O documento descreve o enredo central da obra "Viagens na Minha Terra", de Almeida Garrett. O enredo gira em torno do drama amoroso entre os personagens Joaninha e Carlos, ambientado no contexto da guerra civil portuguesa entre constitucionalistas e absolutistas na primeira metade do século XIX. A história de amor termina em tragédia com a morte de Joaninha após revelações sobre o passado turbulento de sua família. A obra utiliza este enredo para reflexões do autor sobre o progresso de Portugal e a transição entre o antigo regime
1. "Interessou-me aquela janela. Quem terá o
bom gosto e a fortuna de morar ali? Parei e
pus-me a namorar a janela. Encantava-me,
tinha-me ali como um feitiço.
2. “VIAGENS NA MINHA TERRA”,
de Almeida Garrett
Pareceu-me entrever uma cortina branca… e um vulto por
detrás… Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!… era
completo o romance. "Um vulto feminino que viesse sentar-
se àquele balcão - vestido branco - oh! branco por força… a
fronte descaída sobre a mão esquerda, o braço direito
pendente, os olhos alçados…”
3. Frei Luís de
Sousa
(1843)
TEATRO
Viagens na
minha terra
Garrett: (1846)
PROSA
um autor
romântico Folhas caídas
(1853)
POESIA
4. Classificação difícil de “Viagens”:
relatos de viagens
ensaio
ficção
novela
romance histórico
(resgata e preserva a história nacional)
5. 1845 - 46 folhetim
Estrutura da obra
1846 livro
A menina
dos
rouxinóis
(3ª pessoa)
6. Argumento:
- a história se apoia
numa viagem, que
durou seis dias, de
Lisboa (capital) a
Santarém (interior);
- o narrador/autor
parte para descansar
na casa de seu amigo
Passos Manuel;
- há descrições
esplendorosas.
7. O Contexto Histórico: 1ª. metade do séc. XIX
•As lutas liberais: a guerra civil entre absolutistas e liberais;
•As invasões napoleônicas;
•A mudança do regime político: o absolutismo X o liberalismo.
O Título
•O pluralismo de "Viagens":
• A coexistência de múltiplas viagens:
1. A viagem real de Lisboa a Santarém;
2. A viagem sentimental: a história de Joaninha;
3. As viagens imaginárias:
ao passado do narrador;
reflexões críticas ao contexto histórico.
•O pr. possessivo "minha":
* posse + intimidade + subjetivismo + narrador de 1ª pes.
•O substantivo "terra":
* ligação telúrica do autor à Pátria + nacionalismo.
Viagem = concretização de um objetivo
•Fuga ao quotidiano - Busca de prazer e de diversão – cultura...
8. Intenção:
• Conhecer o espaço geográfico de Portugal;
• Fazer crônica do real nos seus elementos vistos,
ouvidos, pensados e sentidos;
• Fazer crônica do passado e da história do presente;
• Reflexão e análise.
Narrador viajante: a marcha do progresso social
EU narrador: Pensar - reflexões de caráter histórico, político,
moral, social e filosófico.
Mundo exterior: Ver - paisagem (Charneca, Vale de Santarém,
Vilas, Monumentos,etc.);
Ouvir - a História de Joaninha.
Mundo interior: Sentir - tristeza, mágoa, espanto e indignação.
9. TEMPO
para o passado histórico (resgate)
do presente
para o futuro (a expectativa do
narrador-autor)
Marcação temporal: cronológica (viagem seis
dias) e psicológica (o drama de Joaninha)
10. Contexto histórico-político,
cultural e literário
Guerra Peninsular
Vinda da Família Real
para o Brasil.
1807
1814
1806 1808
1815
Portugal recusa- Abertura dos portos às Nações
Amigas. Elevação do
se a aderir ao Brasil
Bloqueio à categoria de
Continental. Reino Unido a
Portugal e
Algarves.
11. Independência do
Brasil.
O Sinédrio dá início à
Revolução Liberal. Elaboração da
Constituição Portuguesa. Garrett vai
Garrett matricula-se para França.
no curso de Direito
1822
1816 1820 1824
1817 1821 1823
Gomes Freire de Retorno de Garrett se exila
Andrade liderou um D. João VI. na Inglaterra.
movimento que exigia a
volta do rei e a expulsão
dos ingleses.
Formação do Sinédrio
12. Garrett funda o jornal O
Português.
Carta Constitucional.
Abdicação do trono português por
D. Pedro I.
D. Pedro I vai para a
Morte de D. João VI. Ilha Terceira.
1826 1831
1845
1825 1834
1828
Publicação
D. Miguel se põe como rei Convenção de de Viagens na
Garrett publica absoluto. Évora-monte. minha terra.
Camões.
Garrett é preso. Após cumprir sua pena,
exila-se na Inglaterra.
13. Enredo: Durante a viagem a Santarém, o narrador faz divagações paralelas que o leva a
centrar-se no drama de amor entre os personagens Carlos e Joaninha dos rouxinóis.
A menina tinha apenas a avó. Semanalmente, ela recebe a visita do Frei Dinis, que traz
notícias de Carlos – seu primo, integrante do grupo liberal de D. Pedro.
O frei e a velha guardavam um segredo sobre Carlos, que depois de formado em Coimbra
volta para visitar a família. No entanto, a guerra civil progredia e os constitucionalistas
tomaram o poder em Lisboa. Nesta época, a casa de Joaninha foi tomada por soldados
realistas - grupo que Carlos integrava - que vigiavam a passagem dos constitucionais.
Em meio a isto, Joaninha e Carlos ficam escondidos. Num encontro, eles se abraçam e
juram amor. Contudo, o rapaz já amava Georgina, ficando confuso.
Ferido, o moço fica alojado próximo da casa de Joaninha. É cuidado pelo frei e por
Georgina. Já recomposto, a avó revela que Frei Dinis é seu pai, que a sua mãe morreu de
desgosto e, para se defender, Frei Dinis mata o pai de Joaninha e o marido da sua amante.
Sabendo da verdade, Carlos parte deixando Joaninha e voltando a viver com Georgina.
O tempo passa, Carlos é nomeado barão e abandona Georgina. Sem o amor de sua vida,
Joaninha enlouquece e morre. Frei Dinis cuidará da senhora até a morte. Neste ritmo, a
viagem de Garrett por Portugal tem fim, assim como a obra.
Joaninha e Georgina representam o ideal moral da sociedade. A avó, dona Francisca,
representa Portugal e a prudência.
14. Esquematicamente
Cap. XI a XXV - 1.ª Sequência:
•O quotidiano da casa do Vale;
•Apresentação dos protagonistas da ação;
•Conhecimento de alguns antecedentes da ação: a vida religiosa de Frei Dinis.
•A vida de Carlos antes da ida para Coimbra;
•A notícia da partida: Crise (um mistério na base da família do Vale)
Cap. XXXII a XXXV - 2.ª Sequência:
•O quadro da guerra civil;, o idílio entre os primos e o ferimento de Carlos.
3.ª Sequência:
•A convalescência de Carlos;
•O reencontro de Carlos e Joaninha;
•A revelação da paternidade de Frei Dinis;
•A explicação dos homicídios.
Desfecho Trágico:
•A morte de Joaninha; a fuga de Carlos; a opção de Georgina pela vida religiosa
•A agudização do sofrimento de D. Francisca e de Frei Dinis.
15. CONTEXTO DO ENREDO
Guerra civil portuguesa:
Constitucionalistas X Absolutistas
(aliados de D. Pedro I) (aliados de D. Miguel I)
De volta a Portugal, D. Pedro I assume o trono e cria
um período progressista de liberdade, e Garrett
escreve o livro para defender o governo.
As Viagens registram esse tempo de crise aguda de
valores, de recuo de conquistas políticas e sociais. O
narrador interessa-se pelo presente e pelo passado
próximo que responde pelos acontecimentos
16.
17.
18.
19. Reflexão e análise real:
a marcha do progresso social de Portugal
Antigo Regime Novo Regime
Absolutismo Liberalismo
D. Quixote Sancho
(Frade) (Barão)
tradição renovação
21. Personagens
Joaninha 16 anos, rosto sereno, cabelos quase pretos, pretas, protótipo
olhos verdes, ideal e espiritualíssima figura, serena,
da mulher-anjo
pura, feliz
Francisca Velhinha cega, martirizada, vítima do destino, protótipo
resignada, "penélope“, autômato
da vítima
Carlos 30 anos, corpo delgado,cabelos pretos, Protótipo
testa alta, olhos pardos, peito largo e forte, franco, leal,
do homem social
fácil no perdão, fácil na ira, sentimental, poeta,
descrente,
barão
D. Dinis Corregedor, vida mundana, destruidor da família do protótipo do mal
Vale, encarnação do destino, pálido, atormentado,
inflexível, austero, protótipo
rígido, extraordinário
do espiritualista
22. SIMBOLOGIAS que reforçam o romance histórico
Drama amoroso = visão simbólica de Portugal para discutir as causas
da decadência do império português.
Carlos, indeciso nas relações amorosas = alter-ego de Garrett.
Georgina, a inglesa = fleugma britânica ante lutas decepcionantes
para sua relação amorosa – reclusão.
Joaninha, habitante nativa de Santarém = visão ingênua de Portugal,
folclórica, que não se firma diante das condições históricas.
Francisca, a avó cega de Joaninha = imprudência e falta de
planejamento com que Portugal se colocava no governo
dos liberalistas, levando a nação à decadência.
Frei Dinis = a tradição que vem de um passado histórico glorioso,
mas que não mais capaz se justifica sem uma revisão de
valores e de perspectivas.
Morte de Joaninha e fuga de Carlos para virar barão = crise de valores
em que o materialismo e o imediatismo fecham um ciclo
de mutações de caráter duvidoso e instável.
24. D. Francisca, o amor maternal acobertando falhas morais
*cumplicidade na relação adúltera da sua filha com D. Dinis
*culpabilidade (embora indireta) nos homicídios.
expiação do pecado cometido: autopunição
Joaninha, uma inocência pisada
*pureza e delicadeza - a mulher marcada pelo destino
expiação por não lidar cm, a realidade: a morte
Frei Dinis, austero e rígido nos seus princípios
*defesa do liberalismo e das doutrinas constitucionais pelo
materialismo delas, apesar de um aparente de espiritualidade;
*ligado ao mundo exterior pelo sofrimento:
- paternidade em relação a Carlos e cumplicidade no crime.
expiação do pecado praticado: torna-se Frade
Carlos, preso a um fatalismo sentimental (expresso na carta)
• conflito incorporado: homem natural/espiritual X homem social.
• vivência de uma problemática (materialismo X espiritualismo)
inviabiliza o prazer de uma vida conjugal.
expiação do pecado praticado: torna-se Barão (+- alter ego)
26. -Nível Temático
•O retrato de Carlos como herói romântico
• A sobreposição do sentimento à razão;
• A incapacidade de resolução dos problemas;
• A atitude egoísta na manifestação de sentimentos;
• A insegurança, o conflito psicológico;
• A incapacidade de realização amorosa.
•Joaninha, o ideal feminino romântico
• A mulher-anjo: a fragilidade física e psicológica;
• Vivência intensa do amor: entrega total à paixão;
• O aniquilamento físico e psicológico: loucura e morte.
•A concepção romântica do amor
• A impossibilidade de realização de um amor sublime e puro:
Carlos/Georgina; Carlos/Joaninha.
•A ideologia de Rousseau
• A recuperação do mito do "bom selvagem“: a nostalgia do
paraíso perdido.
27. (cont. - Características Românticas)
•A temática da Natureza
•O amor pelas coisas da terra - nacionalismo
•A contextualização histórica da novela
•O liberalismo.
•A concepção do escritor romântico
•O homem culto, erudito, detentor e manipulador dos
conhecimentos com que pretende instruir os leitores.
-Nível Formal e Estrutural
• Linguagem corrente, por vezes familiar;
• Estilo coloquial;
• Teatralidade - ao nível da novela;
• Liberdade na ordenação da narrativa - o seu carácter
digressivo.
28. Apontamentos sobre as “Viagens”
* Digressões sobre vários temas criando analogias e reflexões :
Cap 11 – O coração humano é como o estômago humano, não
pode estar vazio, precisa de alimento sempre: são e generoso só as
afeições lho podem dar; o ódio, a inveja e toda a outra paixão má
é estímulo que só irrita mas não sustenta. Se a razão e a moral nos
mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas, ou
outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que
há de ele fazer? Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se… Altera-se
a vida, apressa-se a dissolução moral da existência, a saúde da
alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer
nada. Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu
filho se o tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a
todas, esse homem é o tal, e Deus me livre dele. Sobretudo que
não escreva: há de ser um maçador terrível.
29. •Compara Santarém a um Livro com a mais interessante e mais poética crônica,
mas cujo povo recebeu-o como brinquedo e está a mutila-lo.
•Passagem do Pinhal de Azambuja: desapontamento, pois não o reconhece como
o Pinhal afamado pela ladroagem e assaltos. Esse trecho pode ser considerado
uma crítica à nova forma de exploração ”menos visível, que são os desvios
da corrupção e não mas roubos” .
* Paradoxo do progresso: “frades” e “barões”, quais Dom Quixote e Sancho
Pança, respectivamente, tomam as rédeas do país e incutem o progresso. Nesse
contraste reflete sobre a formação do Estado Nacional Português, em que a os
Frades uniram-se ao despotismo, e depois vieram os barões que
“são a moléstia deste século” e são ”muito mais daninho bicho e roedor”.
* Reflexão sobre a Marcha da Civilização que é dirigida pelo “cavaleiro da
Mancha, Dom Quixote, e por seu escudeiro, Sancho Pança”. O Progresso possui
duas faces, a Espiritualista (representada por Quixote, das grandes teorias
abstratas), e a Materialista (representada por Sancho, que crê serem utopias as
teorias).
30. • Fortes críticas à falta de espiritualismo e à sobra de
materialismo: “andai ganha-pães, andai: reduzi tudo a cifras,
todas as considerações desse mundo a equações de interesse
corporal, vendei, agiotai. No fim de tudo isso, o que lucrou a
espécie humana? Que mais umas poucas dúzias de homens ricos”.
• Nem a própria literatura da época escapa às suas críticas: “a
literatura é uma hipócrita, que tem religião nos versos, caridades
nos romances, fé nos artigos de jornal - como os que dão esmolas
para pôr no Diário...”
• “Viagens” prepara a prosa moderna portuguesa, devido
à mistura de estilos e linguagem (ora clássica ora popular, ora
jornalística ora dramática) e ao tom oralizante do narrador.
31. •Sociedade como “complicada de regras, mas desvairada” que
teria invertido as palavras de Deus que “formou o homem, e
o pôs num paraíso de delicias; tornou a formá-lo a soiedade, e
o pôs num inferno de tolices”
•Nos cap. 41 e no 42, critica a cobiça e profanação, citando
Jesus Cristo, que perdoou ao matador, à adúltera, ao
blasfemo, sofreu injustiças, mas ”quando viu os barões a
agiotar dentro do templo, não se pode conter, pegou num
azorrague e zurziu-os sem dor.”
• A Viagem para o Ribatejo simboliza mais do que a
parte física e breve (Lisboa – Santarém; Santarém – Lisboa),
pois atravessou toda a alma de um país, numa marcha sobre o
progresso social e político de Portugal.
32. Antirromantismo: Apreciação Crítica ao Romantismo
Cap. V
• A estratificação na construção do universo actancial de um romance;
•A falta de originalidade da literatura romântica nacional:
* A importação dos modelos estrangeiros;
* A adoção do estereótipo, na criação de situações, na seleção de
vocabulário, no traçado do perfil das personagens.
• A imitação e a prática de plágio.
Cap. III
• A descrição da estalagem de Azambuja;
• O desajuste: época (materialista) X literatura (espiritualista) = hipocrisia
• A exploração de sentimentos fortes e emoções;
• O recurso, em excesso, ao perigo e ao melodramático.
Conclusão
Garrett, um romântico, mas consciente do padrão literário do seu tempo.
33. •Literatura Romântica, uma incoerência inexplicável: "A sociedade é materialista;
e a literatura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e
abundantemente espiritualista.”
•Cap V: “Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião vou te explicar como nós hoje em dia
fazemos a nossa literatura.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a história, a natureza,
os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja
pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo
na natureza, colori-los das cores verdadeiras da história… isso é trabalho difícil, longo,
delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo um tato!…
Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico. Todo o drama e todo o
romance precisa de: uma ou duas damas. Um pai. Dois ou três filhos, de dezenove a trinta
anos. Um criado velho. Um monstro, encarregado de fazer as maldades. Vários tratantes, e
algumas pessoas capazes para intermédios. Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de
Dumas, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as
sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul — como fazem as raparigas
inglesas aos seus álbuns e scraapbooks, forma com elas os grupos e situações que lhe
parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas,
tiram-se um pouco de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões,
com os palavrões iluminaram…(estilo de pintor pintamonos). E aqui está como nós
fazemos a nossa literatura original.”
34.
35. cap. XLII: Queria ver antes estes altares expostos às chuvas e aos ventos do céu;
que o sol os queimasse de dia; que à noite, à luz branca da Lua, ou ao tíbio
reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sobre seus arcos meio
caídos.
Não me parecia profanado o templo assim, nem descaído de majestade o
monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras soltas, entre as ervas
úmidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração à glória, à
grandeza, o meu espírito às sublimes aspirações da idealidade. O material, o
grosseiro, o pesado da vida não me vinham afligir aí.
Deus, a ideia grande do mundo; Deus, a Razão Eterna; Deus, o amor; Deus, a
glória; Deus, a força, a poesia e a nobreza de alma — Deus está nas ruínas
escalavradas do Coliseu, como nos zimbórios de bronze e mármore de S. Pedro.
Mas aqui!... nos pardieiros de um convento velho, consertado pelas Obras
Públicas para servir de quartel de soldados, aqui não habita espírito nenhum.
Quero-me ir embora daqui!
E como? Sem ver o túmulo de el-rei Fernando? Não pode ser, é verdade. Onde
está ele? No coro alto. Subamos ao coro alto.
Oh! que não sei, de nojo, como o conte! (...) Oh, nação de bárbaros! Oh, maldito
povo de iconoclastas que é este!
36. O túmulo do segundo marido de D. Leonor Teles é um sarcófago de pedra
branca(...).
Este é — ou, antes, era — precioso. Era; porque a brutalidade da soldadesca o
deturpou a um ponto incrível. (...) cuidaram achar sobre a caveira do rei a coroa
real marchetada de pérolas e rubis com que fosse enterrado; talvez pensaram
encontrar, apertado ainda entre as secas falanges dos dedos mirrados, aquele
globo de oiro maciço que lhes figura o rei de espadas do sujo baralho de sua
tarimba, e que eles têm pela indispensável e infalível insígnia do supremo
império; talvez supuseram que mesmo depois de morto um rei devia ser de
oiro... Enfim, quem sabe o que eles cuidaram e pensaram? O que se sabe,
porque se vê, é que quiseram abrir e arrombar o túmulo. Tentaram primeiro
levantar a tampa; não puderam, tão solidamente está soldada a pedra de cima
ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece maciço e inconsútil. Mas, neste
empenho, quebraram e estalaram os lavores finos dos cantos, os caireis
delicados das orlas, e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos
últimos julgamentos com o selo tremendo que só se há-de quebrar no dia
derradeiro do mundo. (...)
(...) conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro, por onde entra
fácil um braço todo e pode explorar o interior do túmulo à vontade.
Assim o fiz eu, que meti o meu braço por essa abertura barrada, e achei terra,
pó, alguns ossos de vértebras e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.
37. O túmulo do rei D. Fernando, bem como o de sua mãe, D. Constança Manuel, está agora
nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa. Veja-se o que diz a Wikipédia, consultada
hoje:
« Já no século XIX, após a extinção do Convento de São Francisco,
é instalado na igreja e no claustro o Regimento de Cavalaria nº 4,
que aqui permanecerá até meados do século XX. O antigo edifício
conventual entra então num ciclo de degradação que o levaria
até ao seu desolador estado atual. Esta situação, agravada por
um incêndio em 1940, determinou a transladação dos túmulos de
D. Fernando e de sua mãe, para o Museu Arqueológico do
Convento do Carmo, em Lisboa e de D. Duarte de Menezes, para a
Igreja de São João de Alporão, em Santarém, este último em
1928.
Após várias décadas fechado ao público, a Câmara Municipal de Santarém decide
efetuar recuperações no monumento e abri-lo ao público em 24 de Julho de 2009,
integrando-o no estatuto dos restantes monumentos da cidade. »(net)
38. “A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes
podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa.
Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: “Não há mais
que ver”, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o
começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se
viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu
de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o
fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não
estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir. E
para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a
viagem. Sempre. O viajante volta já.”
José Saramago
39. Pois também eu me quero partir, me quero ir embora. Já me enfada Santarém, já
me cansam estas perpétuas ruínas, estes pardieiros intermináveis, o aspecto
desgracioso destes entulhos, a tristeza destas ruas desertas. Vou-me embora.
E contudo S. Francisco é uma bela ruína, que merecia ser examinada devagar, com
outra paciência que eu já não tenho.
Se tudo me impacienta aqui!
Da bela igreja gótica fizeram uma arrecadação militar; andou a mão destruidora
do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, riscando com a
baioneta pelo verniz mais polido e mais respeitado desses jazigos antiquís-simos;
os lavores mais delicados, esmoucou-os, degradou-os.
Levantaram as lajes dos sepulcros e, ao som da corneta militar, acordaram os
mortos de séculos, cuidando ouvir a trombeta final...
Decididamente, vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é
horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.
Malditas sejam as mãos que te profanaram, Santarém... que te desonraram,
Portugal... que te envileceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os
padrões da tua história!...