O documento descreve "lambe-cus", ou pessoas que constantemente bajulam outras mais poderosas para seu próprio benefício. Estes indivíduos proliferaram na sociedade portuguesa moderna, onde encontram condições ideais para prosperar em grandes corporações e grupos de poder político e empresarial. Eles carecem de espinha dorsal e caracter e seu principal objetivo é satisfazer os que detém poder através de constante adulação.
1. Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO online, 26/10/2016 - 15:17
Os “lambe-cus”
Eles são a contraparte da vontade de bajulação de personagens “importantes” cujos enormes umbigos
– e as lambidelas diárias – os fazem sentir-se muito mais importantes do que realmente são.
No Portugal antigo, nos tempos da sociedade rural e do paroquialismo, era a “graxa” que dava
“lustro” aos mais poderosos. Mais tarde surgiram os “lambe-botas”; e atualmente, é o tempo dos
“lambe-cus”. A espécie não é obviamente um exclusivo do “habitat” lusitano. Mas não tenho
dúvidas de que por cá ela germinou, floresceu e hoje multiplica-se a olhos vistos. Isto porque
aqui encontra as condições ideais para a sua multiplicação. Os atuais lambe-cus são descendentes
dos “lambe-botas”. Não deixa, no entanto, de ser curioso, e aparentemente paradoxal, que os
lambe-botas (os pais dos lambe-cus) tenham sido tão combatidos, quase exterminados, com a
restauração da democracia, e depois ressurgiram tão vigorosamente. À medida que o regime
democrático se foi acomodando às suas rotinas burocráticas e, posteriormente, começou a ser
corroído por dentro, eles brotaram das entranhas e estão agora por todo o lado. Digamos que a
corrosão da democracia está em correspondência direta com o aumento dos lambe-cus. Porque
será que isto ocorre e porque será que o país se tornou um “viveiro” tão fértil para esta espécie?
Na era da escravatura e ao longo do feudalismo a subserviência era uma obrigação. A resignação
era intencionalmente fabricada para uso caseiro de soberanos e poderosos. O escravo servia com
zelo e dedicação no interior de palácios, fazendas e casas senhoriais, em ambiente mais ou
menos despóticos. Nos tempos do salazarismo e do Estado-Novo os “lambe-botas” foram
cultivados e cresceram dentro das hostes do regime, nas corporações, no interior das forças
repressivas e junto dos grupos dominantes. O aparelho de Estado e a doutrina oficial impunham a
obediência geral, pelo que o “lambebotismo” era intrínseco aos bastidores do poder.
Por outro lado, com a chegada da democracia deu-se uma viragem. Houve uma espécie de
“PREC” anti-lambebotas. Acresce que nessa fase os cus mais gordos e bem tratados saíram de
cena, isto é, ou exilaram-se ou entraram numa espécie de clandestinidade. E isto também porque
com a multiplicação do cidadão ativo e ciente dos seus direitos, estas duas subespécies tiveram
grande dificuldade em prosperar. O cidadão pleno e emancipado, com a espinha dorsal no sítio,
afirmava-se por si próprio e, durante algum tempo, os próprios lideres e dirigentes prescindiram
dos lambe-cus e das suas manobras. Esse cenário foi, no entanto, passageiro. Rapidamente se
começou a notar a grande resiliência desta camada de gente, que aliás, rapidamente renasceu das
cinzas.
2. Com a entrada na era da tecnocracia (anos oitenta, por aí…), o novo-riquismo apoderou-se das
estruturas dirigentes, donde resultou o vazio da política e, em vez dela, cresceu a burocratização
e os cargos de decisão reverteram-se nos principais locus de incubação dos novos lambe-cus. Do
ponto de vista genético o lambe-cus é despojado de coluna vertebral, ao contrário dos seus
antecedentes (os lambe-botas) que ainda tinham algum resquício de coluna, embora torcida e
vergada aos seus amos. Na sua versão mais pura, o lambe-cus possui qualidades que lhe
permitem detetar à distância onde se encontra o cú mais proeminente e atrativo para ser lambido.
Alguns desenvolveram até uma língua bífida, especialmente elástica e hipertrofiada, o que lhes
permite lamber vários cús ao mesmo tempo sem que os respetivos donos se apercebam da
concorrência. Já quanto ao “caráter” é um atributo que, pelo contrário, se encontra atrofiado ou
não existe sequer. O “ego” do verdadeiro lambe-cus só se faz notar quando algum cu poderoso
dá sinais de querer ser lambido. É dotado de instintos caninos. Ele projeta-se totalmente na
satisfação plena do seu dono.
É verdade que alguns lambe-cus entram por vezes em desgraça, sobretudo quando, dominados
por uma pulsão exibicionista denunciam em público os cus que andaram a lamber. Mas o seu
habitat natural são as zonas subterrâneas do poder: as grandes corporações e grupos empresariais,
os bastidores da política, dos municípios, das universidades, etc. Em todo o lado onde a cultura
burocrática cresceu, os séquitos de lambe-cus proliferam e fazem fila. Muitos tiram benefício
material e pessoal da sua atividade, podendo até enriquecer, sobretudo depois de terem ajudado
os seus patronos a um enriquecimento milhões de vezes superior ao seu. Mas a sua verdadeira
recompensa está no próprio ato de lamber. Sem essa prática, constante e repetida, a sua
existência não tem qualquer sentido. Eles são a contraparte da vontade de bajulação de
personagens “importantes” cujos enormes umbigos – e as lambidelas diárias – os fazem sentir-se
muito mais importantes do que realmente são.
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* Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra