Este documento discute o papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) e sua relação com o Brasil. Em três frases:
O FMI foi criado para promover a cooperação monetária internacional e disponibilizar recursos temporariamente para países com problemas de balanço de pagamentos. Apesar de críticas, o Brasil recorreu diversas vezes ao FMI para obter assistência financeira. Contudo, a crise econômica brasileira é essencialmente doméstica, devido à inconsistência das políticas macroeconômicas do país.
1. Economic Letter
2000 número 2
O Brasil, o FMI e o Nhenhenhém
Luiz Nelson Porto Araujo
O Fundo Monetário Internacional foi criado em 1947 com objetivos exclusivos. Ao contrário
do que a maior parte da população dos países membros acredita o FMI não possui controle
efetivo sobre as políticas econômicas dos seus países membros. Para cumprir o seu papel, o
FMI está organizado em três áreas principais de atividade: (i) supervisão, (ii) assistência
financeira e (iii) assistência técnica. O Fundo Monetário disponibiliza recursos financeiros
aos países membros através de inúmeras facilities. O Brasil já recorreu diversas vezes ao
Fundo.
O FMI foi criado no âmbito da Conferência realizada em Bretton Woods, New Hampshire, em julho
de 1944. Sua existência formal deu-se em 27 de dezembro de 1945 quando 29 países assinaram os
Articles of Agreement (o seu estatuto), sendo que as operações comerciais foram iniciadas em
01/03/1947. Atualmente, mais de 180 países são membros do Fundo, cuja estrutura organizacional
compreende um Board of Governors, um Interim Committee e um Executive Board. O atual Diretor-
gerente do Fundo é o francês Michel Camdessus, que assumiu o cargo em 1987. O FMI conta com um
quadro aproximado de 2600 funcionários, representando 110 países.
O Fundo foi criado com o objetivo exclusivo de: (i) promover a cooperação monetária
internacional; (ii) facilitar a expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional; (iii)
promover a estabilidade cambial; (iv) assistir na instituição de um sistema de pagamentos multilateral;
(v) disponibilizar, temporariamente, suas reservas para os países membros que experimentam
dificuldades em seus balanços de pagamentos, sob salvaguardas (ou condicionantes) claramente
definidas1
e (vi) minimizar a duração e o nível dos desequilíbrios nos balanços dos países membros.
Ao contrário do que a maior parte da população dos países membros acredita o FMI não possui
controle efetivo sobre as políticas econômicas dos seus países membros. Ele não tem capacidade, por
exemplo, para forçar qualquer país a gastar mais com escolas ou hospitais e menos no pagamento de
aposentadorias e benefícios para uns poucos privilegiados do sistema; ou na despesa com obras
faraônicas, muitas vezes associadas à esquemas de desvios de verbas públicas. O FMI pode, e muitas
vezes o faz, ressaltar que os recursos escassos deveriam ser utilizados da melhor forma possível,
1. Fica aqui uma pergunta, e em seguida uma resposta, ao leitor. Ele conhece alguém, ou alguma instituição de crédito,
que ceda recursos sem impor absolutamente nenhuma restrição. Eu responderia que nem mesmo os que acreditam no bicho-
papão ou em satanás.
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evitando despesas supérfluas e investindo mais em escolas e hospitais. Na prática, o livre arbítrio dos
países leva-os a tomarem as decisões que quiserem; ele pode apenas tentar persuadi-los a adotar
políticas que beneficiem uma parcela maior da população. Agora, é pura fé acreditar que o Fundo
Monetário tem forças suficiente para adotar uma determinada política econômica, aonde quer que seja,
até mesmo no Brasil. Sua autoridade restringe-se a exigir o disclosure de informações sobre as
políticas monetária e fiscal e evitar, o máximo possível, a imposição de restrições sobre as políticas
que condicionam em última instância o fluxo de recebimentos e pagamentos entre os países membros.2
Para cumprir o seu papel, o FMI está organizado em três áreas principais de atividade: (i)
supervisão (o processo através do qual ele avalia a política cambial dos países membros, no âmbito de
uma análise compreensiva das condições econômicas gerais e das estratégias de política por eles
adotadas); (ii) assistência financeira (que inclui empréstimos e financiamentos pelo Fundo a países
membros com problemas no balanço de pagamentos, com o objetivo de apoiar políticas de ajuste e
reforma) e (iii) assistência técnica (que consiste em expertise e ajuda pelo FMI em diversas áreas:
elaboração e implementação de políticas monetária e fiscal; fortalecimento institucional;
contabilização de transações com o Fundo; coleta de informações estatísticas; e treinamento de
profissionais). Destas atividades, a assistência financeira é a que nos interessa neste momento.
O Fundo Monetário disponibiliza recursos financeiros aos países membros através de inúmeras
facilities. Geralmente eles acessam esses recursos adquirindo DES (Direito Especial de Saque) ou
moedas de outros países com um valor equivalente na sua própria moeda. O Fundo cobra pelos saques
e exige que os tomadores recomprem as suas próprias moedas ao longo de um determinado período de
tempo. Esse processo é absolutamente voluntário. Ao contrário de instituições financeiras privadas,
que estão sempre à procura de tomadores de recursos, o Fundo é procurado por todos aqueles países
membros com problemas "transitórios" no balanço de pagamentos.
Em diversas oportunidades o Brasil já recorreu ao Fundo. Mais do que isso, das várias operações
de assistência financeira que foram acordadas em poucas o país de fato retirou os recursos
disponibilizados. Os eventuais saques foram todos quitados. Tudo isso nos habilita a recorrer ao Fundo
em um momento de crise transitória do balanço de pagamentos. A operação recente de assistência
financeira ao Brasil, que ultrapassou o limite do FMI e envolveu outras agências multilaterais e até
mesmo outros governos, deve ser entendida neste contexto. No entanto, que fique claro uma coisa: o
Brasil foi ao FMI; não foi o FMI que veio ao Brasil.
Ora, isto nos leva à outras perguntas. Por que, em geral, são os países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento que estão recursivamente às portas do FMI? Será que é devido à nossa eterna
condição de colonizado? Será que é porque estamos abaixo da linha do equador? Esta primeira
pergunta nos leva imediatamente à uma outra. Por quê, nestes casos, os saques são costumeiramente
cada vez mais elevados?
Ora, pela simples incompetência gerencial destes países na adoção de políticas monetária, fiscal e
cambial consistentes intertemporalmente, ou seja, políticas que, uma vez corretas e críveis no infinito,
por um processo de indução retroativa, também o são hoje. Em outras palavras, pela incapacidade
destes países em observarem princípios fundamentais para elaboração de seus orçamentos, para a
alocação de recursos escassos entre fins alternativos, para assegurem as condições mínimas
necessárias para o desenvolvimento do setor privado; em essência, para ultrapassarem os horizontes
finitos de cada administração e pensarem na continuidade econômica e social de seus países.
Vejamos o caso particular do Brasil, uma das maiores economias do mundo, com PIB superior a
2. Os países membros deram ao Fundo autoridade sobre estas políticas pela sua relevância estratégica na definição do
fluxo de moeda entre as nações, e porque a experiência histórica confirma que na ausência de uma agência de monitoramento
supranacional o sistema de pagamentos internacional teria dificuldades insuperáveis para ser operacionalizado.
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R$ 800 bilhões e população de 160 milhões. A inconsistência daquelas políticas, no âmbito atual do
Plano Real,3
acabou por comprometer a própria continuidade do ajuste e a montagem das condições
necessárias e suficientes para a retomada do processo de crescimento sustentado do país.
Ao contrário da cantilena oficial a crise é essencialmente doméstica. É óbvio que reforçada pela
derrapagem dos países do sudeste asiático em 1997 e da Rússia em 1998. No entanto, caso os
fundamentos macroeconômicos do país estivessem sólidos como em outros lugares, estaríamos muito
menos aflitos do que estamos. Quais fundamentos? Principalmente o equilíbrio das contas públicas.
Não vamos nos esquecer de que, desde o primeiro programa de estabilização em 1986, o setor privado
tem, com sucesso, adaptando-se à nova ordem econômica. Já o setor público e, como nos idos
passados, aqueles que ainda "continuam a mamar nas tetas públicas", pela sua incapacidade em
ajustar-se, mantém o setor privado em um processo de ajuste permanente, sujeitando-o a maiores
impostos, menos produção e emprego.
Isto nos leva ao último ponto. O risco moral. A expressão, no contexto desta discussão, expressa
uma situação onde um tomador qualquer de recursos assume riscos maiores do que aquele suposto
pelo emprestador, devido a um problema de assimetria de informação (ou seja, o tomador sabe muito
mais sobre si mesmo do que o mais perfeito emprestador poderia almejar). Qual o problema deste
risco? É que, ao conhecê-lo com menor perfeição do que seria necessário, o emprestador excede na
concessão de crédito. O tomador, devido ao risco assumido, pode acabar por inviabilizar o pagamento
dos juros e do principal e comprometer a saúde do emprestador. Se o problema ficasse restrito no
âmbito destes dois agentes ele não teria maior relevância.4
Na verdade, ele se extrapola e assume um
caráter multilateral: o tomador sempre acredita que existirá um "salvador" de última instância para
cobrir o prejuízo. Infelizmente, esta é uma das disfunções do FMI. Ao ajudar na solução de crises
temporárias do balanço de pagamento de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, ele
indiretamente está resgatando operações que se mostraram, ex-post, "podres". Ele está socializando os
prejuízos. Os beneficiários, aqueles que tomaram recursos e não foram capazes de repagá-los. Os
prejudicados, aqueles que formaram as reservas do Fundo.
No período recente da nossa história econômica o processo de reformas iniciou-se no governo do
presidente Collor e continuou durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, apesar
das "cabeçadas e trapalhadas" durante a República do Pão de Queijo.5
Apesar dos anos passados, e das
inúmeras conquistas, ainda temos um longo e difícil caminho a percorrer e precisamos estar atentos a
dois perigos. O primeiro, a fracasso-mania, esporte quase que nacional e ciclotímico. O segundo,
parente próximo do primeiro, é o nhenhenhém.
O remédio para ambos é acreditar no país. Continuar a contribuir para a instituição das condições
que irão assegurar o crescimento sustentado da produção e do emprego nacionais, e não ficar apenas
atirando pedras no vidro alheio. Apostar na competência do empresário e do trabalhador brasileiro, e
não gritar por novos esquemas de proteção à indústria local e de isolamento de importantes setores da
economia à concorrência internacional. Parar de questionar os benefícios da divisão internacional do
trabalho, que definem os fluxos de comércio entre as nações e dentro do país, e deixar de acreditar que
nesta divisão não teremos nada a fazer senão exportar matérias-primas. E, acima de tudo, lutar para
que o ajuste fiscal seja feito. Não exclusivamente com aumento da carga tributária, desigual e
prejudicial à alocação de recursos, mas também com o corte das despesas, com a suspensão de
esquemas que beneficiam poucos em detrimento de muitos.
Na tentativa de contribuir, governo e sociedade civil, caíram no nhenhenhém. Deixamos de exigir
o que é de direito, e de fato, do povo brasileiro: trabalho, segurança e condições dignas de vida. É hora
3
. Como também haviam se demonstrado nos programas anteriores. Não existe "mágica" em programas de estabilização.
4
. Já que similar a qualquer outro contrato bilateral voluntário entre as partes.
5
. Que está de volta em Minas Gerais. Boa sorte aos mineiros. Eles vão precisar.
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de irmos à luta. De exigirmos das autoridades públicas o ajuste fiscal. A etapa de identificação e
caracterização das medidas necessárias e suficientes para a retomada do crescimento econômico
sustentado e do controle do processo inflacionário já foi cumprida. Resta agora, ao governo e à
sociedade civil deixarem de nhenhenhém e terem vontade política para executá-las.
Luiz Nelson Porto Araujo, economista, é sócio-diretor da Delta Economics & Finance. Foi Professor do Departamento de
Planejamento e Análise Econômica da EAESP-FGV e da FCECA da Universidade Mackenzie.
As opiniões expressas nesse estudo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es) e não expressam, necessariamente, a
visão da Delta Economics & Finance.