as ima- gens transcendem aos sentidos do símile e da metáfora. Reunindo opostos e diferenças, na poética de Prade as imagens assumem paradoxos, e algumas vezes tangenciam oximoros, criando plurivocidade que desmonta os indicativos antitéticos de cunho binário. E desfaz a demarcação territorial do absoluto. Desse modo, criam-se jogos de palavras e de idéias sugerindo latência semântica a ser desve- lada, predominantemente nos não-ditos, ou seja, a ser desvelada nos endossentidos pertinentes às tensões imagísticas e ao logos: a “palavra”
  • 12. Mirian de Carvalho 11 primeira “dizendo” a experiência primeira. Desviando-se de modelos, essas tensões se intensificam na poética do Unicórnio a partir das varia- ções que o concebem diverso. Diverso de corpo e alma. Diverso de nome e chama. Mas, nas Variações que assim o envolvem, o Unicórnio existe também em estados indiferenciados. Mostra-se transitivo, ao fluxo das metamorfoses. Mostra-se transitivo no âmago das tensões imagísticas. Essa dinâmica é dita por um logos que referenda a base imagético-se- mântica da poesia de Prade na linha de um Endobarroco. Porém, não se trata de retomada do Barroco através de um Neobarroco. Nem de um “eterno barroco” de expressão universal, tal como concebido pelo pen- samento de Eugenio d’Ors: autor que, no plano das Artes Plásticas, trans- porta o “barroco” à Pré-história, inclusive. Neste ensaio, o nome Endobarroco compreende traços comuns à Literatura e às Artes, abrangendo características subjacentes a estratos imagísticos e ideativos, que, passando por transformações e períodos diversos, se insurgem nos dias de hoje. Na poesia, trata-se da convivên- cia de oposições e diferenças afetas a palavras e idéias, deixando trans- parecer tensões intrínsecas ao nascedouro das imagens, no plano da imaginação poética. Trata-se de dinâmica refletida no logos, que nasce junto à imagística, e subsume contrastes no plano do dizer. Porém, nes- sa fusão, o conceito de Endobarroco refere-se a uma dinâmica perten- cente não só às imagens e à semântica, mas extensiva a estratos morfos- sintáticos e sonoros, caracterizados por oposições e/ou diferenças. Abar- cando e insuflando ambivalências, paradoxos e oximoros, dentre outras possibilidades imagísticas, o Endobarroco revela como característica básica o desvio do princípio de identidade, afluindo na instância ima- gético-semântica da poesia. Caracterizando uma poética desconstruto- ra de modelos, em certo sentido esse desvio deixa transparecer insurgên- cia de pensamento divergente quanto ao plano sociocultural. Ao Endobarroco relacionam-se jogos de idéias e palavras, ou seja, entrelace do pensar e do dizer, articulados predominantemente pela ima- ginação - origem e força movente das instâncias imagético-semânticas na poesia. Diferenciando-se em escalas e estágios diversos, o Endobar- roco congrega traços que se insurgem desde os alvores da Cultura Mo- derna e chegam aos nossos dias, repetimos, traduzindo-se em manifes- tações de um “barroco” gerundivo - de um “barroco” em processo. Não estritamente estilístico. Não fixado no Seiscentismo. E com lastro sin- gular na Literatura Brasileira. À definição do Endobarroco partimos dos estudos de Ivan Cavalcanti Proença, que identificou elementos singula- res nas Literaturas Brasileira e Portuguesa, e metodizou técnicas de uma
  • 13. 12 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade escrita característica, a que denominou panbarroca, no âmbito da pro- dução literária hodierna. A partir das observações desse autor, realiza- mos estudos abrangentes das Artes Plásticas e da Poesia, com base nos textos de vários teóricos que se debruçaram sobre questões atinentes ao Barroco, seja enquanto mundivisão, seja enquanto estilo, destacando-se dentre eles: Eugenio d’Ors, Heinrich Wölfflin e Helmut Hatzfeld. Mas ao abordarmos o Endobarroco na poesia de Prade, tangencia- mos outras questões. Dando continuidade à fundamentação dos argu- mentos aqui apresentados, recorremos a vários outros autores, além dos já mencionados, cujas idéias traduzem neste ensaio base filosófico-epis- temológica, adequando-se a temáticas e questões próprias da poética de Prade. Para compreender sua poética como desvio do discurso, recor- remos ao pensamento de Jacques Derrida, visitando a noção de descons- trução. Mas interpretando-a através de desdobramentos. E, para tratar a questão da poesia como desvio da cultura, recorremos à filosofia de Gaston Bachelard, igualmente através de desdobramentos. Na Poética bachelardiana, enfatizamos as noções de matéria, imagem, imaginação, espaço e tempo poéticos. Considerando essas instâncias, localizamos na poesia de Prade tensões endobarrocas a partir das matérias que lhes ser- vem de estofo imaginativo: o fogo e a água. Intensificando-se nas trans- formações do Unicórnio, esses elementos dinamizam imagens que se tangenciam através do diverso, enfatizando variações do corpo e do nome do fabuloso animal. Outros nomes. Outros corpos. Outros senti- dos. Tais variações podem chegar à reversibilidade, tal como nas trans- formações do fogo e da água - que se correspondem. Que se misturam. Que se transubstanciam, transubstanciando o Unicórnio em outro. Con- cebendo-o em estados indiferenciados. E intermediários. Nessas Variações, ressalte-se: reluzente corno em forma de chama coroa a cabeça do Unicórnio. E haverá mobilidade maior que a da cha- ma transformando-se ante o olhar? Transformando-se no tempo? Haverá transformação maior que a do fogo movendo-se - para nascer de si mes- mo? Para nascer outro? Entre metamorfoses poéticas, o chifre único perde seus contornos precisos. Refletindo espaços metamórficos, mate- rial e ideativamente a unidade se desfaz. Em sendo variacional, o soli- tário chifre não encarna qualidades do Uno. Do ponto de vista do gênero, guardando afinidades com alguns trabalhos do autor, a obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Uni- córnio caracteriza-se por implicações épicas, desvelando episódios da vida desse animal encantado, ao fluxo das metamorfoses. Por caber a metáfora, denominamos poética das metamorfoses às singularidades
  • 14. Mirian de Carvalho 13 técnico-poéticas intrínsecas à poesia de Prade. Tais singularidades ca- racterizam-se pela desconstrução da estrutura do signo e pelo desvio da tradição, através de recursos imagísticos com acentos hiperbólicos, de- senraizados de qualquer resquício de verossimilhança externa. Nas trans- formações do Unicórnio há convergências e desdobramentos do corpo e do nome desse animal fantástico, desfazendo figurações duais, por meio de uma perspectiva ideativa que transcende à bipolaridade do Uno e do múltiplo, na passagem da lenda à poesia. Nessa passagem, o poeta desenvolve jogos de palavras e de idéias confluindo em diferenças, que mostram o Unicórnio em escorço e/ou sob visão prismática. Lançando- se à desconstrução da antítese Uno/múltiplo nas figurações do Unicór- nio, bem como tangenciando a desconstrução de outras antíteses, a poe- sia de Prade induz o leitor à apreensão de estrato semântico que desmon- ta a raiz do pensamento ancorado na razão como critério da verdade. Trata-se então de ler os não-ditos. E perscrutá-los à escuta das metamor- foses, conduzindo o eu poético à Cidade do Homem. Mas na obra de Prade, o poético percorre caminhos do espaço e do tempo. À sincronia das transformações do Unicórnio trazido ao instan- te poético, o autor concebe o fabuloso animal na instância do espaço onírico, inaugurando lugares intrínsecos à poesia. Lugares de acolhi- mento do Unicórnio em estado de amorosidade. E no tempo das trans- formações. E, em esquiva da razão absoluta, o eu poético abandona o tempo cronológico - ou seja, o tempo do discurso e das sucessões - para lançar-se ao tempo da poesia. Temporalidade imagística. Instante em fuga. Aos caminhos do Unicórnio, a temporalidade referenda o topos carpe diem. Na poesia de Prade, o carpe diem desvela-se tempo do “ago- ra”, atualizando-se enquanto tempo das imagens e do logos. E fazendo- se tempo dos desdobramentos intuídos na poética das metamorfoses. Realizando Variações sobre o Unicórnio, o autor inaugura semântica desviante da narrativa lendária, ao apreender o fabuloso ser através de amoroso sentimento. Para detê-lo na trama do poema, Prade visitou o nascedouro do Unicórnio, ou seja, a imaginação que o traz à vida trans- formando-se. Iluminado pela chama, o Unicórnio adquire propriedades da chama. Que sempre renasce outra. Quimérico, o Unicórnio revela-se animal das nuvens. Cidadão do mundo, o Unicórnio visita os quatro cantos da Terra. Encantado e hu- mano, habita os elementos. Cavalga pelo Universo. Desviando-se do Uno, o fabuloso ser vive encantatório tempo poético. Vive o instante paradoxal. Chama. Vida. Transformação. Vive o intimismo do eu entre- laçando-se ao kósmos.
  • 15. 14 1 - Das Serpentes Alegres à Errância do Unicórnio Perto do laranjal as serpentes tranqüilas voltam o rosto para este ser que se alonga com seus pés mordidos na noite1. Convertido em pomba branca giro agora & sempre à sombra das coisas do mundo2 1.1. A Poética das Metamorfoses Situados em obras de períodos distintos, os versos que compõem as duas epígrafes deste capítulo assinalam a presença do encantatório na obra de Péricles Prade. Nascedouro das serpentes alongando-se nos pri- meiros versos acima mencionados, o encantatório percorre outros tra- balhos do poeta nas décadas de 60, 70, 80 e 90, e conduz o leitor à obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. Na segunda epígra- fe, pertencente à obra nomeada, encontramos o fabuloso animal conver- tido em pomba branca, conduzido por asas na simbologia do Espírito Santo. E, no referido trabalho, captando-lhe a existência transforma- cional, o autor segue rastro e transformações do fabuloso animal de chi- fre único, que, entre constantes variações, salta do mito para a poesia, convertendo-se em touro sagrado, escaravelho, divindade desmembra- da, seguindo o fluxo de tantas e inúmeras outras mutações, que subsu- mem o indiferenciado e as qualidades das substâncias gerando imagens. Refletindo resíduos de fábula e ironia, a poesia de Prade traz ao leitor um Unicórnio errante, capturado nas malhas do poético. Eis que o Uni- córnio encarna a fábula da solidão. E a fábula do tempo poético. Eclodindo nos idos de 1960, já àquela época a poesia de Prade revelava-se original, lançando-se ao que chamamos poética das meta- morfoses: trata-se de veio poético que, através de concepção hiperbóli- ca da imagem, adere ao encantatório em esquiva do princípio de identi- dade. Nessa adesão, realiza-se um logos desviante da armadura do sig- no lingüístico e da tradição cultural. Desviando-se da linearidade do discurso, o poeta distancia-se da tradição, por meio de imagística desti- 1 PRADE, Péricles. “Perto do Laranjal”. Este Interior de Serpentes Alegres. Florianó- polis: Roteiro, 1963, p. 11. 2 PRADE, Péricles. “Pomba Alquímica”. Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. São Paulo: Quaisquer, 2005, p. 12.
  • 16. Mirian de Carvalho 15 tuída de qualquer verossimilhança externa, transcendendo aos sentidos da metáfora e da similitude. Ultrapassando os recursos imagéticos usuais, Prade nega o discurso, bem como o espaço e o tempo atrelados à obje- tividade e à medida, para tangenciar a dimensão da experiência primei- ra captada pelas metamorfoses, recriando o mundo a partir da matéria imaginada. Originárias da imaginação poética, as metamorfoses se al- çam ao plano do dizer e do pensar, não afeitos à forma ou à estrutura lingüística, nem à tradição cultural. Distanciando-se do discurso e da tradição, por fim o poeta desvia-se do símbolo, para demarcar seu dife- rencial poético nas circunscrições do paradoxo. Partindo do princípio de que a obra poética requer leitura e análi- se concernentes a valores intrínsecos, ao visitar a poesia de Prade tan- genciamos questões afetas à imagem e à linguagem compreendidas como instâncias criadas pela imaginação. Para encaminhar a questão que norteia este ensaio, ou seja, para estabelecer o diferencial instaurado pela poética das metamorfoses na obra Em Forma de Chama: Variações so- bre o Unicórnio, rastreamos o trabalho do poeta desde os primeiros ver- sos, buscando uma realidade intrínseca à sua poesia, realidade essa que se inicia nas circunscrições da imaginação da matéria3. Nessa busca, chegamos à dinâmica da imaginação criando imagens a partir dos ele- mentos fundadores da poesia de Prade: o fogo e a água. Mas, em sendo poéticas, as imagens surgem desvinculadas das referências objetivas da matéria, tornando-se relevantes para o leitor, enquanto sentido originá- rio de algo captado pela primeira vez, e relevantes para o poeta, que as acolheu no nascedouro e as engendrou no logos poético. As imagens poéticas não preenchem lacunas no teatro do mundo. E a poesia de Prade encarna o próprio teatro do mundo - lugar dos acon- tecimentos vividos pela primeira vez. Lugar dos despertares vividos ante a solidão primeva, quando se revelam sentidos originários das coisas pulsantes antes do verbo. Nas Variações sobre o Unicórnio, criam-se sentidos da solitude primeira. A solidão veste o Unicórnio. Sozinho, ele realiza travessias. Ante a solitude, ele se tinge de múltiplo. Mas renasce diverso. Em sendo diversidade, ele atua na imaginação, desmontando a antítese Uno/múltiplo. Em sendo logos, ele se mostra chama. E olha-se nas águas noturnas. Como se não houvesse solidão. E finge que é soli- dão, a solidão que deveras o acompanha. Mas, estado anímico do eu 3 Questão que se encontra presente nas chamadas Poéticas de Bachelard: obras dedi- cadas ao estudo da imaginação dos quatro elementos. Ver Referências Bibliográfi- cas.
  • 17. 16 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade poético, a solidão referenda desígnio de solidariedade. Nesse encontro com a solidão, o Unicórnio encontra o tempo. E, à companhia do desa- companhado, o tempo reveste-se do carpe diem - a realidade possível ante o desvio do absoluto. Viver o “agora” torna-se máxima a impulsio- nar as metamorfoses do Unicórnio. Na poética de Prade, do possível se faz a realidade. Da água chegamos ao fogo. E vice-versa. As antíteses que compreendem a água e o fogo desconstroem-se nas variações des- se fabuloso animal. Do fogo à água desvelam-se oposições. Diferenças. Mas não há binarismo. Nem exclusões. Trazendo ao leitor um vasto universo de seres imaginários e crian- do linguagem para designar seus nomes e feitos, o poeta cria uma reali- dade singular - sem a mediação do conceito e/ou da linguagem discur- siva. Na poesia de Prade, o dizer surge realizante. Realizante de seres de imagem. Diversos dos seres de razão concebidos na esfera abstrata - afeta ao plano metafísico e/ou afeta à episteme -, os seres de imagem possuem colorido. Voz. Textura. E outras qualidades sensíveis. Animi- zam-se. Personificam-se. Encarnando qualidades sensíveis, os seres imagísticos são regidos por um tempo intrínseco à poesia e habitam lu- gares propícios à sua existência - lugares criados pela imaginação4 -, dando outra ordem ao mundo e ao kósmos. Substancializando e dessubs- tancializando a matéria. Criando imagens que implicam espaços e tem- pos poéticos, a poesia funda semântica alheia aos campos da presença e da ausência, ao desatrelar-se do binarismo que caminha com a lingua- gem discursiva. Por enraizar-se em jogos imagéticos, à abordagem da poesia de Prade não caberia método ancorado em princípio atrelado às causalida- des formal e eficiente, visto que, ao elaborar as metamorfoses do Uni- córnio, o poeta transporta ao plano lúdico as instâncias do Uno e do múltiplo, desencadeando paradoxos. Desviando-se da repetição, Prade traz as imagens e a linguagem ao campo das diferenças. Mas o percur- so pelas diferenças torna-se roteiro da solitude. Desviando-se do Uno, a solidão apresenta-se como dúvida. Atravessa o mito. Consubstancia- se nas várias imagens do Unicórnio. Apresenta-se como possibilidade. Em sendo possibilidade, a solidão revela-se percurso. Seguindo a trilha das metamorfoses, o Unicórnio desgarra-se da lenda, para renascer ima- 4 A questão do tempo e do espaço na poesia foi tratada neste trabalho a partir das idéias bachelardianas desenvolvidas nos escritos do filósofo sobre a imaginação poética, conforme Referências Bibliográficas constantes deste trabalho.
  • 18. Mirian de Carvalho 17 gem primeira. E possibilidade do logos, ante solidão da experiência pri- meira. Ao surgir como realidade poética, esse animal não referenda o jogo ilusório do par ausente/presente, jogo esse que, ao longo da história do pensamento ocidental, quase sempre se norteou por um recorte afeito a uma razão que desconstrói “todas as significações que brotam da signi- ficação do logos”, como observa Derrida5, ao apontar para a escrita como desconstrução das instâncias do logos afeto ao primeiro referen- te. Tirando ilações dessa afirmativa, acrescentamos: se concebido esse logos como existência primeira, o discurso pode ser considerado afas- tamento da experiência originária. Como conseqüência desse fenôme- no, localizam-se no discurso lacunas aderentes ao signo lingüístico, uma vez que a noção de signo, ao mesmo tempo em que implica separação do significante e do significado, implica também convenção entre am- bos. Sob esse prisma, havendo separação e convenção no plano do sig- nificado, tal circunstância posiciona o signo em distanciamento do mun- do sensível, distância que maior e mais intensa se faz com relação ao encantatório - acessível somente à linguagem poética. Habitando espaços e tempos quiméricos, na poesia de Prade o eu poético desconstrói o signo. Mas o termo desconstrução, ainda que se referindo ao texto de Derrida, surge neste ensaio em acepção diversa. Ganha sentido de ontogênese afeta às imagens e ao logos, desviando- se do estabelecido e do absoluto. Nesse sentido, a desconstrução indica diferença e diferencial instaurados pela poesia. Diferença e diferencial regidos pelo trabalho da imaginação posicionando-se como desvio, ou esquiva, ou desmonte, ou transgressão, porque, negando-se à repetição, a poesia de Prade se desvia do discurso, da cultura e do mundo objeti- vo, através do encantatório. Mas, de modo paradoxal, dirige-se aos mean- dros da urbe. Assim sendo, neste escrito o termo desconstrução relacio- na-se aos processos criativos na poética das metamorfoses, produzindo as imagens e o logos, em esquiva do estabelecido. Na poesia de Prade, as desconstruções tangenciam a origem das imagens e do logos. Em esquiva do plano do conceito, essas descons- truções vão à raiz da experiência primeira. Por tratar-se de um logos aderente à imagística, reportamo-nos às imagens desde as sensações, quando, nos poemas, os estratos imagético-semânticos deixam transpa- 5 Gramatologia. Trad. de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 15.
  • 19. 18 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade recer movimentos da imaginação trabalhando a matéria. Em movimen- to inventivo, a poesia de Prade desvia-se do discurso para acolher o lu- gar e o tempo do logos originário. Para receber o logos dizente dos fe- nômenos poéticos, traduzindo-se em estados anímicos. Mas não se tra- ta de psicologismo. Trata-se de sentimentos intrínsecos à poesia. Senti- mentos que nascem nas propriedades e qualidades da matéria transfor- mada pelo poético. E fluem - tal como se fossem nossos sentimentos. Em errância, o Unicórnio se faz acompanhar de sentimentos e es- tados anímicos advindos das impressões das substâncias originárias. Ao fogo, a luminosidade. À água, o intimismo. Ao encontro do fogo e da água, a solidão. O amor. O difuso. Os estados indiferenciados. As me- tamorfoses. Com vida imagética, a solidão do Unicórnio não significa solidão. Às diversas atribuições do solitário osso do Unicórnio, a soli- tude se transforma. Ganha poderes de doação. Nos limites e desdobra- mentos do chifre único transformado em chama, ocorrem jogos imagé- ticos. Aos efeitos lúdicos das idéias e palavras, nesse fabuloso animal emergem variações do solitário chifre. Fogo de uma chama benfazeja, nesse órgão e objeto de variações, a solidão pulsa. Ilumina-se. Ilumina- da, oferece ao eu poético a ambivalência que lhe sustenta a vida, nesse movimento do signo desconstruindo-se. Na poética do Unicórnio a so- litude adere a outros sentidos. Substancializa-se. Transforma-se em ou- tras imagens a serem pronunciadas. Ou mantidas em silêncio pelo lo- gos poético. Palavra primordial. Tangenciando o encantatório e o fantás- tico, a poética das metamorfoses revela singularidades técnicas e poéti- cas no trabalho de Prade. 1.2. A Questão Técnico-poética na Poesia de Prade Seguindo o rumo do Unicórnio, das serpentes alegres, das coisas, das paisagens e interiores, que se animizam ou personificam nos versos de Prade, encontramos um verdadeiro universo de seres fantásticos per- correndo sua poesia. Inseridos na imagística do poeta, em ambiência onírica esses seres são ditos pelo logos, que conduz elementos tensio- nais, desconstruindo antíteses e ressaltando paradoxos afetos às diferen- ças e ao diferencial técnico e poético na obra do autor. Quanto às sin- gularidades técnico-poéticas na obra de Prade, seus comentaristas regis- tram diretrizes e enfoques diversos entre si, mencionando, por exemplo, vínculos com o Expressionismo, com o Surrealismo e com o Barroco. Atendo-nos à poesia de Prade, ao refletir sobre tais liames, identifica- mos insurgência de traços que se negam às técnicas expressionistas e surrealistas. Quanto aos vínculos barrocos, observe-se, eles existem
  • 20. Mirian de Carvalho 19 numa acepção própria. Conforme o mencionado, na obra de Prade a poética das metamorfoses indica relação imagético-semântica e outras implicações que envolvem a noção de Endobarroco, tal como definida neste ensaio. Desse modo, no curso da poética das metamorfoses, não há, na poesia de Prade, liames afetos à escrita expressionista, que se define, dentre outras características, por marcantes estruturas de subordinação, o que não ocorre na poética do autor. Caracterizando-se, salvo raras exceções, por escrita ordenadamente caótica, a poesia de Prade revela ausência de subordinações e subsume outras origens. Observe-se ainda que, no bojo das técnicas expressionistas, as imagens caminham pela metáfora, com resquícios de verossimilhança externa, acrescentamos, enquanto na poesia de Prade os recursos imagéticos enveredam pelo encantatório. Por outro lado, alguns recursos morfossintáticos, tais como anáforas, paralelismos, refrão - comuns aos procedimentos expressio- nistas6 -, não se mostram numericamente suficientes para assim carac- terizar a poesia de Prade. Quanto à interpretação do mundo, nos textos expressionistas quase sempre se percebe posicionamento social, de certa forma particularizado. De modo diverso, na poesia desse autor a adesão à problemática social não se particulariza, estende-se a todo um povo7. E, acrescentamos, realizando-se pelos não-ditos, volta-se para visão da existência como questionamento dos limites da vida e do Homem. Como questionamento dos limites que se impõem à liberdade, no sentido de livre-arbítrio, bem como no sentido de atuação do animal político. Sob esse prisma, a crítica à sociedade e às convenções viabiliza- se pelas imagens desviando-se da cultura, através do logos esquivando- se do signo e por meio da desconstrução dos dados objetivos e/ou das convenções na esfera social, enfocados sob prisma encantatório. Acres- cente-se a esse movimento a desconstrução da subjetividade centrada em si mesma, a dar outra ordem ao mundo. Assim sendo, Prade não se lan- ça ao psicologismo, tal como este se relaciona às técnicas da escrita expressionista hoje, como herança do Expressionismo8. Ressalte-se que 6 Mencionamos aqui algumas observações de Proença, quanto às estruturas de subor- dinação e quanto aos recursos morfossintáticos, na escrita expressionista hodierna (notas de aulas). 7 GIUDICE, Maria del. Realismo Simbolico e Surrealismo Paradossale. In FIGUEI- REDO, Guilherme e PRADE, Péricles. Palermo: Italo-Latino-Americana, 1980, p. 35. 8 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ci- vilização Brasileira, 1976, p. 241.
  • 21. 20 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade na poética das metamorfoses, a bem dizer, não há subjetividade em opo- sição à objetividade. As duas esferas ultrapassam-se, em busca de um pensamento aberto a outras possibilidades poéticas e lógicas, sem per- der de vista o mundo. Sem arredar o pé do chão, para reunir o quiméri- co e o corpo. Com visão aguçada dirigindo-se à realidade, no poema “Viagem do Enforcado além da Corda”9, que alude ao caso Wladimir Herzog, o poeta não se prendeu aos fatos de modo descritivo ou panfle- tário: “verifica-se que Péricles Prade se esquivou brilhantemente de to- das as tentações à grandiloqüência e à retórica, tão freqüentes no trata- mento dessa temática”10. Por outro lado, acentua Willer, o tema do en- forcamento aparece em obras ficcionais anteriores, imbricado em simbo- logias diversas11 - o que não exclui de seu trabalho a dimensão social -, não se perdendo ele da realidade nem da consciência política afetas ao acontecimento, ao universalizar a referida temática, inserindo-a com destaque em sua poesia. No trabalho de Prade, o único traço que poderia rememorar pro- cedimentos expressionistas seria a presença das antíteses, simbolizan- do contrastes entre luz e sombra, e acentuando oposições. Mas lembre- mo-nos de que na poética das metamorfoses as antíteses se descons- troem, desmontando o discurso e criando referentes de natureza poéti- ca. Quanto aos teóricos que qualificam a obra de Prade como surrealis- ta, talvez essa observação se deva às referências ao mito e a seus con- gêneres constantes da poesia desse autor, bem como à presença do fan- tástico inserindo-se em sua imagística. Mas a poesia de Prade não se co- aduna com as técnicas surrealistas. Ainda que, sob os aspectos analíti- co e interpretativo, tenhamos enfatizado neste ensaio a imagística e o lo- gos, em sentido genérico não se faz possível, com relação à poesia, uma leitura que se afaste totalmente das questões morfológicas, bem como não se faz possível uma análise que ignore a interação dos traços semân- ticos e imagísticos que, na poesia do autor, marcam um diferencial téc- nico-poético não pertinente ao Surrealismo. Para refletir sobre o veio surrealista na poética das metamorfoses, iniciamos por um argumento que, embora se refira à ficção, julgamos adequado ao campo da poéti- 9 In PRADE, Péricles. Os Faróis Invisíveis. São Paulo: Massao Ohno, 1980, pp. 9-15. 10 WILLER, Cláudio. “Posfácio”. In PRADE, Péricles. Os Faróis Invisíveis. São Pau- lo: Massao Ohno, 1980, p. 49. 11 Idem. 12 RONALD, C. “A Aventura Criadora de Péricles Prade” (Prefácio). In PRADE, Péri- cles. Os Milagres do Cão Jerônimo. 5ª ed. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1999, p. 11.
  • 22. Mirian de Carvalho 21 ca, ao observar-se que Prade “não automatizou a linguagem”12. Sabemos que no Surrealismo, e entre os que adotaram técnicas surrealistas em momentos posteriores, a escrita automática não é uma regra. Mas há um pressuposto que se relaciona à escrita surrealista. Seja ela automática ou não, no tocante à captação e ao registro dos temas e motivos, no Surrea- lismo a escrita deixa transparecer recorrência ao irracionalismo. Assim sendo, considerando-se aspectos imagísticos e semânticos advindos do fazer literário, observamos que a escrita surrealista relacio- na-se a sintaxes que apresentam disjunções próprias dos estados aními- cos puros, numa tentativa de apreendê-los, tal como ocorreriam no ho- mem primitivo, na loucura, no esoterismo, ou em instâncias similares, através de registros inconscientes. Realizando ou não escrita automáti- ca, os poetas surrealistas tendem a registros que se opõem à razão cog- noscitiva13, tendência não verificada na poesia de Prade. Observe-se que em sua poética a dimensão cognoscitiva ganha outros rumos, que se traduzem em pensamento divergente, deflagrando estratos ideativos. Corroborando esse dado, verificamos acurado trabalho na poesia de Prade, trabalho esse que se relaciona a técnicas não calcadas no aleató- rio e/ou no acaso captando fluxos mentais próprios do registro incons- ciente. Relembremos que nos alvores do Surrealismo, assim como em períodos posteriores, alguns poetas se lançaram à captação direta do psiquismo inconsciente ou subconsciente, numa prática que se traduzia na desordenação ideativa e sintática do poema. Nessa circunstância, com antecedentes dadaístas, devem ser mencionados casos de recorrência a estados mentais livres das amarras sociais e de outras convenções, per- mitindo criações coletivas, tal como a famosa experiência que gerou “le cadavre exquis”: técnica de trabalho coletivo em que vários autores es- creviam ou desenhavam algo num pedaço de papel, sem saber o que os outros haviam registrado14, cujo exemplo mais conhecido registra o es- crito: “Le cadavre exquis boira le vin nouveau.” Prade tangencia o nonsense. Sua poesia alcança as paragens do onirismo. Porém, em seus versos tais instâncias diversificam-se entre ironia, sátira e até mesmo em incursões burlescas, que, entretanto, não se revelam antíteses da razão, mas apenas se esquivam de uma “certa razão”, que se assume antítese do poético. Se o fantástico demarca pon- tos nodais na poesia de Prade, note-se, porém, que, não restrito ao Sur- 13 DUROZOI, Gerard; LECHERBONNIER. Le Surréalisme. Paris: Larousse, 1972, p. 12. 14 Ibidem, p. 122.
  • 23. 22 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade realismo, o material onírico e o devaneio15 compõem o universo poéti- co de modo amplo e diversificado. Em contrapartida, conduzindo pro- postas estéticas que se distanciam da razão cognoscitiva, o Surrealismo não se reduz ao plano do onirismo imagístico. Ainda que sua tônica seja o irracionalismo, os surrealistas tangenciaram “projeto político”, tal como se depreende dos Manifestos. Ao descartarmos na poética de Prade o veio surrealista, deve ser notado que, no Brasil e no restante da Amé- rica Latina, muitas das manifestações poéticas “classificadas” como surrealistas relacionam-se ao Endobarroco, e, em alguns casos, são transposições do realismo mágico ao plano da poesia - questões essas que carecem de conceituação e, como tal, merecem ser estudadas. Ainda que relacionada ao simbolismo mítico e receptiva ao oniris- mo subjacente aos mitos, a poesia de Prade conduz o leitor a ilações sugestivas de um pensar autônomo, por meio de uma razão aberta e dia- lógica16, isto é, como enfrentamento da razão centrada em si mesma. Como desvio da razão ordenada como limite e unidade. Como desvio da razão absoluta. E como desvio de uma razão pura. No trabalho do poeta, a razão não se mostra antítese do poético, repetimos. Condizente com uma razão aberta - em virtude dos elos endobarrocos que permi- tem contradições -, a poesia de Prade sugere caminhos em esquiva do princípio lógico de identidade. Lembremos quanto a isso que, na tradi- ção ocidental, pautada na identidade, a ordem do pensar tem sido quase sempre concebida como busca do Uno, seja ele: eidos, arquê, telos, ener- geia, ousia, alétheia, etc.17 Os surrealistas igualmente negaram essa ra- zão fechada e centralizadora. Porém, enfrentando-a através de um irra- cionalismo que admite o acaso na criação poética. Afastando-se dos es- quemas centralizadores, na obra poética de Prade, sobretudo nas Varia- ções sobre o Unicórnio, o afastamento da estrutura sígnica exacerba-se em virtude das metamorfoses que integram imagem e logos. Ao fazer alusões ao Uno e ao múltiplo, mormente na concepção do Unicórnio, Prade conduz as imagens e a linguagem ao campo das diferenças nos planos existencial e ideativo, e não na instância do princípio de identi- 15 Trata-se da imaginação poética, denominada igualmente devaneio, na filosofia de Bachelard. Consulte-se especificamente A Poética do Devaneio. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 16 Questão que pode ser estudada a partir de O Novo Espírito Científico (trad. de Juve- nal Hahne Júnior. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968), de Bachelard, com des- dobramentos que, sob outros ângulos e temáticas, foram realizados por outros filósofos, dentre eles Derrida, no tocante à linguagem. Ver Referências Bibliográficas. 17 DERRRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Trad. de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 231.
  • 24. Mirian de Carvalho 23 dade. Seguindo essa dinâmica, o trabalho do autor deflagra jogos de idéias desviantes do irracionalismo, bem como dos esquemas fixos da racionalidade e do dogma. A imagística de Prade sugere um pensar des- pido de abstrações: O gato é a razão impura Olhos verdes de Kant sobre as mesas onde o que fica não se situa18 Nestes versos reveladores de ironia incontida no título do poema “Esboço de um Gato enquanto penso”, o poeta sugere uma razão anco- rada no mundo, tônica que abrange sua poesia como um todo, ao guiar- se por perspicácia voltada para as falácias do pensamento direcionado à abstração pura. Desmontando o gradio das jaulas amorosas19, onde homem e animal se vêem em espelho, a razão que se aceita impura sol- ta-se ao pisar no chão. Sem bagagem irracionalista, ela anda pela cida- de, desdobrando-se em reflexões sobre o estabelecido. Desviando-se das verdades absolutas, dos esquemas de pura abstração, bem como da estru- tura do signo, as imagens poéticas criam suas direções e abrem-se ao lo- gos, recortando-se como olhar agudo sobre o mundo, revendo-se ante as metamorfoses que culminam nas variações do Unicórnio. As imagens afloram no momento áureo desse ser gerado nas obras anteriores, nas cercanias do espaço e do tempo das serpentes, dos pássaros e dos ani- mais ferozes, conduzindo o pensamento ao paradoxo. Paradoxais, as metamorfoses desordenam e ordenam o mundo. Ordenam. E desorde- nam. Na tessitura do logos poético. Desconstruindo-se, as antíteses deflagram invenções e desdobra- mentos imagísticos e lingüísticos. Desconstruindo-se, os pólos antitéti- cos geram por vezes figurações reversíveis. Geram imagens em proces- so. E imagens transientes. Realizando-se em variações, o corpo do Uni- córnio não se define como forma. Não é alvo de conceitos. O Unicór- nio integra o absurdo e o fantástico à razão alerta ao mundo. Alerta à urbe. No conjunto, esses traços afetos a estratos imagético-semânticos na poética das metamorfoses revelam no trabalho de Prade vínculos endobarrocos - tópico que mereceu especial análise no decorrer deste ensaio. 18 PRADE, Péricles. “Esboço de um Gato enquanto penso”. Jaula Amorosa. Florianó- polis: Letras Contemporâneas, 1995, p. 87. 19 Referência à obra Jaula Amorosa, op. cit.
  • 25. 24 2 - Panbarroco e Endobarroco Sou e não sou mal crescente, monstro generoso, animal opositor de cabeça purpúrea, metáfora de um Deus de intenções ambíguas1 2.1. Elementos “Barrocos” na Escrita Hodierna Dando prosseguimento à identificação das características de cunho imagético-ideativo na poética de Prade, percebemos que nas metamor- foses do Unicórnio as oposições eclodem em simultaneidades. Multifa- cetas, as oposições tornam-se ambivalentes ou plurívocas. Nos nomes e no corpo do Unicórnio, e nas qualidades e atribuições do seu chifre, as variações referendam a antelinguagem, valorizando semânticas an- teriores ao discurso, e de origem diversa do discurso: trata-se dos senti- dos das imagens primeiras captadas pela imaginação, acolhendo estra- tos ideativos de aguçado pensar através das imagens reunidas ao logos. Insurgindo-se como questionamento da razão fechada e centrada em si mesma, a poesia de Prade enraíza-se nos desdobramentos do pensamen- to contemporâneo. Em transformação e em escorço, o Unicórnio induz o leitor a pensar o mundo, através das diferenças afeitas às metamorfo- ses, deflagrando imagens inusitadas, tais como “A cabeça é a de Osíris: o acéfalo antigo”, “parafuso faminto”, “antes do primeiro coito alado”, “carne espiritual”, “chave cifrada”, que, sugerindo outras possibilidades lógicas, atingem contradições afetas ao ser e ao não-ser, nas figurações do Unicórnio: Sou e não sou2 Entre possibilidades afetas à diversificação das imagens e do pen- samento, a poesia de Prade encarna o onirismo em vigília. Origina-se nos olhos despertos. Voltados para os sentidos. Conjugando articulações 1 PRADE, Péricles. “Representações”. Em Forma de Chama: Variações sobre o Uni- córnio. São Paulo: Quaisquer, 2005, p. 20. 2 Idem.
  • 26. Mirian de Carvalho 25 singulares, o poeta busca instâncias semânticas que transcendem às su- bordinações gramaticais. E, reconhecendo o liame endobarroco no tra- balho do autor, torna-se necessário fundamentar tal afirmativa, observan- do-se que, em afastamento do Modernismo, marcadamente a partir de 1970, mas com alguns recuos significativos na década de 60, alguns artistas3 e escritores vêm buscando padrões auto-referentes. Nessa bus- ca, torna-se possível identificar manifestações estético-artísticas singu- lares que extrapolam a denominação Pós-Modernismo, cuja abrangên- cia é muito ampla, e meramente cronológica. Face às atuais diferenças no campo da ficção e da poesia, segundo o professor e ensaísta Ivan Cavalcanti Proença, verifica-se a partir dos anos 90 uma exaustão do modernismo no campo da Literatura, com a insurgência de poetas que recorrem à forma fixa e à isometria, mas sem conotações passadistas de cunho parnasiano4, convivendo com autores que continuam adotando o verso livre, porém interpretando e transgredindo certos recursos moder- nistas, como a escrita sincopada e a inexistência de adjetivação. No bojo desse momento poético que admite grande flexibilidade formal e revisão de recursos atinentes à linguagem e ao gênero, define- se clima propício a incursões endobarrocas, tal como ocorre na poesia de Prade. Para definir tais incursões, consideramos importante visitar teorias relacionadas ao Barroco, em acepções diversas, mas considera- das relevantes para o entendimento da noção de Endobarroco, engloban- do as seguintes abordagens: a noção de eterno barroco no pensamento de Eugenio d’Ors; a concepção cíclica de Heinrich Wölfflin transposta ao plano da Literatura; os estudos de Helmut Hatzfeld referentes aos traços barrocos em períodos que vão do Renascimento ao Rococó; e alguns tópicos do pensamento de Arnold Hauser. Mas para caracterizar os caminhos do Endobarroco, vamos iniciar pelos estudos de Proença, que, em substituição ao nome Neobarroco, que conota estilo, optou pela denominação Panbarroco - mencionada igualmente por Afrânio Couti- nho5, ainda que em sentido diverso. Assim como a noção de “eterno barroco” no pensamento de Ors abrange as Artes e a Arquitetura atra- vés dos tempos, a noção de Panbarroco nos estudos de Proença abran- 3 Encontra-se em fase de preparo editorial texto de nossa autoria sobre o Endobarro- co na pintura de César Romero. 4 Como exemplo destaque-se a poesia de Maria Theresa Noronha, O Verso Implume. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 2005. 5 Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 96.
  • 27. 26 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade ge a Literatura através dos tempos. Sob esse prisma, ressalte-se, do mesmo modo, o Endobarroco não se refere a estilo de época. Engloban- do interpretação das Artes e da Literatura, neste ensaio o nome Endo- barroco abrange traços “barrocos” diferenciados, eclodindo em diferen- tes obras e épocas, do Renascimento aos dias atuais. Para caracterizar o Endobarroco no tocante à escrita, conforme o mencionado, buscamos subsídios nos estudos de Proença, que localizou procedimentos panbarrocos em autores do século XX e em autores con- temporâneos, e metodizou técnicas da escrita no âmbito do fazer literá- rio hodierno. Ao delinear o perfil dos recursos pertinentes ao Panbarro- co, Proença define-os em várias instâncias da ficção e da poesia. Em seus estudos, o ensaísta enfatiza a freqüente transgressão da ordem direta do discurso, em alguns casos gerando escrita densa - recurso esse que, do ponto de vista da poesia, pode resultar no verso longo. Notando-se que o Panbarroco abrange traços formais, morfossintáticos, sonoros, semân- ticos e imagísticos, Proença ressalta na poesia a presença de “jogos an- titéticos, inversões, paradoxos, oximoros, jogos de palavras usadas em sentido lúdico, massas fônicas, paralelismos sintáticos e semânticos, quiasmos, etc.”6 Ainda quanto a essa tendência no fazer literário hodier- no, Proença afirma: “No Panbarroco, cultismo e conceptismo se apro- ximam enquanto jogo de palavras e jogo de idéias, respectivamente. Brincar com as palavras, inclusive associadas às construções antitéticas, é bem-vindo, admitindo-se ainda as construções hiperbólicas, metáfo- ras e símiles.”7 Porém, observemos, uma vez que o Panbarroco não representa re- tomada do estilo seiscentista, à escrita literária atual não cabem exage- ros na elaboração de escritos, qual fossem feitos àquela época: “Já não se confundem os textos literários com os trocadilhos e jogos de palavras gratuitos, presentes no Barroco. No entanto, as perífrases e repetições simétricas de palavras e massas fônicas ocorrem no Panbarroco hoje.”8 Ao identificar essa tendência no plano da Literatura, a par dos jogos verbais, Proença ressalta figurações relativas à angústia do homem e a recorrência ao topos carpe diem9. O ensaísta destaca também, como tra- ço da escrita panbarroca, as oposições, tais como: “céu e terra, virtude 6 Notas de aulas. 7 Notas de aulas. 8 Notas de aulas. 9 Notas de aulas.
  • 28. Mirian de Carvalho 27 e pecado, crença e descrença, paixão e ódio, luz e trevas, etc.”10 Ao iden- tificar escritores cujas obras, em parte ou no todo, apresentam as carac- terísticas mencionadas, Proença relaciona ao Panbarroco a narrativa de Guimarães Rosa e a poesia de Carlos Pena Filho, dentre inúmeros ou- tros exemplos, incluindo autores contemporâneos. Em virtude da afini- dade lingüística, Proença igualmente localiza tais procedimentos em autores portugueses, dentre eles José Saramago. Nesse sentido, não cabe ao Panbarroco qualificativo de imprecisão quanto à validade crítica e histórica, como menciona Coutinho11, uma vez que sua validade não se atém a critérios estilísticos relacionados à abordagem do Barroco. Do mesmo modo, deve ser ressaltado que ao Endobarroco não se adequam critérios de análise puramente estilística, posto ter ele impli- cações ideativas abrangentes de uma dinâmica sociocultural, marcando- se na Poesia e nas Artes através de estratos imagético-semânticos em esquiva do princípio de identidade. Quanto à insurgência do Endobar- roco, seja de modo parcelar ou mais abrangente, variando em gradações, seus traços desdobram-se de modo diverso na poética de diferentes au- tores. Assim sendo, ressalte-se que a diferença entre o Endobarroco e o Panbarroco metodizado por Proença não se situa no plano da escrita li- terária, mas no plano da concepção filosófico-cultural, que se insere no Endobarroco, tendo como princípio a imagística hiperbólica conduzin- do vínculo ideativo intrínseco, que, em desvio do princípio de identida- de, atua desconstruindo antíteses e revelando, de modo explícito ou implícito, instâncias de um pensamento divergente, relacionado a algum plano da cultura. Compondo a poética das metamorfoses, convergem na poesia de Prade essas características afetas à imagística e os traços do fazer lite- rário aqui mencionados, interagindo com outros aspectos analisados ao longo deste texto. Ainda que não pautada esta leitura em visão forma- lista, destacamos na produção poética do autor elementos endobarrocos explicitados, sobretudo, por estratos imagéticos, privilegiando “oposi- ções” e diferenças, gerando paradoxos e oximoros, que se intensificam em vários poemas em virtude das sonoridades. Assim sendo, na poesia de Prade igualmente merecem destaque os estratos sonoros, que, diver- sificando-se em sintagmas diacríticos, vocalizações, aliterações, colite- rações, algumas poucas rimas e outros recursos fônicos, intensificam 10 Notas de aulas. 11 Op. cit., pp. 95-96.
  • 29. 28 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade contrastes imagéticos e ritmos gerados por liames morfossintáticos. Mas, atuando por meio de jogos verbais e ideativos e alçando-se às diversifi- cações semânticas, o Endobarroco na poética de Prade lança-se à iro- nia, à sátira e ao burlesco, intrínsecos ao percurso poético do autor. Além dos traços já mencionados, para compreender o Endobarro- co na poética de Prade, do mesmo modo analisamos e valorizamos, de acordo com uma visão contemporânea, aspectos morfológicos e ideati- vos descritos por autores que visitaram o Barroco em diversos estudos e linhas. Revisitados, esses aspectos foram analisados na perspectiva endobarroca, com ênfase na obra Em Forma de Chama: Variações so- bre o Unicórnio, dando-se destaque ao trabalho da imaginação, trans- formando o nome e o corpo desse ser fantástico, em face das metamor- foses que se iniciam nos elementos postos em relevo na poética de Pra- de: o fogo e a água. Do ponto de vista de uma incursão endobarroca na poesia de Prade, enfatizamos na poética das metamorfoses, sobretudo, as seguintes características: a imagística hiperbólica, que, ultrapassan- do a metáfora e o símile, conduz ambivalências e paradoxos; a descons- trução de antíteses; a escrita caótica e/ou paratática; os jogos de pala- vras e de idéias; e a insurgência do topos carpe diem. E primordialmente o encantatório, mobilizando jogos ideativos em desvio do princípio de identidade. Tais características evidenciam no trabalho de Prade processos da imaginação, produzindo estratos imagético-semânticos, seja na prosa poética, seja no verso livre, ou na forma fixa. Destacando qualidades rítmico-sonoras, ao valer-se da forma fixa, Prade não se prende à rigi- dez. Quanto às variações formais, a par do verso livre, o poeta igualmen- te recorre ao soneto, às quadras, aos tercetos, aos dísticos, porém sem esquema rímico. Quanto à isometria, esta se faz recurso raro, ainda que se insurgindo em alguns trabalhos do poeta, para manter regularidades rítmicas afetas a alguns versos, como, por exemplo, em Ciranda Anda- luz, observando-se ainda que, em determinadas obras, contracenam for- mas fixas e versos livres: “Em realidade, Péricles Prade realiza com essa miscigenação de ritmos a fusão da tradição e da modernidade.”12 Nessa miscigenação, Prade desconstrói formas tradicionais, bem como des- constrói os preceitos do Modernismo, cabendo aludir a um movimento intrínseco ao Endobarroco, atuando como desvio de padrões. Em sen- do as potencialidades imagéticas ponto áureo na poesia de Prade, ul- trapassando metáforas, alegorias e símiles, elas se exacerbam através da 12 GOMES, Álvaro Cardoso. “Orelha I”. In PRADE, Péricles. Além dos Símbolos. Flo- rianópolis: Letras Contemporâneas, 2003.
  • 30. Mirian de Carvalho 29 personificação, da animização, da hipálage, da hipérbole e de outras pos- sibilidades desviantes da verossimilhança externa. De acordo com esse desvio, em certos poemas ocorre enumeração caótica, articulando imagens inusitadas e costurando o logos poético por meio do paradoxo: “Assim, a um poema anterior, liga-se umbilicalmente o poema seguinte ou os versos de um poema ao título do mesmo, de sorte que, permanentemente, há uma tensão cuja leitura (percepção e tradu- ção) exige do leitor uma constante atenção e adesão ao texto.”13 Desse modo, na poética de Prade, o verso curto não significa facilidade ou pres- sa. Estabelecendo articulações intrínsecas à totalidade da obra em que se insere, o verso curto pontua e interliga lugares e tempos poéticos. E interliga oposições e diferenças, por meio de articulações singulares. Assim como no Barroco estilístico, no Endobarroco as imagens asso- ciam jogos díspares de palavras e idéias, mas tais jogos não repetem exa- tamente as mesmas figurações barrocas. Eles se renovam de acordo com o pensamento característico de cada época. E diversificam-se na poéti- ca de Prade, renovando traços do fusionismo, que se caracteriza pelo encontro de opostos nas instâncias semânticas intrínsecas às imagens. Essas instâncias revelam-se como endossentidos, ou seja, trazem senti- dos implícitos às imagens indicando oposições, diferenças e contrastes, que se reúnem sob vários aspectos na poética das metamorfoses. 2.2. O Fusionismo e as Instâncias Ideativas na Poética de Prade Na poesia de Prade, detectamos vários traços endobarrocos que, articulando-se a instâncias semânticas, se desdobraram da estilística barroca, e, renovando-se nos dias atuais, foram mencionados e/ou ana- lisados com referência ao todo da poética do autor, dentre outros que agora complementam esta leitura. Esses traços decorrem primordial- mente de um fusionismo, ou seja, de uma harmonia entre os opostos, questão essa estudada pelos teóricos do Barroco literário e mencionada nos textos de Hatzfeld14. Igualmente descritas por diversos autores e relacionando-se, diretamente ou não, ao fusionismo, no Endobarroco detectam-se inúmeras outras características comuns à escrita “barroca” - características essas que, guardadas as diferenças relativas à poesia ho- dierna, surgem modificadas e relacionam-se ao percurso poético de Pra- 13 HOHLFELDT, Antônio. “Pequeno Tratado Poético das Asas: Exegese” (Posfácio). In PRADE, Péricles. Pequeno Tratado Poético das Asas. Florianópolis: Letras Con- temporâneas, 1999, p. 76. 14 Estudos sobre o Barroco. Coleção Stylus. Trad. de Célia Barretini. São Paulo: Pers- pectiva, 2002, p. 89.
  • 31. 30 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade de, em ramificações semânticas aqui descritas, com ênfase nas metamor- foses do Unicórnio: a - Ordem desordenada15: em oposição à clareza do texto “clás- sico”, a configuração da escrita endobarroca muitas vezes apre- senta enumeração caótica, inversões, adornos, inexistência de conectivos, etc., dentre outros indícios. Quanto à ordenação em desordem, destaque-se que esse modo de concepção do poema acompanha a poesia de Prade desde os primeiros versos, em desvio da ordenação lógica, com grande ênfase na obra Em For- ma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. Nesse trabalho, as imagens sofrem variações e renovam-se sob diferentes circuns- tâncias, explicitando sentidos afetos à linguagem, que se articula de modo desordenado em virtude da quase total inexistência de conectivos e em virtude de muitas inversões. Seguindo essa es- crita ordenadamente caótica, o poeta recriou o corpo e o nome desse animal fabuloso, vivendo existência de variações, que abrangem estados indiferenciados. E transitivos. b - Perspectivismo16: enfoque singular do mundo, do kósmos e da vida, captados pelo eu poético. Tal angulação realiza-se numa paisagem abrangente de coisas e seres apreendidos em ângulos singulares e até particulares. Trata-se de espécie de aura envol- vendo o personagem, a cena ou a imagem, ou simultaneamente todos eles, conforme a natureza do texto. Sob esse ângulo, ao descentrar o signo, o Unicórnio revela-se em errância, por des- locar-se ele abandonando o centro e a angulação privilegiada para revelar-se heteróclito. Para revelar-se “eu” e outro, encar- nando diferença e diferencial entre corpos e nomes, e deflagran- do outras possibilidades de existência, tal como se fosse ele concebido em escorço17, rememorando a perspectiva de ponto múltiplo, própria do Barroco. Assim apreendido o Unicórnio, como que surpreendido numa visão singular, realizam-se no poema imagens e ideação em esquiva do Uno e do absoluto. Intimamente relacionado ao perspectivismo, deve ser então con- siderado o estilo prismático renovando-se enquanto faceta en- dobarroca. 15 O tema remete a Casalduero apud Hatzfeld, op. cit., p. 91. 16 Esse tema remete a comentários de Galileu sobre os escritos de Tasso, através da abordagem de dois autores. Cf. Spoerri e Toffanin apud Hatzfeld, op. cit., p. 91. Hatzfeld, (loc. cit., nota nº 38) refere-se também a Aristóteles, mencionando na Po- ética do filósofo passagem alusiva a afinidades entre a Epopéia e a Tragédia. 17 Expressão atribuída a Toffanin apud Hatzfeld, op. cit., p. 91.
  • 32. Mirian de Carvalho 31 c - Estilo prismático18: trata-se do enfoque de ações de um he- rói ou anti-herói refletindo-se na consciência de outros perso- nagens com os quais interage e aos quais se remete entre ações e pensamentos - circunstância cabível à poesia épica. Analisa- da neste ensaio como Epopéia, a instância ou “refração” pris- mática, ou seja, a referência a um ato com possibilidades de desdobramentos, adequa-se a outros momentos épicos da obra de Prade. Mas relaciona-se em especial à obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio, poema em que o fabulo- so animal ganha luzes de herói, cujos feitos, ações, afetos e atri- buições refletem-se em outros “personagens” referidos pelos estados anímicos do Unicórnio. Tal como ocorre na pintura bar- roca, em que os planos se entrelaçam, observamos que, através das metamorfoses, ao fabuloso animal imbricam-se muitos cor- pos e nomes - atuando como espelho e diferencial. O espelho mostra diferenças. Nunca a mesma imagem. E o diferencial se explicita a cada nova imagem que se cria para trazer ao mundo o Unicórnio, através de prismas espaciais e temporais, em ho- ras e circunstâncias diversas, que, por sua vez, se relacionam ao elemento água: espelho e reflexo das variações do Unicórnio. Espelho e reflexo do fogo, em visão prismática. d - Claro-escuro19: aspecto que, trazido metaforicamente das Ar- tes Plásticas, revela tensões comuns ao Endobarroco por meio de contrastes. Assim como nas Artes e na Arquitetura, esse cla- ro-escuro concentra tensões entre luz e sombra, atribuindo à poesia certa tragicidade, entre oposições e relações do claro e do escuro em contrastes abruptos. Na poesia de Prade, esse en- contro abrange os estratos sonoro, morfossintático e imagético, apresentando-se por meio de graduais diferenciações, no percur- so da produção poética do autor, vindo a integrar oposições que se intensificam e acompanham a Epopéia do Unicórnio, entre figurações simbólicas da chama. e - Amálgama paradoxal do racional com o irracional20: trata- se de recorrência ao encontro do racional e do irracionalismo no 18 Esse tópico se reenvia a Ortega y Gasset e Spitzer apud Hatzfeld, op. cit., pp. 91-93. 19 Relacionando-se às oposições entre luz e sombra, esse tema remete aos estudos de Spoerri e de Grilo apud HATZFELD, op. cit. 20 A questão da complementaridade do racional e do irracional remete-se ao trabalho de Schmarsow apud HATZFELD, op. cit., p. 97.
  • 33. 32 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade plano literário, admitindo o paradoxo como raiz do pensamen- to. Esse traço se revelou no Barroco, refletindo nas imagens in- cursões do pensar e do imaginar, lançando-se à fantasia, ao len- dário, ao mito e seus congêneres. De modo similar, no Endobar- roco esse liame com o onirismo determina-se pela imaginação, revisitando e recontando lendas e mitos. E desviando-se da nar- rativa. Na errância do Unicórnio, esse amálgama paradoxal abrange a matéria imaginada de onde nascem seres fantásticos, como o Unicórnio coroado pelo fogo. Na confluência dessas instâncias endobarrocas, algumas delas re- lacionadas ao fusionismo, o Unicórnio modifica-se como o movimento da chama, gerando outros animais fabulosos que com ele convivem. Dragões. Serpentes. Búfalos. Touros. Ou tantos outros, desdobrando-se em atos e nomes. E trazendo à tona irradiações dos não-ditos. Torna-se então possível transpor ao Unicórnio a frase que originariamente se re- fere ao surgimento da Fênix nas obras poéticas: “é essencialmente uma imagem tornada Verbo”21. Assim como a Fênix, o Unicórnio torna-se verbo originário. Esse verbo se inicia nas mutações do fabuloso cavalo coroado pelo chifre-em-forma-de-chama. Adornado pelo fogo, o Uni- córnio revela sua origem na matéria imaginada. Mas ante as singulari- dades endobarrocas intrínsecas à poética de Prade e considerando que nenhum estilo se repete, não realizamos mera descrição de traços mor- fológicos constantes da poesia desse autor. Ainda que através de digres- sões e desdobramentos, visitamos o pensamento de alguns autores, cu- jas idéias corroboram as diretrizes do Endobarroco. Como foi mencionado, para fundamentar a noção de Endobarro- co recorremos a alguns aspectos do pensamento de Eugenio d’Ors no que tange a uma leitura da questão do “barroco” através dos tempos, opondo-se à concepção do Barroco enquanto estilo de época. Assim sendo, observando-se que, no terceiro e no quarto capítulos deste tra- balho, a partir do pensamento de Eugenio d’Ors, Heinrich Wölfflin e Helmut Hatzfeld foram enfatizadas questões gerais atinentes ao Barro- co estilístico ou não, caso o leitor não queira se deter em tais referên- cias, poderá dar continuidade à sua leitura a partir do quarto capítulo, que se remete à abordagem da poesia de Prade enfocada do ponto de vista da imaginação criadora. 21 BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma Poética do Fogo. Trad. de Norma Tel- les. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 52.
  • 34. 33 3 - Eterno Barroco, Barroco e Endobarroco Deus mutante, as vestes da terra são as do paraíso mas Adão continua nu, a costela quebrada1 3.1. O “Eterno Barroco” na Filosofia de Eugenio d’Ors Reconhecendo singularidades imagético-ideativas na poética de Prade, chegamos à noção de Endobarroco, a partir dos traços da escrita panbarroca, tal como descrita por Proença, bem como por meio de as- pectos ideativos marcadamente explicitados pelas imagens encantató- rias, e ao logos poético em desvio do princípio de identidade, descons- truindo antíteses para criar possibilidades semânticas. Sob esse aspec- to, sem vincular a noção de Endobarroco a instâncias meramente esti- lísticas, não descartamos de todo a importância dos referenciais morfo- lógicos. Mas, ao tangenciá-los na poesia de Prade, consideramos alguns aspectos do pensamento de Eugenio d’Ors e destacamos certos conteú- dos que tangenciam a noção de eterno barroco, ainda que através de digressões, ressaltando-se que Ors inaugurou importante vertente de pensamento sobre o Barroco, vertente essa que abarca o domínio meta- físico trazido ao plano sensível. Realizando articulação entre o arquetí- pico e o cultural, o autor remete seu pensamento à Escola de Alexandria, cujos princípios filosóficos se pautam na noção de éon. Segundo Ors, o éon implica constância arquetípica aflorando no plano cultural. Com relação ao Barroco, verifica-se uma constante, eclo- dindo em manifestações múltiplas e variacionais - nunca por meio da repetição. Nessa constante, a base arquetípica não lhe confere rigidez categórica, porque o éon barroco se revela diversificado através dos tem- pos, mostrando-se singular nas Artes e nas demais manifestações da cultura. Segundo o referido filósofo, o éon abarca as constantes barro- cas com abrangência universal, diferenciadas das constantes clássicas inseridas em certas expressões artísticas. Mas Ors não se prende à aná- lise formal da Arte: trata-se de entender o “barroco” enquanto concep- ção de mundo. Enquanto estilo de cultura. Quanto à eclosão barroca, 1 PRADE, Péricles. “Osíris”. Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio. São Paulo: Quaisquer, 2005, p. 26.
  • 35. 34 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade segundo esse autor, em que pese a insurgência de uma constante tangen- ciando o domínio metafísico, o éon sempre ressurge em transformação. Do ponto de vista das expressões plástico-artísticas, o “barroco” assim concebido localiza-se inclusive na Pré-história, e, alcançando diversifi- cações em tempos históricos, abarca o Oriente e o Ocidente. Ao curso de tal abordagem, o autor não se ocupou da classificação de espécies, nem de tipologias, nem de elementos no plano das Artes, uma vez que a constante barroca é variacional, observemos. Seguindo diretriz filosófico-cultural, Ors esquadrinhou no “barro- co” manifestações estéticas caracterizadas por tensões e contrastes, tal como a natureza explodindo viva e lúdica. Explodindo livre. Trazendo sentido libertário, no campo das Artes o éon congrega eventos “polimor- fos”2, ainda que guardando uma referência arquetípica. Aqui, o arquéti- po refere-se a um dinamismo intrínseco aos fenômenos culturais, ou seja, trata-se de movimentos vitais, inscrevendo o Barroco em várias circunscrições da experiência humana do pensar e do fazer - inclusive na esfera política. De acordo com a filosofia de Ors, seguindo fluxo di- ferencial, o “barroco” insurge-se contra o estabelecido. Questiona o definitivo. Desestabiliza o absoluto. Recriando-se, o “barroco” conce- bido fora das diretrizes estilísticas “pode renascer e traduzir a mesma inspiração através de formas novas, sem a necessidade de copiar literal- mente”3. Em esquiva do conceito de evolução, Ors analisa essa constante na perspectiva de um eterno barroco4: um princípio universal cujo “mo- delo” originário é a natureza caracterizada pelo movimento5 - a nature- za relacionada à vida e à renovação. 3.2. Digressões e Reflexões sobre o “Eterno Barroco” De acordo com o entendimento do “barroco” como polimorfia e como negação do absoluto, e de acordo com as características da escri- ta panbarroca, aspectos que respectivamente se referem aos estudos de Ors e de Proença, identificamos características endobarrocas na poesia de Prade. E do mesmo modo as identificamos em obras de outros auto- res e artistas contemporâneos, bem como localizamos tais característi- 2 ORS, Eugenio d’. Du Baroque. Trad. de Agathe Rouart-Valéry. Paris: Gallimard, 2000, p. 70. 3 ORS, Eugenio d’. Op. cit., p. 91. 4 DASSAS. “Présentation”. In ORS, Eugenio d’. Du Baroque. Trad. de Agathe Rouart- Valéry. Paris: Gallimard, 2000, p. XI. 5 ORS, Eugenio d’. Op. cit., p. 103.
  • 36. Mirian de Carvalho 35 cas em vários outros períodos anteriores e posteriores ao século XVII, de acordo com diferenciações próprias desses períodos. Assim sendo, torna-se viável admitir, de acordo com a teoria de Ors, analogias esté- ticas relacionadas ao Barroco, em momentos não pertinentes ao Seiscen- tismo. Porém, enfatizando-se que esse autor destacou em seus estudos o campo Artes, tecemos algumas reflexões sobre suas idéias nesse cam- po, considerando-se que elas conduzem questões implicitamente afetas à Literatura, do ponto de vista do trabalho da imaginação criando ima- gens. Sob esse prima, seja na instância das Artes ou na instância da Li- teratura, relembramos que as imagens, conforme o mencionado na In- trodução, e tal como objeto de estudo ao longo deste ensaio6, não se re- lacionam à representação, nem guardam vestígios de verossimilhança externa. A imaginação poética produz imagens não calcadas na objetivida- de. Atuando como desvio dos padrões da repetição, no Endobarroco as imagens trazem princípios ideativos, isto é, instauram semânticas que implicam pensamento divergente. Sendo fonte primeira do Seiscentis- mo, a imaginação igualmente se explicita de modo singular nas Artes e na Poesia de cunho endobarroco. Em sendo impossível nesta análise descartar inteiramente os aspectos morfológicos, deve ser valorizada, no tocante às Artes e à Arquitetura, uma dinâmica relacionada à linha cur- va, gerando ou sugerindo contracurvas, o que sinaliza oposições e con- trastes, expressando-se em fluxos simultâneos, seja nas superfícies, seja nos volumes. Tal fenômeno, guardadas as devidas diferenças, pode ser estendido a muitas das expressões artísticas orientais, enraizando-se em concepções ideativas, que, em curso diverso das causalidades formal e eficiente, aglutinam elementos díspares, algumas vezes em virtude de recorrência ao encantatório. Trata-se de mundivisão e cosmovisão que admitem relações espaciais e temporais fora dos parâmetros do espaço geométrico e do tempo seqüencial, levando às expressões artísticas so- luções espaciais e temporais correspondentes a esquemas mentais que admitem contradição, bem como outras possibilidades paradoxais. Quando Ors menciona um “barroco búdico”7, atribuindo-o a um éon, em contraposição a esse argumento metafísico e em favor da nos- sa argumentação, deve ser lembrado que no Budismo se inscreve a ins- tância do Caminho do Meio - instância cognoscitiva que se explicita por um pensar não afeito nem ao princípio de identidade, nem ao princípio 6 Temática abordada neste ensaio de acordo com o pensamento de Bachelard. 7 Op. cit., p. 123.
  • 37. 36 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade de contradição, deflagrando outros esquemas possíveis na condução do pensamento. Esquemas correspondentes podem ser detectados no Taoís- mo e no Hinduísmo8. Nesta breve menção às filosofias orientais, devem ser lembrados processos não regidos pelas noções de ser e não-ser, nem pela identificação do ser com a presença - questões que só recentemen- te se insurgem no pensamento ocidental, levando à Estética possibilida- des de acesso às Artes e à Literatura, por meio de valores intrínsecos, desviantes de uma episteme conduzida pelo pensamento girando em torno do Uno. Relembrando que a análise orsiana volta-se para as Artes, obser- ve-se que em suas variáveis as expressões plásticas podem apresentar contrastes imagísticos, deixando transparecer alicerces não afetos a pa- drões preestabelecidos. Assim sendo, observamos, as analogias referi- das por Ors relacionam-se a sistemas ideativos diversos, gerando expres- sões plásticas diferenciadas entre si. Tais expressões têm como ponto comum o desvio do princípio de identidade: princípio pertinente ao equi- líbrio clássico, que, por sua vez, implica analogias formais próprias do Classicismo, em momentos histórico-culturais diversos. E pode ser ob- servado que, em maior ou menor escala, os processos mentais regidos pelo princípio de identidade admitem antíteses, a serem transpostas ou superadas por um equilíbrio estático e harmônico, tal como ocorreu no Renascimento e nos demais Classicismos, através da síntese das oposi- ções, amenizando e/ou eliminando contrastes atinentes à cor, à linha, ao volume, dentre outros. Porém, no Barroco, as antíteses desconstroem- se, e as oposições ganham equivalências e correspondências, observan- do-se que o pensamento seiscentista conviveu com inúmeras oposições. Não só morfológicas. No Barroco, oposições de toda ordem articularam- se em simultaneidades, permeando concepções diversas, como: mundo cristão e mundo laico; finitude e infinitude; centro e descentro; Refor- ma e Contra-Reforma; terra e cultura européias e terra e cultura da Co- lônia. Essas oposições, ainda que antecedentes ao Seiscentismo, inten- sificaram-se no Barroco, deixando lastro deflagrador de outras oposições e/ou diferenças. Ante tal complexo de ambivalências, acentuavam-se contrastes, que, por sua vez, se articulavam a fatores sociopolíticos, cul- turais e religiosos, refletindo-se nas manifestações artísticas e literárias 8 Quanto ao pensamento oriental consultem-se as obras indicadas nas Referências Bibliográficas.
  • 38. Mirian de Carvalho 37 representativas do mundo laico. E, em que pese uma faceta religiosa relacionando o Barroco à Contra-Reforma, esboçava-se àquele período outro modo de pensamento, como se depreende dessa pergunta seguida de resposta: “Isso quer dizer que a arte barroca, tão freqüentemente acu- sada de ser conformista e hipocritamente devota, foi uma arte laica? Foi laica mesmo tendo servido à Igreja: já naquela época era possível que o zelo devoto encorajasse a religião a converter-se em política.”9 Já à época do Seiscentismo, junto às vertentes religiosas do Barroco inauguraram- se vertentes laicas, cujos desdobramentos ganharam no Brasil dimensões híbridas e sincréticas, que hoje se refletem nas Artes e na Literatura, gerando singularidades afetas ao Endobarroco. Refletindo sobre o pensamento de Ors, observe-se que, se há nas Artes uma constante barroca, ela nem se deve à dimensão metafísica, nem se revela universal, mas advém do trabalho da imaginação criado- ra dinamizando o percurso das curvas, que se direcionam à diagonal, congregando linha e massa em movimento. Essa dinâmica, em verdade uma dinamogênese criando qualidades espaciais, incide numa conver- gência de forças contrárias, assinalando polimorfias no plano estético e sinalizando um pensar divergente, em alguma instância cultural. Por manifestar-se circunscrito à cultura, o “eterno barroco” de Ors pode ser entendido como desvio de normas estéticas e, potencialmente, de outras normas, ao ressurgir sempre renovado. Esse aspecto torna-se comum à noção de Endobarroco, enfatizando-se que este não traz a extensão uni- versal do conceito orsiano. Quanto ao Endobarroco, ressaltem-se do Renascimento aos nossos dias contrastes e ambivalências que abarcam manifestações multifárias, bem como matérias e simbolismos efeitos tanto às expressões plásticas quanto às literárias. Nas Artes, assim como na Literatura, matéria e imaginação interagem. Do ponto de vista plás- tico, matéria e simbolismo vivem o dinamismo das curvas. Em especial na Poesia, matéria e simbolismo vivem jogos de palavras e idéias defla- grando tensões imagéticas. Se, de acordo com o pensamento de Ors, nas Artes e na Arquitetu- ra de diferentes períodos “barrocos” se faz possível detectar certa ana- logia, esta se constitui em diferenças que afloram como desvio do esta- belecido, enquanto negação do definitivo e do absoluto - argumento que aceitamos com referência às idéias desse autor. Mas refutamos em sua 9 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 10.
  • 39. 38 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade teoria a idéia de uma constante metafísica e a universalidade do “barro- co”, repetimos. Considerando, por exemplo, períodos como o Helenís- tico, o Gótico e o Romântico, dentre inúmeros outros, bem como abran- gendo expressões artísticas e arquitetônicas orientais, torna-se possível pensar que as analogias referidas por Ors relacionam-se à imaginação criando contrastes implícitos às imagens. E, desdobrando o pensamen- to de Ors, observe-se que o “barroco” se explicita pela exceção e pela diferença. Se o modelo de Ors foi a Natureza, ela pode ser concebida como dinamogênese. Note-se que a Natureza mostra-se como transfor- mação, através de diversidades apreensíveis no plano sensível. A olho nu, captamos mudanças entre o dia e a noite. Entre a vida e a morte. Acompanhamos semente e floração. Percebemos as águas movendo-se às oscilações das marés. E hoje, torna-se possível captar outras diferen- ças sutis - não perceptíveis no plano sensível -, ou seja, fenômenos que podem ser objeto de experimentação no campo da ciência. Mas as re- gularidades por nós sistematizadas, seja no plano sensível, seja no pla- no teórico, advêm de algo que se revela como diferença. Ao relacionar a dinâmica barroca aos movimentos da Natureza, Ors possivelmente foi atraído pela transformação. O “barroco” assim concebido encarna e/ou admite contradição. Possibilidades. Admite multiplicidade interpretativa. Encarna ruptura com o conceito. Recorta- se nos acontecimentos eventuais e nos grandes acontecimentos relacio- nados à cultura, bem como relacionados ao espaço e ao tempo. Situan- do o “barroco” como mundivisão e cosmovisão, Ors transporta-o ao plano ético, reconhecendo nas expressões barrocas sentido de liberda- de, questão que pode ser relacionada a vários planos de atuação do Ho- mem, sobretudo ao campo das Artes e da Literatura. Refletindo sobre as idéias de Ors, e reconhecendo tal dinâmica, pode ser inferido que, resguardadas as diferenças culturais, as instâncias endobarrocas, tal como definidas neste ensaio, atravessam fronteiras e chegam aos dias de hoje assinalando-se como desvio do estabelecido. Nessas circunscrições, no Endobarroco a imaginação aflora nas imagens reunindo animus e anima - forças intensas e forças tênues -, numa complementaridade que, assim como na vida, se opõe ao imobilismo. E a vida se revela fuga de algo que a quer perecimento. A partir do pensamento de Ors, pode ser inferido que a insurgên- cia “barroca” mobiliza forças renovadoras do pensamento e da ação, quando a vida se faz ato. E energia. Energia, tal como esse filósofo a concebeu: como impulso. Impulso que enfatiza o valor da vida. E a vida como valor. E como liberdade. Liberdade essa que induz o pensamento
  • 40. Mirian de Carvalho 39 à busca do diferencial nas manifestações “barrocas”, vistas como fenô- menos não datados no Seiscentismo. Desse modo, se analisadas no Bar- roco as antíteses do ponto de vista de uma ordenação ideativo-semânti- ca, elas não implicam síntese: acepção que pode ser metaforicamente transposta ao equilíbrio clássico, que, sob a ótica pictórica, advém de uma síntese do claro-escuro ou chiaroscuro. No Barroco insurgem-se luzes e sombras. Prevalecem o claro e o escuro. Encontram-se o dia e a noite. Os opostos convivem em simultaneidade. Porém, observando que o pensamento orsiano volta-se para as ex- pressões plásticas, ao refletirmos sobre o “eterno barroco” no plano li- terário, torna-se impossível encontrar traços e liames que, em sentido tão amplo, possam abranger aproximações entre Ocidente e Oriente, englo- bando todos os tempos históricos. Entre diferenciações que vão da es- crita alfabética ao ideograma, torna-se inviável uma abrangência que compreenda e localize traços barrocos em expressões lingüísticas tão díspares. E, ao ser traduzida, a poesia é reescrita. Um hai-kai traduzido perde todos os liames semântico-filosóficos e simbólicos que o origina- ram - sem mencionar a ordem das sonoridades. Quanto à insurgência do Endobarroco no fazer literário, procuramos estabelecer convergências geográficas e culturais que o definem a partir de textos renascentistas, chegando aos dias de hoje com fisionomia própria, mas sempre guardan- do vínculos com contrastes afetos às imagens e aos aspectos ideativos, gerando desvios relativos ao estabelecido. Porém, mesmo aceitando al- guns princípios ideativos da teoria de Ors, ressalve-se: se o “eterno bar- roco” orsiano tem abrangência universal, o Endobarroco circunscreve- se a um espectro temporal que chega à contemporaneidade, mas com início no Renascimento, repetimos. Voltando ao “eterno barroco”, lembremos: essa noção que privi- legia o dinamismo nas Artes permitiu a Ors afastar-se das abordagens formalistas do Barroco, tal como o fizeram vários teóricos. Diferencian- do-se das concepções cíclico-evolutivas, e voltado para as diferenças no plano estético, o estudo de Ors concebe “uma entidade cuja materializa- ção pode se revestir de diversos aspectos”10, em momentos históricos di- ferenciados, e bem diversa do “barroco cíclico” concebido por Wölfflin, uma vez que as manifestações barrocas não advêm do desaparecimento de um estilo, tal como na concepção desse teórico. Mas, ainda que se- guindo orientação diversa da de Wölfflin, tornou-se necessário revisi- 10 DASSAS. Op. cit., p. XI.
  • 41. 40 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade tar as idéias do autor, por terem sido elas transpostas ao plano literário, nas primeiras tentativas de identificação de uma Literatura Barroca. 3.3. O Barroco Cíclico e sua Transposição à Literatura De etimologia incerta, e a princípio rechaçado por vários estudio- sos, o Barroco traz um estranhamento intrínseco, e não foi objeto de apreciação teórica por parte de seus contemporâneos. Tendo sido clas- sificado como exotismo por teóricos de visão atrelada aos parâmetros clássicos, esse estilo foi gradativamente aceito, e relacionado à beleza em sentido amplo, ao ser referido por adjetivos tais como: bizarro, ca- prichoso, voluntarioso, extravagante11, não mais em sentido pejorativo. Com traços morfológicos e ideativos bem definidos, em virtude de sua plasticidade o Barroco congregou sentidos e olhares específicos, sendo por fim reconhecido como estilo no plano das Artes e da Literatura, com diferenças marcantes nos países europeus. Mas em sendo diversas as interpretações do Barroco, e uma vez aceitas neste estudo algumas idéias de Eugenio d’Ors, torna-se necessário mencionar outras visões sobre o tema, remarcando-se que a referência a um “barroco” não estritamente seiscentista, ou seja, a identificação de um “barroco” extensivo a outros períodos históricos, não é exclusividade do pensamento de Ors. Ao atribuir perspectiva cíclica ao Barroco, Wölfflin buscou refe- rências em outros historiadores, e procurou vestígios que pudessem re- ferendá-lo em períodos antecedentes ao Seiscentos, remontando, por exemplo, a Michelangelo. Nos escritos de Wölfflin12 encontram-se re- ferências a características visuais das Artes vinculadas a certa morfolo- gia cíclica situada em outros períodos históricos, vindo a constituir na Antiguidade um fenômeno paralelo ao Barroco, inclusive pontuado por outros autores através do termo Barroco13. Tal denominação abrange o fenômeno de decadência da Arte antiga, compreendida como fenôme- no cíclico: “A arte ‘morre’ apresentando sintomas semelhantes aos da Renascença”14, observação que conduziu o Barroco à condição de esti- lo, quando Wölfflin o sistematizou do ponto de vista plástico em con- traponto às formas renascentistas. Apercebendo-se das amplas questões formais implícitas ao Barroco, esse autor estabeleceu como meta o re- 11 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. Trad. de Mary Amazonas Leite de Barros e Antonio Steffen. Coleção Stylus. São Paulo: Perspectivas, 2000, p. 34. 12 Trata-se de Renascença e Barroco, op. cit. 13 Sybel apud WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 26. 14 WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 26.
  • 42. Mirian de Carvalho 41 gistro dos sintomas relativos ao desaparecimento da Arte Renascentis- ta15. Para desenvolver tais estudos, que se voltavam para a visualidade - como era comum à metodologia àquela época -, Wölfflin enfatizou na referida obra as transformações dos elementos clássicos em sua evolu- ção para o Barroco, dando destaque à arquitetura romana, porque em Roma as expressões clássicas favorecem exemplos de acentuados con- trastes na passagem para as formas barrocas. Wölfflin ocupou-se de uma tipologia que abrange os dois períodos, de acordo com características atinentes aos elementos plásticos, tais como linha, plano, abertura, fe- chamento, luz e sombra, cor, massa, chegando ao estudo dos elementos projetados no espaço, dentre eles: pilastras, colunas, cúpulas, frontões, todos dimensionados por efeitos visuais determinantes de uma oposição entre a beleza tranqüila e a emoção avassaladora16. Sua preocupação com os elementos visuais mais tarde se aprofunda na obra Conceitos Funda- mentais da História da Arte, em que, diferenciando as formas clássicas e as barrocas, ele estabeleceu os famosos padrões antitéticos que podem assim ser resumidos: 1) evolução do linear ao pictórico; 2) evolução do plano à profundidade; 3) evolução da forma fechada à forma aberta; 4) evolução da pluralidade para a unidade; 5) clareza absoluta e relativa do objeto17. Wölfflin descreveu oposições marcantes entre as tipologias clás- sica e barroca, vendo-as como confronto e evolução cíclica. Esboçando diretrizes diversas, ressaltem-se em Wölfflin e Ors enfoques voltados, respectivamente, para a morfologia e para a dinâmica intrínseca às ma- nifestações barrocas. Mas tanto a ênfase na visualidade explicitada por Wölfflin quanto o dinamismo do Barroco no pensamento de Ors enfati- zam as Artes Plásticas e a Arquitetura, lembremos. E a transposição dos elementos barrocos ao plano literário foi realizada progressivamente por outros autores que, com base nos princípios de Wölfflin, abordaram di- ferentes Literaturas e dimensionaram questões morfológicas voltadas para a oposição entre as formas clássicas e as barrocas, vistas como antíteses. Ainda que em princípio relacionada aos elementos formais, a aplicação do conceito de Barroco à Literatura “esclarece, precisamen- te, a posição daquele estágio intermediário entre o Renascimento (até 15 Idem. 16 WÖLFFLIN, Heinrich. Op. cit., p. 47. 17 WÖLFFLIN, Heinrich. Princípios Fundamentais de História da Arte. Trad. de João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 18-20.
  • 43. 42 Metamorfoses na Poesia de Péricles Prade 1580 mais ou menos) e a fase neoclássica (depois de 1680)”18, clarifi- cando nesse período uma etapa não classificada no âmbito literário do ponto de vista do estilo, e de um espírito de época refletindo ideologias e conceitos. Rastreando características literárias relacionadas ao Endobarroco, torna-se relevante uma visitação a questões gerais que se dirigem à idéia de um espírito de época. Mencionado por vários autores, e com raízes várias, trata-se de tensões implícitas à linguagem e à Literatura seiscen- tistas, refletindo grandes mudanças que, passando pela religião e pela cosmologia, situam a perplexidade do Homem ante a finitude e a infi- nitude. Ante o mundo laico e o mundo religioso. E ante outras diferen- ças marcantes no pensamento da época. Para alguns autores, vislumbra- se nesse período mundivisão e cosmovisão que integram um espírito barroco voltado para as oposições: “Como elemento geral do estilo bar- roco, aponta-se a preferência pelo ‘wit’, agudeza, ‘concetti’, combina- ções de imagens dissimilares ou revelação de semelhanças ocultas em coisas aparentemente díspares.”19 Exibindo ordem diversa daquela do Classicismo, ao Barroco visto como estilo de época inseriram-se elemen- tos díspares, em várias combinações, trazendo ao texto jogos de palavras e/ou de idéias, em expressões literárias conduzindo sentidos em aberto, contrapondo-se ao significado. Tais sentidos em aberto traduzem fortes oposições entre sombra e luz, nos textos ficcionais ou poéticos, se comparados com a disciplina pautada nas simetrias, gradações tênues e harmonias, que delineiam a Literatura Renascentista. Conduzindo aspectos semânticos que lhes são intrínsecos, as imagens no Barroco completam-se numa afluência de idéias que revelam pensamento divergente, tal como ocorreu no campo filosófico, marcadamente no pensamento de Giordano Bruno20 e de Copérnico, que, do ponto de vista cronológico, anteciparam questões afetas ao Seiscentos. Abrangendo questões relacionadas às noções de infinitude e finitude, à sua época ambos tangenciaram, de modos diver- sos, oposições afetas à tradição filosófico-científica e à tradição religio- sa. Correspondendo a esse desvio, que se enraíza no plano ideativo, no 18 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ci- vilização Brasileira, 1976, p. 92. 19 COUTINHO, Afrânio. Op. cit., p. 109. 20 In CARVALHO, Mirian de. “Entre Sombras e Sombras: as Chamas do Desvelamen- to em Giordano Bruno de Montaldo”. Dialoghi: Rivista di Studi Italici vol. IV, nos 1-2, Rio de Janeiro: Proita/UERJ, 2001, pp. 45-56.