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RELATO DE EXPERIËNCIA



Catadores de materiais recicláveis: a construção de
novos sujeitos políticos


Mari Aparecida Bortoli
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS)




Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos
Resumo: Este texto relata uma experiência no âmbito da extensão universitária, realizada junto a um grupo de catadores de materiais
recicláveis para geração de trabalho e renda. A proposta teve a participação dos catadores desde a elaboração até a avaliação e constituiu-
se num projeto, cuja intenção foi associar as habilidades de gestão a uma ação de geração de trabalho e renda, a partir da construção de
alternativas socioeconômicas, com foco na autogestão. Além de relatar os procedimentos metodológicos e apresentar os resultados da
intervenção, são discutidas as condições de vida e trabalho às quais os catadores estão submetidos e a construção de espaços de discussão
para construção desses sujeitos políticos.
Palavras-chave: participação, formação política, trabalho e renda.

Collectors of Recyclable Materials: the Construction of New Political Subjects
Abstract: This text reports on an experience of a university extension project, conducted with a group of collectors of recyclable
materials to generate labor and income. The project had the participation of the collectors from its creation until the evaluation process
and constitutes a project whose intention was to associate management abilities to an action to generate work and income, based on the
construction of socio-economic alternatives, with a focus on self-management. In addition to reporting on the methodological procedures
and presenting the results of the intervention, the living and working conditions to which the collectors are submit are discussed, as well
as the construction of discussion spaces to help the formation of these political subjects.
Key words: participation, political education, labor and income.


                                                                        Recebido em 30.10.2008. Aprovado em 04.02.2009.

                                                                 Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
106   Mari Aparecida Bortoli


      Introdução                                             foram realizados os encontros e congressos que cul-
                                                             minaram na criação do Movimento Nacional de
          Agnes Varda, no filme Les glaneurs et la           Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Em
      glaneuse (2000), retrata a França moderna e mos-       1999 foi realizado o Primeiro Encontro Nacional de
      tra aqueles que vivem da recuperação dos restos e      Catadores de Papel. Em 2001 aconteceu o Primeiro
      sobras, a partir de fragmentos de histórias de         Congresso Nacional de Catadores de Materiais
      catadores urbanos e rurais. Do aproveitamento das      Recicláveis, em Brasília, e em 2003 foi realizado o
      sobras de batatas e maçãs para alimentação humana      Primeiro Congresso Latino-Americano de Catadores
      até a recuperação de sucatas através da reciclagem,    de Materiais Recicláveis, em Caxias do Sul, Rio Gran-
      é traçado o percurso de uma sociedade para a qual o    de do Sul. O Segundo Congresso Latino-Americano
      descartável vai dos “alimentos feios” até “aqueles     aconteceu em 2005 e, em 2006, mais de 1.200
      que vivem da recuperação das coisas”.                  catadores marcharam até Brasília, levando demandas
          A atividade de catar alimentos para comer e ma-    ao Governo Federal e exigindo a criação de postos de
      terial reciclável para vender foi registrada no Brasil trabalho em cooperativas e associações, bases orgâ-
      por Marcos Prado, no documentário Estamira             nicas do movimento. As reivindicações dos catadores
      (2004). Questionamentos sobre o destino do lixo e      são por alimentação, moradia, condições mínimas de
      sobre a realidade insuportável à qual pessoas são      vida, além da inclusão no processo de gestão dos resí-
      submetidas atravessam o documentário, que conta        duos e da luta pela criação de postos de trabalho.
      a história de uma mulher que busca no lixo sentido         Boaventura de Souza Santos (2007), ao se referir
      para viver. No aterro de Gramacho, Rio de Janeiro,     a sua participação como conferencista no Sexto Fes-
      as pessoas são flagradas vivendo do lixo e tem no      tival do Lixo e Cidadania, realizado em Belo Hori-
      lixão seu lugar de trabalho.                           zonte, lembra que os catadores não desistem de lutar
          Tanto no filme francês quanto no documentário      por uma vida digna, a partir da exigência de formas
      brasileiro, catar alimentos e catar material para ser  de organização e mobilização autônomas para pas-
      reciclado são atividades que                                                    sarem de “miseráveis come-
      se misturam, por vezes se                                                       dores de lixo” a uma “ocupa-
      acumulam, e estão presen-             ...a profissão de catador de              ção profissional”. Não se
      tes na vida de moradores de                                                     pode ignorar que “outras for-
      rua, de desempregados, da-                 material reciclável é                mas de sociabilidade” emer-
      queles que nunca trabalha-                                                      gem como iniciativas de
      ram ou que se tornaram não
                                          reconhecida e foi oficializada              enfrentamento da crise nas
      empregáveis e são obrigados          em 2002, pela Classificação                relações de produção. No
      a se deslocarem para a                                                          entanto, muitas vezes, no di-
      informalidade ou para o tra-            Brasileira de Ocupações                 zer de Mota e Amaral (2006,
      balho por conta própria.                                                        p. 30) “relacionam-se com a
          No Brasil, a profissão de       (CBO). Estima-se que no país                necessidade que tem o capi-
      catador de material reciclável                                                  tal, neste momento, de criar
      é reconhecida e foi oficiali-             sejam mais de 500 mil                 novas formas de subordina-
      zada em 2002, pela Classifi-                                                    ção do trabalho.”
      cação Brasileira de Ocupa-                   catadores de lixo.                     Assim, uma aproximação
      ções (CBO). Estima-se que                                                       aos processos sociais em que
      no país sejam mais de 500 mil                                                   se inserem os catadores de
      catadores de lixo. Contudo, o reconhecimento da pro-   materiais recicláveis possibilita desvelar acomoda-
      fissão não implicou mudança nas condições de vida      ções, resistências e lutas, bem como as expectativas
      e trabalho dos catadores, os quais atuam sem vínculo   de mudança das condições de vida e trabalho dessa
      empregatício e sem direitos, ganham, em geral, me-     população. Com esta intenção, o objetivo deste texto
      nos de um salário mínimo, disputam materiais           é relatar uma experiência de intervenção no âmbito
      recicláveis com seus pares, não estão inseridos nos    da geração de trabalho e renda, realizada junto a um
      sistemas de gestão de resíduos e enfrentam a explo-    grupo de catadores de materiais recicláveis do Nú-
      ração da indústria da reciclagem.                      cleo Habitacional Santa Bárbara (NHSB), no muni-
          Nesse contexto, marcado pela emergência de pro-    cípio de Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre os anos
      cessos e dinâmicas que contribuem para a precarização  de 2006 e 2008. De caráter qualitativo, o estudo traz
      do trabalho e penalizam os trabalhadores, os catadores informações e a possibilidade de conhecer os sujei-
      de materiais recicláveis iniciam seus processos de or- tos envolvidos em ações realizadas a partir de um
      ganização social e econômica e de luta por direitos.   projeto de extensão universitária1.
      Os primeiros acontecimentos datam dos últimos anos         A construção de espaços de questionamento e
      da década de 1990 e início do século 21, nos quais     tensionamento das relações econômicas, políticas,


      Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos             107


culturais e sociais e a compreensão histórica das ins-       2 Aproximação e construção de estratégias
tituições, organizações e modos de viver dos catadores       metodológicas
de materiais recicláveis mostram o surgimento des-
tes novos sujeitos políticos. Faz-se necessário reco-            Com a intenção de associar as habilidades de ges-
nhecer que na execução da intervenção aqui apre-             tão a uma ação de geração de trabalho e renda a
sentada não se procurou avaliar o retorno econômi-           partir de uma demanda dos catadores do município
co, mas sim evidenciar as contribuições das ações            de Cruz Alta/RS, foi elaborado um projeto de exten-
desenvolvidas para a formação política e para a trans-       são universitária, a partir de um Edital do CNPq2, o
formação das realidades vividas por estes trabalha-          qual previa apoio ao desenvolvimento de tecnologias
dores. Sendo assim, neste relato ganha importância           sociais para os catadores de materiais recicláveis.
o papel do catador de material reciclável, o qual                As tecnologias sociais são metodologias
protagonizou esse processo de organização econô-             reaplicáveis que se destacam pelo êxito na melhoria
mica e de participação social desde a elaboração da          das condições de vida da população. Configuram-se
proposta até a avaliação dos resultados.                     como soluções participativas, estritamente ligadas à
                                                             realidade local. Segundo Dagnino (2004, p. 194), são
                                                             tecnologias “capazes de viabilizar economicamente
1 Geração de trabalho e renda: um cenário                    empreendimentos autogestionários.”
desafiador                                                       A construção de uma tecnologia social para gera-
                                                             ção de trabalho e renda se tornou um desafio para a
    A geração de trabalho e renda está relacionada           universidade, principalmente em torno da sua relação
ao incentivo ao associativismo, ao cooperativismo,           com os catadores de materiais recicláveis. O ponto de
ao empreendedorismo e ao trabalho em equipe, ha-             partida para a construção do projeto foi a constituição
bilidades de gestão que tendem a possibilitar ao tra-        de uma equipe que deveria definir, a partir de estudos
balhador a tomada de decisão. Se, por um lado, es-           realizados anteriormente, a área da cidade e o grupo
sas formas de gestão e organização do trabalho res-          com o qual se construiria o processo de intervenção.
pondem pela sobrevivência dos trabalhadores, por                 Seguindo, em certa medida, as sugestões teórico-
outro, estão associadas ao regime de acumulação              metodológicas de Freire (1990), foram iniciadas visi-
flexível, o qual tem ditado as regras para a consti-         tas exploratórias como forma de identificar as orga-
tuição de instrumentos de regulação social, afina-           nizações e lideranças populares da área delimitada.
dos com as necessidades de coesão do sistema de              Na aproximação com o grupo lhe foi apresentado o
reprodução do capital.                                       Edital do CNPq e discutida a realidade dos catadores
    Na implementação dessas formas de gestão do              do município de Cruz Alta e do Núcleo Habitacional
trabalho, torna-se comum a presença de populações            Santa Bárbara (NHSB).
que foram, de certa forma, afastadas das possibilida-            À medida que se discutia a realidade e a equipe
des de trabalho e são “capturadas” em estratégias            esclarecia os objetivos da intervenção, o método de
que, ao aproximá-las do trabalho, as faz reféns de           trabalho a ser realizado ganhava contornos e se cons-
práticas que competem para a manutenção e con-               tituía um grupo que estaria junto na construção da
servação das relações sociais instituídas. Esta reali-       proposta. Depois da síntese das discussões acerca
dade se constitui num cenário desafiador tanto para          da realidade dos catadores – feita pelos pesquisado-
a compreensão quanto para a intervenção, pois, em            res e pelo próprio grupo de catadores – foi elaborado
certa medida, como lembram Yazbek e Silva (2005,             o projeto Autogestão para geração de trabalho e
p. 31) “implica no deslocamento para a sociedade das         renda com catadores de materiais recicláveis
tarefas de enfrentar a pobreza e a exclusão social.”         (Agetrec)3.
       Porém, frente a um quadro de 180 milhões de               Foi traçado como objetivo principal do projeto a
desempregados e quase três bilhões de pessoas que            construção de alternativas para geração de trabalho
vivem na pobreza no mundo, conforme registra                 e renda e melhoria das condições de vida dos
Yazbek (2005), seria “perverso recusar a diversida-          catadores a partir do desenvolvimento de cinco fa-
de das inspirações e das ações de intervenção na             ses: fortalecimento da organização dos catadores,
realidade problemática”. Visão compartilhada por             instalação de um entreposto, organização para o tra-
Martins (2002, p. 9), para quem:                             balho e participação social, construção de parcerias
                                                             e consolidação da organização e fortalecimento da
      Tudo de sensato e fundamentado que se fizer e          autonomia dos catadores.
      propuser no sentido de acelerar a inclusão social e        A estratégia metodológica proposta para condu-
      política das populações pobres no processo de de-      zir as ações do projeto foi a autogestão, sustentada
      senvolvimento econômico, para com ele                  por dois pilares de ação, quais sejam, formação polí-
      compatibilizar o ritmo do desenvolvimento social,      tica e capacitação para o trabalho, incluindo nesta
      será historicamente bem-vindo.                         metodologia o acompanhamento e a avaliação do


                                                        Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
108   Mari Aparecida Bortoli


      processo de organização para geração de trabalho e           informativos. Foram realizadas oficinas voltadas à
      renda com pesquisadores e catadores participantes.           produção, comercialização e viabilidade financeira de
          Os processos autogestivos ou autogestionários            empreendimentos associativos.
      implicam processos de organização social e econô-                Para mobilização das entidades e construção de
      mica e incluem a divisão do trabalho, visto que se           parcerias, foram realizadas 25 visitas a entidades
      trata de processo produtivo. No entanto, não impõe a         públicas e privadas, com o objetivo de apresentar o
      existência de uma hierarquia, tampouco diferença de          projeto e buscar parcerias para a destinação dos re-
      poder. Os quadros hierárquicos não têm como fun-             síduos sólidos para os catadores. Ademais, foram
      ção impor a vontade de um sobre o outro, pois na             promovidas reuniões e discussões com representan-
      autogestão é o coletivo que delibera e decide. Nesta         tes do poder executivo local para inclusão dos
      perspectiva, o saber é exercitado no coletivo, no qual       catadores no programa Restaurante Popular da Se-
      se conhece a realidade, o que permite definir ações          gurança Alimentar e Nutricional (SAN) e no Progra-
      para transformá-la, como alerta Baremblitt (1996).           ma Bolsa Família de Transferência de Renda.
          Para facilitar o processo de organização socio-              Dentre os 105 catadores que participaram do pro-
      produtiva, foi prevista a participação de integrantes        jeto Agetrec, 67 eram mulheres e 38 eram homens.
      do grupo de catadores em seminários e trocas de              A idade variava de 18 a 60 anos, predominando aque-
      experiências com catadores da região, campanhas              les entre 30 a 50 anos. Com relação à escolaridade,
      na rádio, elaboração e distribuição de panfletos in-         80% dos catadores não concluíram o ensino funda-
      formativos para a comunidade local e outras mídias.          mental. Muitos não sabiam ler nem escrever e me-
          Foi prevista no projeto a organização de eventos         nos de 2% concluiu o ensino médio. Moravam em
      e oficinas com o objetivo de proporcionar o debate e         casas cedidas e em estado de degradação e viviam
      a participação do coletivo. Técnicas de reuniões e           de doações ou “biscates”.
      plenárias foram projetadas para viabilizar a forma-              A participação dos catadores nas reuniões e ofi-
      ção e capacitação dos pesquisadores e catadores.             cinas, geralmente motivada pela expectativa de tra-
      Também foram previstas visitas domiciliares para             balho e renda, constituía-se em espaços de discus-
      mobilização da população. Reuniões com entidades             são sobre as trajetórias, geralmente comuns, de em-
      locais e com o poder executivo municipal foram pla-          pregos sem vínculos formais, com baixa remunera-
      nejadas para articular e inserir os catadores nos pro-       ção e sem direitos. Os catadores expressavam o
      gramas e projetos sociais desenvolvidos no municí-           inconformismo com as situações de riscos, precon-
      pio. Para a avaliação deste projeto, foram definidos         ceitos e humilhações às quais se submetiam ao reali-
      indicadores qualitativos e quantitativos de avaliação        zar seu trabalho. Também era comum a manifesta-
      em processo e avaliação final.                               ção de dificuldades em organizar um processo de tra-
                                                                   balho de forma autogestionária, pois percebiam que
                                                                   continuariam sem proteção social e com rendimen-
      3 Ações desenvolvidas e resultados alcan-                    tos eventuais e incertos.
      çados                                                            A formação de parcerias com entidades do muni-
                                                                   cípio e região foi apontada como uma alternativa ca-
         Apesar de muitas vezes as condições para a reali-         paz de contribuir com a ampliação e expansão das
      zação das atividades propostas não terem sido favorá-        atividades de coleta. Foram mobilizadas entidades
      veis, pois geralmente o coletivo respondia aos interes-      públicas e privadas como bancos, correios, universi-
      ses de outras entidades e grupos, no próprio coletivo        dades, cartórios, empresas, estabelecimentos comer-
      foram definidos os problemas e as possíveis soluções.        ciais, escolas e igrejas. Muitas se manifestaram inte-
      Assim, a atuação da equipe de pesquisadores esteve           ressadas, mas somente três enviavam regularmente
      sincronizada com a realidade dos catadores, sem a            os resíduos sólidos descartados ao grupo de catadores
      preocupação de impor um ritmo à organização, e sim           – um banco estatal, uma universidade privada e uma
      de orientar o processo e o tempo do grupo para que           escola pública.
      este se consolidasse e, com isso, favorecer a experi-            Os resultados apresentados mostram o aprofun-
      mentação de outras formas de trabalho e de vida.             damento do conhecimento dos catadores e dos pes-
         Durante o processo de intervenção, foram reali-           quisadores em suas relações com a realidade. Todas
      zadas 92 visitas domiciliares no bairro e na região          as fases da intervenção aconteceram simultaneamen-
      para mobilização e organização dos catadores. Na             te. A todas as fases foi dirigida atenção e importância,
      execução do projeto, foram realizadas mais de 90             visto que constituíam um processo interventivo, o qual
      reuniões. Algumas reuniões foram dirigidas à forma-          teve o pretexto de saber em que consiste a realidade
      ção e capacitação dos catadores, privilegiando te-           concreta dos catadores de materiais recicláveis, a partir
      mas como a autonomia, a função social da atividade           da percepção que esses trabalhadores têm de si, do
      de coleta e a organização para o trabalho. Também            seu trabalho, da sua vida e da sociedade e de como
      foram desenvolvidos estudos e elaborados fôlderes            constroem sua condição de sujeitos.


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Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos            109


3.1 Fortalecimento da organização dos                        Como forma de aproximação da luta e do conhe-
catadores                                                 cimento da realidade, os catadores participantes do
                                                          projeto visitaram associações e cooperativas, para
    A primeira fase do projeto esteve voltada para a      troca de experiências e articulação com outros gru-
organização do grupo de catadores constituído por         pos da região e do estado4.
moradores do NHSB, os quais faziam a coleta de
forma individual e vendiam para atravessadores. Se-       3.2 Instalação do entreposto
gundo os catadores, o armazenamento de materiais
recicláveis, por não existir nenhum tipo de trabalho e        A organização e o planejamento do processo de
organização, é realizado nos próprios domicílios. Essa    trabalho dos catadores se efetivaram a partir da ins-
situação ocasiona problemas de saúde e acidentes          talação do entreposto de coleta, seleção, armaze-
domésticos, tais como incêndios nas moradias. Já a        namento e comercialização dos recicláveis. Os
comercialização caracteriza-se pela troca de              catadores constituíram um grupo permanente para
recicláveis por leite ou outros alimentos com             acompanhar a instalação do entreposto e o prefeito
atravessadores ou intermediários. A venda individual      municipal assinou um termo de concessão de uso
e em pouca quantidade faz com que os preços levem         de um prédio5. Este espaço materializou a conquis-
os catadores a um nível de renda muito baixo.             ta do grupo de catadores para realização do traba-
    Para mudar essa realidade, foi traçada como meta      lho coletivo.
a promoção de articulação entre os catadores e as             Para viabilizar o trabalho dos catadores, foram
instâncias organizadas da região e do estado para         adquiridos equipamentos e material permanente e de
potencializar o processo de organização, através da       consumo, como prensa, balança, carrinhos,
troca de experiências e de informação.                    empilhadeira e outros. Os catadores acompanharam
    Um grupo de catadores passou a discutir a viabi-      a aquisição tanto das máquinas quanto dos equipa-
lidade da criação de uma associação ou cooperativa.       mentos de proteção individual (EPI’s). As empresas
Os catadores optaram pela criação de uma associa-         fornecedoras foram convidadas a visitar o grupo de
ção, visto que o processo de organização era recente      catadores e apresentar os equipamentos. As máqui-
e até então não haviam experimentado a possibilida-       nas foram adquiridas de acordo com o previsto no
de de geração de trabalho e renda de forma coletiva.      projeto e com as necessidades dos catadores e pas-
    Após a elaboração de estatuto e da realização de      saram a ser utilizadas por eles.
assembleia geral, foi formada a Associação de                 O entreposto foi instalado para receber, separar,
Catadores de Cruz Alta (ACCA), com registro em            armazenar e expedir os materiais recicláveis
cartório e cadastro em órgão competente. Também           coletados. Além de ser um local para separar e pro-
foi elaborado e aprovado o regimento interno, como        cessar o material recolhido, esse espaço passou a
forma de regulamentar a operacionalização do tra-         funcionar como um centro de referência para a pro-
balho dos catadores associados.                           moção da organização dos catadores e como espaço
    Apoiadores do MNCR visitaram o grupo de               de formação e capacitação.
catadores da ACCA, trazendo experiências sobre
outras organizações de catadores. Foram realiza-          3.3 Organização para o trabalho e participação
das análises de conjuntura para discutir as condi-        social
ções de trabalho dos catadores no município e re-
gião. Nesta ocasião foram definidas e distribuídas            A capacitação para o trabalho, através da apro-
atividades para todos os catadores e também para          priação de conteúdos e do desenvolvimento de ha-
a equipe de pesquisadores.                                bilidades associadas à organização do trabalho co-
    Nos encontros, através do uso de cartazes, eram       letivo e à autogestão associativa, envolveu ativida-
exibidas as atividades e os nomes dos responsáveis        des de coleta, seleção, armazenamento e comer-
por elas, para avaliar o andamento destas atividades      cialização de materiais recicláveis, nas dimensões
e traçar novas estratégias. A partir dessas ativida-      técnica, ecológica e econômica. Destacou-se nesta
des, os catadores organizaram uma manifestação            fase o planejamento operacional para a organiza-
pública em frente à Prefeitura Municipal, com o ob-       ção do trabalho.
jetivo de reivindicar ao Poder Executivo um espaço            Através da realização de oficinas, foram aborda-
físico capaz de comportar a realização de atividades      das as temáticas de autogestão, das dimensões ad-
de separação, armazenamento e comercialização de          ministrativas e financeiras do empreendimento
materiais recicláveis. Na ocasião, foram distribuídos     associativo, do coletivo e do poder de decisão, além
panfletos informativos sobre a importância da coleta      da discussão de temas como custos, produção, orga-
seletiva e concedidas entrevistas na rádio e na tevê,     nização do trabalho, rateio e prestação de contas.
com o propósito de informar sobre a realidade dos         Foram criados instrumentos de controle da produção
catadores no município.                                   como planilhas de controle, fluxo de caixa e outros.


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          O grupo de catadores se reuniu semanalmente              cesso autogestivo, desde o início os catadores foram
      para discussão das atividades e da auto-organiza-            chamados a participarem e decidirem.
      ção. O diálogo entre os catadores e seus pares provo-            É importante considerar que os catadores tive-
      cou a apreensão da realidade de trabalho/desem-              ram uma história de subemprego e desemprego. Por-
      prego à qual estão submetidos. Ao mesmo tempo                tanto, a organização de forma autogestiva para gerar
      em que reconheciam que não estavam sozinhos                  trabalho e renda deve ser um investimento de longo
      nesta atividade, percebiam que as mudanças seri-             prazo. Além disso, por se tratar de uma proposta de
      am geradas a partir da criação de instâncias de re-          aplicação de tecnologia social para gerar trabalho e
      sistência e luta.                                            renda, é necessário um período maior para que o gru-
          As atividades realizadas nessa fase do projeto           po venha a construir saberes sobre o processo de
      envolveram a escolha de representantes dos                   produção e fazer com que esta produção lhe garanta
      catadores para participarem de eventos na região,            melhores condições de vida. A despeito da disponibi-
      como forma de multiplicar a experiência. Foram or-           lidade dos catadores para discutir e decidir sobre as
      ganizadas atividades na Universidade de Cruz Alta            ações propostas, as decisões tomadas muitas vezes
      para os catadores contarem sua experiência de or-            não foram colocadas em prática.
      ganização social e econômica e com isso promove-                 Entre 2006 e 2008 mais de 100 catadores partici-
      rem discussões acerca das condições de trabalho a            param do projeto Agetrec. Porém, o número de
      que estão submetidos.                                        catadores oscila de um mês para o outro. Por exem-
                                                                   plo, num mês foi constituído um grupo formado por
      3.4 Construção de parcerias                                  mais de 60 pessoas; no mês seguinte esse número
                                                                   foi reduzido à metade. Em períodos mais longos ha-
          A quarta fase do projeto contemplou a constru-           via apenas 10 participantes.
      ção de parcerias com entidades públicas e privadas               Existiam no grupo aqueles que desempenhavam
      para a realização da separação dos resíduos e                a atividade de catadores havia algum tempo e aque-
      destinação aos catadores. Acompanhados pelos bol-            les que se somavam a esses trabalhadores em fun-
      sistas, os catadores realizaram visitas às várias enti-      ção do desemprego. Isso provocou uma transição de
      dades. Foi criado um formulário com a definição dos          pessoas dentro do grupo e dificultou a organização:
      dias e horários que os catadores passariam nas enti-         muitas vezes um catador participava de uma
      dades para coletar o material reciclável.                    assembleia e deliberava acerca dos seus interesses
          As entidades públicas federais, de administração         e dos interesses coletivos, mas em seguida ingressa-
      direta e indireta, foram visitadas e informadas sobre        va em outra atividade (geralmente informal), ou, ao
      o Decreto n. 5.940, de 25 de outubro de 2006, o qual         contrário, ingressava no grupo após as tomadas de
      institui a separação dos resíduos recicláveis descar-        decisão, não tendo, muitas vezes, a compreensão da
      tados na fonte geradora e a sua destinação às asso-          dinâmica e da direção que o grupo havia tomado.
      ciações e cooperativas de catadores.
          O grupo de catadores enquadra-se no artigo ter-          3.6 Monitoramento e avaliação
      ceiro do referido Decreto, pois está formal e exclusi-
      vamente constituído por catadores que têm a catação              As ações destinadas a subsidiar a implementação
      como única fonte de renda, não possui fins lucrati-          do projeto, bem como seu monitoramento e avalia-
      vos, possui infra-estrutura e apresenta sistema de           ção, foram definidas a partir de três indicadores: de
      rateio entre os associados.                                  desempenho em relação ao processo auto-orga-
          A partir de visitas a entidades e empresas, foi for-     nizativo, de desempenho em relação à atividade de
      mada a rede de parcerias, abrangendo também con-             coleta seletiva e de resultados.
      domínios, comércios, escolas e comunidade. Muitas                Para a avaliação do processo auto-organizativo,
      empresas do município contataram os catadores para           foi elaborado e discutido entre os participantes do
      saber se estavam organizados legalmente, ou seja,            projeto um roteiro de coleta de dados. Dentre um
      se a associação era uma entidade registrada com              universo de 57 catadores, 13 responderam às ques-
      CNPJ e se era do seu interesse receber doações6.             tões relacionadas à avaliação. Dentre os entrevis-
                                                                   tados, 92% disseram participar dos espaços de dis-
      3.5 Consolidação da organização e autonomia                  cussão promovidos através do projeto. Todavia,
      dos catadores                                                quando indagados sobre a participação nas toma-
                                                                   das de decisão, somente 75% afirmaram que opi-
         Esta última fase do projeto buscou a consolida-           navam e deliberavam sobre a organização. Para
      ção da organização e o fortalecimento da autonomia           87%, o grupo trabalhava de forma organizada, e
      do grupo de catadores. Tratou-se, principalmente, de         75% entendiam que as atividades eram distribuí-
      discutir com os participantes a continuação do pro-          das de forma equitativa. Para os catadores, existi-
      cesso pelo próprio grupo. Por se tratar de um pro-           am muitas dificuldades em relação ao processo de


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organização para o trabalho, relacionadas à falta         4. Discussão da/pela experiência
de humildade, de compreensão e de solidariedade
dos colegas, o que implicava brigas por motivos               A experiência de organização de processos
alheios à organização produtiva. Os catadores en-         socioprodutivos com catadores de materiais
tendiam que o trabalho em grupo exigia paciência,         recicláveis mostrou as fragilidades e as dificuldades
convívio e perseverança.                                  enfrentadas por esses trabalhadores, na medida em
    No que diz respeito à apropriação de conheci-         que os recursos investidos para instauração de espa-
mento sobre a organização do processo de traba-           ços de trabalho para essa população são mínimos.
lho, 50% dos catadores afirmaram ter se apropria-         Não bastassem as dificuldades relacionadas ao pou-
do dos instrumentos de registro. Entretanto, 87%          co investimento, os catadores não têm estabilidade
disseram não saber como organizar a divisão da            na sua ocupação nem nos seus rendimentos, além de
produção. Para 87% dos trabalhadores, as mudan-           ficar à mercê da boa vontade da sociedade e da ex-
ças em relação às condições de trabalho eram evi-         ploração da indústria da reciclagem.
dentes e consideraram que a partir da inserção no             Mota (2002, p. 10), ao abordar o desenvolvimen-
grupo passaram a conhecer as instâncias organiza-         to da indústria de reciclagem e as inflexões que as
das da categoria e participar de atividades relacio-      suas práticas produzem na esfera do trabalho e da
nadas à geração de renda.                                 ação do Estado, diz que o crescimento da atividade
    No que toca às mudanças na quantidade da pro-         de catador nos centros urbanos está relacionado ao
dução, os catadores observaram uma grande fragi-          lugar que este trabalhador ocupa no processo de pro-
lidade, relacionada principalmente ao fato de que         dução da indústria de reciclagem, uma vez que “as
muitas das pessoas que participavam do processo           empresas o desconhecem como partícipe do seu pro-
viam o trabalho do catador como um “bico”. O pre-         cesso de trabalho, embora o integre ao processo ge-
conceito da sociedade associado às dificuldades do        ral de produção dos reciclados.”
exercício de coleta eram elementos que contribuí-             Já o Estado, avalia Mota, sob o discurso da pre-
am para isso.                                             servação ambiental ou com a justificativa da ne-
    A comercialização permaneceu sendo feita com          cessidade de assegurar ocupação e renda, tem pro-
o atravessador, pois, como a produção era pequena e       movido a inserção produtiva desses trabalhadores,
a coleta seletiva ainda não fora implantada pelos         o que acaba muitas vezes por “garantir a qualida-
gestores públicos, nenhuma empresa comprava o             de das mercadorias exigida pelas indústrias” ou
material no município. Mesmo assim, 75% dos               então simplesmente se apropria “do trabalho do
catadores afirmaram ter conquistado melhores pre-         catador ao integrá-lo de forma precária nos servi-
ços depois da aquisição dos equipamentos e da for-        ços de limpeza urbana.”
mação da associação.                                          O estatuto de trabalhador não garante aos
    Para 92% dos catadores, as parcerias esta-            catadores condições mínimas de trabalho e vida,
belecidas com as entidades públicas e privadas fo-        mesmo quando a atividade constitui-se na única for-
ram alternativas para o aumento da produção. O uso        ma de subsistência. Marcados pelo desemprego e
de EPI’s diminuiu os riscos e a insegurança no traba-     por terem se tornado não empregáveis, os catadores
lho: 62% afirmaram que as condições de trabalho           sobrevivem em condições mínimas de saúde, de mo-
melhoraram, conquanto ainda existissem riscos. Cons-      radia e de alimentação.
tatou-se que somente 62% utilizavam os EPI’s ade-             A escolha da autogestão como estratégia
quadamente. Para os catadores, a utilização adequa-       metodológica para condução da intervenção aqui
da do maquinário, bem como dos EPI’s, depende de          apresentada possibilitou o exercício coletivo do sa-
mais tempo.                                               ber e gerou o conhecimento acerca da realidade,
    As condições socioeconômicas das famílias que         permitindo a definição de ações para sua transfor-
participaram do projeto continuaram precárias: 80%        mação. Contudo, se, por um lado, os catadores expe-
continuaram com uma renda inferior a um salário           rimentaram protagonizar a organização sociopro-
mínimo. Para os catadores, a organização para o tra-      dutiva, através de processos de autogestão e partici-
balho era importante, mas se mostraram decididos a        pação social, por outro, trabalharam sem o exercício
não fazer do trabalho seu maior investimento.             dos direitos trabalhistas.
    Muitas famílias possuíam cadastros em progra-             Antunes (2006), ao abordar o contexto atual do
mas sociais como o Programa Bolsa Família, além           trabalho, destaca a proliferação de distintas formas
de vínculos com equipamentos sociais como igrejas,        de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho vo-
pastorais, associações de bairro, o que lhes proporci-    luntário e outros. Para o autor, longe daquilo que fo-
onava condições de subsistência. A inclusão dos           ram as cooperativas em sua origem, construídas como
catadores no Programa Restaurante Popular, da Se-         instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores, hoje
gurança Alimentar e Nutricional (SAN), foi conquis-       são formas precárias que visam à redução e destitui-
tada a partir da organização da associação.               ção dos direitos do trabalho.


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          Ao se referir à subalternização do trabalho à or- não empregável e que não encontra um lugar na so-
      dem do mercado e à desmontagem de direitos soci-      ciedade que lhe assegure condições dignas de traba-
      ais e trabalhistas, Yazbek (2001, p. 35), lembra que  lho e de proteção social. Sem garantias ou vínculos,
      “a proporção de trabalhadores brasileiros que está    os catadores tornam-se cada vez mais pobres.
      fora do mercado de trabalho e, portanto, sem garan-       As políticas de trabalho e renda não alcançam a
      tia de proteção social cresce continuamente e hoje    realidade dos catadores7. Na verdade, aos catadores
      ultrapassa mais da metade da população economica-     são dirigidas ações no campo das políticas de inclu-
      mente ativa.”                                         são e não no campo das políticas públicas de traba-
          Romani (2004), ao analisar experiências desen-    lho e renda. Trata-se de ações focalizadas, dirigidas
      volvidas nas Regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste   aos grupos vulneráveis como desempregados, mu-
      do Brasil, destaca as dificuldades enfrentadas pelos  lheres e jovens.
      catadores de materiais recicláveis de Belém do Pará,      Interesses individuais, restrito exercício de parti-
      Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro  cipação, oportunismos, presença de práticas cliente-
      e São Paulo. As dificuldades                                                   listas e a demanda por um
      enfrentadas pelos catadores                                                    “salvador” capaz de resolver
      dessas cidades são semelhan-         ...os catadores expressam a               todos os problemas relaciona-
      tes àquelas dos participantes                                                  dos à organização dos
      do Agetrec: constituição de        expansão da população que se                catadores foram forças pre-
      grupos organizados de               tornou não empregável e que                sentes no processo de reali-
      catadores e continuidade de                                                    zação desse projeto. O fato
      ações e compromissos esta-            não encontra um lugar na                 de os catadores não possuí-
      belecidos, bem como garan-                                                     rem um histórico de partici-
      tia de envolvimento dos ór-          sociedade que lhe assegure                pação em movimentos soci-
      gãos administrativos e opera-                                                  ais dificultou a organização
      cionalização da coleta de         condições dignas de trabalho e destes trabalhadores em prol
      recicláveis. Somam-se a es-                                                    de interesses coletivos. Con-
      sas dificuldades as condições              de proteção social.                 tudo, essa dificuldade passou
      de vida e trabalho dos                                                         a ser superada após a cria-
      catadores: baixa escolarida-                                                   ção de espaços de discussão
      de, necessidade de desenvolver diversas atividades    e o intercâmbio de experiências proporcionadas pe-
      para sobreviver e o trabalho sem proteção social.     los encontros promovidos na região e no estado. A
      Percebe-se que o grande desafio nos processos de      articulação com outros grupos contribuiu para a cons-
      organização socioprodutiva com catadores de mate-     tituição de uma identidade coletiva para o grupo de
      riais recicláveis é combinar a criação dos postos de  catadores de materiais recicláveis de Cruz Alta.
      trabalho com a possibilidade de participação dos          As ações desenvolvidas com catadores no muni-
      catadores na gestão dos resíduos, para que estes tra- cípio ainda são isoladas, mas remetem à articulação
      balhadores não se vejam como beneficiários, mas       destes trabalhadores com instâncias organizadas para
      como responsáveis por suas conquistas e conscien-     reivindicações e luta por melhores condições de tra-
      tes de que sua luta precisa continuar avançando.      balho e vida.
                                                                Mesmo diante de contradições relacionadas às
                                                            formas de gestão associativas, muitas vezes entendi-
      Considerações finais                                  das como conquistas próprias de cada indivíduo, dis-
                                                            posto a sobreviver através da criação de formas “al-
          Neste percurso de dois anos, as ações desen-      ternativas” de trabalho, engendradas por si mesmos,
      volvidas neste projeto buscaram apoiar a organiza-    ou então fundamentadas pela perspectiva de desen-
      ção socioeconômica dos catadores para romper com      volvimento social como investimento para a amplia-
      seu isolamento, a partir da articulação com outros    ção das “capacidades” de participação e superação
      grupos e instâncias representativas. Nesses proces-   da pobreza pelos próprios pobres, as ações executa-
      sos de participação os trabalhadores puderam se       das e os resultados alcançados nesta intervenção
      apropriar criticamente da realidade de desemprego,    apontam para as reivindicações dos catadores por
      de dependência de programas governamentais ou         um projeto social e político de transformação das for-
      filantrópicos e desvelar as determinações da reali-   mas vigentes de sociabilidade. Um projeto societário
      dade em que vivem.                                    que se faça na luta dos grupos e movimentos sociais
          Filhos de analfabetos que não conseguiram inser-  que, diante das novas expressões da questão social,
      ção no mercado de trabalho, muitas vezes por não      forjam instrumentos de enfrentamento, com limites,
      saberem nem mesmo seguir instruções, os catadores     mas também com possibilidades de interferir como
      expressam a expansão da população que se tornou       sujeitos políticos na construção da sociedade.


      Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos                  113


Referências                                                   YAZBEK, M. C.; SILVA, M. O. S. Das origens à atualidade
                                                              da profissão: a construção da Pós-Graduação em Serviço
ANTUNES, R. As formas contemporâneas de trabalho e a          Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2005.
desconstrução dos direitos sociais. In: SILVA, M. O. S.;
YAZBEK, M. C. (Org.). Políticas públicas de trabalho e
renda no Brasil contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2006,       Notas
p.41-51.
                                                              1 Trata-se de uma intervenção que envolveu catadores e
BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e             pesquisadores na elaboração e execução do projeto
outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.        Autogestão para geração de trabalho e renda com catadores
                                                                de materiais recicláveis (Agetrec). O projeto foi financiado
DAGNINO, R. A tecnologia social e seus desafios. In:            pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico
FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL. Tecnologia social:                    (CNPq) e executado pela Universidade de CruzAlta (Unicruz),
uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro:          em parceria com o Movimento Nacional de Catadores de
2004. p. 187-210.                                               Materiais Recicláveis (MNCR) e com o Poder Executivo de
                                                                Cruz Alta/RS. O projeto foi orientado pela professora Mari
FREIRE, P. Criando métodos de pesquisa alternativa. In:         Aparecida Bortoli, com a colaboração das professoras
BRANDÃO, C. (Org.). Pesquisa participante. São Paulo:           Enedina Maria Teixeira da Silva e Rosane Rodrigues Felix.
Brasiliense, 1990, p. 34-41.                                    Foram bolsistas do projeto: Fernanda Bortolini Klein,Adriano
                                                                Christ Guma, Aline Mello Paes e Jaqueline Pereira Paes.
MARTINS, J. S. A sociedade vista do abismo: novos               Colaboraram com o desenvolvimento do projeto 105
estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais.              catadores. Os dados foram coletados de acordo com a
Petrópolis: Rio de Janeiro, 2002.                               Declaração de Helsinque V, 1996, e a Resolução 196/96 do
                                                                Conselho Nacional de Saúde. Na ocasião do envio do projeto
MOTA, A. E. Entre a rua e fábrica: reciclagem e trabalho        ao CNPq não foi solicitado parecer de aprovação do Comitê
precário. Temporalis, ABEPSS, Brasília, ano 3, n. 6, 2002.      de Ética em Pesquisa. No entanto, todo o processo de
                                                                intervenção foi construído com os catadores e professores,
MOTA, A. E.; AMARAL, A. S. Reestruturação do capital,           a partir de reuniões para discussão e sistematização,
fragmentação do trabalho e Serviço Social. In: MOTA, A.         registradas e datadas em atas com assinaturas dos
E. (Org.). A nova fábrica de consensos. São Paulo: Cortez,      participantes. O projeto foi submetido para Declaração de
2006. p. 23-44.                                                 Parceria à Equipe de Articulação Nacional – Movimento
                                                                Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis – Regional
PRADO, M. Estamira. Documentário. Brasil, 2004.                 Sul e ao Poder Executivo Municipal de Cruz Alta/RS.

ROMANI, A. P. O poder público municipal e as                  2 Em 2005 o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por
organizações de catadores. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA/           intermédio do CNPq, lançou o Edital n.18/2005, prevendo
CAIXA, 2004.                                                    recursos para apoio a projetos de tecnologias sociais para
                                                                inclusão dos catadores de materiais recicláveis.
SANTOS, B. de S. Lixo e cidadania. Revista Visão
(Portugal), 27 set. 2007. Disponível em: <http://             3 Em outubro de 2005, o CNPq aprovou recursos financeiros
www.movimentodoscatadores.org.br/artigos>. Acesso em:           para execução do projeto e disponibilizou bolsas de estudo.
30 set. 2007.                                                   Duas bolsas foram dirigidas aos integrantes do grupo de
                                                                catadores para articulação e intercâmbio de informações com
SANTOS, G. S. (Org.). O estado da arte da formação              outras instâncias organizativas e outras duas dirigidas a
d o trabalhador no Brasil: pressupostos e ações                 estudantes. O valor aprovado foi de R$ 91.406,80, além de
governamentais a partir de 1990. Cascavel: Edunioeste,          quatro bolsas nas modalidades ATPA e ATPB. Modalidade:
2007.                                                           Auxílio Integrado. Processo: 553727/2005-2.

VARDA, A. Les glaneurs et la glaneuse. Filme. França,         4 Destaca-se a participação dos catadores nos seguintes
2000.                                                           eventos e atividades: Fórum Regional de Economia Solidária,
                                                                Plenária Regional do Noroeste sobre Economia Solidária,
YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da          Conferência Estadual de Economia Solidária, Revisão do
questão social no Brasil. Temporalis, ABEPSS, Brasília,         Plano Diretor de Cruz Alta, Jornada Ambiental da Região do
ano II, n. 3, 2001.                                             Alto Jacuí, Feira das Profissões, Congresso Estadual do
                                                                MNCR. Foram realizadas visitas às organizações de catadores
______. Os caminhos para a pesquisa no Serviço Social.          dos municípios de Júlio de Castilhos, Tupanciretã, Erechim,
Temporalis, ABEPSS, Recife, UFPE, ano V. n. 9, 2005.            Cachoeirinha e Porto Alegre.


                                                         Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
114   Mari Aparecida Bortoli


      5    Através do Decreto n. 0138, foi concedida autorização de
          uso de um prédio para a realização do projeto. A estrutura
          física constitui-se numa área de 192,50m2, cedida pelo Poder
          Executivo Municipal.

      6   Na verdade, as empresas querem se enquadrar num padrão
          de qualidade que lhes garanta a gestão ambiental para o
          certificado ISO 14.000.

      7    As políticas passivas, ao atuarem no provimento de
          assistência financeira temporária ao trabalhador, através do
          abono salarial ou do seguro-desemprego, não podem ser
          acionadas pelos catadores de materiais recicláveis: eles não
          experimentam as condições de desempregados, visto que,
          ao trabalharem como catadores, não estão em condições de
          trabalho formal. Portanto, ao não gerarem contribuição social,
          não têm assegurados esses benefícios. As políticas ativas,
          por sua vez, buscam aumentar as oportunidades de trabalho
          e renda e garantir a subsistência daqueles trabalhadores
          oriundos do setor formal. Os programas de investimento
          estão voltados à capacidade produtiva da economia e à
          dotação de capital social básico para a geração e manutenção
          de empregos.


      Mari Aparecida Bortoli
      Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Uni-
      versidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)
      Orientadora: Profa. Dra. Gleny Terezinha Duro Gui-
      marães

      PUC-RS
      Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
      Av. Ipiranga, 6681
      Partenon
      Porto Alegre – Rio Grande do Sul
      CEP: 91530-000




      Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009

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Catadores de Materiais Recicláveis - A Construção de Novos Sujeitos Políticos

  • 1. 105 RELATO DE EXPERIËNCIA Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos Mari Aparecida Bortoli Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC- RS) Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos Resumo: Este texto relata uma experiência no âmbito da extensão universitária, realizada junto a um grupo de catadores de materiais recicláveis para geração de trabalho e renda. A proposta teve a participação dos catadores desde a elaboração até a avaliação e constituiu- se num projeto, cuja intenção foi associar as habilidades de gestão a uma ação de geração de trabalho e renda, a partir da construção de alternativas socioeconômicas, com foco na autogestão. Além de relatar os procedimentos metodológicos e apresentar os resultados da intervenção, são discutidas as condições de vida e trabalho às quais os catadores estão submetidos e a construção de espaços de discussão para construção desses sujeitos políticos. Palavras-chave: participação, formação política, trabalho e renda. Collectors of Recyclable Materials: the Construction of New Political Subjects Abstract: This text reports on an experience of a university extension project, conducted with a group of collectors of recyclable materials to generate labor and income. The project had the participation of the collectors from its creation until the evaluation process and constitutes a project whose intention was to associate management abilities to an action to generate work and income, based on the construction of socio-economic alternatives, with a focus on self-management. In addition to reporting on the methodological procedures and presenting the results of the intervention, the living and working conditions to which the collectors are submit are discussed, as well as the construction of discussion spaces to help the formation of these political subjects. Key words: participation, political education, labor and income. Recebido em 30.10.2008. Aprovado em 04.02.2009. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 2. 106 Mari Aparecida Bortoli Introdução foram realizados os encontros e congressos que cul- minaram na criação do Movimento Nacional de Agnes Varda, no filme Les glaneurs et la Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Em glaneuse (2000), retrata a França moderna e mos- 1999 foi realizado o Primeiro Encontro Nacional de tra aqueles que vivem da recuperação dos restos e Catadores de Papel. Em 2001 aconteceu o Primeiro sobras, a partir de fragmentos de histórias de Congresso Nacional de Catadores de Materiais catadores urbanos e rurais. Do aproveitamento das Recicláveis, em Brasília, e em 2003 foi realizado o sobras de batatas e maçãs para alimentação humana Primeiro Congresso Latino-Americano de Catadores até a recuperação de sucatas através da reciclagem, de Materiais Recicláveis, em Caxias do Sul, Rio Gran- é traçado o percurso de uma sociedade para a qual o de do Sul. O Segundo Congresso Latino-Americano descartável vai dos “alimentos feios” até “aqueles aconteceu em 2005 e, em 2006, mais de 1.200 que vivem da recuperação das coisas”. catadores marcharam até Brasília, levando demandas A atividade de catar alimentos para comer e ma- ao Governo Federal e exigindo a criação de postos de terial reciclável para vender foi registrada no Brasil trabalho em cooperativas e associações, bases orgâ- por Marcos Prado, no documentário Estamira nicas do movimento. As reivindicações dos catadores (2004). Questionamentos sobre o destino do lixo e são por alimentação, moradia, condições mínimas de sobre a realidade insuportável à qual pessoas são vida, além da inclusão no processo de gestão dos resí- submetidas atravessam o documentário, que conta duos e da luta pela criação de postos de trabalho. a história de uma mulher que busca no lixo sentido Boaventura de Souza Santos (2007), ao se referir para viver. No aterro de Gramacho, Rio de Janeiro, a sua participação como conferencista no Sexto Fes- as pessoas são flagradas vivendo do lixo e tem no tival do Lixo e Cidadania, realizado em Belo Hori- lixão seu lugar de trabalho. zonte, lembra que os catadores não desistem de lutar Tanto no filme francês quanto no documentário por uma vida digna, a partir da exigência de formas brasileiro, catar alimentos e catar material para ser de organização e mobilização autônomas para pas- reciclado são atividades que sarem de “miseráveis come- se misturam, por vezes se dores de lixo” a uma “ocupa- acumulam, e estão presen- ...a profissão de catador de ção profissional”. Não se tes na vida de moradores de pode ignorar que “outras for- rua, de desempregados, da- material reciclável é mas de sociabilidade” emer- queles que nunca trabalha- gem como iniciativas de ram ou que se tornaram não reconhecida e foi oficializada enfrentamento da crise nas empregáveis e são obrigados em 2002, pela Classificação relações de produção. No a se deslocarem para a entanto, muitas vezes, no di- informalidade ou para o tra- Brasileira de Ocupações zer de Mota e Amaral (2006, balho por conta própria. p. 30) “relacionam-se com a No Brasil, a profissão de (CBO). Estima-se que no país necessidade que tem o capi- catador de material reciclável tal, neste momento, de criar é reconhecida e foi oficiali- sejam mais de 500 mil novas formas de subordina- zada em 2002, pela Classifi- ção do trabalho.” cação Brasileira de Ocupa- catadores de lixo. Assim, uma aproximação ções (CBO). Estima-se que aos processos sociais em que no país sejam mais de 500 mil se inserem os catadores de catadores de lixo. Contudo, o reconhecimento da pro- materiais recicláveis possibilita desvelar acomoda- fissão não implicou mudança nas condições de vida ções, resistências e lutas, bem como as expectativas e trabalho dos catadores, os quais atuam sem vínculo de mudança das condições de vida e trabalho dessa empregatício e sem direitos, ganham, em geral, me- população. Com esta intenção, o objetivo deste texto nos de um salário mínimo, disputam materiais é relatar uma experiência de intervenção no âmbito recicláveis com seus pares, não estão inseridos nos da geração de trabalho e renda, realizada junto a um sistemas de gestão de resíduos e enfrentam a explo- grupo de catadores de materiais recicláveis do Nú- ração da indústria da reciclagem. cleo Habitacional Santa Bárbara (NHSB), no muni- Nesse contexto, marcado pela emergência de pro- cípio de Cruz Alta, Rio Grande do Sul, entre os anos cessos e dinâmicas que contribuem para a precarização de 2006 e 2008. De caráter qualitativo, o estudo traz do trabalho e penalizam os trabalhadores, os catadores informações e a possibilidade de conhecer os sujei- de materiais recicláveis iniciam seus processos de or- tos envolvidos em ações realizadas a partir de um ganização social e econômica e de luta por direitos. projeto de extensão universitária1. Os primeiros acontecimentos datam dos últimos anos A construção de espaços de questionamento e da década de 1990 e início do século 21, nos quais tensionamento das relações econômicas, políticas, Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 3. Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos 107 culturais e sociais e a compreensão histórica das ins- 2 Aproximação e construção de estratégias tituições, organizações e modos de viver dos catadores metodológicas de materiais recicláveis mostram o surgimento des- tes novos sujeitos políticos. Faz-se necessário reco- Com a intenção de associar as habilidades de ges- nhecer que na execução da intervenção aqui apre- tão a uma ação de geração de trabalho e renda a sentada não se procurou avaliar o retorno econômi- partir de uma demanda dos catadores do município co, mas sim evidenciar as contribuições das ações de Cruz Alta/RS, foi elaborado um projeto de exten- desenvolvidas para a formação política e para a trans- são universitária, a partir de um Edital do CNPq2, o formação das realidades vividas por estes trabalha- qual previa apoio ao desenvolvimento de tecnologias dores. Sendo assim, neste relato ganha importância sociais para os catadores de materiais recicláveis. o papel do catador de material reciclável, o qual As tecnologias sociais são metodologias protagonizou esse processo de organização econô- reaplicáveis que se destacam pelo êxito na melhoria mica e de participação social desde a elaboração da das condições de vida da população. Configuram-se proposta até a avaliação dos resultados. como soluções participativas, estritamente ligadas à realidade local. Segundo Dagnino (2004, p. 194), são tecnologias “capazes de viabilizar economicamente 1 Geração de trabalho e renda: um cenário empreendimentos autogestionários.” desafiador A construção de uma tecnologia social para gera- ção de trabalho e renda se tornou um desafio para a A geração de trabalho e renda está relacionada universidade, principalmente em torno da sua relação ao incentivo ao associativismo, ao cooperativismo, com os catadores de materiais recicláveis. O ponto de ao empreendedorismo e ao trabalho em equipe, ha- partida para a construção do projeto foi a constituição bilidades de gestão que tendem a possibilitar ao tra- de uma equipe que deveria definir, a partir de estudos balhador a tomada de decisão. Se, por um lado, es- realizados anteriormente, a área da cidade e o grupo sas formas de gestão e organização do trabalho res- com o qual se construiria o processo de intervenção. pondem pela sobrevivência dos trabalhadores, por Seguindo, em certa medida, as sugestões teórico- outro, estão associadas ao regime de acumulação metodológicas de Freire (1990), foram iniciadas visi- flexível, o qual tem ditado as regras para a consti- tas exploratórias como forma de identificar as orga- tuição de instrumentos de regulação social, afina- nizações e lideranças populares da área delimitada. dos com as necessidades de coesão do sistema de Na aproximação com o grupo lhe foi apresentado o reprodução do capital. Edital do CNPq e discutida a realidade dos catadores Na implementação dessas formas de gestão do do município de Cruz Alta e do Núcleo Habitacional trabalho, torna-se comum a presença de populações Santa Bárbara (NHSB). que foram, de certa forma, afastadas das possibilida- À medida que se discutia a realidade e a equipe des de trabalho e são “capturadas” em estratégias esclarecia os objetivos da intervenção, o método de que, ao aproximá-las do trabalho, as faz reféns de trabalho a ser realizado ganhava contornos e se cons- práticas que competem para a manutenção e con- tituía um grupo que estaria junto na construção da servação das relações sociais instituídas. Esta reali- proposta. Depois da síntese das discussões acerca dade se constitui num cenário desafiador tanto para da realidade dos catadores – feita pelos pesquisado- a compreensão quanto para a intervenção, pois, em res e pelo próprio grupo de catadores – foi elaborado certa medida, como lembram Yazbek e Silva (2005, o projeto Autogestão para geração de trabalho e p. 31) “implica no deslocamento para a sociedade das renda com catadores de materiais recicláveis tarefas de enfrentar a pobreza e a exclusão social.” (Agetrec)3. Porém, frente a um quadro de 180 milhões de Foi traçado como objetivo principal do projeto a desempregados e quase três bilhões de pessoas que construção de alternativas para geração de trabalho vivem na pobreza no mundo, conforme registra e renda e melhoria das condições de vida dos Yazbek (2005), seria “perverso recusar a diversida- catadores a partir do desenvolvimento de cinco fa- de das inspirações e das ações de intervenção na ses: fortalecimento da organização dos catadores, realidade problemática”. Visão compartilhada por instalação de um entreposto, organização para o tra- Martins (2002, p. 9), para quem: balho e participação social, construção de parcerias e consolidação da organização e fortalecimento da Tudo de sensato e fundamentado que se fizer e autonomia dos catadores. propuser no sentido de acelerar a inclusão social e A estratégia metodológica proposta para condu- política das populações pobres no processo de de- zir as ações do projeto foi a autogestão, sustentada senvolvimento econômico, para com ele por dois pilares de ação, quais sejam, formação polí- compatibilizar o ritmo do desenvolvimento social, tica e capacitação para o trabalho, incluindo nesta será historicamente bem-vindo. metodologia o acompanhamento e a avaliação do Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 4. 108 Mari Aparecida Bortoli processo de organização para geração de trabalho e informativos. Foram realizadas oficinas voltadas à renda com pesquisadores e catadores participantes. produção, comercialização e viabilidade financeira de Os processos autogestivos ou autogestionários empreendimentos associativos. implicam processos de organização social e econô- Para mobilização das entidades e construção de mica e incluem a divisão do trabalho, visto que se parcerias, foram realizadas 25 visitas a entidades trata de processo produtivo. No entanto, não impõe a públicas e privadas, com o objetivo de apresentar o existência de uma hierarquia, tampouco diferença de projeto e buscar parcerias para a destinação dos re- poder. Os quadros hierárquicos não têm como fun- síduos sólidos para os catadores. Ademais, foram ção impor a vontade de um sobre o outro, pois na promovidas reuniões e discussões com representan- autogestão é o coletivo que delibera e decide. Nesta tes do poder executivo local para inclusão dos perspectiva, o saber é exercitado no coletivo, no qual catadores no programa Restaurante Popular da Se- se conhece a realidade, o que permite definir ações gurança Alimentar e Nutricional (SAN) e no Progra- para transformá-la, como alerta Baremblitt (1996). ma Bolsa Família de Transferência de Renda. Para facilitar o processo de organização socio- Dentre os 105 catadores que participaram do pro- produtiva, foi prevista a participação de integrantes jeto Agetrec, 67 eram mulheres e 38 eram homens. do grupo de catadores em seminários e trocas de A idade variava de 18 a 60 anos, predominando aque- experiências com catadores da região, campanhas les entre 30 a 50 anos. Com relação à escolaridade, na rádio, elaboração e distribuição de panfletos in- 80% dos catadores não concluíram o ensino funda- formativos para a comunidade local e outras mídias. mental. Muitos não sabiam ler nem escrever e me- Foi prevista no projeto a organização de eventos nos de 2% concluiu o ensino médio. Moravam em e oficinas com o objetivo de proporcionar o debate e casas cedidas e em estado de degradação e viviam a participação do coletivo. Técnicas de reuniões e de doações ou “biscates”. plenárias foram projetadas para viabilizar a forma- A participação dos catadores nas reuniões e ofi- ção e capacitação dos pesquisadores e catadores. cinas, geralmente motivada pela expectativa de tra- Também foram previstas visitas domiciliares para balho e renda, constituía-se em espaços de discus- mobilização da população. Reuniões com entidades são sobre as trajetórias, geralmente comuns, de em- locais e com o poder executivo municipal foram pla- pregos sem vínculos formais, com baixa remunera- nejadas para articular e inserir os catadores nos pro- ção e sem direitos. Os catadores expressavam o gramas e projetos sociais desenvolvidos no municí- inconformismo com as situações de riscos, precon- pio. Para a avaliação deste projeto, foram definidos ceitos e humilhações às quais se submetiam ao reali- indicadores qualitativos e quantitativos de avaliação zar seu trabalho. Também era comum a manifesta- em processo e avaliação final. ção de dificuldades em organizar um processo de tra- balho de forma autogestionária, pois percebiam que continuariam sem proteção social e com rendimen- 3 Ações desenvolvidas e resultados alcan- tos eventuais e incertos. çados A formação de parcerias com entidades do muni- cípio e região foi apontada como uma alternativa ca- Apesar de muitas vezes as condições para a reali- paz de contribuir com a ampliação e expansão das zação das atividades propostas não terem sido favorá- atividades de coleta. Foram mobilizadas entidades veis, pois geralmente o coletivo respondia aos interes- públicas e privadas como bancos, correios, universi- ses de outras entidades e grupos, no próprio coletivo dades, cartórios, empresas, estabelecimentos comer- foram definidos os problemas e as possíveis soluções. ciais, escolas e igrejas. Muitas se manifestaram inte- Assim, a atuação da equipe de pesquisadores esteve ressadas, mas somente três enviavam regularmente sincronizada com a realidade dos catadores, sem a os resíduos sólidos descartados ao grupo de catadores preocupação de impor um ritmo à organização, e sim – um banco estatal, uma universidade privada e uma de orientar o processo e o tempo do grupo para que escola pública. este se consolidasse e, com isso, favorecer a experi- Os resultados apresentados mostram o aprofun- mentação de outras formas de trabalho e de vida. damento do conhecimento dos catadores e dos pes- Durante o processo de intervenção, foram reali- quisadores em suas relações com a realidade. Todas zadas 92 visitas domiciliares no bairro e na região as fases da intervenção aconteceram simultaneamen- para mobilização e organização dos catadores. Na te. A todas as fases foi dirigida atenção e importância, execução do projeto, foram realizadas mais de 90 visto que constituíam um processo interventivo, o qual reuniões. Algumas reuniões foram dirigidas à forma- teve o pretexto de saber em que consiste a realidade ção e capacitação dos catadores, privilegiando te- concreta dos catadores de materiais recicláveis, a partir mas como a autonomia, a função social da atividade da percepção que esses trabalhadores têm de si, do de coleta e a organização para o trabalho. Também seu trabalho, da sua vida e da sociedade e de como foram desenvolvidos estudos e elaborados fôlderes constroem sua condição de sujeitos. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 5. Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos 109 3.1 Fortalecimento da organização dos Como forma de aproximação da luta e do conhe- catadores cimento da realidade, os catadores participantes do projeto visitaram associações e cooperativas, para A primeira fase do projeto esteve voltada para a troca de experiências e articulação com outros gru- organização do grupo de catadores constituído por pos da região e do estado4. moradores do NHSB, os quais faziam a coleta de forma individual e vendiam para atravessadores. Se- 3.2 Instalação do entreposto gundo os catadores, o armazenamento de materiais recicláveis, por não existir nenhum tipo de trabalho e A organização e o planejamento do processo de organização, é realizado nos próprios domicílios. Essa trabalho dos catadores se efetivaram a partir da ins- situação ocasiona problemas de saúde e acidentes talação do entreposto de coleta, seleção, armaze- domésticos, tais como incêndios nas moradias. Já a namento e comercialização dos recicláveis. Os comercialização caracteriza-se pela troca de catadores constituíram um grupo permanente para recicláveis por leite ou outros alimentos com acompanhar a instalação do entreposto e o prefeito atravessadores ou intermediários. A venda individual municipal assinou um termo de concessão de uso e em pouca quantidade faz com que os preços levem de um prédio5. Este espaço materializou a conquis- os catadores a um nível de renda muito baixo. ta do grupo de catadores para realização do traba- Para mudar essa realidade, foi traçada como meta lho coletivo. a promoção de articulação entre os catadores e as Para viabilizar o trabalho dos catadores, foram instâncias organizadas da região e do estado para adquiridos equipamentos e material permanente e de potencializar o processo de organização, através da consumo, como prensa, balança, carrinhos, troca de experiências e de informação. empilhadeira e outros. Os catadores acompanharam Um grupo de catadores passou a discutir a viabi- a aquisição tanto das máquinas quanto dos equipa- lidade da criação de uma associação ou cooperativa. mentos de proteção individual (EPI’s). As empresas Os catadores optaram pela criação de uma associa- fornecedoras foram convidadas a visitar o grupo de ção, visto que o processo de organização era recente catadores e apresentar os equipamentos. As máqui- e até então não haviam experimentado a possibilida- nas foram adquiridas de acordo com o previsto no de de geração de trabalho e renda de forma coletiva. projeto e com as necessidades dos catadores e pas- Após a elaboração de estatuto e da realização de saram a ser utilizadas por eles. assembleia geral, foi formada a Associação de O entreposto foi instalado para receber, separar, Catadores de Cruz Alta (ACCA), com registro em armazenar e expedir os materiais recicláveis cartório e cadastro em órgão competente. Também coletados. Além de ser um local para separar e pro- foi elaborado e aprovado o regimento interno, como cessar o material recolhido, esse espaço passou a forma de regulamentar a operacionalização do tra- funcionar como um centro de referência para a pro- balho dos catadores associados. moção da organização dos catadores e como espaço Apoiadores do MNCR visitaram o grupo de de formação e capacitação. catadores da ACCA, trazendo experiências sobre outras organizações de catadores. Foram realiza- 3.3 Organização para o trabalho e participação das análises de conjuntura para discutir as condi- social ções de trabalho dos catadores no município e re- gião. Nesta ocasião foram definidas e distribuídas A capacitação para o trabalho, através da apro- atividades para todos os catadores e também para priação de conteúdos e do desenvolvimento de ha- a equipe de pesquisadores. bilidades associadas à organização do trabalho co- Nos encontros, através do uso de cartazes, eram letivo e à autogestão associativa, envolveu ativida- exibidas as atividades e os nomes dos responsáveis des de coleta, seleção, armazenamento e comer- por elas, para avaliar o andamento destas atividades cialização de materiais recicláveis, nas dimensões e traçar novas estratégias. A partir dessas ativida- técnica, ecológica e econômica. Destacou-se nesta des, os catadores organizaram uma manifestação fase o planejamento operacional para a organiza- pública em frente à Prefeitura Municipal, com o ob- ção do trabalho. jetivo de reivindicar ao Poder Executivo um espaço Através da realização de oficinas, foram aborda- físico capaz de comportar a realização de atividades das as temáticas de autogestão, das dimensões ad- de separação, armazenamento e comercialização de ministrativas e financeiras do empreendimento materiais recicláveis. Na ocasião, foram distribuídos associativo, do coletivo e do poder de decisão, além panfletos informativos sobre a importância da coleta da discussão de temas como custos, produção, orga- seletiva e concedidas entrevistas na rádio e na tevê, nização do trabalho, rateio e prestação de contas. com o propósito de informar sobre a realidade dos Foram criados instrumentos de controle da produção catadores no município. como planilhas de controle, fluxo de caixa e outros. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 6. 110 Mari Aparecida Bortoli O grupo de catadores se reuniu semanalmente cesso autogestivo, desde o início os catadores foram para discussão das atividades e da auto-organiza- chamados a participarem e decidirem. ção. O diálogo entre os catadores e seus pares provo- É importante considerar que os catadores tive- cou a apreensão da realidade de trabalho/desem- ram uma história de subemprego e desemprego. Por- prego à qual estão submetidos. Ao mesmo tempo tanto, a organização de forma autogestiva para gerar em que reconheciam que não estavam sozinhos trabalho e renda deve ser um investimento de longo nesta atividade, percebiam que as mudanças seri- prazo. Além disso, por se tratar de uma proposta de am geradas a partir da criação de instâncias de re- aplicação de tecnologia social para gerar trabalho e sistência e luta. renda, é necessário um período maior para que o gru- As atividades realizadas nessa fase do projeto po venha a construir saberes sobre o processo de envolveram a escolha de representantes dos produção e fazer com que esta produção lhe garanta catadores para participarem de eventos na região, melhores condições de vida. A despeito da disponibi- como forma de multiplicar a experiência. Foram or- lidade dos catadores para discutir e decidir sobre as ganizadas atividades na Universidade de Cruz Alta ações propostas, as decisões tomadas muitas vezes para os catadores contarem sua experiência de or- não foram colocadas em prática. ganização social e econômica e com isso promove- Entre 2006 e 2008 mais de 100 catadores partici- rem discussões acerca das condições de trabalho a param do projeto Agetrec. Porém, o número de que estão submetidos. catadores oscila de um mês para o outro. Por exem- plo, num mês foi constituído um grupo formado por 3.4 Construção de parcerias mais de 60 pessoas; no mês seguinte esse número foi reduzido à metade. Em períodos mais longos ha- A quarta fase do projeto contemplou a constru- via apenas 10 participantes. ção de parcerias com entidades públicas e privadas Existiam no grupo aqueles que desempenhavam para a realização da separação dos resíduos e a atividade de catadores havia algum tempo e aque- destinação aos catadores. Acompanhados pelos bol- les que se somavam a esses trabalhadores em fun- sistas, os catadores realizaram visitas às várias enti- ção do desemprego. Isso provocou uma transição de dades. Foi criado um formulário com a definição dos pessoas dentro do grupo e dificultou a organização: dias e horários que os catadores passariam nas enti- muitas vezes um catador participava de uma dades para coletar o material reciclável. assembleia e deliberava acerca dos seus interesses As entidades públicas federais, de administração e dos interesses coletivos, mas em seguida ingressa- direta e indireta, foram visitadas e informadas sobre va em outra atividade (geralmente informal), ou, ao o Decreto n. 5.940, de 25 de outubro de 2006, o qual contrário, ingressava no grupo após as tomadas de institui a separação dos resíduos recicláveis descar- decisão, não tendo, muitas vezes, a compreensão da tados na fonte geradora e a sua destinação às asso- dinâmica e da direção que o grupo havia tomado. ciações e cooperativas de catadores. O grupo de catadores enquadra-se no artigo ter- 3.6 Monitoramento e avaliação ceiro do referido Decreto, pois está formal e exclusi- vamente constituído por catadores que têm a catação As ações destinadas a subsidiar a implementação como única fonte de renda, não possui fins lucrati- do projeto, bem como seu monitoramento e avalia- vos, possui infra-estrutura e apresenta sistema de ção, foram definidas a partir de três indicadores: de rateio entre os associados. desempenho em relação ao processo auto-orga- A partir de visitas a entidades e empresas, foi for- nizativo, de desempenho em relação à atividade de mada a rede de parcerias, abrangendo também con- coleta seletiva e de resultados. domínios, comércios, escolas e comunidade. Muitas Para a avaliação do processo auto-organizativo, empresas do município contataram os catadores para foi elaborado e discutido entre os participantes do saber se estavam organizados legalmente, ou seja, projeto um roteiro de coleta de dados. Dentre um se a associação era uma entidade registrada com universo de 57 catadores, 13 responderam às ques- CNPJ e se era do seu interesse receber doações6. tões relacionadas à avaliação. Dentre os entrevis- tados, 92% disseram participar dos espaços de dis- 3.5 Consolidação da organização e autonomia cussão promovidos através do projeto. Todavia, dos catadores quando indagados sobre a participação nas toma- das de decisão, somente 75% afirmaram que opi- Esta última fase do projeto buscou a consolida- navam e deliberavam sobre a organização. Para ção da organização e o fortalecimento da autonomia 87%, o grupo trabalhava de forma organizada, e do grupo de catadores. Tratou-se, principalmente, de 75% entendiam que as atividades eram distribuí- discutir com os participantes a continuação do pro- das de forma equitativa. Para os catadores, existi- cesso pelo próprio grupo. Por se tratar de um pro- am muitas dificuldades em relação ao processo de Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 7. Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos 111 organização para o trabalho, relacionadas à falta 4. Discussão da/pela experiência de humildade, de compreensão e de solidariedade dos colegas, o que implicava brigas por motivos A experiência de organização de processos alheios à organização produtiva. Os catadores en- socioprodutivos com catadores de materiais tendiam que o trabalho em grupo exigia paciência, recicláveis mostrou as fragilidades e as dificuldades convívio e perseverança. enfrentadas por esses trabalhadores, na medida em No que diz respeito à apropriação de conheci- que os recursos investidos para instauração de espa- mento sobre a organização do processo de traba- ços de trabalho para essa população são mínimos. lho, 50% dos catadores afirmaram ter se apropria- Não bastassem as dificuldades relacionadas ao pou- do dos instrumentos de registro. Entretanto, 87% co investimento, os catadores não têm estabilidade disseram não saber como organizar a divisão da na sua ocupação nem nos seus rendimentos, além de produção. Para 87% dos trabalhadores, as mudan- ficar à mercê da boa vontade da sociedade e da ex- ças em relação às condições de trabalho eram evi- ploração da indústria da reciclagem. dentes e consideraram que a partir da inserção no Mota (2002, p. 10), ao abordar o desenvolvimen- grupo passaram a conhecer as instâncias organiza- to da indústria de reciclagem e as inflexões que as das da categoria e participar de atividades relacio- suas práticas produzem na esfera do trabalho e da nadas à geração de renda. ação do Estado, diz que o crescimento da atividade No que toca às mudanças na quantidade da pro- de catador nos centros urbanos está relacionado ao dução, os catadores observaram uma grande fragi- lugar que este trabalhador ocupa no processo de pro- lidade, relacionada principalmente ao fato de que dução da indústria de reciclagem, uma vez que “as muitas das pessoas que participavam do processo empresas o desconhecem como partícipe do seu pro- viam o trabalho do catador como um “bico”. O pre- cesso de trabalho, embora o integre ao processo ge- conceito da sociedade associado às dificuldades do ral de produção dos reciclados.” exercício de coleta eram elementos que contribuí- Já o Estado, avalia Mota, sob o discurso da pre- am para isso. servação ambiental ou com a justificativa da ne- A comercialização permaneceu sendo feita com cessidade de assegurar ocupação e renda, tem pro- o atravessador, pois, como a produção era pequena e movido a inserção produtiva desses trabalhadores, a coleta seletiva ainda não fora implantada pelos o que acaba muitas vezes por “garantir a qualida- gestores públicos, nenhuma empresa comprava o de das mercadorias exigida pelas indústrias” ou material no município. Mesmo assim, 75% dos então simplesmente se apropria “do trabalho do catadores afirmaram ter conquistado melhores pre- catador ao integrá-lo de forma precária nos servi- ços depois da aquisição dos equipamentos e da for- ços de limpeza urbana.” mação da associação. O estatuto de trabalhador não garante aos Para 92% dos catadores, as parcerias esta- catadores condições mínimas de trabalho e vida, belecidas com as entidades públicas e privadas fo- mesmo quando a atividade constitui-se na única for- ram alternativas para o aumento da produção. O uso ma de subsistência. Marcados pelo desemprego e de EPI’s diminuiu os riscos e a insegurança no traba- por terem se tornado não empregáveis, os catadores lho: 62% afirmaram que as condições de trabalho sobrevivem em condições mínimas de saúde, de mo- melhoraram, conquanto ainda existissem riscos. Cons- radia e de alimentação. tatou-se que somente 62% utilizavam os EPI’s ade- A escolha da autogestão como estratégia quadamente. Para os catadores, a utilização adequa- metodológica para condução da intervenção aqui da do maquinário, bem como dos EPI’s, depende de apresentada possibilitou o exercício coletivo do sa- mais tempo. ber e gerou o conhecimento acerca da realidade, As condições socioeconômicas das famílias que permitindo a definição de ações para sua transfor- participaram do projeto continuaram precárias: 80% mação. Contudo, se, por um lado, os catadores expe- continuaram com uma renda inferior a um salário rimentaram protagonizar a organização sociopro- mínimo. Para os catadores, a organização para o tra- dutiva, através de processos de autogestão e partici- balho era importante, mas se mostraram decididos a pação social, por outro, trabalharam sem o exercício não fazer do trabalho seu maior investimento. dos direitos trabalhistas. Muitas famílias possuíam cadastros em progra- Antunes (2006), ao abordar o contexto atual do mas sociais como o Programa Bolsa Família, além trabalho, destaca a proliferação de distintas formas de vínculos com equipamentos sociais como igrejas, de empreendedorismo, cooperativismo, trabalho vo- pastorais, associações de bairro, o que lhes proporci- luntário e outros. Para o autor, longe daquilo que fo- onava condições de subsistência. A inclusão dos ram as cooperativas em sua origem, construídas como catadores no Programa Restaurante Popular, da Se- instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores, hoje gurança Alimentar e Nutricional (SAN), foi conquis- são formas precárias que visam à redução e destitui- tada a partir da organização da associação. ção dos direitos do trabalho. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 8. 112 Mari Aparecida Bortoli Ao se referir à subalternização do trabalho à or- não empregável e que não encontra um lugar na so- dem do mercado e à desmontagem de direitos soci- ciedade que lhe assegure condições dignas de traba- ais e trabalhistas, Yazbek (2001, p. 35), lembra que lho e de proteção social. Sem garantias ou vínculos, “a proporção de trabalhadores brasileiros que está os catadores tornam-se cada vez mais pobres. fora do mercado de trabalho e, portanto, sem garan- As políticas de trabalho e renda não alcançam a tia de proteção social cresce continuamente e hoje realidade dos catadores7. Na verdade, aos catadores ultrapassa mais da metade da população economica- são dirigidas ações no campo das políticas de inclu- mente ativa.” são e não no campo das políticas públicas de traba- Romani (2004), ao analisar experiências desen- lho e renda. Trata-se de ações focalizadas, dirigidas volvidas nas Regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste aos grupos vulneráveis como desempregados, mu- do Brasil, destaca as dificuldades enfrentadas pelos lheres e jovens. catadores de materiais recicláveis de Belém do Pará, Interesses individuais, restrito exercício de parti- Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro cipação, oportunismos, presença de práticas cliente- e São Paulo. As dificuldades listas e a demanda por um enfrentadas pelos catadores “salvador” capaz de resolver dessas cidades são semelhan- ...os catadores expressam a todos os problemas relaciona- tes àquelas dos participantes dos à organização dos do Agetrec: constituição de expansão da população que se catadores foram forças pre- grupos organizados de tornou não empregável e que sentes no processo de reali- catadores e continuidade de zação desse projeto. O fato ações e compromissos esta- não encontra um lugar na de os catadores não possuí- belecidos, bem como garan- rem um histórico de partici- tia de envolvimento dos ór- sociedade que lhe assegure pação em movimentos soci- gãos administrativos e opera- ais dificultou a organização cionalização da coleta de condições dignas de trabalho e destes trabalhadores em prol recicláveis. Somam-se a es- de interesses coletivos. Con- sas dificuldades as condições de proteção social. tudo, essa dificuldade passou de vida e trabalho dos a ser superada após a cria- catadores: baixa escolarida- ção de espaços de discussão de, necessidade de desenvolver diversas atividades e o intercâmbio de experiências proporcionadas pe- para sobreviver e o trabalho sem proteção social. los encontros promovidos na região e no estado. A Percebe-se que o grande desafio nos processos de articulação com outros grupos contribuiu para a cons- organização socioprodutiva com catadores de mate- tituição de uma identidade coletiva para o grupo de riais recicláveis é combinar a criação dos postos de catadores de materiais recicláveis de Cruz Alta. trabalho com a possibilidade de participação dos As ações desenvolvidas com catadores no muni- catadores na gestão dos resíduos, para que estes tra- cípio ainda são isoladas, mas remetem à articulação balhadores não se vejam como beneficiários, mas destes trabalhadores com instâncias organizadas para como responsáveis por suas conquistas e conscien- reivindicações e luta por melhores condições de tra- tes de que sua luta precisa continuar avançando. balho e vida. Mesmo diante de contradições relacionadas às formas de gestão associativas, muitas vezes entendi- Considerações finais das como conquistas próprias de cada indivíduo, dis- posto a sobreviver através da criação de formas “al- Neste percurso de dois anos, as ações desen- ternativas” de trabalho, engendradas por si mesmos, volvidas neste projeto buscaram apoiar a organiza- ou então fundamentadas pela perspectiva de desen- ção socioeconômica dos catadores para romper com volvimento social como investimento para a amplia- seu isolamento, a partir da articulação com outros ção das “capacidades” de participação e superação grupos e instâncias representativas. Nesses proces- da pobreza pelos próprios pobres, as ações executa- sos de participação os trabalhadores puderam se das e os resultados alcançados nesta intervenção apropriar criticamente da realidade de desemprego, apontam para as reivindicações dos catadores por de dependência de programas governamentais ou um projeto social e político de transformação das for- filantrópicos e desvelar as determinações da reali- mas vigentes de sociabilidade. Um projeto societário dade em que vivem. que se faça na luta dos grupos e movimentos sociais Filhos de analfabetos que não conseguiram inser- que, diante das novas expressões da questão social, ção no mercado de trabalho, muitas vezes por não forjam instrumentos de enfrentamento, com limites, saberem nem mesmo seguir instruções, os catadores mas também com possibilidades de interferir como expressam a expansão da população que se tornou sujeitos políticos na construção da sociedade. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 9. Catadores de materiais recicláveis: a construção de novos sujeitos políticos 113 Referências YAZBEK, M. C.; SILVA, M. O. S. Das origens à atualidade da profissão: a construção da Pós-Graduação em Serviço ANTUNES, R. As formas contemporâneas de trabalho e a Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2005. desconstrução dos direitos sociais. In: SILVA, M. O. S.; YAZBEK, M. C. (Org.). Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil contemporâneo. São Paulo: Cortez, 2006, Notas p.41-51. 1 Trata-se de uma intervenção que envolveu catadores e BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e pesquisadores na elaboração e execução do projeto outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. Autogestão para geração de trabalho e renda com catadores de materiais recicláveis (Agetrec). O projeto foi financiado DAGNINO, R. A tecnologia social e seus desafios. In: pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL. Tecnologia social: (CNPq) e executado pela Universidade de CruzAlta (Unicruz), uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: em parceria com o Movimento Nacional de Catadores de 2004. p. 187-210. Materiais Recicláveis (MNCR) e com o Poder Executivo de Cruz Alta/RS. O projeto foi orientado pela professora Mari FREIRE, P. Criando métodos de pesquisa alternativa. In: Aparecida Bortoli, com a colaboração das professoras BRANDÃO, C. (Org.). Pesquisa participante. São Paulo: Enedina Maria Teixeira da Silva e Rosane Rodrigues Felix. Brasiliense, 1990, p. 34-41. Foram bolsistas do projeto: Fernanda Bortolini Klein,Adriano Christ Guma, Aline Mello Paes e Jaqueline Pereira Paes. MARTINS, J. S. A sociedade vista do abismo: novos Colaboraram com o desenvolvimento do projeto 105 estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. catadores. Os dados foram coletados de acordo com a Petrópolis: Rio de Janeiro, 2002. Declaração de Helsinque V, 1996, e a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Na ocasião do envio do projeto MOTA, A. E. Entre a rua e fábrica: reciclagem e trabalho ao CNPq não foi solicitado parecer de aprovação do Comitê precário. Temporalis, ABEPSS, Brasília, ano 3, n. 6, 2002. de Ética em Pesquisa. No entanto, todo o processo de intervenção foi construído com os catadores e professores, MOTA, A. E.; AMARAL, A. S. Reestruturação do capital, a partir de reuniões para discussão e sistematização, fragmentação do trabalho e Serviço Social. In: MOTA, A. registradas e datadas em atas com assinaturas dos E. (Org.). A nova fábrica de consensos. São Paulo: Cortez, participantes. O projeto foi submetido para Declaração de 2006. p. 23-44. Parceria à Equipe de Articulação Nacional – Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis – Regional PRADO, M. Estamira. Documentário. Brasil, 2004. Sul e ao Poder Executivo Municipal de Cruz Alta/RS. ROMANI, A. P. O poder público municipal e as 2 Em 2005 o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), por organizações de catadores. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA/ intermédio do CNPq, lançou o Edital n.18/2005, prevendo CAIXA, 2004. recursos para apoio a projetos de tecnologias sociais para inclusão dos catadores de materiais recicláveis. SANTOS, B. de S. Lixo e cidadania. Revista Visão (Portugal), 27 set. 2007. Disponível em: <http:// 3 Em outubro de 2005, o CNPq aprovou recursos financeiros www.movimentodoscatadores.org.br/artigos>. Acesso em: para execução do projeto e disponibilizou bolsas de estudo. 30 set. 2007. Duas bolsas foram dirigidas aos integrantes do grupo de catadores para articulação e intercâmbio de informações com SANTOS, G. S. (Org.). O estado da arte da formação outras instâncias organizativas e outras duas dirigidas a d o trabalhador no Brasil: pressupostos e ações estudantes. O valor aprovado foi de R$ 91.406,80, além de governamentais a partir de 1990. Cascavel: Edunioeste, quatro bolsas nas modalidades ATPA e ATPB. Modalidade: 2007. Auxílio Integrado. Processo: 553727/2005-2. VARDA, A. Les glaneurs et la glaneuse. Filme. França, 4 Destaca-se a participação dos catadores nos seguintes 2000. eventos e atividades: Fórum Regional de Economia Solidária, Plenária Regional do Noroeste sobre Economia Solidária, YAZBEK, M. C. Pobreza e exclusão social: expressões da Conferência Estadual de Economia Solidária, Revisão do questão social no Brasil. Temporalis, ABEPSS, Brasília, Plano Diretor de Cruz Alta, Jornada Ambiental da Região do ano II, n. 3, 2001. Alto Jacuí, Feira das Profissões, Congresso Estadual do MNCR. Foram realizadas visitas às organizações de catadores ______. Os caminhos para a pesquisa no Serviço Social. dos municípios de Júlio de Castilhos, Tupanciretã, Erechim, Temporalis, ABEPSS, Recife, UFPE, ano V. n. 9, 2005. Cachoeirinha e Porto Alegre. Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009
  • 10. 114 Mari Aparecida Bortoli 5 Através do Decreto n. 0138, foi concedida autorização de uso de um prédio para a realização do projeto. A estrutura física constitui-se numa área de 192,50m2, cedida pelo Poder Executivo Municipal. 6 Na verdade, as empresas querem se enquadrar num padrão de qualidade que lhes garanta a gestão ambiental para o certificado ISO 14.000. 7 As políticas passivas, ao atuarem no provimento de assistência financeira temporária ao trabalhador, através do abono salarial ou do seguro-desemprego, não podem ser acionadas pelos catadores de materiais recicláveis: eles não experimentam as condições de desempregados, visto que, ao trabalharem como catadores, não estão em condições de trabalho formal. Portanto, ao não gerarem contribuição social, não têm assegurados esses benefícios. As políticas ativas, por sua vez, buscam aumentar as oportunidades de trabalho e renda e garantir a subsistência daqueles trabalhadores oriundos do setor formal. Os programas de investimento estão voltados à capacidade produtiva da economia e à dotação de capital social básico para a geração e manutenção de empregos. Mari Aparecida Bortoli Doutoranda em Serviço Social pela Pontifícia Uni- versidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Orientadora: Profa. Dra. Gleny Terezinha Duro Gui- marães PUC-RS Programa de Pós-Graduação em Serviço Social Av. Ipiranga, 6681 Partenon Porto Alegre – Rio Grande do Sul CEP: 91530-000 Rev. Katál. Florianópolis v. 12 n. 1 p. 105-114 jan./jun. 2009