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MATURIDADE DA FILOSOFIA BRASILEIRA: FARIAS BRITO
(TEXTO COM ORTOGRAFIA PORTUGUESA)
FILOSOFIA E
PSICOLOGIA................................................................................01
O CONHECIMENTO DE SI COMO PRINCÍPIO DA
FILOSOFIA...........................05
A FILOSOFIA COMO CIÊNCIA RIGOROSA DO
ESPÍRITO.................................13
O EU E SUA
SOMBRA.......................................................................................16
CONCLUSÃO....................................................................................................24
FARIAS BRITO NA HISTORIOGRAFIA FILOSÓFICA
BRASILEIRA.....................24
ESTA
EDIÇÃO...................................................................................................26
CRONOLOGIA..................................................................................................26
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS......................................................................29
2
MATURIDADE DA FILOSOFIA BRASILEIRA:
FARIAS BRITO
Luiz Alberto Cerqueira*
Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a
cuja inspiração preponderante obedece, mas
sempre que se entrega à especulação filosófica
propriamente dita, o que tem em vista e o que
procura é interpretar o espírito.
Farias Brito
Filosofia e psicologia
Fundada por Domingos José Gonçalves de Magalhães, com sua obra Factos
do espírito humano1
, a filosofia brasileira se afirma em função do conhecimento de si
como problema (Cerqueira, 2001: 7-41). Tal problema, evidentemente, não é
exclusivo da filosofia no Brasil, senão da própria filosofia. Desde o “conhece-te a ti
mesmo” socrático ao cogito cartesiano, passando pelo cogito agostiniano, toda a
história da filosofia gira em torno ao conhecimento de si como o ponto crucial.
Neste sentido, o nascimento da filosofia remonta aos gregos2
: antes de enunciar-se
*
O autor ministra cursos de filosofia brasileira na Graduação e na Pós-Graduação em Filosofia do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo o atual
coordenador do Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB.
URL: www.cefib.ifcs.ufrj.br E-mail: cerqueira@ifcs.ufrj.br
1
Primeira ed. em Paris, 1858; 2ª ed. no Rio de janeiro, 1865; 3ª ed. em Lisboa, pela Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2001.
2
No diálogo de Platão Alcebíades, ou da natureza do homem, Sócrates, depois de ressaltar a
necessidade de buscar-se o “ ‘si mesmo’ absoluto” (131 c) que confere o caráter ontológico ao
conhecimento de si mesmo, explica que “ao prescrever-se o conhecimento de ‘si mesmo’ o que se
ordena é o conhecimento de nossa alma” (ibidem), a qual corresponde à consciência pura, e não à
consciência empírica, na medida em que, para ele, o “si mesmo” consiste na parte da alma “em que
nela se encontra sua faculdade própria, a inteligência” (134 a), a qual, não pertencendo a homem
algum em particular, só pode ser uma condição prévia, divina, do eu moral e livre do mecanismo
da própria natureza, de modo que “Mirando, pois, a divindade, nos servimos do melhor espelho
das coisas humanas com relação à virtude da alma, e assim, nele, nos vemos e reconhecemos
melhor a nós mesmos” (ibidem). Posteriormente, ao caracterizar a filosofia como o amor da
sabedoria independente de qualquer necessidade material, de quaisquer fatores externos,
Aristóteles reforçou a perspectiva do ideal platónico-socrático ao definir tal independência do amor
da sabedoria como correlato da consciência absoluta, explicando que aqueles que “filosofaram para
fugir da ignorância, é claro que buscavam o saber em vista do conhecimento, e não por alguma
utilidade [...] Pois esta disciplina começou-se a buscar quando já existiam quase todas as coisas
necessárias e as relativas ao descanso e ao ornato da vida. É, pois, evidente que não a buscamos por
nenhuma outra utilidade, senão que, assim como chamamos homem livre aquele que é para si mesmo e
não para outro, assim a consideramos como a única ciência livre, pois só é para si mesma” (Metafísica
I, II; 982 b; grifos acrescentados).
1
a necessidade da consciência de si como espírito − isto é, não como um corpo, nem
como a vontade determinada pelas necessidades materiais, mas como inteligência
e liberdade de acção − não havia o que se denominou filosofia. Entretanto, antes de
enunciar-se essa necessidade de conhecimento, havia evidências de vida do
espírito: havia costumes, crenças, religiosidade, manifestações artísticas. Em outras
palavras, havia espírito, mas não havia aquela disciplina em função da qual se
podia aspirar a uma vida rigorosamente regida pelas necessidades do espírito,
como a verdade, a justiça, a beleza, que não podem ser conhecidas na experiência,
senão pensadas como valores. Disso se segue que a vida do espírito é um facto
evidente na história da humanidade; segue-se também que o conhecimento ou
consciência de si como espírito, mediante a separação entre sujeito e objecto de
conhecimento, é um fenómeno psíquico, o qual não se confunde com os fenómenos
da natureza, situando-se o psíquico, em sua especificidade, para além dos limites
da experiência. Quando se perde o sentido de transcendência e independência da
vida psíquica em relação à experiência, disso resultando a perda de valores e a
decadência da cultura, a filosofia só se renova mediante um único caminho: o
retorno ao conhecimento de si como espírito. O exemplo historicamente mais
próximo é a exigência do conhecimento de si inerente ao cogito cartesiano como
ponto final do aristotelismo escolástico decadente e como princípio da
modernidade. Mas essa exigência não é (insista-se nesse aspecto) exclusiva da nova
era que se impõe, tampouco da modernidade,3
senão do que se chama a vida
mesma do espírito.
É neste sentido, que acabamos de explicar, que Farias Brito compreende a
filosofia. Para ele, a filosofia nos tempos da modernidade não deve ser considerada
senão em relação à ciência, mas somente na medida em que se considera a ciência
um facto histórico resultante da actividade permanente do espírito: a filosofia é
anterior à ciência e tem, por isso mesmo, um carácter pré-científico. Porém, quando
se confunde a necessidade de autoconsciência com as necessidades históricas que
dela resultam, a ideia de filosofia se empobrece e se reduz ao âmbito da nova era. É
inegável que uma das maiores conquistas da humanidade, senão a maior de todas,
é a ciência como se concebe desde a chamada revolução científica no século XVII.
O advento da “ciência da natureza”, como resultado do desprendimento da razão
pura, acrescentou à actividade do espírito uma exigência de rigor até então
desconhecida no ensino da disciplina, de tal modo que, pela primeira vez, segundo
a frase lapidar de Farias Brito, “a ciência, que é produto da filosofia, se faz, por sua
vez, condição da filosofia” (Brito, 1912: I, VII). Ora, essa ideia da ciência como
3
Observe-se que a conversão cristã pressupõe o conhecimento de si na mesma perspectiva
ontológica da tradição socrática, inclusive no que diz respeito à exigência de outra alma (o
pregador, no âmbito da religiosidade cristã) como espelho. Ver, por exemplo, Santo Agostinho,
Confissões VIII, V, 10-11; ver também o nosso Padre António Vieira, Sermão da Sexagésima (1655),
quando esclarece: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e
ver-se a si mesmo?”; no sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi (1676), Vieira confirma a
necessidade ontológica da consciência de si, ao afirmar que “neste mundo racional do homem, o
primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”.
2
condição da filosofia poderia ter uma significação meramente negativa quanto ao
carácter transcendente do conhecimento de si, na medida em que a moderna
ciência da natureza estabeleceu a experiência como limite de todo o conhecimento;
mas, uma vez que Farias Brito leva em conta a esfera da “coisa em si” kantiana, a
esfera do incognoscível, seu uso da palavra condição ganha uma significação
positiva quanto à possibilidade metafísica de a razão transcender os limites da
experiência sem entrar em contradição consigo mesma. Tal possibilidade diz
respeito à intencionalidade da acção moral, livre, criadora, que envolve a vida do
espírito do ponto de vista dela mesma considerada em si e não como fenómeno
físico ou mesmo psico-físico. Portanto, do ponto de vista de uma exigência de rigor
na actividade do espírito, o projeto metafísico de Farias Brito converge para Kant e
sua Crítica da razão pura (Kant, Crp: BXXIV), de maneira que, ao contrário do que
muitos imaginaram, quando viram Farias Brito usar “Estudos de filosofia e
teleologia naturalista” como subtítulo de sua obra Finalidade do mundo, nosso autor
jamais aderiu ao naturalismo, senão à atitude kantiana de aceitar o limite
estabelecido pelo método da física como condição de toda a transcendência
metafísica. Eis, portanto, em Farias Brito, o carácter transcendente da actividade do
espírito que, a partir e em função da ciência como produto dessa actividade
mesma, ele denominou “filosofia supercientífica”: “Particularizando-se na
observação dos fenómenos, a filosofia produz as ciências [...] Mas com isto não fica
terminada a sua obra [...] porque, partindo das ciências, eleva-se [...] a uma
concepção do todo; por onde se vê que vai sempre além das ciências [...] É neste
último sentido que a filosofia constitui o que eu chamo filosofia supercientífica”
(Brito, 1912: 63).
Ressalte-se, porém, que essa convergência para Kant nada tem a ver com
qualquer espécie de kantismo, senão com os princípios da filosofia moderna
defendidos por Kant. Para esclarecer o moderno sentido da relatividade do
conhecimento, por exemplo, ele vai a Kant, como já o fizera Tobias Barreto: “É
concepção mui comum na filosofia moderna, principalmente a partir de Kant, que
nosso conhecimento das coisas só é possível através de certas ideias ou formas
derivadas da constituição mesma de nosso espírito” (Brito, 1914: §39). Mas assim
como vai a Kant para entender que a ideia de relatividade se impõe em função do
sujeito pensante como princípio, dele se afasta pela mesma razão. Por que? Porque
“Kant não foi um psicólogo” (Brito, 1912: §35). Kant não parte da consciência para
explicar o conjunto das coisas, mas, pelo contrário, parte do conjunto das coisas
para explicar a consciência: “considera-se em primeiro lugar o todo, para explicar,
por dedução, o espírito, partindo, por via ontológica, de conceitos a priori”
(ibidem). Desse modo, a psicologia, enquanto ciência do sujeito pensante, seria
apenas o resultado das próprias condições do pensamento, correspondendo à ideia
transcendental de unidade absoluta ou incondicional do sujeito pensante; seria
apenas uma construção a que nada corresponde objectivamente; seria apenas “uma
ilusão natural e inevitável” (Kant, Crp: A298), de tal forma que “o argumento
referente à psicologia [...] com o qual se pretende provar o princípio da
3
substancialidade da alma, partindo do cogito cartesiano, é simplesmente um
paralogismo” (Brito, 1912: §35). Em conseqüência desse prejuízo da psicologia
racional, Kant propõe uma psicologia empírica. Neste ponto, o filósofo brasileiro
afasta-se inteiramente do filósofo alemão.
Uma vez descartado o enfoque kantiano para a compreensão da dinâmica
própria da consciência, seja numa perspectiva racionalista ou empirista, faz sentido
uma interpretação de carácter existencialista avant la lettre, e nunca de carácter
místico, quanto à preocupação britiana com a “região do mistério” que envolve a
nossa existência porque “vegetamos na morte e temos nossas raízes no nada”
(Brito, 1966: 398). Primeiramente, porque, para Farias Brito, em sintonia com a
própria tradição filosófica brasileira, passando por António Vieira, Gonçalves de
Magalhães e Tobias Barreto, a consciência tem por base um corpo e se encontra em
face do mundo. Neste aspecto, o uso da palavra natureza em Farias Brito se amplia
para o significado do termo physis entre os pré-socráticos: “se na ordem da
existência tudo se liga, tudo se prende, que há de estranho em que o espírito se
ache ligado à natureza e deva ser explicado como um fenómeno da natureza,
havendo mesmo uma ligação profunda e, até certo ponto, uma unidade
fundamental entre o que se chama espírito e o que se chama matéria?” (Brito, 1912:
§9º). Por outro lado, contra qualquer hipótese de misticismo, ele chama a atenção
para o facto de que nunca propôs nenhuma “interpretação dos mistérios do ser por
sugestão ou inspiração de algum poder sobre-humano”, uma vez que “para isto só
posso contar com os recursos naturais da razão e os processos regulares da lógica.
Raciocino sobre os dados que minha consciência recebe da impressão das coisas e
dos factos: mas vou somente até onde a razão me leva” (Brito, 1966: 400-401).
Essa preocupação existencial intrínseca ao projeto filosófico britiano, em
virtude da qual ele entende que a morte é “o mistério dos mistérios”, perguntando-
se “Que valor tem o todo para uma consciência que deve ter como certa a sua total
extinção?”, essa preocupação existencial, bem como a relação que estabelece entre
filosofia e psicologia, decorre de sua profunda adesão aos progressos da filosofia
moderna. Tal adesão ele manifesta por meio de seus conceitos instrumentais de
filosofia pré-científica e filosofia supercientífica: a ciência, com base no método
matemático-experimental, visa o domínio do homem sobre a realidade circunscrita
à natureza física; para além desse domínio, incluindo-o, a actividade filosófica, sem
prejuízo de suas aspirações pré-científicas originárias (que seriam, em última
instância, a organização da vida em bases racionais), visa o domínio da realidade
como um todo, passando, então, a ter em vista exclusivamente o domínio do homem
sobre si mesmo e sobre a sua própria acção no mundo da vida (Brito, 1912: I, X). O
sentido dessa exclusividade, uma vez identificado com a necessidade de um
método próprio para a actividade filosófica, pode ser esclarecido, com certeza, pela
semelhança com a ideia de filosofia como ciência rigorosa em Husserl, para quem
o carácter dominante da filosofia moderna está em “investigar cada vez mais
profundamente seu próprio método” (Husserl, 1969: 43).
4
Assim sendo, a afirmação, em Farias Brito, de que a ciência tornou-se
condição da filosofia não significa ir ao encontro do naturalismo ou do espírito
“positivo”, submetendo ao método experimental da ciência da natureza também a
consciência, que passaria assim, como fenómeno da natureza e segundo uma
causalidade mecânica, a constituir-se no objecto de uma psicologia “científica” ou
“experimental”; nem quer dizer, como ainda hoje muitos propagam no magistério
da disciplina Filosofia, que, depois da irrupção histórica da ciência, a filosofia
estaria a sobreviver à custa das situações-limite que enfrentamos nos diferentes
campos em que se dividiu o estudo da natureza. Simultaneamente a Husserl, e de
maneira muito semelhante, Farias Brito fez a crítica da psicologia circunscrita aos
limites da experiência e, na mesma medida, propôs uma psicologia transcendente
desses limites para dar conta da dimensão metafísica da realidade. Farias Brito
chegou a afirmar: “A filosofia é a psicologia, a ciência do espírito” (Brito, 1914: §5º),
esclarecendo, porém, que a palavra psicologia, para além da sua significação
ordinária, que diz respeito à análise da actividade psico-física, significa a
indagação acerca da natureza do espírito de tal modo que, “considerando este não
somente em sua função puramente humana, mas em sua significação mais geral,
confunde-se com a metafísica e não só trata de descobrir a relação que há ou deve
haver entre o espírito e o todo universal, como ao mesmo tempo procura
interpretar o próprio todo universal” (idem: 38). Para o autor de A base física do
espírito (1912), tanto quanto para o autor de Philosophie als strenge Wissenschaft
(1910-1911), eis o grande perigo que vivemos no mundo moderno e que põe em
risco a vida da própria filosofia: a incapacidade de perceber que a redução dos
fenómenos psíquicos ao âmbito das ciências da natureza, sob o método
experimental, não tem implicações apenas no mundo teórico, mas, sobretudo, no
mundo da vida, o que quer dizer, em última instância, que essa redução tem a
dimensão existencial de uma vida sem esperança, sem graça, sem poesia, de uma
vida que “deve ter por objectivo a verdade e unicamente a verdade, por triste e
desoladora que seja” (Brito, 1914: §1º). Estas são, em linhas gerais, as coordenadas
para conferirmos à obra filosófica de Farias Brito não só uma posição de vanguarda
no cenário filosófico ocidental, mas, especialmente, um sentido de “espiritualismo”
ou “filosofia do espírito” que tem a sua origem na própria ontogénese da
consciência de si no Brasil.
O conhecimento de si como princípio da filosofia
O que levou Descartes a introduzir, em suas Meditações, o cogito como
princípio? Conforme seu próprio testemunho, uma vez convencido de que todo o
conhecimento que ele mesmo recebera e fundara “em princípios tão mal
assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto”, convenceu-se também
da necessidade de “começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse
estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”. Eis, portanto, na Meditação
Segunda, o princípio em função do qual todo o sujeito torna-se capaz de obter
conhecimentos como uma experiência actual, e não apenas sob a forma passiva na
5
qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma: “nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou
uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida”.
Tal princípio, que envolve a separação entre sujeito e objecto de conhecimento,
revela-se sob a forma da busca de conhecimentos objectivos orientada pela
subjectividade em termos de alma, mente, razão, entendimento, inteligência,
consciência, espírito ou pensamento. É do ponto de vista dessa orientação que não
só se justifica a separação entre sujeito e objecto de conhecimento, que é só de
razão, como também se justifica a necessidade de uma psicologia como tarefa
filosófica.
A mesma orientação (ainda que em vista da conversão religiosa) se encontra
na cultura brasileira desde António Vieira. Este, como se sabe, é a mais conhecida e
provavelmente a única expressão de um verdadeiro espírito pensante inteiramente
formado sob o aristotelismo português no Brasil (Cerqueira, 2000: 217-233). Do
ponto de vista do aristotelismo português, Vieira manteve-se alheio à “revolução
científica” e ao discurso dos filósofos ditos modernos, tendo, inclusive, denunciado
“as filosofias” e exortado os futuros missionários a deixarem os “estudos da
Europa”. Entretanto, depois que ele esclareceu o sentido da conversão, no Sermão
da sexagésima (1655): “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um
homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?”, é clara a sua preocupação em orientar-
se pelo pensamento, à semelhança do que ocorre nas Meditações cartesianas. Isto é o
que se verifica no sermão As cinco pedras da funda de Davi (1673), no qual proclama
que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas acções
é o conhecimento de nós mesmos”:
As obras são filhas dos pensamentos; no pensamento se concebem, do
pensamento nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se
aperfeiçoam [...] Sendo [...] os pensamentos, e conceitos na mente do homem
tantos, e tão diversos, justamente se pode duvidar de qual, ou quais dele
sejam filhas as obras. Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do
pensamento ou ideias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras:
eu digo que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se
concebe, e conhece a si mesmo.
No mesmo sermão, ele procura explicar a necessidade da conversão
religiosa, ao vincar a ideia de que a alma busca a si mesma para desfazer-se de
uma falsa imagem corpórea. Trata-se, portanto, de separar da consciência empírica
a “limpa” consciência de si, universal e absoluta, como medida exclusiva do ser,
em virtude da qual pôde o pequenino Davi enfrentar heroicamente o gigante
Golias, conforme o exemplo de Vieira: “eu não faço comparação de mim ao
Gigante, senão de mim a mim [...] Se Golias é Gigante, eu sou Davi”. Ora, neste
sentido de medida, a consciência de si em Vieira é a mesma consciência de si
inerente ao cogito cartesiano, porque é o único princípio de uma experiência actual
6
de conhecimento que começa por si, contrariamente à ciência infusa, isto é a ciência
adquirida passivamente, a qual, adverte Vieira, “ainda não basta”:
Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é
conhecer e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma. O pó, o lodo, o corpo,
não é eu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro, o limpo e o heróico
conhecimento de si mesmo; o heróico porque se conhece o homem pela
parte mais sublime; o limpo, porque se separa totalmente de tudo o que é
terra; o verdadeiro, porque ainda que o homem verdadeiramente é
composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo, ignora-se,
e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] Homem, se te
ignoras, se te não conheces, sai fora. Eu bem sei que a causa de muitas
ignorâncias é o não sair; o homem tanto sabe, quanto sai, e aqueles que não
saíram, não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual
ainda não basta.
Esta orientação filosófica em Vieira é a mesma em Descartes. Entretanto,
nem por isso deixaremos de observar no primeiro uma significação positiva da
corporeidade que no segundo não se verifica. Por ser um autor essencialmente
religioso, e não um filósofo, Vieira está preocupado exclusivamente com a
dimensão prática da vida. Diferentemente, o autor do Discurso do método tem uma
preocupação teórica, voltada para a fundamentação do conhecimento científico. Se
em Descartes sobressai a idealidade da consciência de si como razão abstracta e
atemporal em vista da necessidade de fundar o modo de conhecer introduzido
pelos físicos modernos, em Vieira ressalta a necessidade da conversão a si mesmo e
da pura contemplação como condição suprema para a libertação deste mundo de
dor e de miséria. Contrariamente ao racionalismo da época, e à significação
negativa da dicotomia mente/corpo,4
Vieira não concebe a “visão interior” de si
mesmo sem o concurso da corporeidade. Isto porque, por um lado, essa visão, na
medida em que exige o concurso do pregador como espelho,5
pressupõe o
princípio aristotélico de que o homem é por natureza um animal social; mas
também porque esse conhecimento, que exige antes “sair de si”, para depois
“entrar em si”, pressupõe a definição aristotélico-cristã de que o homem é “animal
racional mortal”6
, significando o acréscimo de mortal à definição aristotélica (que
indica a propriedade pela qual a espécie humana supera, em essência, o género
animal a que pertence) a primeira evidência de uma consciência existencial de que o
4
Quanto à significação negativa da separação entre sujeito e objecto de conhecimento, o próprio
Descartes chama a atenção, em correspondência com o Padre Mersenne, para o facto de que o modo
como ele procede à separação em suas Meditações tem o propósito de fazer conhecer que o eu que
pensa é uma substância imaterial inteiramente separada do corpóreo.
5
“Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?
Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre
com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os
olhos, que é o conhecimento” (Sermão da sexagésima, III).
6
Esta definição aparece, por exemplo, em São Bernardo (De consideratione II, IV) e no célebre
Tractatus de Pedro Hispano (Tr. II).
7
corpo serve ao conhecimento de si se e na medida em que a existência do espírito
se funda individual e acidentalmente na corporeidade:
Os Santos dizem, que para que o homem se conheça, há que entrar em si
mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem,
que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma; Há de servir o
corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista [...] de
maneira que o mesmo que impede o conhecimento directo, serve ao
conhecimento reflexo. (Ibidem; grifos acrescentados)
Essa mesma consciência existencial inerente ao conhecimento de si pela
conversão, como se verifica em Vieira, encontrar-se-á, no século XIX, em Domingos
José Gonçalves de Magalhães. Já agora no âmbito da filosofia moderna, mas
claramente a partir do cristianismo vieiriano, o corpo é uma das condições em
virtude das quais o eu se torna um ente moral. Porque se é um facto que nem
sempre eu mesmo sei se quero o que quero; se é um facto que o livre-arbítrio, no
tanto quanto consiste igualmente no querer e no não-querer, corresponde às vezes
à “indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado
mais do que para outro pelo peso de alguma razão” (Descartes: Meditação Quarta);
torna-se evidente, também como um facto, que é em virtude do corpo que o eu
pensante não se reduz a uma idealidade alienante e se mantém inevitavelmente
ligado ao mundo da vida:
O corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas
como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos,
chamando-nos à vida prática [...] Só com esta triste condição poderíamos ser
entes morais. (Magalhães, 2001: 264; grifos acrescentados)
O que convém ao corpo nos é anunciado pelos apetites e desejos periódicos,
que não dependem de cálculo algum, e cuja satisfação natural nos dão
prazeres, e pode dar-nos algum mérito, combatendo-os quando desordenados,
e tendentes a embrutecer-nos. (Idem: 275; grifos acrescentados)
Para Magalhães, a consciência de si é dada ao sujeito de maneira originária e
absoluta não somente quanto à essência, mas também quanto à existência. Isto
quer dizer: toda a consciência pressupõe algo transcendente (e, portanto, não
imanente) de que se tem consciência. A consciência de si revela o espírito que já se
conhece humano, isto é, dentro das condições reais (e não apenas ideais) da
própria existência no mundo: “Essa consciência e liberdade lhe dão uma
individualidade real, a posse de si mesmo, e ele diz eu, e realmente existe” (idem:
263). Fora do mundo das coisas, no qual a existência não é nunca requerida como
necessária pelo próprio dado, não há consciência, “porque a consciência sou eu
mesmo enquanto exercito um acto de consciência, e sem mim, sem esse acto de
consciência, ela não está em ninguém, não é nada” (idem: 154; grifos
acrescentados). Disso se segue que, estritamente em relação aos modos do ser, há
dois absolutos: o espírito, que conhece a si mesmo no mundo das coisas, e o
8
mecanismo das coisas no mundo.7
Se essa modalidade do ser como consciência
individual livre não se desse correlativamente ao mecanismo de uma possível
“sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males,
todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa” (idem:
265), a vida “seria impossível com a inteligência e a liberdade; porque bastariam
estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse
ordenar as coisas a seu jeito; e [...] não haveria acordo, não haveria sociedade, seria
a guerra o estado permanente” (ibidem). Moralmente falando, a consciência de si
como liberdade não seria possível sem o mecanismo inerente à concepção da
natureza como sendo “a existência das coisas enquanto determinadas por leis
universais” (Kant, Prol.: §14); sem o empenho de si para executar aquilo que pela
inteligência previu e pela vontade desejou; sem o sentido de “que só deixou de
executar o que livremente quis, porque a execução depende de coisas estranhas à
sua livre vontade” (idem: 266). Daí o pressuposto ontológico de uma sociedade de
entes sem liberdade, aparentemente contrário à exigência cultural de liberalismo
desde Locke e sua Carta sobre a tolerância (1689); daí a necessidade da fé, porque
dependemos, em nossas vidas, de coisas estranhas à nossa livre vontade; daí a
necessidade de Deus, cuja presença apreendemos pela fé e cuja natureza
apreendemos pela glória. Ora, assim sendo, como, então, seria possível uma
psicologia, uma ciência do espírito que adquire uma individualidade real e diz Eu,
apossando-se do corpo que o mantém submetido à necessidade e à determinação
universal das leis da natureza, sem prejuízo da liberdade? Tobias Barreto foi o
primeiro a levantar essa questão no Brasil.
Para Tobias, “desde Sócrates até os nossos dias, a consciência humana tem
sido interpelada, e todavia as suas respostas ainda não enchem meia folha de
verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos factos internos” (Barreto, 1990:
138; grifos acrescentados). Embora preocupado em combater os defensores da
psicologia de feição racionalista, na linha do espiritualismo de Cousin e Jouffroy,
então em voga no Brasil, o mestre do Recife também não encontrou nas objecções
empiristas ao espiritualismo uma ideia convincente de psicologia como ciência,
observando que a “psicologia empírica, a despeito de todas as suas descrições e
pinturas do mundo subjectivo, ainda nada pôde levantar que seja traduzível em
forma científica” (idem: 145). Contra racionalistas e empiristas, ele chama a atenção
para a psicologia dos artistas:
7
“Quando digo que a razão me obriga a perceber os corpos no espaço, durando no tempo, e
produzidos por uma causa substancial e necessária, não entendo que é só a minha faculdade de
saber, a minha própria inteligência que não pode compreender as coisas de outro modo, porque
esteja sujeita a certas leis, ou tenha ideias inatas dessas coisas; entendo que a razão, que a isso me
obriga, é a realidade mesma das coisas necessárias que estão fora de mim, e distintas da minha
faculdade de saber: a realidade das coisas de percepção e de razão é quem obriga o espírito a
concebê-las como pode, e não as leis do entendimento quem obriga o espírito a pensar nelas.”
(Magalhães, 2001: 215)
9
Se não se admite que, em face desses painéis do mundo interno, o que nos
impressiona é ainda o ideal, a força criadora do artista, o nosso entusiasmo
não tem senso [...] desde Homero até o maior poeta dos nossos dias, o que
distingue as criações do verdadeiro artista é o característico da
impersonalidade [...] o que existe, por exemplo, de mais impessoal do que o
teatro de Shakespeare? [...] Entretanto se diz que ninguém ainda se mostrou
tão conhecedor do coração humano [...] O autor de Père Goriot, por exemplo,
era mais que um psicólogo, era um grande fisiologista, que andava sempre
em dia com a dinâmica mimosa do organismo feminino, cujos movimentos
mais imperceptíveis ele sabia detalhar na figura das suas personagens.
(Idem: 149-152)
Tendo em vista a possibilidade de previsão científica dos factos em função
de dados a priori, Tobias Barreto observa na psicologia “a falta absoluta de dados
para se formarem exatas e profundas previsões”; tendo em vista o conhecimento
científico das coisas em função das leis universais que definem a “natureza” dessas
mesmas coisas, Tobias Barreto observa que “a psicologia não descobre uma só das
leis que determinam a formação do indivíduo”; finalmente, ele conclui:
Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da
pessoa, e do carácter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa.
Mas onde estão as induções científicas, feitas de modo que possam garantir
nossos juízos sobre a marcha normal da personalidade alheia?
Eu disse alheia; e pudera dizer própria. Todos nós sabemos, por experiência,
que as mais das vezes, o que nos desarranja e nos perturba, no curso
ordinário da vida é a ignorância de nós mesmos, da força de nossas paixões,
ou da fraqueza de nossa vontade. (Idem: 153)
O que é o eu, afinal, abstraído de sua singularidade, abstraído de suas
intenções? O que resta do eu sem a singularidade do vivido, sem lembranças nem
saudade? Segundo Augusto dos Anjos, o poeta do Eu, contemporâneo de Farias
Brito e a mais vigorosa reacção estética contra o cientificismo no Brasil,8
“O
8
Quanto ao sentido metafísico da natureza, que se propõe para além do sentido físico inerente ao
naturalismo, cabe aqui a inserção do nome de Augusto dos Anjos, cujo pensamento está em perfeita
harmonia com o pensamento de Farias Brito, a quem dedicou o soneto Natureza Íntima:
Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A Natureza olhou-se interiormente!
Baldada introspecção! Noumenalmente
O que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!
E a Natureza disse com desgosto:
“Terei somente, por ventura, rosto?!
10
inventário do que eu já tinha sido/ Espantava. Restavam só de Augusto/ A forma
de um mamífero vetusto/ E a cerebralidade de um vencido!”. Na mesma medida,
Farias Brito manifestou-se contra a psicologia experimental e enveredou pelo
conhecimento de si na perspectiva metafísica da “coisa em si” kantiana. Isto
deveu-se, com certeza, ao magistério de Tobias Barreto na Escola do Recife,
especialmente do ponto de vista da inadequabilidade do método experimental no
âmbito da cultura, onde predomina a intencionalidade das acções livres.9
Farias
Brito propõe uma psicologia transcendente para dar conta do espírito que, para além
dos fenómenos físicos, não se circunscreve dentro dos limites da previsibilidade e
não se deixa apreender pelos critérios de medida e repetição. O espírito, cuja
presença desperta sempre admiração, mas nunca se experimenta em laboratório,
tem, por isso mesmo, o seu ser fora de alcance dos métodos da experiência. Desse
modo, ele se coloca, sem saber, ao lado de Husserl, para quem a “experiência não
pode dizer-nos o que “é” o ser psíquico, no mesmo sentido válido para o físico. O
psíquico não se experimenta como aparente; é o “vivido” e vivido contemplado na
reflexão” (Husserl, 1969: 72). O eu analisado e descrito em laboratório existe, mas é
despojado do vivido e da intencionalidade, da consciência enfim, e, por isso
mesmo, “é” para a morte, como o eu descrito na poesia de Augusto dos Anjos10
;
contrariamente, a personagem de ficção não existe, mas “é” para a vida, como a
Capitu de Machado de Assis, que é eterna. Farias Brito, como que completando o
pensamento de Tobias Barreto, diz o seguinte contra a “psicologia morta” dos
psicólogos modernos e a favor da “psicologia viva” dos artistas:
Muito mais instrutiva é, de certo, a psicologia dos poetas e dos romancistas,
que jogam, é verdade, com personagens fantásticos, mas inspirados na
observação dos factos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da
vida, senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre das
próprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos próprios sonhos e
aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, a descrição viva e
palpitante [...] um Hamleto, um rei Lear, o Tartufo de Molière, o Fausto de
“Serei apenas mera crusta espessa?!
“Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
“Quanto mais em mim mesma me aprofundo,
“Menos interiormente me conheça?!”
9
“Determinemos melhor o conceito da cultura. O estado originário das coisas, o estado em que elas
se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem,
como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica − esse estado se
designa pelo nome geral de natureza [...] quando o homem inteligente e activo põe a mão em um
objecto do mundo externo, para adaptá-lo a uma ideia superior, muda-se o estado desse objecto, e
ele deixa de ser simples natureza [...] Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a
mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço − todos
experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é,
pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de
faze-lo belo e bom.” (Barreto, 1990: 247)
10
“Eu, filho do carbono e do amoníaco...” (Anjos, 2001: 98).
11
Goethe, têm mais vida e realidade que muitas figuras históricas de valor
aliás não secundário [e agora citando argumento de Raul de Brugeilles] “O
pai Goriot de Balzac é tão real quanto tal egípcio que vivia no tempo de
Sesóstris [...] hoje sua existência não é mais real que a do egípcio?”. (Brito,
1914: §1º)
Assim sendo, o que é, para Farias Brito, o espírito como princípio da
filosofia? Correspondendo à tradição do pensamento brasileiro, não se trata do
espírito inerente ao cogito cartesiano: “Eu penso − eis para mim a primeira verdade
[...] Não se deve, porém, dizer como Descartes: eu penso, logo existo − cogito, ergo
sum. Deve-se ao contrário dizer: eu penso, logo existe meu pensamento. E se existo,
é porque sou capaz de pensar, e minha existência não consiste em outra coisa,
senão em meu pensamento. E se me tornar incapaz de pensar, perdendo
totalmente a consciência, cessarei de existir” (Brito, 1914: §75). Tal observação
crítica tem como alvo a interpretação material da forma condicional “se... então”
inerente ao “penso, logo existo”. Do ponto de vista dessa interpretação, o cogito
contém a percepção de uma existência: se penso é porque necessariamente existo e,
neste sentido, a verdade se fundamenta logicamente na existência do sujeito, isto é
no fato observável de que ele está fisiologicamente activo, e não no conhecimento
de si como espírito ou pensamento. Contrariamente, para Farias Brito o verdadeiro
progresso da filosofia moderna tem uma dimensão metafísica, para além da mera
constatação lógica no âmbito da experiência, segundo a qual a verdade se
fundamenta no acto de pensar, de modo que se se perde a consciência de si o
sujeito pode manter-se fisiologicamente vivo, mas psiquicamente morto. E é
justamente em função dessa dimensão metafísica do conhecimento de si que vive o
eu, de modo que, para enfatizarmos a significação existencialista da observação
britiana, não parecerá extravagante se dissermos que o eu está realmente morto,
não simbolicamente ou “em certo sentido”, ou “como se estivesse”, mas
literalmente morto se perde a consciência de si. Para além do movimento mecânico
dos corpos explicado pela física em função de uma “força estranha” ao sujeito,
Farias Brito, uma vez beneficiado pela distinção de Tobias Barreto entre natureza e
cultura, concebe o movimento da vida, envolvendo ideias, intenções e sentimentos
próprios, a liberdade enfim, como sendo um movimento gerado pelo pensamento
ou espírito enquanto uma outra forma daquela mesma força que, já agora, o ser
humano conhece directamente no conhecimento de si:
[Do ponto de vista físico] sempre que um corpo se move, é impelido por
algum corpo anterior em movimento, quer dizer: obedece à acção de uma
força estranha [...] só conhecemos a força em seus efeitos exteriores, ou por
outra, como movimento. E isto significa que só conhecemos a força em sua
aparência material, como movimento ou como corpo deslocando-se no
espaço: o que quer dizer precisamente que só conhecemos a força como
fenómeno, jamais como “coisa em si”. [Mas do ponto de vista metafísico, há]
uma força que conhecemos por outra forma, que, conhecemos, por assim
dizer, directamente e face a face, ou mais precisamente, que conhecemos em
12
sua significação interna. É a que reside em nós. E esta é de natureza
intelectual, pois o que nos determina a agir, são necessidades de que temos
consciência, são fins que temos em vista realizar; logo, ideias. E a força que
reside em nós e pela qual nos movemos é, de facto, o pensamento. (Idem:
§78)
A filosofia como ciência rigorosa do espírito
[...] entendo por espírito a energia
que sente e conhece, e se manifesta,
em nós mesmos, como consciência
Farias Brito
A compreensão de que a filosofia, pela origem e pela essência, deve orientar-
se para uma ciência rigorosa do espírito, justifica a indignação de Farias Brito
contra o rumo que tomou a psicologia na era moderna após as intervenções de
Kant e de Comte: “Ambos se colocaram, com relação à psicologia, na atitude da
impugnação e do combate. Ora, a filosofia que começa a constituir-se, e que tem de
dominar o futuro, é precisamente a psicologia. Isto significa que Kant e Augusto
Comte são pensadores que pertencem inteiramente ao passado, que representam a
filosofia morta, e já não podem, por isto, ser tomados em consideração senão por
sua significação histórica” (Brito, 1912: §34). Quase surpreendente o desassombro
de Farias Brito, se considerarmos que seu antigo mestre na Escola de Direito do
Recife, Tobias Barreto, se confessava “agarrado ao manto de Kant”. Hoje sabemos,
entretanto, que essa reacção contra a redução da psicologia ao âmbito do espírito
“positivo” começou com Gonçalves de Magalhães, para quem a “base e o ponto de
partida de todas as ciências filosóficas é a psicologia [...] A psicologia lhes dá o
elemento subjectivo” (Magalhães, 2001: 65); para quem os “frenologistas
modernos, sucessores do célebre Gall,” nada provaram “contra a existência de uma
alma indivisível, simples e idêntica” (idem: 88); para quem argumentou de
maneira conclusiva: “Acima da frenologia está a consciência” (idem: 89). O facto,
entretanto, é que uma vez fora de combate a psicologia racional,11
Kant
11
Um breve retrospecto do problema: Hume argumentara que o mundo que conhecemos consiste
unicamente em impressões sensíveis, não havendo, pois, além delas, nenhuma substância exterior
ou interior, de modo que nem as sucessões externas nem a sucessões internas justificariam a
necessidade quer de uma “matéria”, que lhes servisse de causa, quer de um “eu” ou “substância
pensante” que servisse de fundamento para os estados de consciência; tanto de um lado como de
outro, haveria apenas uma sucessão indefinida de fenómenos, e se os fenómenos se ligam a um
substrato permanente, em função do qual são compreendidos como manifestações ou efeitos, isto se
explica, segundo Hume, pela tendência natural que temos de ligar cada coisa a outra coisa, isto é,
simplesmente por efeito do hábito, e não por uma “lei de causalidade”; esta, mesmo mantida e
justificada por Kant no âmbito de sua teoria da idealidade, não serve como prova, do ponto de vista
do método matemático-experimental, para a realidade de qualquer substância, quer de ordem
material, quer de ordem psíquica.
13
efectivamente cogitou de uma psicologia empírica,12
e, muito provavelmente, seu
enorme prestígio no século XIX foi razão suficiente para que o nome de Gall (1758-
1828), criador da famigerada frenologia,13
fosse chamado pelos filósofos do
“espírito positivo", como Augusto Comte, a representar um papel de fundador que
jamais lhe coube. Observa Farias Brito que, em sua classificação hierárquica das
ciências, o fundador do positivismo evita o uso simples da palavra psicologia,
distinguindo os assumptos pertinentes com os títulos “teoria positiva das funções
afectivas e intelectuais”, “psicologia cerebral”, ou ainda, de preferência, “fisiologia
frenológica” (Brito, 1912: §36). Mas o que é, afinal, a psicologia, para Farias Brito?
Eu chamo psicologia a ciência do espírito, e entendo por espírito a energia
que sente e conhece, e se manifesta em nós mesmos, como consciência [...] É
essa energia em nós uma manifestação particular da matéria? Pouco
importa. Nessa manifestação particular a matéria adquire caracteres
especiais que a constituem um princípio à parte e sui generis, que é o ponto
de partida para uma série de fenómenos que são essencialmente distintos
dos fenómenos da matéria [...] Sob esse ponto de vista, tanto importa
considerar o espírito como uma substância independente, ligada apenas
acidentalmente à matéria, como considerá-lo como fenómeno da matéria, ou
mesmo como simples epifenómeno. De toda a forma há no espírito
modalidades especiais da realidade, um poder agente e real, vivo e concreto,
que não somente sofre a acção dos elementos exteriores, como ao mesmo
tempo é capaz de agir sobre eles: um princípio vivo de acção, capaz de
modificar [...] a ordem da natureza, capaz de dominar-se, capaz de exercer
domínio sobre as coisas: uma força criadora. (Brito, 1914: §3º).
Ora, com base no modelo de explicação causal, mecânico, a psicologia
científica ou experimental, embora seja da maior utilidade na medida em que dá
conta da natureza fisiológica do psíquico, isto é, na medida em que dá conta da
base física do espírito,14
não dá conta do espírito como princípio de acção, isto é,
12
“Se o fundamento do nosso conhecimento racional puro dos seres pensantes em geral fosse algo
mais do que o cogito, se nos socorrêssemos também das observações acerca do jogo dos nossos
pensamentos e das leis naturais do eu pensante, que daí se extraem, resultaria então uma psicologia
empírica, que seria uma espécie de fisiologia do sentido interno e talvez pudesse explicar os
fenómenos deste” (Kant, Crp: A347).
13
A doutrina da frenologia baseia-se no princípio de que, tendo as faculdades da alma a sua sede
no cérebro, se podem reconhecer as diferentes disposições e tendências de cada indivíduo pelas
bossas ou protuberâncias, e depressões, que se notam no crânio.
14
“Feitas [...] as necessárias rectificações, a psicologia fisiológica deve ficar; mas não como
interpretação da fenomenalidade psíquica, isto é, como solução do problema psíquico pela
fisiologia, e sim como estudo especial de uma secção particular da realidade, isto é, como estudo
dos órgãos dos sentidos e das sensações. Será uma ciência intermediária entre a fisiologia e a
psicologia, como era a ideia primitiva de Wundt. E esta ciência, por não tratar dos fenómenos
psíquicos propriamente ditos, mas apenas dos órgãos a que esses fenómenos se ligam, não deixa de
ser útil como estudo de uma parte importante do organismo, e deve ser cultivada, não só no
interesse do naturalista ou do antropologista, como ainda no interesse médico. É um estudo
propriamente fisiológico, não psicológico, e nele poderá o sábio utilizar-se de todos os processos e
14
não dá conta da intencionalidade da consciência, que é o modo de relação de toda
a consciência ao seu conteúdo à maneira de um a priori.15
É justamente do ponto de
vista da intencionalidade da consciência que, segundo as palavras de Farias Brito,
“a matéria adquire caracteres especiais que a constituem um princípio à parte e sui
generis, que é o ponto de partida para uma série de fenómenos que são
essencialmente distintos da matéria”. Neste sentido, deve entender-se “a matéria
como fenómeno do espírito” (Brito, 1914: §78), isto é, mediante a intervenção da
inteligência e da vontade os corpos ganham “alma”, a começar pelo próprio corpo;
os corpos ganham significado, adquirem valor como sendo “verdadeiros”, “bons”
e “belos”, constituindo-se, assim, o mundo da cultura, o mundo da vida. Tais são
os objectos culturais por oposição aos objectos em estado de natureza (como diria
Tobias Barreto) ou meramente materiais. Ora, a psicologia científica, na medida em
que se restringe a uma explicação fisiológica do comportamento humano,
deixando de lado a sua significação moral, é uma “psicologia sem alma” (idem:
§1º); no mesmo sentido em que Husserl diz que “a psicologia contemporânea já
não quer ser a ciência da ‘alma’ ” (Husserl, 1969: 66). Eis, portanto, em última
instância, a razão pela qual, de acordo com o filósofo brasileiro, a chamada
psicologia científica ou experimental do mundo moderno impõe um grave prejuízo
à filosofia enquanto princípio de todo o ideal científico: ela se propõe, de um ponto
de vista psicofísico, tratar “a consciência ou o eu como energia pensante” ao nível
de fenómeno da natureza (idem: §70), isto é, propõe-se “localizar o que é
independente do espaço e não se pode conceber como corpo, traduzir na
linguagem dos fatos objectivos o que só se pode explicar e compreender como
modificação puramente interna, como fato subjectivo, numa palavra: objetivar a
consciência” (idem: §1º). Neste mesmo sentido, Husserl faz uma objecção
fundamental ao espírito naturalista: como desconsiderar o fato de que o método da
psicologia não pode ser o mesmo da ciência da natureza, uma vez que esta, por
princípio, se propõe a eliminação das qualidades secundárias e a exclusão dos
métodos da análise fisiológica, sem excluir a experimentação [...] É o que poderia chamar-se a
indagação da base física do espírito” (Brito, 1912: §71).
15
Segundo Husserl, “existem variedades específicas essenciais da relação intencional, ou, em suma,
da intenção (que constitui o carácter genérico descritivo do “acto”). O modo segundo o qual uma
“simples representação” de um estado de coisas visa esse “objecto”, que é o seu, é diferente do
modo do juízo que considera esse estado de coisas como verdadeiro ou falso. Completamente
diferentes são, por sua vez, o modo da suposição e da dúvida, o modo da esperança ou do temor, o
modo da satisfação e do desprazer, do desejo e da repugnância, da decisão perante uma dúvida
teórica (decisão judicativa) ou de uma dúvida prática (decisão volitiva, no caso de uma escolha
deliberada) [...] Decerto, a maior parte dos actos, se não todos, são vividos complexos e as suas
próprias intenções, muito frequentemente, múltiplas. Intenções afectivas têm como base intenções
de representações ou de juízos, etc. Mas não há dúvida de que, quando decompomos estes
complexos, chegamos sempre a caracteres intencionais primitivos que não podem reduzir-se,
quanto à sua essência descritiva, a vividos psíquicos de outro tipo; e não há, de novo, dúvida de
que a unidade do gênero descritivo “intenção” (“carácter de acto”) apresenta diversidades
específicas fundadas na essência pura deste gênero e precede, assim, a facticidade psicológica
empírica à maneira de um a priori” (Husserl, 1963: 168-171).
15
elementos puramente subjectivos do fenómeno para reter as qualidades primárias
que ficam e, assim, buscar a natureza que nela se apresenta, enquanto que,
contrariamente, “tudo o que no sentido mais amplo da psicologia chamamos
fenómeno psíquico é, considerado em si mesmo, precisamente fenómeno e não
natureza” (idem: 71-72), razão pela qual, “seguir o modelo da ciência da natureza
implica quase inevitavelmente coisificar a consciência” (ibidem: 69). Desse modo,
concomitante e paralelamente a Farias Brito, Husserl faz a crítica da psicologia e
propõe uma “fenomenologia da consciência” em oposição a uma “ciência natural
da consciência” (idem: 59). Eis como Husserl concebe o ser psíquico:
A experiência não pode dizer-nos o que “é” o ser psíquico, no mesmo
sentido válido para o físico. O psíquico não se experimenta como aparente; é
o “vivido” (Erlebnis) e o vivido contemplado na reflexão; aparece como
individualidade por si mesmo em um fluir absoluto, ora como sendo, ora
como “deixando de ser”, voltando a cair continuamente de modo visível em
um ter sido. O psíquico também pode ser recordado e, deste modo, algo
experimentado de maneira um pouco distinta; e no “recordado” está o “ter
sido percebido”. Pode ser recordado “reiteradamente”, nas recordações que
estão reunidas em uma consciência que se apercebe de que as recordações
mesmas são evocadas de novo ou então retidas. Nesta conexão, e
exclusivamente nela, como o idêntico de tais repetições, o a priori psíquico
pode ser “experimentado” como ente e identificado [...] É um fluir de
fenómenos ilimitado por ambos os lados, com uma linha intencional
contínua, que é como se disséssemos o índice da unidade que penetra tudo,
isto é, a unidade do “tempo” imanente, sem começo e sem fim, tempo que
não se mede com nenhum cronómetro. (idem: 72-73)
O eu e sua sombra
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
− Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
Augusto dos Anjos
Pode-se [...] dizer que do tempo nada se perde
porque o passado é presente no presente; ou
melhor, o presente não é senão o passado agindo.
Farias Brito
16
Ao final do século XIX, o que se observa no cenário filosófico ocidental é,
mais uma vez, o retorno à consciência de si, mas de uma maneira diferente do que
resultou do cogito cartesiano. Deste resultou um sujeito epistémico, envolvendo o
princípio da relatividade do conhecimento, no sentido de que o objecto de
conhecimento vem do sujeito cognoscente, e não da experiência. Uma vez
estabelecido esse princípio, ao longo de mais de um século de resistência ao
“espírito novo”, “moderno”, e restabelecida por Kant a originária aspiração grega
de conferir um carácter racional ou científico a toda a vida humana (o que, do
ponto de vista da physis, inclui, para além da dimensão física, a dimensão
metafísica da realidade), tornou-se necessário discutir a vigência do princípio da
relatividade na acção moral e, em conseqüência, na actividade estética. Farias Brito
chama a atenção para essa necessidade, ao advertir que “o momento é de
renovação e reconstrução [...] o momento é de revigoramento moral, sendo certo
que a época de demolição e desmoronamento chegou a seu termo e um ideal novo
anuncia as aproximações de sua entrada no mundo” (Brito, 1914: §7º). Para ele, se o
homem moderno, consciente de si como força ou energia, é aquele que tornou-se
capaz de exercer um domínio sobre as coisas, tal domínio deve começar por si
mesmo. Esta ideia, verdadeiro motor do pensamento britiano, não foi importada.
Ela já aparece claramente em Tobias Barreto16
, como aparece de maneira infusa no
romance de Machado de Assis e na poesia de Augusto dos Anjos. Mas a ideia de
que a mesma força ou energia, que do ponto de vista da ciência física só se conhece
externamente como movimento ou como corpo deslocando-se no espaço, revela-se
internamente como consciência, ele encontrou-a em Bergson.
É notável em Farias Brito a assimilação das ideias de Bergson. Referimo-nos
especialmente àquelas apresentadas no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência
(1889). Pondo-se de acordo com o francês, o brasileiro entende que “não basta
indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito”,
na perspectiva do criticismo de Kant (Brito, 1914: §39). Para além da teoria da
idealidade e subjectividade do espaço e do tempo, “é preciso verificar se o
conhecimento do eu e da consciência, por sua vez, não sofre a influência das
coisas” (ibidem). Para compreendermos o sentido desta questão, torna-se
fundamental considerarmos a passagem em que Bergson distingue o “eu interior”
em si considerado como um absoluto, “o que sente e se apaixona, o que delibera e
16
“Quer o homem seja, conforme a velha definição, um animal racional, um animal que pensa, quer
se chame um animal que faz trocas, ou um animal que reza, ou [...] um animal que cozinha [...] seja
como for, o certo é que cada uma dessas definições indica alguma coisa de contrário e superior à
pura animalidade, marcando assim um momento da evolução cultural do mesmo homem.
Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro característico do ente humano, que todas aliás
pressupõem, com excepção talvez da primeira, por isso mesmo a menos aceitável, isto é, nenhuma
delas envolve a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as próprias acções, sujeitando-as
destarte a uma norma de proceder.
Nem pensar, nem trocar, nem rezar, nem cozinhar − nada disto exclui, por si só, a ferocidade
original. Quem, pois, definisse o homem − um animal, que prende-se, que doma-se a si mesmo − daria
por certo a melhor definição [...] O indivíduo prendendo-se a si mesmo − é o puro domínio da
moral”. (Barreto, 1990: 307)
17
se decide [enquanto] força cujos estados e modificações se penetram intimamente”
(Bergson, 1988: 88), do eu fenoménico e mundano resultante do facto de que “o
nosso eu toca no mundo exterior superficialmente; as nossas sensações sucessivas,
embora apoiando-se umas nas outras, conservam algo da exterioridade recíproca
que caracteriza objectivamente as suas causas” (ibidem). O eu adquire, assim, a sua
sombra. E é reduzido à sua sombra que o eu se torna objecto de conhecimento
científico segundo o modelo da “ciência da natureza”. Entretanto, se o “eu mais
profundo não faz senão uma única e mesma pessoa com o eu superficial” (ibidem),
como, exactamente, se perde a consciência de si como sendo essencialmente força,
energia? Bergson explica que é por meio da palavra enquanto meio de
comunicação e de formação do senso comum:
[...] na realidade, não há nem sensações idênticas, nem gostos múltiplos: é
que sensações e gostos surgem-me como coisas a partir do momento em que
os isolo e nomeio [...] O que se deve dizer é que toda a sensação se modifica
ao repetir-se e que, se não me parece mudar de um dia para o outro, é
porque dela me apercebo agora através do objecto que lhe serve de causa,
através da palavra que a traduz. A influência da linguagem sobre a sensação
é mais profunda do que normalmente se pode pensar. Não só a linguagem
nos leva a acreditar na invariabilidade das nossas sensações, mas induzir-
nos-á em erro, por vezes, quanto ao carácter da sensação experimentada [...]
a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por
conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga ou, pelo
menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual
[grifos acrescentados]. Para lutar com armas iguais, estas deveriam
exprimir-se por palavras precisas; mas as palavras, logo que formadas,
voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e inventadas para
testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua
própria estabilidade.
Em nenhum lado é tão flagrante este esmagamento da consciência como nos
fenómenos do sentimento [...] O próprio sentimento é um ser que vive, se
desenvolve e, conseqüentemente, muda sem cessar [...] Mas vive porque a
duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram:
ao separarmos estes momentos uns dos outros, ao desenrolarmos o tempo
no espaço, fizemos perder a este sentimento a sua animação e cor. Eis-nos,
pois, perante a sombra de nós mesmos [grifos acrescentados]: julgamos ter
analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma
justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem
cada um o elemento comum, conseqüentemente, o resíduo impessoal, das
impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira.
(Idem: 91-93)
Portanto, em resposta à questão visada por Farias Brito − se o conhecimento
do eu não sofre a influência das coisas −, devemos destacar o facto de que o
carácter arbitrário em que consiste o valor lingüístico da palavra, em função do
qual ela se torna impessoal e nela se perdem a intensidade, a diversidade e o
18
colorido de que se revestem as sensações pessoais, desenvolveu-se a par de uma
“consciência reflexa” como um eu inteiramente superficial, homogéneo e
indiferente à multiplicidade dos estados de consciência. Isso transparece sempre e
quando nos orientamos apenas pela exigência de objectividade na comunicação
necessária à vida cotidiana,17
valendo-nos do facto de que as palavras, por
convenção, têm um sentido literal e querem dizer algo a priori. Tal espírito objectivo
no falar impede que a diversidade dos estados de consciência apareça. E é dessa
forma que, segundo Bergson, a palavra “esmaga [...] as impressões delicadas e
fugitivas da nossa consciência individual”18
.
Mas esse mesmo valor lingüístico da palavra não impede que justifiquemos
o uso estético da linguagem em função da energia vivida nas sensações. Com arte
superamos esse espírito objectivo sem prejuízo do sentido literal, porque, neste
caso, somos nós essencialmente a querer dizer, por meio da obra, o que as palavras
dizem. Referindo-se especialmente às obras literárias, Farias Brito diz que em nós o
espírito se revela como sendo “esse elemento oculto, misterioso, inexplicável, pelo
qual a obra de arte nos impressiona docemente, fazendo sonhar e ver coisas
longínquas, esse poder maravilhoso e incompreensível, com que as coisas mais
simples fazem, muitas vezes, surgir, como de improviso, sentimentos estranhos
que dormiam ignorados nas profundezas d’alma” (Brito, 1914: §1º). Desse modo, a
consciência de si revela-se pela via estética como um sentido que vem da
sensibilidade (e assim sinto-me realmente vivo), e não da razão, como seria o caso
se prevalecesse o ponto de vista da comunicação. Reformulada, a questão britiana
poderia adquirir uma outra forma − “Em que circunstância alguém diz sentir-se
realmente vivo?”.
Na primeira parte do primeiro volume de sua famosa À la recherche du temps
perdu, Marcel Proust, como que respondendo à provocação de Bergson19
, fala da
17
Ver, por exemplo, Nietzsche, A gaia ciência, §354: “Se as nossas acções, pensamentos, sentimentos
e movimentos chegam − pelo menos em parte − à superfície da nossa consciência, é o resultado de
uma terrível necessidade que durante muito tempo dominou o homem, o mais ameaçado dos
animais: tinha necessidade de socorro e de protecção, tinha necessidade do seu semelhante, era
obrigado a saber dizer essa necessidade, a saber tornar-se inteligível; e para tudo isso era
necessário, em primeiro lugar, que tivesse uma “consciência”, que “soubesse” ele próprio o que lhe
faltava, que “soubesse” o que pensava [...] o pensamento que se torna consciente representa apenas a
parte mais ínfima, digamos a mais superficial, a pior [...] porque só existe o pensamento que se
exprime em palavras, quer dizer, em sinais de trocas [...] Em resumo: o desenvolvimento da linguagem e
o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de
si própria), estes dois desenvolvimentos caminham a par”.
18
No filme The age of innocence (1993), baseado na obra homónima de Edith Wharton, Martin
Scorcese realizou plenamente, do ponto de vista de diálogos, imagens, cenas e situações, esse
sentido do “espírito objectivo” em razão do qual o “bom” senso é não quebrar as regras, garantindo
assim as conveniências e a “boa” aparência de uma vida sem necessidades materiais, mesmo ao
preço de viver à sombra do próprio eu.
19
Referindo-se ao facto de que as palavras desenrolam as impressões mais íntimas, como os
sentimentos, num tempo indiferenciado, homogéneo, em que, de certo modo, tudo é percebido sob
uma lógica simples como sendo agora, e que exactamente por isso os sentimentos se manifestam
sem a sua animação e cor próprias, Bergson faz a seguinte provocação: “Se agora algum romancista
19
memória intelectual, que corresponde ao poder universal de trazer à consciência os
factos constituintes do próprio passado, mas não como algo ainda vivo, e sim como
algo remoto que não é mais, como algo morto; mas fala também do fluxo contínuo
de memória que, independentemente da inteligência e da vontade, faz do vivido a
própria consciência. Nesse fluxo independente do vivido consiste o eu profundo
como energia:
[...] levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço
de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as
migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava
de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem
noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes
da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o
faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência
não estava em mim; era eu mesmo [grifos acrescentados]. Cessava de me
sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela
poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que
o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde
vinha? Que significava? Onde apreendê-la? [...] Deponho a taça e volto-me
para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave
incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si
mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a
explorar [...] Explorar? Não apenas explorar; criar. Está em face de qualquer
coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na
sua luz [...] de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do
pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray [...] minha
tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou
de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto [...] E mal reconheci o
gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava [...]
eis que a velha casa cinzenta, de facha da para a rua, onde estava o seu
quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que
dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da
mesma [...] e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer
tempo, a praça [...] as ruas [...] as estradas [...] todas as flores do nosso jardim
e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da
aldeia e suas pequenas moradias e as igrejas e toda Combray e seus
arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da
minha taça de chá. (Grifos acrescentados)
Antes mesmo de Proust, Machado de Assis, a partir de suas Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), refere-se à evidência dessa verdade, a saber: que o eu
audacioso, rasgando o véu habilmente tecido do nosso eu convencional, nos mostrar sob esta lógica
aparente uma absurdidade fundamental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração
infinita de mil impressões diversas que já deixaram de o ser na altura em que os nomeamos,
louvamo-lo por nos conhecer melhor que nós próprios [...] Encorajados por ele, afastamos por
momentos o véu que interpúnhamos entre a nossa consciência e nós mesmos. Pôs-nos na presença
de nós próprios” (idem: 93).
20
vive à própria sombra. No Dom casmurro (1899), sua intenção com a narrativa,
declara-o de início através do protagonista, “era atar as duas pontas da vida, e
restaurar na velhice a adolescência”, como se o eu, do ponto de vista da duração,
consistisse numa sucessão de estados de consciência, de modo que fosse possível
encontrar o elo perdido entre a velhice e a adolescência. Mas desde logo confessa o
seu fracasso em restaurar os próprios estados de consciência: “Pois, senhor, não
consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a
fisionomia é diferente”. Ao rebuscar na memória o momento em que ele,
adolescente, beija a Capitu e, atordoado, volta para sua casa; depois, na cena
seguinte, em que ele, ainda afogueado, repete a si mesmo, três vezes, “Sou
homem!”, expressando assim o sentido da energia que, pela primeira vez, toma
conta de seu corpo, a sensação de força, de alegria, de prazer, enfim, de descobrir-
se a si mesmo a partir das próprias sensações como sendo um, único e exclusivo,
ele, já velho, reconhece o vivido como sendo o conteúdo próprio da consciência20
,
em virtude da qual todo o homem se torna consciente de si como sendo ele mesmo
criador de vida, independentemente de manter-se em dívida e obrigação quanto à
própria criação:
Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição;
sentei-me na cama, recordando [...] Tinha estremeções, tinha uns
esquecimentos em que perdia a consciência de mim e das coisas que me
rodeavam [...] E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão,
ouvia algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para
sentir somente os beiços de Capitu... [...] De repente, sem querer, sem
pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:
Sou homem!
[...] Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se
pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos
os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da
mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco
das reminiscências osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e
repassar das memórias antigas. Ora, de todas as daquele tempo creio que a
mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me
revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces também, de
vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que
fosse, a recordação era menos que esta. (Grifos acrescentados)
Nessa mesma tradição do romance introspectivo inaugurado por Machado
de Assis, já agora reflectindo o sentido interno do tempo como se apresenta em
Proust, mas que, em última instância, remete claramente ao conceito de duração
20
Como se sabe, tal sentido ontológico da saudade não é novo na cultura de língua portuguesa
desde que D. Duarte (1391-1438), rei de Portugal, em seu famoso livro Leal conselheiro, definiu a
saudade como “um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão”, distinguindo-a
da tristeza mediante o seguinte exemplo: “Se alguma pessoa por meu serviço e mandado de mim se
parte, e dela sinto saudade, certo é que de tal partida não tenho sanha, nojo, pesar, desprazer nem
aborrecimento; apraz-me de se ir, e pesar-me-ia de não fosse”.
21
em Bergson, talvez directamente, talvez indirectamente através de Farias Brito21
,
Lúcio Cardoso, em sua Crónica da casa assassinada (1959), aprofundou o sentido da
própria existência:
Lembro-me que, pequeno ainda, ao abrir um dia certo armário que todos
consideravam tacitamente vedado, fui envolvido por um perfume doce,
estranho, que não tardou muito em impregnar todo o quarto. Abaixei-me e
comecei a remexer as coisas que o entulhavam; trouxe para fora várias
roupas desconhecidas, fora de uso, e que sem dúvida haviam sido atiradas
ali como restos sem serventia [...] Curvado, procedia calmamente ao meu
exame, quando meu pai entrou no quarto. Antes de poder constatar o que
quer que fosse, devia ter sentido o perfume que vagava no quarto. Apoiou-
se a uma cómoda e, como eu ouvisse rumor, voltei-me deparando com ele
intensamente pálido, encostado ao móvel como se fosse desmaiar [...]
21
“A consciência é o eu. E tal é a existência de que temos mais certeza, pois é a única que
conhecemos directamente e, por conseguinte, de modo mais íntimo e profundo. Indagando-se,
porém, da significação real dessa existência, vê-se que consiste unicamente em sucessão de estados
ou mudanças, ‘Sensações, sentimentos, volições, representações, − eis as modificações entre as quais
se divide minha existência e que lhe dão sua cor própria. Eu mudo, pois, incessantemente’ − diz
Bergson. E assim dizendo acrescenta não residir a mudança simplesmente na passagem de um
estado a outro. ‘Acredita-se que cada estado, considerado à parte, fica o que é durante todo o tempo
em que se produz. Mas um ligeiro esforço de atenção mostrará que não há afecção, representação,
volição que se não modifique a todo o momento. E se um estado d’alma deixasse de mudar, sua
duração cessaria de correr... A verdade é que mudamos incessantemente e todo o estado
psicológico, de si mesmo, é já mudança.’ Ora, se toda a realidade da consciência consiste em
sucessão ou mudança de estados, segue-se daí que apesar de mudar incessantemente, ela
permanece sempre a mesma. É que não se trata de uma coisa, de um facto determinado, mas de
uma corrente, de um fluxo contínuo; e esta corrente, este fluxo, se bem que a todo o momento mude
de cor, todavia não se interrompe, e nunca se quebra: forma um todo indivisível e persiste sempre o
mesmo em sua sucessão de mudanças. Isto significa que a essência da consciência consiste na
duração. É assim que o filósofo acentua, de modo decisivo, que, considerando-se a vida psicológica
tal como se desenvolve através dos símbolos que a encobrem, verifica-se que o tempo é a sua
matéria própria.” (Idem: §44)
“Há [...] além da duração interna, sucessão que se resolve em concentração dos estados de
consciência no eu, uma duração externa, o tempo que entra nos cálculos do astrónomo e se divide
em períodos sucessivos, compreendendo o presente, o passado e o futuro: este é uma grandeza
susceptível de medida e de cálculo... Forçoso é, pois, daí concluir que o tempo é também uma
grandeza homogénea como o espaço. É ainda, segundo Bergson, uma ilusão [...] E para prová-lo
imagina, como exemplo, seguir com os olhos, sobre o quadrante de um relógio, o movimento da
agulha em correspondência com as oscilações do pêndulo. Dever-se-á supor neste caso que o
observador fez a medida da sucessão; mas não acontece assim. ‘Eu não faço a medida da duração,
diz Bergson, limito-me a contar simultaneidades [...] Fora de mim no espaço, não há senão uma
posição única da agulha e do pêndulo, porque das posições passadas nada resta (grifos acrescentados).
Dentro de mim, dá-se um processo de organização ou de penetração mútua dos estados de
consciência, e é isto que constitui a verdadeira duração. É porque duro desta maneira que me represento
o que chamo as oscilações passadas do pêndulo, ao mesmo tempo que percebo a oscilação presente (grifos
acrescentados)’ [...] Considerada em relação às coisas exteriores, a duração existe, mas somente para
uma consciência que conserve a lembrança dos momentos passados.” (Idem: §42; grifos
acrescentados)
22
Lembrava-me de tudo o que haviam me ocultado, e percebi, diante daquele
homem prostrado, que tocara finalmente a essência do segredo. Ergui as
mãos lentamente, mostrando a minha presa: se todos fugiam às recordações,
ali estavam elas, bem patentes, e mais do que a ressurreição do perfume de
um morto, o que eu exibia eram os signos inelutáveis de uma vida. Ele não
suportou aquela visão e ocultou o rosto entre as mãos. Assim, durante
algum tempo, pareceu entregar-se ao mar de recordações que lhe chegavam
− e todas deviam ser cruéis, sangravam ainda, vívidas, no fundo calado do
seu peito [...] Aos seus olhos, e sem perder um só dos seus movimentos, levei
minha mão às narinas, aspirando com força os restos de perfume que haviam
sobrado nela. Assim, ele teria certeza de que minha mãe continuava existindo, e que
sua presença permanecia total entre nós dois [...] Não sei quanto tempo ainda
vaguei pela casa, unido àquela presença que eu não conhecia. Os lugares, os
objectos, as próprias pessoas como que se haviam tornado mais próximas.
Quando se acenderam as primeiras luzes, eu ainda lutava para fazer
subsistir o sortilégio daquele perfume, que já ia desaparecendo, como uma
cor sugada pela noite. De novo, real, eu caminhava sozinho. (Grifos
acrescentados)
Que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é
liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em
praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se
achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto − e
também este escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu
mesmo, também para sempre, escorreria e passaria − e comigo, como uma
carga de detritos sem sentido e sem chama, também escoaria para sempre
meu amor, meu tormento e até mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é
o para sempre senão a última imagem deste mundo (grifos acrescentados)
O método introspectivo nessa arte, apregoado por Farias Brito como método
próprio da filosofia, e usado com mestria no Brasil desde Machado de Assis e
Augusto dos Anjos a Lúcio Cardoso, passando por Clarice Lispector, dá-nos um
exemplo de uma psicologia que “não se aprende nos livros, mas na luta mesma da
vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência que
faz parte orgânica daquele que a possui, e em que o objecto do conhecimento é
consubstancial com o sujeito” (idem: §4º), razão pela qual “A ‘coisa em si’ ou o
espírito [...] só pode ser conhecido por observação interior” (idem: §89).
Contrariamente às objeções kantianas de que esse método só fornece ao
observador a matéria de um jornal autobiográfico, Farias Brito não só observa que
“Kant confunde introspecção com imaginação” (ibidem), como ressalta que “Kant
não admitia ciência senão como sistematização no sentido da causalidade
mecânica. Mas há também a causalidade psíquica [...] a causalidade mecânica não é
talvez senão uma sombra da causalidade psíquica [...] no mundo humano, no
mundo em que a subjectividade se faz percebível, realmente, assim é, pois aí o
movimento é consciente, e o movimento consciente é exactamente o que se chama
acção” (ibidem). Eis porque se impõe a necessidade do método introspectivo como
23
método filosófico, para além da constatação de que o eu vive à própria sombra: a
introspecção revela a causalidade mecânica no mundo à sombra da causalidade
psíquica, de modo que, assim, não só completa-se a revolução copernicana na
metafísica, enunciada por Kant, como também resgata-se o sentido de totalidade
do real como objecto da filosofia enquanto tarefa infinita.
Conclusão
Farias Brito representa o coroamento de uma singular experiência histórica
de pensar correspondente ao nascimento da filosofia no Brasil. Em sua obra,
distribuída em 07 volumes publicados, distingue-se claramente um sentido de
unidade em torno ao problema originário que perpassa toda a cultura brasileira
desde a vigência do aristotelismo português no ensino filosófico brasileiro. Trata-se
do problema do conhecimento de si. Seu aprofundamento desse estudo na filosofia
moderna, especialmente em torno à questão da coisa-em-si, e sua proposta de uma
psicologia transcendente como método próprio da filosofia, não só incorporam e
ampliam as teses apresentadas pelos seus antecessores, desde António Vieira a
Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, como colocam a filosofia brasileira na
perspectiva do pensamento filosófico contemporâneo no que diz respeito a
tematizações de carácter existencial e à fenomenologia como método.
Farias Brito na historiografia filosófica brasileira
• Retórica a favor
Crítico intransigente do espírito positivo, Farias Brito foi saudado por jovens
nacionalistas adeptos de um movimento tradicionalista de reacção contra o influxo
do positivismo na educação, nas primeiras décadas do século XX, no Rio de
Janeiro, não só como o verdadeiro intérprete da alma nacional, mas também como
“o instrumento de que se serviu a Providência para reconduzi-los ao seio da
verdadeira Igreja” (Franca, 1928). Do ponto dessa cooptação político-ideológica,
inesperadamente surgiram inúmeros simpatizantes e “discípulos confessos” das
ideias de Farias Brito. Dentre estes, vale citar: Jackson de Figueiredo, que após
converter-se ao catolicismo exerceu expressiva liderança em movimento de
renovação católica de grande influência na vida política do país, sendo dele
Algumas reflexões sobre a filosofia de Farias Brito (Rio, 1916) e A questão social na
filosofia de Farias Brito (Rio, 1919); Nestor Vitor, Farias Brito (Rio, 1917); Almeida
Magalhães, Farias Brito e a reacção espiritualista (Rio, 1918).
• Retórica contrária
É da década de 1940 a reacção contra a sua cooptação pelo movimento de
renovação católica. Por um lado, a acusação de que, em meio à luta entre as
mentalidades conservadora e modernizadora, aparece, indesejável, “a figura de
24
Farias Brito a perturbar as forças em conflito. O manifesto que ele trouxe aos
homens é um manifesto de paz − de falsa paz − por um eclectismo filosófico que
em todos os tempos foi uma forma desprezível de filosofia” (Rabello, 1941). Por
outro lado, mas em consonância com a acusação anterior, a denúncia de que a obra
de Farias Brito, “bastante confusa, monótona e folhuda [...] melancólica e caliginosa
[...] seguiu sempre, muito de perto, as oscilações das nossas importações culturais.
Seus livros repetem ideias alheias, são melodias enfadonhas [...] E que estranho e
também paradoxal sintoma o haver sido Farias Brito considerado [...] pelos
integralistas, como o chefe espiritual da vaga ideologia, que essa doutrina
reaccionária pretendeu impor ao País! No entanto, talvez, houvesse razões para
isso” (Cruz Costa, 1955; 2ª ed., 1967). Para completar esse quadro negativo de sua
actividade filosófica, criou-se a imagem do homem “fracassado na política
republicana”, que “refugiou-se com o seu fraque preto e os seus bigodes tristes nas
indagações da filosofia. Espécie de escravo fugido das convenções e da rotina da
vida comum do seu País e do seu tempo, para instalar-se, aventurescamente mas
cheio de dignidade, nos altos de um Palmares não só de vida interior como de
ideias de reforma moral e até social da planície”, com a intenção perturbadora de
“sujeitá-la aos resultados da sua própria aventura intelectual impregnada de
messianismo” (Freyre, 1944).
• Reconhecimento crítico
Somente em 1962, por ocasião do IV Congresso Nacional de Filosofia (São
Paulo/Fortaleza), realizado pelo Instituto Brasileiro de Filosofia-IBF e dedicado,
por empenho de seu fundador, Miguel Reale, ao centenário do nascimento de
Farias Brito, promoveu-se o verdadeiro interesse filosófico na obra do tão polémico
filósofo nacional. Curiosamente, o reconhecimento da originalidade de seu
pensamento no Brasil deu-se a partir do estudo crítico feito por um estrangeiro.
Muito provavelmente por desconhecer as idiossincrasias da intelectualidade
brasileira, o norte-americano Fred Gillette Sturm, Ph. D. pela Universidade de
Columbia, professor visitante no Brasil durante a década de 50, falou sobre “os
motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito”, apresentando como tese a
ideia de que “há similaridades notáveis entre o pensamento britiano e dois
movimentos importantes no mundo filosófico contemporâneo”, referindo-se “à
filosofia existencialista e à fenomenologia”, e sustentando que “uma leitura nova
das suas obras seria interessante e proveitosa para aderentes destes dois
movimentos” (IBF, 1962: 89). Tal indexação da filosofia de Farias Brito ao
existencialismo e à fenomenologia de Husserl, muito apropriada à qualificação de
um precursor, por si só seria suficiente para salvar do limbo da cultura ocidental a
obra de um homem cujo “pecado original” foi colocar-se acima das disputas
ideológicas. Mas Fred Gillette Sturm não se restringiu à indexação, como se isso
pudesse prejudicar a visão do brasileiro em sua originalidade. Ele situou o autor
brasileiro no âmbito de uma problemática ocidental sem prejuízo de sua própria
origem, coisa que nenhum brasileiro reconhecera. Até então, a historiografia
25
filosófica brasileira praticamente definira Farias Brito como um metafísico alheio à
realidade cultural brasileira, atribuindo-lhe, quando muito, o crédito de ter
aprofundado o estudo da filosofia moderna, nos três volumes de Finalidade do
mundo, a partir das teses de Tobias Barreto (Carvalho, 1951; 2ª ed., 1977).
Esta edição
O mundo interior teve a sua 1ª edição no ano de 1914, no Rio de Janeiro, pela
Livraria da Revista dos Tribunais. Anunciado desde 1912, no volume de A base
física do espírito, com o nome de Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito, que
ficou como subtítulo entre parênteses, o texto da obra abrange dois livros: o
primeiro, As novas tendências do pensamento, em quatro capítulos; o segundo,
Questão fundamental: a “coisa em si” e os fenómenos, em oito capítulos. Em 1951 saiu a
2ª edição, com introdução de Barreto Filho, como parte da reedição de suas obras
filosóficas pelo Instituto Nacional do Livro do Ministério de Educação e Saúde,
então concluída em 1957 com o 3º volume de Finalidade do mundo. Para esta 3ª
edição, levamos em conta as duas anteriores. A digitação do texto deve-se ao Prof.
César de Araújo Fragale e a revisão final contou com a colaboração da mestranda
Rachel Helena da Silva Brito, ambos participantes no CEFIB. Desejo agradecer à
gentilíssima colaboração da Sra. Sulamita, neta de Farias Brito, que nos permitiu a
obtenção de cópias das primeiras edições. Por último, mas não menos importante,
desejo registrar, mais uma vez, o meu agradecimento ao Conselho Editorial da
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, através do Presidente da Casa, o Dr. António
Braz Teixeira, destacado pensador luso-brasileiro, que sempre reconheceu em
Farias Brito um filósofo de primeira plana.
Cronologia
1862 − 24 de julho, nascimento em São Benedito, Serra de Ibiapaba, Ceará;
1865 − a família migra para Alagoinha;
1870 − a família muda-se para a terra natal de seu pai Marcolino José de Brito,
Sobral, onde faz seus primeiros estudos;
1875 − Tobias Barreto publica Ensaios e estudos de filosofia e crítica;
1876 − inicia o curso médio no Ginásio Sobralense, onde alcança distinção em
língua francesa, latim e matemática;
1877 − por causa da grande seca deste ano, a família volta para Alagoinha reduzida
ao flagelo;
1878 − seu pai decide migrar com toda a família para a capital do estado, Fortaleza;
primeira edição de A filosofia no Brasil, de Sílvio Romero; publicação do manifesto
A Poesia de Hoje, de Sílvio Romero, prólogo de carácter cientificista ao seu próprio
livro de poemas Cantos do fim do século; Como tornar claras nossas ideias, de Peirce;
1880 − com a ajuda dos pais e com a remuneração obtida de aulas particulares de
matemática, conclui o curso médio em Fortaleza;
26
1881 − matricula-se na Escola de Direito do Recife, graças ao empenho da família: o
pai como porteiro no Ginásio Pernambucano; a mãe fornecendo pensões e
ocupando-se de engomados; o irmão empregado numa charutaria;
1882 − início do magistério de Tobias Barreto na Escola de Direito do Recife; A gaia
ciência, de Nietzsche;
1883 − Tobias Barreto publica a primeira série dos Estudos alemães; Assim falou
Zaratustra, de Nietzsche;
1884 − valendo-se da legislação da época, conclui, com um ano de antecedência, o
curso jurídico, não sem antes, entretanto, privar, durante dois anos, da renovação
de ideias promovida por Tobias Barreto; publicação de Menores e loucos, de Tobias
Barreto;
1885 − nomeado promotor em Viçosa, depois removido, a pedido, para Aquiraz;
também lecionava gratuitamente escrevia versos; Psicologia e metafísica, de
Lachelier;
1886 − envia, de Cascavel, comarca de Aquiraz, para o Libertador, jornal editado
em Fortaleza, uma série de artigos sob o título geral Estudos de filosofia, publicados
em julho e novembro do mesmo ano; Para além de bem e mal, de Nietzsche;
1887 − publicação de Discursos, de Tobias Barreto; Genealogia da moral, de
Nietzsche;
1888 − início de sua carreira política: secretário do presidente da Província do
Ceará; abolição da escravatura no Brasil; publicação de Questões vigentes de filosofia
e direito, de Tobias Barreto; início da publicação de A vontade de poder, de Nietzsche;
1889 − morte do governador do Ceará e interrupção da carreira política; viagem ao
Rio de Janeiro, com o intuito de fixar residência e estudar matemática superior e
mecânica na Escola Politécnica; fim da monarquia brasileira; publicação do volume
de poesias Cantos modernos, no Rio de Janeiro, onde assiste, entusiasmado, à
proclamação da república; sem recursos financeiros, volta para Fortaleza; segunda
edição, ampliada, dos Ensaios e estudos de filosofia e crítica, de Tobias Barreto;
falecimento de Tobias Barreto; primeira edição do Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência, de Bergson; O crepúsculo dos ídolos, de Nietzsche;
1890 − seu nome aparece como candidato a deputado federal sem que, entretanto,
o pleito eleitoral chegasse a realizar-se; criação do Ministério da Instrução, Correios
e Telégrafos; primeira edição de Os princípios da psicologia, de William James;
1891 − mais uma vez, secretário do governador do Ceará; primeira constituição
republicana, que estabeleceu a laicidade do ensino nas escolas públicas; organiza-
se o primeiro plano da instrução pública nacional, sob inspiração positivista,
dando-se maior importância ao ensino das ciências sob o método matemático-
experimental;
1892 − afastamento voluntário do Mal. Deodoro da Fonseca, primeiro presidente
da república, sob o pretexto de evitar a guerra civil, ocupando o poder o então
vice-presidente, Mal. Floriano Peixoto, que depôs todos os governadores
27
favoráveis a uma nova eleição; deposição do governador do Ceará, de maneira
sangrenta; Farias Brito refugiado: fim de sua carreira política;
1893 − primeiro casamento, em Fortaleza, com Ana Augusta Bastos; extinção do
Ministério da Instrução, transferindo-se os negócios da instrução pública para o
Ministério do Interior e Justiça; supressão da disciplina Filosofia do ensino médio
mediante execução da reforma, de cunho positivista, de toda a instrução pública
nacional; A psicologia das ideias-forças, de Fouillée;
1894 − terceiro tomo de O capital, de Marx;
1894-1895 − publicação de A filosofia como actividade permanente do espírito, primeiro
volume da obra anunciada sob o título geral de Finalidade do mundo; 1895 − morte
do primogénito do casal, Raimundo, com dez meses incompletos;
1896 − Matéria e memória, de Bergson;
1897 − morte de Ana Augusta, deixando como fruto do casamento uma menina
com alguns meses apenas;
1899 − A filosofia moderna, segundo volume da série Finalidade do mundo;
1901 − resolve fazer uma viagem à Europa. Já no Recife, desiste, seguindo então
para o Rio de Janeiro; voltando, repentinamente, a Fortaleza, chega a tempo de
assistir à morte do pai, não sem antes pedir-lhe o consentimento para casar-se
novamente; segundo casamento, em Fortaleza, com Ananélia Alves; As variedades
da experiência religiosa, de William James;
1902 − muda-se para Belém, capital do Pará; professor na Faculdade de Direito,
onde desenvolveu um programa no curso da disciplina Filosofia do Direito; artigos
publicados na Província do Pará contra o teor positivista dos ataques do Major
Gomes de Castro ao Pe. Júlio Maria, então conferencista em Belém; primeira edição
d’Os sertões, de Euclides da Cunha;
1903 − nomeado terceiro promotor público de Belém;
1905 − O mundo como actividade intelectual, terceiro volume da série Finalidade do
mundo; A verdade como regra das acções; O que é o pragmatismo, de William James;
1907 − A evolução criadora, de Bergson;
1908 − Boutroux publica Ciência e religião;
1909 − muda-se para o Rio de Janeiro; primeiro lugar no concurso para a cadeira de
Lógica no Colégio Pedro II, sendo nomeado, porém, Euclides da Cunha, então
segundo o colocado; com a morte de Euclides da Cunha, tragicamente, foi
efetivado no cargo mediante parecer de Sílvio Romero;
1912 − A base física do espírito; supressão das disciplinas Lógica, no Colégio Pedro II
(única instituição de cultura geral, criada desde a Independência até à República,
fundado em 1837), e Filosofia do Direito, nas faculdades de direito, mediante
execução da reforma nacional do ensino, de cunho positivista; primeira edição do
Eu, de Augusto dos Anjos, no Rio de Janeiro;
1914 − O mundo interior;
1916 − O panfleto, sob o pseudónimo de Marcos José; Algumas reflexões sobre a
filosofia de Farias Brito, de Jackson de Figueiredo;
28
1917 − falecimento de Raimundo de Farias Brito, a 16/01, no Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas
ANJOS, Augusto dos (2001). EU e outras poesias. Rio de Janeiro: Bertrand.
BARRETO, Tobias (1990). Estudos de filosofia. Introd. e notas de Paulo Mercadante e
António Paim; biobibliografia de Luiz António Barreto. In: Obras completas. Rio de
Janeiro: INL/Record.
BERGSON, Henri (1988). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa:
Edições 70.
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (1999).
Dicionário biobibliográfico de autores brasileiros. Salvador: Senado federal.
CERQUEIRA, Luiz Alberto (org.) (2000). Aristotelismo Antiaristotelismo Ensino de
Filosofia. Rio de Janeiro: Agora da Ilha.
______ (2001). Gonçalves de Magalhães e a ideia de filosofia brasileira. In: Factos do
espírito humano (3ª ed.). Lisboa: INCM.
______ (2001). A modernização no Brasil como problema filosófico. Impulso –
Revista de Ciências Sociais e Humanas, vol. 12, nº 29, 125-136. Piracicaba: UNIMEP.
______ (2002). Filosofia brasileira – Ontogénese da consciência de si. Petrópolis: Vozes.
COSTA, João CRUZ. Contribuição à história das ideias no Brasil. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1967.
DUARTE (D.) (1991).D. Duarte. Introd. e selecção de textos de Afonso Botelho.
Lisboa: Verbo.
FRANCA, Leonel (S. J.) (1955). A filosofia no Brasil. In: Noções de história da filosofia.
Rio de Janeiro: Agir.
FREYRE, Gilberto. (1944). Um Mestre sem Discípulos. Perfil de Euclides e outros
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HEIDEGGER, M.(1981). Kant et le problème de la métaphysique. Introd. e trad. de
Alphonse de Waelhens e Walter Biemel. Paris: Gallimard.
HUSSERL, E. (1950). Idées directrices pour une phénoménologie. Trad. Paul Ricoeur.
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______ (1959-1963). Recherches logiques. Trad. de Hubert Élie, com a colaboração de
Lothar Kelkel e René Schérer (04 vols.). Paris: PUF.
______ (1969). La filosofía en la crisis de la humanidad europea. La filosofía como
ciencia estricta. Trad. de Elsa Tabernig, com estudo introdutório de Eugenio
Pucciarelli (pp. 7-41). Buenos Aires: Nova.
______ (1996). A crise da humanidade europeia e a filosofia. Introd. e trad. de Urbano
Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS.
______ . Meditações cartesianas. Trad. Maria Gorete Lopes e Sousa. Lisboa: Rés, s.d.
______ (1994). Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad.,
introd. e notas de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
KANT, I. Critique of pure reason (Crp) (1988). Trad. de Norman Kemp Smith.
London: Macmillan.
29
MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de (2001). Factos do espírito humano (3ª
ed.). Reedição crítica de Luiz Alberto Cerqueira, contendo estudo introdutório e,
em apêndice, os seguintes textos: Discurso sobre a História da Literatura do Brasil;
Filosofia da Religião, sua Relação com a Moral e sua Missão Social; Discurso sobre
o Objecto e Importância da Filosofia; A Origem da Palavra). Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
RABELLO, Sílvio (1941). Farias Brito ou Uma aventura do espírito. Rio de Janeiro: José
Olympio.
ROMERO, Sílvio. A poesia de hoje. Cantos do fim do século. Rio de Janeiro:
Tipografia Fluminense, 1878.
VIEIRA, António. Sermões. Org. Alcir Pécora (2000-2001). São Paulo: Hedra.
Obras do autor
• Finalidade do mundo (Estudos de filosofia e teleologia naturalista), em três partes
correspondentes a 03 volumes. Primeira parte: A filosofia como actividade
permanente do espírito. Fortaleza: Tipografia Universal, 1895 (1894); Segunda
parte: A filosofia moderna. Ceará (Fortaleza): Tipografia Universal, 1899;
Terceira parte: O mundo como actividade intelectual, Livro I: Evolução e
relatividade (um segundo livro, previsto sob o título Força e pensamento ou
solução do problema da existência pela concepção do mundo como actividade
intelectual, jamais foi publicado). Pará (Belém): Livraria Universal, 1905a; 2ª
ed. de Finalidade do mundo, Rio de Janeiro: INL, 1957.
• A verdade como regra das acções. Pará (Belém): Livraria Universal, 1905b; 2ª
ed., Rio de Janeiro: INL, 1953.
• A base física do espírito (História sumária do problema da mentalidade como
preparação para o estudo da filosofia do espírito). Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1912; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1953.
• O mundo interior (Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito). Rio de
Janeiro: Revista dos Tribunais, 1914; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1951.
• Inéditos e dispersos − notas e variações sobre assuntos diversos, inclusive lista de
65 títulos dos textos conhecidos do autor. Compilação de Carlos Lopes de
Mattos. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1966.
Sobre o autor
CARVALHO, Laerte Ramos de (1977). A formação filosófica de Farias Brito. Tese de
doutoramento. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1951;
2ª ed., São Paulo: Saraiva/EDUSP, (208 páginas).
GUIMARÃES, Aquiles Côrtes (1984). Existência e verdade no pensamento de Farias
Brito. Dissertação de mestrado, 100 páginas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1977; publicada
sob o título Farias Brito e as origens do existencialismo no Brasil. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1979 (89 páginas); 2ª ed. revista e ampliada (67 páginas). São Paulo:
Convívio.
______ (1989). Brito, Raimundo de Farias. Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de
Filosofia, vol. I, 766-768. Lisboa: Verbo.
30
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  • 1. MATURIDADE DA FILOSOFIA BRASILEIRA: FARIAS BRITO (TEXTO COM ORTOGRAFIA PORTUGUESA) FILOSOFIA E PSICOLOGIA................................................................................01 O CONHECIMENTO DE SI COMO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA...........................05 A FILOSOFIA COMO CIÊNCIA RIGOROSA DO ESPÍRITO.................................13 O EU E SUA SOMBRA.......................................................................................16 CONCLUSÃO....................................................................................................24 FARIAS BRITO NA HISTORIOGRAFIA FILOSÓFICA BRASILEIRA.....................24 ESTA EDIÇÃO...................................................................................................26 CRONOLOGIA..................................................................................................26 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................29
  • 2. 2
  • 3. MATURIDADE DA FILOSOFIA BRASILEIRA: FARIAS BRITO Luiz Alberto Cerqueira* Cada filósofo sofre a influência da ciência especial a cuja inspiração preponderante obedece, mas sempre que se entrega à especulação filosófica propriamente dita, o que tem em vista e o que procura é interpretar o espírito. Farias Brito Filosofia e psicologia Fundada por Domingos José Gonçalves de Magalhães, com sua obra Factos do espírito humano1 , a filosofia brasileira se afirma em função do conhecimento de si como problema (Cerqueira, 2001: 7-41). Tal problema, evidentemente, não é exclusivo da filosofia no Brasil, senão da própria filosofia. Desde o “conhece-te a ti mesmo” socrático ao cogito cartesiano, passando pelo cogito agostiniano, toda a história da filosofia gira em torno ao conhecimento de si como o ponto crucial. Neste sentido, o nascimento da filosofia remonta aos gregos2 : antes de enunciar-se * O autor ministra cursos de filosofia brasileira na Graduação e na Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo o atual coordenador do Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB. URL: www.cefib.ifcs.ufrj.br E-mail: cerqueira@ifcs.ufrj.br 1 Primeira ed. em Paris, 1858; 2ª ed. no Rio de janeiro, 1865; 3ª ed. em Lisboa, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001. 2 No diálogo de Platão Alcebíades, ou da natureza do homem, Sócrates, depois de ressaltar a necessidade de buscar-se o “ ‘si mesmo’ absoluto” (131 c) que confere o caráter ontológico ao conhecimento de si mesmo, explica que “ao prescrever-se o conhecimento de ‘si mesmo’ o que se ordena é o conhecimento de nossa alma” (ibidem), a qual corresponde à consciência pura, e não à consciência empírica, na medida em que, para ele, o “si mesmo” consiste na parte da alma “em que nela se encontra sua faculdade própria, a inteligência” (134 a), a qual, não pertencendo a homem algum em particular, só pode ser uma condição prévia, divina, do eu moral e livre do mecanismo da própria natureza, de modo que “Mirando, pois, a divindade, nos servimos do melhor espelho das coisas humanas com relação à virtude da alma, e assim, nele, nos vemos e reconhecemos melhor a nós mesmos” (ibidem). Posteriormente, ao caracterizar a filosofia como o amor da sabedoria independente de qualquer necessidade material, de quaisquer fatores externos, Aristóteles reforçou a perspectiva do ideal platónico-socrático ao definir tal independência do amor da sabedoria como correlato da consciência absoluta, explicando que aqueles que “filosofaram para fugir da ignorância, é claro que buscavam o saber em vista do conhecimento, e não por alguma utilidade [...] Pois esta disciplina começou-se a buscar quando já existiam quase todas as coisas necessárias e as relativas ao descanso e ao ornato da vida. É, pois, evidente que não a buscamos por nenhuma outra utilidade, senão que, assim como chamamos homem livre aquele que é para si mesmo e não para outro, assim a consideramos como a única ciência livre, pois só é para si mesma” (Metafísica I, II; 982 b; grifos acrescentados). 1
  • 4. a necessidade da consciência de si como espírito − isto é, não como um corpo, nem como a vontade determinada pelas necessidades materiais, mas como inteligência e liberdade de acção − não havia o que se denominou filosofia. Entretanto, antes de enunciar-se essa necessidade de conhecimento, havia evidências de vida do espírito: havia costumes, crenças, religiosidade, manifestações artísticas. Em outras palavras, havia espírito, mas não havia aquela disciplina em função da qual se podia aspirar a uma vida rigorosamente regida pelas necessidades do espírito, como a verdade, a justiça, a beleza, que não podem ser conhecidas na experiência, senão pensadas como valores. Disso se segue que a vida do espírito é um facto evidente na história da humanidade; segue-se também que o conhecimento ou consciência de si como espírito, mediante a separação entre sujeito e objecto de conhecimento, é um fenómeno psíquico, o qual não se confunde com os fenómenos da natureza, situando-se o psíquico, em sua especificidade, para além dos limites da experiência. Quando se perde o sentido de transcendência e independência da vida psíquica em relação à experiência, disso resultando a perda de valores e a decadência da cultura, a filosofia só se renova mediante um único caminho: o retorno ao conhecimento de si como espírito. O exemplo historicamente mais próximo é a exigência do conhecimento de si inerente ao cogito cartesiano como ponto final do aristotelismo escolástico decadente e como princípio da modernidade. Mas essa exigência não é (insista-se nesse aspecto) exclusiva da nova era que se impõe, tampouco da modernidade,3 senão do que se chama a vida mesma do espírito. É neste sentido, que acabamos de explicar, que Farias Brito compreende a filosofia. Para ele, a filosofia nos tempos da modernidade não deve ser considerada senão em relação à ciência, mas somente na medida em que se considera a ciência um facto histórico resultante da actividade permanente do espírito: a filosofia é anterior à ciência e tem, por isso mesmo, um carácter pré-científico. Porém, quando se confunde a necessidade de autoconsciência com as necessidades históricas que dela resultam, a ideia de filosofia se empobrece e se reduz ao âmbito da nova era. É inegável que uma das maiores conquistas da humanidade, senão a maior de todas, é a ciência como se concebe desde a chamada revolução científica no século XVII. O advento da “ciência da natureza”, como resultado do desprendimento da razão pura, acrescentou à actividade do espírito uma exigência de rigor até então desconhecida no ensino da disciplina, de tal modo que, pela primeira vez, segundo a frase lapidar de Farias Brito, “a ciência, que é produto da filosofia, se faz, por sua vez, condição da filosofia” (Brito, 1912: I, VII). Ora, essa ideia da ciência como 3 Observe-se que a conversão cristã pressupõe o conhecimento de si na mesma perspectiva ontológica da tradição socrática, inclusive no que diz respeito à exigência de outra alma (o pregador, no âmbito da religiosidade cristã) como espelho. Ver, por exemplo, Santo Agostinho, Confissões VIII, V, 10-11; ver também o nosso Padre António Vieira, Sermão da Sexagésima (1655), quando esclarece: “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?”; no sermão As Cinco Pedras da Funda de Davi (1676), Vieira confirma a necessidade ontológica da consciência de si, ao afirmar que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”. 2
  • 5. condição da filosofia poderia ter uma significação meramente negativa quanto ao carácter transcendente do conhecimento de si, na medida em que a moderna ciência da natureza estabeleceu a experiência como limite de todo o conhecimento; mas, uma vez que Farias Brito leva em conta a esfera da “coisa em si” kantiana, a esfera do incognoscível, seu uso da palavra condição ganha uma significação positiva quanto à possibilidade metafísica de a razão transcender os limites da experiência sem entrar em contradição consigo mesma. Tal possibilidade diz respeito à intencionalidade da acção moral, livre, criadora, que envolve a vida do espírito do ponto de vista dela mesma considerada em si e não como fenómeno físico ou mesmo psico-físico. Portanto, do ponto de vista de uma exigência de rigor na actividade do espírito, o projeto metafísico de Farias Brito converge para Kant e sua Crítica da razão pura (Kant, Crp: BXXIV), de maneira que, ao contrário do que muitos imaginaram, quando viram Farias Brito usar “Estudos de filosofia e teleologia naturalista” como subtítulo de sua obra Finalidade do mundo, nosso autor jamais aderiu ao naturalismo, senão à atitude kantiana de aceitar o limite estabelecido pelo método da física como condição de toda a transcendência metafísica. Eis, portanto, em Farias Brito, o carácter transcendente da actividade do espírito que, a partir e em função da ciência como produto dessa actividade mesma, ele denominou “filosofia supercientífica”: “Particularizando-se na observação dos fenómenos, a filosofia produz as ciências [...] Mas com isto não fica terminada a sua obra [...] porque, partindo das ciências, eleva-se [...] a uma concepção do todo; por onde se vê que vai sempre além das ciências [...] É neste último sentido que a filosofia constitui o que eu chamo filosofia supercientífica” (Brito, 1912: 63). Ressalte-se, porém, que essa convergência para Kant nada tem a ver com qualquer espécie de kantismo, senão com os princípios da filosofia moderna defendidos por Kant. Para esclarecer o moderno sentido da relatividade do conhecimento, por exemplo, ele vai a Kant, como já o fizera Tobias Barreto: “É concepção mui comum na filosofia moderna, principalmente a partir de Kant, que nosso conhecimento das coisas só é possível através de certas ideias ou formas derivadas da constituição mesma de nosso espírito” (Brito, 1914: §39). Mas assim como vai a Kant para entender que a ideia de relatividade se impõe em função do sujeito pensante como princípio, dele se afasta pela mesma razão. Por que? Porque “Kant não foi um psicólogo” (Brito, 1912: §35). Kant não parte da consciência para explicar o conjunto das coisas, mas, pelo contrário, parte do conjunto das coisas para explicar a consciência: “considera-se em primeiro lugar o todo, para explicar, por dedução, o espírito, partindo, por via ontológica, de conceitos a priori” (ibidem). Desse modo, a psicologia, enquanto ciência do sujeito pensante, seria apenas o resultado das próprias condições do pensamento, correspondendo à ideia transcendental de unidade absoluta ou incondicional do sujeito pensante; seria apenas uma construção a que nada corresponde objectivamente; seria apenas “uma ilusão natural e inevitável” (Kant, Crp: A298), de tal forma que “o argumento referente à psicologia [...] com o qual se pretende provar o princípio da 3
  • 6. substancialidade da alma, partindo do cogito cartesiano, é simplesmente um paralogismo” (Brito, 1912: §35). Em conseqüência desse prejuízo da psicologia racional, Kant propõe uma psicologia empírica. Neste ponto, o filósofo brasileiro afasta-se inteiramente do filósofo alemão. Uma vez descartado o enfoque kantiano para a compreensão da dinâmica própria da consciência, seja numa perspectiva racionalista ou empirista, faz sentido uma interpretação de carácter existencialista avant la lettre, e nunca de carácter místico, quanto à preocupação britiana com a “região do mistério” que envolve a nossa existência porque “vegetamos na morte e temos nossas raízes no nada” (Brito, 1966: 398). Primeiramente, porque, para Farias Brito, em sintonia com a própria tradição filosófica brasileira, passando por António Vieira, Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, a consciência tem por base um corpo e se encontra em face do mundo. Neste aspecto, o uso da palavra natureza em Farias Brito se amplia para o significado do termo physis entre os pré-socráticos: “se na ordem da existência tudo se liga, tudo se prende, que há de estranho em que o espírito se ache ligado à natureza e deva ser explicado como um fenómeno da natureza, havendo mesmo uma ligação profunda e, até certo ponto, uma unidade fundamental entre o que se chama espírito e o que se chama matéria?” (Brito, 1912: §9º). Por outro lado, contra qualquer hipótese de misticismo, ele chama a atenção para o facto de que nunca propôs nenhuma “interpretação dos mistérios do ser por sugestão ou inspiração de algum poder sobre-humano”, uma vez que “para isto só posso contar com os recursos naturais da razão e os processos regulares da lógica. Raciocino sobre os dados que minha consciência recebe da impressão das coisas e dos factos: mas vou somente até onde a razão me leva” (Brito, 1966: 400-401). Essa preocupação existencial intrínseca ao projeto filosófico britiano, em virtude da qual ele entende que a morte é “o mistério dos mistérios”, perguntando- se “Que valor tem o todo para uma consciência que deve ter como certa a sua total extinção?”, essa preocupação existencial, bem como a relação que estabelece entre filosofia e psicologia, decorre de sua profunda adesão aos progressos da filosofia moderna. Tal adesão ele manifesta por meio de seus conceitos instrumentais de filosofia pré-científica e filosofia supercientífica: a ciência, com base no método matemático-experimental, visa o domínio do homem sobre a realidade circunscrita à natureza física; para além desse domínio, incluindo-o, a actividade filosófica, sem prejuízo de suas aspirações pré-científicas originárias (que seriam, em última instância, a organização da vida em bases racionais), visa o domínio da realidade como um todo, passando, então, a ter em vista exclusivamente o domínio do homem sobre si mesmo e sobre a sua própria acção no mundo da vida (Brito, 1912: I, X). O sentido dessa exclusividade, uma vez identificado com a necessidade de um método próprio para a actividade filosófica, pode ser esclarecido, com certeza, pela semelhança com a ideia de filosofia como ciência rigorosa em Husserl, para quem o carácter dominante da filosofia moderna está em “investigar cada vez mais profundamente seu próprio método” (Husserl, 1969: 43). 4
  • 7. Assim sendo, a afirmação, em Farias Brito, de que a ciência tornou-se condição da filosofia não significa ir ao encontro do naturalismo ou do espírito “positivo”, submetendo ao método experimental da ciência da natureza também a consciência, que passaria assim, como fenómeno da natureza e segundo uma causalidade mecânica, a constituir-se no objecto de uma psicologia “científica” ou “experimental”; nem quer dizer, como ainda hoje muitos propagam no magistério da disciplina Filosofia, que, depois da irrupção histórica da ciência, a filosofia estaria a sobreviver à custa das situações-limite que enfrentamos nos diferentes campos em que se dividiu o estudo da natureza. Simultaneamente a Husserl, e de maneira muito semelhante, Farias Brito fez a crítica da psicologia circunscrita aos limites da experiência e, na mesma medida, propôs uma psicologia transcendente desses limites para dar conta da dimensão metafísica da realidade. Farias Brito chegou a afirmar: “A filosofia é a psicologia, a ciência do espírito” (Brito, 1914: §5º), esclarecendo, porém, que a palavra psicologia, para além da sua significação ordinária, que diz respeito à análise da actividade psico-física, significa a indagação acerca da natureza do espírito de tal modo que, “considerando este não somente em sua função puramente humana, mas em sua significação mais geral, confunde-se com a metafísica e não só trata de descobrir a relação que há ou deve haver entre o espírito e o todo universal, como ao mesmo tempo procura interpretar o próprio todo universal” (idem: 38). Para o autor de A base física do espírito (1912), tanto quanto para o autor de Philosophie als strenge Wissenschaft (1910-1911), eis o grande perigo que vivemos no mundo moderno e que põe em risco a vida da própria filosofia: a incapacidade de perceber que a redução dos fenómenos psíquicos ao âmbito das ciências da natureza, sob o método experimental, não tem implicações apenas no mundo teórico, mas, sobretudo, no mundo da vida, o que quer dizer, em última instância, que essa redução tem a dimensão existencial de uma vida sem esperança, sem graça, sem poesia, de uma vida que “deve ter por objectivo a verdade e unicamente a verdade, por triste e desoladora que seja” (Brito, 1914: §1º). Estas são, em linhas gerais, as coordenadas para conferirmos à obra filosófica de Farias Brito não só uma posição de vanguarda no cenário filosófico ocidental, mas, especialmente, um sentido de “espiritualismo” ou “filosofia do espírito” que tem a sua origem na própria ontogénese da consciência de si no Brasil. O conhecimento de si como princípio da filosofia O que levou Descartes a introduzir, em suas Meditações, o cogito como princípio? Conforme seu próprio testemunho, uma vez convencido de que todo o conhecimento que ele mesmo recebera e fundara “em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto”, convenceu-se também da necessidade de “começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”. Eis, portanto, na Meditação Segunda, o princípio em função do qual todo o sujeito torna-se capaz de obter conhecimentos como uma experiência actual, e não apenas sob a forma passiva na 5
  • 8. qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma: “nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida”. Tal princípio, que envolve a separação entre sujeito e objecto de conhecimento, revela-se sob a forma da busca de conhecimentos objectivos orientada pela subjectividade em termos de alma, mente, razão, entendimento, inteligência, consciência, espírito ou pensamento. É do ponto de vista dessa orientação que não só se justifica a separação entre sujeito e objecto de conhecimento, que é só de razão, como também se justifica a necessidade de uma psicologia como tarefa filosófica. A mesma orientação (ainda que em vista da conversão religiosa) se encontra na cultura brasileira desde António Vieira. Este, como se sabe, é a mais conhecida e provavelmente a única expressão de um verdadeiro espírito pensante inteiramente formado sob o aristotelismo português no Brasil (Cerqueira, 2000: 217-233). Do ponto de vista do aristotelismo português, Vieira manteve-se alheio à “revolução científica” e ao discurso dos filósofos ditos modernos, tendo, inclusive, denunciado “as filosofias” e exortado os futuros missionários a deixarem os “estudos da Europa”. Entretanto, depois que ele esclareceu o sentido da conversão, no Sermão da sexagésima (1655): “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?”, é clara a sua preocupação em orientar- se pelo pensamento, à semelhança do que ocorre nas Meditações cartesianas. Isto é o que se verifica no sermão As cinco pedras da funda de Davi (1673), no qual proclama que “neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas acções é o conhecimento de nós mesmos”: As obras são filhas dos pensamentos; no pensamento se concebem, do pensamento nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam [...] Sendo [...] os pensamentos, e conceitos na mente do homem tantos, e tão diversos, justamente se pode duvidar de qual, ou quais dele sejam filhas as obras. Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou ideias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da ideia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo. No mesmo sermão, ele procura explicar a necessidade da conversão religiosa, ao vincar a ideia de que a alma busca a si mesma para desfazer-se de uma falsa imagem corpórea. Trata-se, portanto, de separar da consciência empírica a “limpa” consciência de si, universal e absoluta, como medida exclusiva do ser, em virtude da qual pôde o pequenino Davi enfrentar heroicamente o gigante Golias, conforme o exemplo de Vieira: “eu não faço comparação de mim ao Gigante, senão de mim a mim [...] Se Golias é Gigante, eu sou Davi”. Ora, neste sentido de medida, a consciência de si em Vieira é a mesma consciência de si inerente ao cogito cartesiano, porque é o único princípio de uma experiência actual 6
  • 9. de conhecimento que começa por si, contrariamente à ciência infusa, isto é a ciência adquirida passivamente, a qual, adverte Vieira, “ainda não basta”: Qual será logo no homem o limpo conhecimento de si mesmo? Digo que é conhecer e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma. O pó, o lodo, o corpo, não é eu; eu sou a minha alma: este é o verdadeiro, o limpo e o heróico conhecimento de si mesmo; o heróico porque se conhece o homem pela parte mais sublime; o limpo, porque se separa totalmente de tudo o que é terra; o verdadeiro, porque ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo, ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] Homem, se te ignoras, se te não conheces, sai fora. Eu bem sei que a causa de muitas ignorâncias é o não sair; o homem tanto sabe, quanto sai, e aqueles que não saíram, não sei como podem saber, se não for por ciência infusa, a qual ainda não basta. Esta orientação filosófica em Vieira é a mesma em Descartes. Entretanto, nem por isso deixaremos de observar no primeiro uma significação positiva da corporeidade que no segundo não se verifica. Por ser um autor essencialmente religioso, e não um filósofo, Vieira está preocupado exclusivamente com a dimensão prática da vida. Diferentemente, o autor do Discurso do método tem uma preocupação teórica, voltada para a fundamentação do conhecimento científico. Se em Descartes sobressai a idealidade da consciência de si como razão abstracta e atemporal em vista da necessidade de fundar o modo de conhecer introduzido pelos físicos modernos, em Vieira ressalta a necessidade da conversão a si mesmo e da pura contemplação como condição suprema para a libertação deste mundo de dor e de miséria. Contrariamente ao racionalismo da época, e à significação negativa da dicotomia mente/corpo,4 Vieira não concebe a “visão interior” de si mesmo sem o concurso da corporeidade. Isto porque, por um lado, essa visão, na medida em que exige o concurso do pregador como espelho,5 pressupõe o princípio aristotélico de que o homem é por natureza um animal social; mas também porque esse conhecimento, que exige antes “sair de si”, para depois “entrar em si”, pressupõe a definição aristotélico-cristã de que o homem é “animal racional mortal”6 , significando o acréscimo de mortal à definição aristotélica (que indica a propriedade pela qual a espécie humana supera, em essência, o género animal a que pertence) a primeira evidência de uma consciência existencial de que o 4 Quanto à significação negativa da separação entre sujeito e objecto de conhecimento, o próprio Descartes chama a atenção, em correspondência com o Padre Mersenne, para o facto de que o modo como ele procede à separação em suas Meditações tem o propósito de fazer conhecer que o eu que pensa é uma substância imaterial inteiramente separada do corpóreo. 5 “Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento” (Sermão da sexagésima, III). 6 Esta definição aparece, por exemplo, em São Bernardo (De consideratione II, IV) e no célebre Tractatus de Pedro Hispano (Tr. II). 7
  • 10. corpo serve ao conhecimento de si se e na medida em que a existência do espírito se funda individual e acidentalmente na corporeidade: Os Santos dizem, que para que o homem se conheça, há que entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma; Há de servir o corpo ao próprio conhecimento, como o aço no espelho serve à vista [...] de maneira que o mesmo que impede o conhecimento directo, serve ao conhecimento reflexo. (Ibidem; grifos acrescentados) Essa mesma consciência existencial inerente ao conhecimento de si pela conversão, como se verifica em Vieira, encontrar-se-á, no século XIX, em Domingos José Gonçalves de Magalhães. Já agora no âmbito da filosofia moderna, mas claramente a partir do cristianismo vieiriano, o corpo é uma das condições em virtude das quais o eu se torna um ente moral. Porque se é um facto que nem sempre eu mesmo sei se quero o que quero; se é um facto que o livre-arbítrio, no tanto quanto consiste igualmente no querer e no não-querer, corresponde às vezes à “indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão” (Descartes: Meditação Quarta); torna-se evidente, também como um facto, que é em virtude do corpo que o eu pensante não se reduz a uma idealidade alienante e se mantém inevitavelmente ligado ao mundo da vida: O corpo não nos foi dado como uma condição de saber e de querer, mas como uma sujeição que coarctasse esse poder livre, de que abusaríamos, chamando-nos à vida prática [...] Só com esta triste condição poderíamos ser entes morais. (Magalhães, 2001: 264; grifos acrescentados) O que convém ao corpo nos é anunciado pelos apetites e desejos periódicos, que não dependem de cálculo algum, e cuja satisfação natural nos dão prazeres, e pode dar-nos algum mérito, combatendo-os quando desordenados, e tendentes a embrutecer-nos. (Idem: 275; grifos acrescentados) Para Magalhães, a consciência de si é dada ao sujeito de maneira originária e absoluta não somente quanto à essência, mas também quanto à existência. Isto quer dizer: toda a consciência pressupõe algo transcendente (e, portanto, não imanente) de que se tem consciência. A consciência de si revela o espírito que já se conhece humano, isto é, dentro das condições reais (e não apenas ideais) da própria existência no mundo: “Essa consciência e liberdade lhe dão uma individualidade real, a posse de si mesmo, e ele diz eu, e realmente existe” (idem: 263). Fora do mundo das coisas, no qual a existência não é nunca requerida como necessária pelo próprio dado, não há consciência, “porque a consciência sou eu mesmo enquanto exercito um acto de consciência, e sem mim, sem esse acto de consciência, ela não está em ninguém, não é nada” (idem: 154; grifos acrescentados). Disso se segue que, estritamente em relação aos modos do ser, há dois absolutos: o espírito, que conhece a si mesmo no mundo das coisas, e o 8
  • 11. mecanismo das coisas no mundo.7 Se essa modalidade do ser como consciência individual livre não se desse correlativamente ao mecanismo de uma possível “sociedade de entes sem liberdade, sem virtudes nem vícios, sem bens nem males, todos de acordo e uniformes obedecendo a uma só vontade sempre justa” (idem: 265), a vida “seria impossível com a inteligência e a liberdade; porque bastariam estas duas condições para que cada indivíduo pensasse, discorresse, e quisesse ordenar as coisas a seu jeito; e [...] não haveria acordo, não haveria sociedade, seria a guerra o estado permanente” (ibidem). Moralmente falando, a consciência de si como liberdade não seria possível sem o mecanismo inerente à concepção da natureza como sendo “a existência das coisas enquanto determinadas por leis universais” (Kant, Prol.: §14); sem o empenho de si para executar aquilo que pela inteligência previu e pela vontade desejou; sem o sentido de “que só deixou de executar o que livremente quis, porque a execução depende de coisas estranhas à sua livre vontade” (idem: 266). Daí o pressuposto ontológico de uma sociedade de entes sem liberdade, aparentemente contrário à exigência cultural de liberalismo desde Locke e sua Carta sobre a tolerância (1689); daí a necessidade da fé, porque dependemos, em nossas vidas, de coisas estranhas à nossa livre vontade; daí a necessidade de Deus, cuja presença apreendemos pela fé e cuja natureza apreendemos pela glória. Ora, assim sendo, como, então, seria possível uma psicologia, uma ciência do espírito que adquire uma individualidade real e diz Eu, apossando-se do corpo que o mantém submetido à necessidade e à determinação universal das leis da natureza, sem prejuízo da liberdade? Tobias Barreto foi o primeiro a levantar essa questão no Brasil. Para Tobias, “desde Sócrates até os nossos dias, a consciência humana tem sido interpelada, e todavia as suas respostas ainda não enchem meia folha de verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos factos internos” (Barreto, 1990: 138; grifos acrescentados). Embora preocupado em combater os defensores da psicologia de feição racionalista, na linha do espiritualismo de Cousin e Jouffroy, então em voga no Brasil, o mestre do Recife também não encontrou nas objecções empiristas ao espiritualismo uma ideia convincente de psicologia como ciência, observando que a “psicologia empírica, a despeito de todas as suas descrições e pinturas do mundo subjectivo, ainda nada pôde levantar que seja traduzível em forma científica” (idem: 145). Contra racionalistas e empiristas, ele chama a atenção para a psicologia dos artistas: 7 “Quando digo que a razão me obriga a perceber os corpos no espaço, durando no tempo, e produzidos por uma causa substancial e necessária, não entendo que é só a minha faculdade de saber, a minha própria inteligência que não pode compreender as coisas de outro modo, porque esteja sujeita a certas leis, ou tenha ideias inatas dessas coisas; entendo que a razão, que a isso me obriga, é a realidade mesma das coisas necessárias que estão fora de mim, e distintas da minha faculdade de saber: a realidade das coisas de percepção e de razão é quem obriga o espírito a concebê-las como pode, e não as leis do entendimento quem obriga o espírito a pensar nelas.” (Magalhães, 2001: 215) 9
  • 12. Se não se admite que, em face desses painéis do mundo interno, o que nos impressiona é ainda o ideal, a força criadora do artista, o nosso entusiasmo não tem senso [...] desde Homero até o maior poeta dos nossos dias, o que distingue as criações do verdadeiro artista é o característico da impersonalidade [...] o que existe, por exemplo, de mais impessoal do que o teatro de Shakespeare? [...] Entretanto se diz que ninguém ainda se mostrou tão conhecedor do coração humano [...] O autor de Père Goriot, por exemplo, era mais que um psicólogo, era um grande fisiologista, que andava sempre em dia com a dinâmica mimosa do organismo feminino, cujos movimentos mais imperceptíveis ele sabia detalhar na figura das suas personagens. (Idem: 149-152) Tendo em vista a possibilidade de previsão científica dos factos em função de dados a priori, Tobias Barreto observa na psicologia “a falta absoluta de dados para se formarem exatas e profundas previsões”; tendo em vista o conhecimento científico das coisas em função das leis universais que definem a “natureza” dessas mesmas coisas, Tobias Barreto observa que “a psicologia não descobre uma só das leis que determinam a formação do indivíduo”; finalmente, ele conclui: Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da pessoa, e do carácter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa. Mas onde estão as induções científicas, feitas de modo que possam garantir nossos juízos sobre a marcha normal da personalidade alheia? Eu disse alheia; e pudera dizer própria. Todos nós sabemos, por experiência, que as mais das vezes, o que nos desarranja e nos perturba, no curso ordinário da vida é a ignorância de nós mesmos, da força de nossas paixões, ou da fraqueza de nossa vontade. (Idem: 153) O que é o eu, afinal, abstraído de sua singularidade, abstraído de suas intenções? O que resta do eu sem a singularidade do vivido, sem lembranças nem saudade? Segundo Augusto dos Anjos, o poeta do Eu, contemporâneo de Farias Brito e a mais vigorosa reacção estética contra o cientificismo no Brasil,8 “O 8 Quanto ao sentido metafísico da natureza, que se propõe para além do sentido físico inerente ao naturalismo, cabe aqui a inserção do nome de Augusto dos Anjos, cujo pensamento está em perfeita harmonia com o pensamento de Farias Brito, a quem dedicou o soneto Natureza Íntima: Cansada de observar-se na corrente Que os acontecimentos refletia, Reconcentrando-se em si mesma, um dia, A Natureza olhou-se interiormente! Baldada introspecção! Noumenalmente O que Ela, em realidade, ainda sentia Era a mesma imortal monotonia De sua face externa indiferente! E a Natureza disse com desgosto: “Terei somente, por ventura, rosto?! 10
  • 13. inventário do que eu já tinha sido/ Espantava. Restavam só de Augusto/ A forma de um mamífero vetusto/ E a cerebralidade de um vencido!”. Na mesma medida, Farias Brito manifestou-se contra a psicologia experimental e enveredou pelo conhecimento de si na perspectiva metafísica da “coisa em si” kantiana. Isto deveu-se, com certeza, ao magistério de Tobias Barreto na Escola do Recife, especialmente do ponto de vista da inadequabilidade do método experimental no âmbito da cultura, onde predomina a intencionalidade das acções livres.9 Farias Brito propõe uma psicologia transcendente para dar conta do espírito que, para além dos fenómenos físicos, não se circunscreve dentro dos limites da previsibilidade e não se deixa apreender pelos critérios de medida e repetição. O espírito, cuja presença desperta sempre admiração, mas nunca se experimenta em laboratório, tem, por isso mesmo, o seu ser fora de alcance dos métodos da experiência. Desse modo, ele se coloca, sem saber, ao lado de Husserl, para quem a “experiência não pode dizer-nos o que “é” o ser psíquico, no mesmo sentido válido para o físico. O psíquico não se experimenta como aparente; é o “vivido” e vivido contemplado na reflexão” (Husserl, 1969: 72). O eu analisado e descrito em laboratório existe, mas é despojado do vivido e da intencionalidade, da consciência enfim, e, por isso mesmo, “é” para a morte, como o eu descrito na poesia de Augusto dos Anjos10 ; contrariamente, a personagem de ficção não existe, mas “é” para a vida, como a Capitu de Machado de Assis, que é eterna. Farias Brito, como que completando o pensamento de Tobias Barreto, diz o seguinte contra a “psicologia morta” dos psicólogos modernos e a favor da “psicologia viva” dos artistas: Muito mais instrutiva é, de certo, a psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, é verdade, com personagens fantásticos, mas inspirados na observação dos factos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida, senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre das próprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos próprios sonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, a descrição viva e palpitante [...] um Hamleto, um rei Lear, o Tartufo de Molière, o Fausto de “Serei apenas mera crusta espessa?! “Pois é possível que Eu, causa do Mundo, “Quanto mais em mim mesma me aprofundo, “Menos interiormente me conheça?!” 9 “Determinemos melhor o conceito da cultura. O estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, como a sua inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não as modifica − esse estado se designa pelo nome geral de natureza [...] quando o homem inteligente e activo põe a mão em um objecto do mundo externo, para adaptá-lo a uma ideia superior, muda-se o estado desse objecto, e ele deixa de ser simples natureza [...] Mas o terreno em que se lança a boa semente, a planta que a mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem adestra e submete a seu serviço − todos experimentam um cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa uma mudança do natural, no intuito de faze-lo belo e bom.” (Barreto, 1990: 247) 10 “Eu, filho do carbono e do amoníaco...” (Anjos, 2001: 98). 11
  • 14. Goethe, têm mais vida e realidade que muitas figuras históricas de valor aliás não secundário [e agora citando argumento de Raul de Brugeilles] “O pai Goriot de Balzac é tão real quanto tal egípcio que vivia no tempo de Sesóstris [...] hoje sua existência não é mais real que a do egípcio?”. (Brito, 1914: §1º) Assim sendo, o que é, para Farias Brito, o espírito como princípio da filosofia? Correspondendo à tradição do pensamento brasileiro, não se trata do espírito inerente ao cogito cartesiano: “Eu penso − eis para mim a primeira verdade [...] Não se deve, porém, dizer como Descartes: eu penso, logo existo − cogito, ergo sum. Deve-se ao contrário dizer: eu penso, logo existe meu pensamento. E se existo, é porque sou capaz de pensar, e minha existência não consiste em outra coisa, senão em meu pensamento. E se me tornar incapaz de pensar, perdendo totalmente a consciência, cessarei de existir” (Brito, 1914: §75). Tal observação crítica tem como alvo a interpretação material da forma condicional “se... então” inerente ao “penso, logo existo”. Do ponto de vista dessa interpretação, o cogito contém a percepção de uma existência: se penso é porque necessariamente existo e, neste sentido, a verdade se fundamenta logicamente na existência do sujeito, isto é no fato observável de que ele está fisiologicamente activo, e não no conhecimento de si como espírito ou pensamento. Contrariamente, para Farias Brito o verdadeiro progresso da filosofia moderna tem uma dimensão metafísica, para além da mera constatação lógica no âmbito da experiência, segundo a qual a verdade se fundamenta no acto de pensar, de modo que se se perde a consciência de si o sujeito pode manter-se fisiologicamente vivo, mas psiquicamente morto. E é justamente em função dessa dimensão metafísica do conhecimento de si que vive o eu, de modo que, para enfatizarmos a significação existencialista da observação britiana, não parecerá extravagante se dissermos que o eu está realmente morto, não simbolicamente ou “em certo sentido”, ou “como se estivesse”, mas literalmente morto se perde a consciência de si. Para além do movimento mecânico dos corpos explicado pela física em função de uma “força estranha” ao sujeito, Farias Brito, uma vez beneficiado pela distinção de Tobias Barreto entre natureza e cultura, concebe o movimento da vida, envolvendo ideias, intenções e sentimentos próprios, a liberdade enfim, como sendo um movimento gerado pelo pensamento ou espírito enquanto uma outra forma daquela mesma força que, já agora, o ser humano conhece directamente no conhecimento de si: [Do ponto de vista físico] sempre que um corpo se move, é impelido por algum corpo anterior em movimento, quer dizer: obedece à acção de uma força estranha [...] só conhecemos a força em seus efeitos exteriores, ou por outra, como movimento. E isto significa que só conhecemos a força em sua aparência material, como movimento ou como corpo deslocando-se no espaço: o que quer dizer precisamente que só conhecemos a força como fenómeno, jamais como “coisa em si”. [Mas do ponto de vista metafísico, há] uma força que conhecemos por outra forma, que, conhecemos, por assim dizer, directamente e face a face, ou mais precisamente, que conhecemos em 12
  • 15. sua significação interna. É a que reside em nós. E esta é de natureza intelectual, pois o que nos determina a agir, são necessidades de que temos consciência, são fins que temos em vista realizar; logo, ideias. E a força que reside em nós e pela qual nos movemos é, de facto, o pensamento. (Idem: §78) A filosofia como ciência rigorosa do espírito [...] entendo por espírito a energia que sente e conhece, e se manifesta, em nós mesmos, como consciência Farias Brito A compreensão de que a filosofia, pela origem e pela essência, deve orientar- se para uma ciência rigorosa do espírito, justifica a indignação de Farias Brito contra o rumo que tomou a psicologia na era moderna após as intervenções de Kant e de Comte: “Ambos se colocaram, com relação à psicologia, na atitude da impugnação e do combate. Ora, a filosofia que começa a constituir-se, e que tem de dominar o futuro, é precisamente a psicologia. Isto significa que Kant e Augusto Comte são pensadores que pertencem inteiramente ao passado, que representam a filosofia morta, e já não podem, por isto, ser tomados em consideração senão por sua significação histórica” (Brito, 1912: §34). Quase surpreendente o desassombro de Farias Brito, se considerarmos que seu antigo mestre na Escola de Direito do Recife, Tobias Barreto, se confessava “agarrado ao manto de Kant”. Hoje sabemos, entretanto, que essa reacção contra a redução da psicologia ao âmbito do espírito “positivo” começou com Gonçalves de Magalhães, para quem a “base e o ponto de partida de todas as ciências filosóficas é a psicologia [...] A psicologia lhes dá o elemento subjectivo” (Magalhães, 2001: 65); para quem os “frenologistas modernos, sucessores do célebre Gall,” nada provaram “contra a existência de uma alma indivisível, simples e idêntica” (idem: 88); para quem argumentou de maneira conclusiva: “Acima da frenologia está a consciência” (idem: 89). O facto, entretanto, é que uma vez fora de combate a psicologia racional,11 Kant 11 Um breve retrospecto do problema: Hume argumentara que o mundo que conhecemos consiste unicamente em impressões sensíveis, não havendo, pois, além delas, nenhuma substância exterior ou interior, de modo que nem as sucessões externas nem a sucessões internas justificariam a necessidade quer de uma “matéria”, que lhes servisse de causa, quer de um “eu” ou “substância pensante” que servisse de fundamento para os estados de consciência; tanto de um lado como de outro, haveria apenas uma sucessão indefinida de fenómenos, e se os fenómenos se ligam a um substrato permanente, em função do qual são compreendidos como manifestações ou efeitos, isto se explica, segundo Hume, pela tendência natural que temos de ligar cada coisa a outra coisa, isto é, simplesmente por efeito do hábito, e não por uma “lei de causalidade”; esta, mesmo mantida e justificada por Kant no âmbito de sua teoria da idealidade, não serve como prova, do ponto de vista do método matemático-experimental, para a realidade de qualquer substância, quer de ordem material, quer de ordem psíquica. 13
  • 16. efectivamente cogitou de uma psicologia empírica,12 e, muito provavelmente, seu enorme prestígio no século XIX foi razão suficiente para que o nome de Gall (1758- 1828), criador da famigerada frenologia,13 fosse chamado pelos filósofos do “espírito positivo", como Augusto Comte, a representar um papel de fundador que jamais lhe coube. Observa Farias Brito que, em sua classificação hierárquica das ciências, o fundador do positivismo evita o uso simples da palavra psicologia, distinguindo os assumptos pertinentes com os títulos “teoria positiva das funções afectivas e intelectuais”, “psicologia cerebral”, ou ainda, de preferência, “fisiologia frenológica” (Brito, 1912: §36). Mas o que é, afinal, a psicologia, para Farias Brito? Eu chamo psicologia a ciência do espírito, e entendo por espírito a energia que sente e conhece, e se manifesta em nós mesmos, como consciência [...] É essa energia em nós uma manifestação particular da matéria? Pouco importa. Nessa manifestação particular a matéria adquire caracteres especiais que a constituem um princípio à parte e sui generis, que é o ponto de partida para uma série de fenómenos que são essencialmente distintos dos fenómenos da matéria [...] Sob esse ponto de vista, tanto importa considerar o espírito como uma substância independente, ligada apenas acidentalmente à matéria, como considerá-lo como fenómeno da matéria, ou mesmo como simples epifenómeno. De toda a forma há no espírito modalidades especiais da realidade, um poder agente e real, vivo e concreto, que não somente sofre a acção dos elementos exteriores, como ao mesmo tempo é capaz de agir sobre eles: um princípio vivo de acção, capaz de modificar [...] a ordem da natureza, capaz de dominar-se, capaz de exercer domínio sobre as coisas: uma força criadora. (Brito, 1914: §3º). Ora, com base no modelo de explicação causal, mecânico, a psicologia científica ou experimental, embora seja da maior utilidade na medida em que dá conta da natureza fisiológica do psíquico, isto é, na medida em que dá conta da base física do espírito,14 não dá conta do espírito como princípio de acção, isto é, 12 “Se o fundamento do nosso conhecimento racional puro dos seres pensantes em geral fosse algo mais do que o cogito, se nos socorrêssemos também das observações acerca do jogo dos nossos pensamentos e das leis naturais do eu pensante, que daí se extraem, resultaria então uma psicologia empírica, que seria uma espécie de fisiologia do sentido interno e talvez pudesse explicar os fenómenos deste” (Kant, Crp: A347). 13 A doutrina da frenologia baseia-se no princípio de que, tendo as faculdades da alma a sua sede no cérebro, se podem reconhecer as diferentes disposições e tendências de cada indivíduo pelas bossas ou protuberâncias, e depressões, que se notam no crânio. 14 “Feitas [...] as necessárias rectificações, a psicologia fisiológica deve ficar; mas não como interpretação da fenomenalidade psíquica, isto é, como solução do problema psíquico pela fisiologia, e sim como estudo especial de uma secção particular da realidade, isto é, como estudo dos órgãos dos sentidos e das sensações. Será uma ciência intermediária entre a fisiologia e a psicologia, como era a ideia primitiva de Wundt. E esta ciência, por não tratar dos fenómenos psíquicos propriamente ditos, mas apenas dos órgãos a que esses fenómenos se ligam, não deixa de ser útil como estudo de uma parte importante do organismo, e deve ser cultivada, não só no interesse do naturalista ou do antropologista, como ainda no interesse médico. É um estudo propriamente fisiológico, não psicológico, e nele poderá o sábio utilizar-se de todos os processos e 14
  • 17. não dá conta da intencionalidade da consciência, que é o modo de relação de toda a consciência ao seu conteúdo à maneira de um a priori.15 É justamente do ponto de vista da intencionalidade da consciência que, segundo as palavras de Farias Brito, “a matéria adquire caracteres especiais que a constituem um princípio à parte e sui generis, que é o ponto de partida para uma série de fenómenos que são essencialmente distintos da matéria”. Neste sentido, deve entender-se “a matéria como fenómeno do espírito” (Brito, 1914: §78), isto é, mediante a intervenção da inteligência e da vontade os corpos ganham “alma”, a começar pelo próprio corpo; os corpos ganham significado, adquirem valor como sendo “verdadeiros”, “bons” e “belos”, constituindo-se, assim, o mundo da cultura, o mundo da vida. Tais são os objectos culturais por oposição aos objectos em estado de natureza (como diria Tobias Barreto) ou meramente materiais. Ora, a psicologia científica, na medida em que se restringe a uma explicação fisiológica do comportamento humano, deixando de lado a sua significação moral, é uma “psicologia sem alma” (idem: §1º); no mesmo sentido em que Husserl diz que “a psicologia contemporânea já não quer ser a ciência da ‘alma’ ” (Husserl, 1969: 66). Eis, portanto, em última instância, a razão pela qual, de acordo com o filósofo brasileiro, a chamada psicologia científica ou experimental do mundo moderno impõe um grave prejuízo à filosofia enquanto princípio de todo o ideal científico: ela se propõe, de um ponto de vista psicofísico, tratar “a consciência ou o eu como energia pensante” ao nível de fenómeno da natureza (idem: §70), isto é, propõe-se “localizar o que é independente do espaço e não se pode conceber como corpo, traduzir na linguagem dos fatos objectivos o que só se pode explicar e compreender como modificação puramente interna, como fato subjectivo, numa palavra: objetivar a consciência” (idem: §1º). Neste mesmo sentido, Husserl faz uma objecção fundamental ao espírito naturalista: como desconsiderar o fato de que o método da psicologia não pode ser o mesmo da ciência da natureza, uma vez que esta, por princípio, se propõe a eliminação das qualidades secundárias e a exclusão dos métodos da análise fisiológica, sem excluir a experimentação [...] É o que poderia chamar-se a indagação da base física do espírito” (Brito, 1912: §71). 15 Segundo Husserl, “existem variedades específicas essenciais da relação intencional, ou, em suma, da intenção (que constitui o carácter genérico descritivo do “acto”). O modo segundo o qual uma “simples representação” de um estado de coisas visa esse “objecto”, que é o seu, é diferente do modo do juízo que considera esse estado de coisas como verdadeiro ou falso. Completamente diferentes são, por sua vez, o modo da suposição e da dúvida, o modo da esperança ou do temor, o modo da satisfação e do desprazer, do desejo e da repugnância, da decisão perante uma dúvida teórica (decisão judicativa) ou de uma dúvida prática (decisão volitiva, no caso de uma escolha deliberada) [...] Decerto, a maior parte dos actos, se não todos, são vividos complexos e as suas próprias intenções, muito frequentemente, múltiplas. Intenções afectivas têm como base intenções de representações ou de juízos, etc. Mas não há dúvida de que, quando decompomos estes complexos, chegamos sempre a caracteres intencionais primitivos que não podem reduzir-se, quanto à sua essência descritiva, a vividos psíquicos de outro tipo; e não há, de novo, dúvida de que a unidade do gênero descritivo “intenção” (“carácter de acto”) apresenta diversidades específicas fundadas na essência pura deste gênero e precede, assim, a facticidade psicológica empírica à maneira de um a priori” (Husserl, 1963: 168-171). 15
  • 18. elementos puramente subjectivos do fenómeno para reter as qualidades primárias que ficam e, assim, buscar a natureza que nela se apresenta, enquanto que, contrariamente, “tudo o que no sentido mais amplo da psicologia chamamos fenómeno psíquico é, considerado em si mesmo, precisamente fenómeno e não natureza” (idem: 71-72), razão pela qual, “seguir o modelo da ciência da natureza implica quase inevitavelmente coisificar a consciência” (ibidem: 69). Desse modo, concomitante e paralelamente a Farias Brito, Husserl faz a crítica da psicologia e propõe uma “fenomenologia da consciência” em oposição a uma “ciência natural da consciência” (idem: 59). Eis como Husserl concebe o ser psíquico: A experiência não pode dizer-nos o que “é” o ser psíquico, no mesmo sentido válido para o físico. O psíquico não se experimenta como aparente; é o “vivido” (Erlebnis) e o vivido contemplado na reflexão; aparece como individualidade por si mesmo em um fluir absoluto, ora como sendo, ora como “deixando de ser”, voltando a cair continuamente de modo visível em um ter sido. O psíquico também pode ser recordado e, deste modo, algo experimentado de maneira um pouco distinta; e no “recordado” está o “ter sido percebido”. Pode ser recordado “reiteradamente”, nas recordações que estão reunidas em uma consciência que se apercebe de que as recordações mesmas são evocadas de novo ou então retidas. Nesta conexão, e exclusivamente nela, como o idêntico de tais repetições, o a priori psíquico pode ser “experimentado” como ente e identificado [...] É um fluir de fenómenos ilimitado por ambos os lados, com uma linha intencional contínua, que é como se disséssemos o índice da unidade que penetra tudo, isto é, a unidade do “tempo” imanente, sem começo e sem fim, tempo que não se mede com nenhum cronómetro. (idem: 72-73) O eu e sua sombra A passagem dos séculos me assombra. Para onde irá correndo minha sombra Nesse cavalo de eletricidade?! Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: − Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? E parece-me um sonho a realidade. Augusto dos Anjos Pode-se [...] dizer que do tempo nada se perde porque o passado é presente no presente; ou melhor, o presente não é senão o passado agindo. Farias Brito 16
  • 19. Ao final do século XIX, o que se observa no cenário filosófico ocidental é, mais uma vez, o retorno à consciência de si, mas de uma maneira diferente do que resultou do cogito cartesiano. Deste resultou um sujeito epistémico, envolvendo o princípio da relatividade do conhecimento, no sentido de que o objecto de conhecimento vem do sujeito cognoscente, e não da experiência. Uma vez estabelecido esse princípio, ao longo de mais de um século de resistência ao “espírito novo”, “moderno”, e restabelecida por Kant a originária aspiração grega de conferir um carácter racional ou científico a toda a vida humana (o que, do ponto de vista da physis, inclui, para além da dimensão física, a dimensão metafísica da realidade), tornou-se necessário discutir a vigência do princípio da relatividade na acção moral e, em conseqüência, na actividade estética. Farias Brito chama a atenção para essa necessidade, ao advertir que “o momento é de renovação e reconstrução [...] o momento é de revigoramento moral, sendo certo que a época de demolição e desmoronamento chegou a seu termo e um ideal novo anuncia as aproximações de sua entrada no mundo” (Brito, 1914: §7º). Para ele, se o homem moderno, consciente de si como força ou energia, é aquele que tornou-se capaz de exercer um domínio sobre as coisas, tal domínio deve começar por si mesmo. Esta ideia, verdadeiro motor do pensamento britiano, não foi importada. Ela já aparece claramente em Tobias Barreto16 , como aparece de maneira infusa no romance de Machado de Assis e na poesia de Augusto dos Anjos. Mas a ideia de que a mesma força ou energia, que do ponto de vista da ciência física só se conhece externamente como movimento ou como corpo deslocando-se no espaço, revela-se internamente como consciência, ele encontrou-a em Bergson. É notável em Farias Brito a assimilação das ideias de Bergson. Referimo-nos especialmente àquelas apresentadas no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889). Pondo-se de acordo com o francês, o brasileiro entende que “não basta indagar se o conhecimento das coisas depende da constituição de nosso espírito”, na perspectiva do criticismo de Kant (Brito, 1914: §39). Para além da teoria da idealidade e subjectividade do espaço e do tempo, “é preciso verificar se o conhecimento do eu e da consciência, por sua vez, não sofre a influência das coisas” (ibidem). Para compreendermos o sentido desta questão, torna-se fundamental considerarmos a passagem em que Bergson distingue o “eu interior” em si considerado como um absoluto, “o que sente e se apaixona, o que delibera e 16 “Quer o homem seja, conforme a velha definição, um animal racional, um animal que pensa, quer se chame um animal que faz trocas, ou um animal que reza, ou [...] um animal que cozinha [...] seja como for, o certo é que cada uma dessas definições indica alguma coisa de contrário e superior à pura animalidade, marcando assim um momento da evolução cultural do mesmo homem. Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro característico do ente humano, que todas aliás pressupõem, com excepção talvez da primeira, por isso mesmo a menos aceitável, isto é, nenhuma delas envolve a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as próprias acções, sujeitando-as destarte a uma norma de proceder. Nem pensar, nem trocar, nem rezar, nem cozinhar − nada disto exclui, por si só, a ferocidade original. Quem, pois, definisse o homem − um animal, que prende-se, que doma-se a si mesmo − daria por certo a melhor definição [...] O indivíduo prendendo-se a si mesmo − é o puro domínio da moral”. (Barreto, 1990: 307) 17
  • 20. se decide [enquanto] força cujos estados e modificações se penetram intimamente” (Bergson, 1988: 88), do eu fenoménico e mundano resultante do facto de que “o nosso eu toca no mundo exterior superficialmente; as nossas sensações sucessivas, embora apoiando-se umas nas outras, conservam algo da exterioridade recíproca que caracteriza objectivamente as suas causas” (ibidem). O eu adquire, assim, a sua sombra. E é reduzido à sua sombra que o eu se torna objecto de conhecimento científico segundo o modelo da “ciência da natureza”. Entretanto, se o “eu mais profundo não faz senão uma única e mesma pessoa com o eu superficial” (ibidem), como, exactamente, se perde a consciência de si como sendo essencialmente força, energia? Bergson explica que é por meio da palavra enquanto meio de comunicação e de formação do senso comum: [...] na realidade, não há nem sensações idênticas, nem gostos múltiplos: é que sensações e gostos surgem-me como coisas a partir do momento em que os isolo e nomeio [...] O que se deve dizer é que toda a sensação se modifica ao repetir-se e que, se não me parece mudar de um dia para o outro, é porque dela me apercebo agora através do objecto que lhe serve de causa, através da palavra que a traduz. A influência da linguagem sobre a sensação é mais profunda do que normalmente se pode pensar. Não só a linguagem nos leva a acreditar na invariabilidade das nossas sensações, mas induzir- nos-á em erro, por vezes, quanto ao carácter da sensação experimentada [...] a palavra em bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impessoal nas impressões da humanidade, esmaga ou, pelo menos, encobre as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual [grifos acrescentados]. Para lutar com armas iguais, estas deveriam exprimir-se por palavras precisas; mas as palavras, logo que formadas, voltar-se-iam contra a sensação que lhes deu origem, e inventadas para testemunhar que a sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade. Em nenhum lado é tão flagrante este esmagamento da consciência como nos fenómenos do sentimento [...] O próprio sentimento é um ser que vive, se desenvolve e, conseqüentemente, muda sem cessar [...] Mas vive porque a duração em que se desenvolve é uma duração cujos momentos se penetram: ao separarmos estes momentos uns dos outros, ao desenrolarmos o tempo no espaço, fizemos perder a este sentimento a sua animação e cor. Eis-nos, pois, perante a sombra de nós mesmos [grifos acrescentados]: julgamos ter analisado o nosso sentimento, mas, na verdade, substituímo-lo por uma justaposição de estados inertes, traduzíveis por palavras, e que constituem cada um o elemento comum, conseqüentemente, o resíduo impessoal, das impressões experimentadas num determinado caso pela sociedade inteira. (Idem: 91-93) Portanto, em resposta à questão visada por Farias Brito − se o conhecimento do eu não sofre a influência das coisas −, devemos destacar o facto de que o carácter arbitrário em que consiste o valor lingüístico da palavra, em função do qual ela se torna impessoal e nela se perdem a intensidade, a diversidade e o 18
  • 21. colorido de que se revestem as sensações pessoais, desenvolveu-se a par de uma “consciência reflexa” como um eu inteiramente superficial, homogéneo e indiferente à multiplicidade dos estados de consciência. Isso transparece sempre e quando nos orientamos apenas pela exigência de objectividade na comunicação necessária à vida cotidiana,17 valendo-nos do facto de que as palavras, por convenção, têm um sentido literal e querem dizer algo a priori. Tal espírito objectivo no falar impede que a diversidade dos estados de consciência apareça. E é dessa forma que, segundo Bergson, a palavra “esmaga [...] as impressões delicadas e fugitivas da nossa consciência individual”18 . Mas esse mesmo valor lingüístico da palavra não impede que justifiquemos o uso estético da linguagem em função da energia vivida nas sensações. Com arte superamos esse espírito objectivo sem prejuízo do sentido literal, porque, neste caso, somos nós essencialmente a querer dizer, por meio da obra, o que as palavras dizem. Referindo-se especialmente às obras literárias, Farias Brito diz que em nós o espírito se revela como sendo “esse elemento oculto, misterioso, inexplicável, pelo qual a obra de arte nos impressiona docemente, fazendo sonhar e ver coisas longínquas, esse poder maravilhoso e incompreensível, com que as coisas mais simples fazem, muitas vezes, surgir, como de improviso, sentimentos estranhos que dormiam ignorados nas profundezas d’alma” (Brito, 1914: §1º). Desse modo, a consciência de si revela-se pela via estética como um sentido que vem da sensibilidade (e assim sinto-me realmente vivo), e não da razão, como seria o caso se prevalecesse o ponto de vista da comunicação. Reformulada, a questão britiana poderia adquirir uma outra forma − “Em que circunstância alguém diz sentir-se realmente vivo?”. Na primeira parte do primeiro volume de sua famosa À la recherche du temps perdu, Marcel Proust, como que respondendo à provocação de Bergson19 , fala da 17 Ver, por exemplo, Nietzsche, A gaia ciência, §354: “Se as nossas acções, pensamentos, sentimentos e movimentos chegam − pelo menos em parte − à superfície da nossa consciência, é o resultado de uma terrível necessidade que durante muito tempo dominou o homem, o mais ameaçado dos animais: tinha necessidade de socorro e de protecção, tinha necessidade do seu semelhante, era obrigado a saber dizer essa necessidade, a saber tornar-se inteligível; e para tudo isso era necessário, em primeiro lugar, que tivesse uma “consciência”, que “soubesse” ele próprio o que lhe faltava, que “soubesse” o que pensava [...] o pensamento que se torna consciente representa apenas a parte mais ínfima, digamos a mais superficial, a pior [...] porque só existe o pensamento que se exprime em palavras, quer dizer, em sinais de trocas [...] Em resumo: o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), estes dois desenvolvimentos caminham a par”. 18 No filme The age of innocence (1993), baseado na obra homónima de Edith Wharton, Martin Scorcese realizou plenamente, do ponto de vista de diálogos, imagens, cenas e situações, esse sentido do “espírito objectivo” em razão do qual o “bom” senso é não quebrar as regras, garantindo assim as conveniências e a “boa” aparência de uma vida sem necessidades materiais, mesmo ao preço de viver à sombra do próprio eu. 19 Referindo-se ao facto de que as palavras desenrolam as impressões mais íntimas, como os sentimentos, num tempo indiferenciado, homogéneo, em que, de certo modo, tudo é percebido sob uma lógica simples como sendo agora, e que exactamente por isso os sentimentos se manifestam sem a sua animação e cor próprias, Bergson faz a seguinte provocação: “Se agora algum romancista 19
  • 22. memória intelectual, que corresponde ao poder universal de trazer à consciência os factos constituintes do próprio passado, mas não como algo ainda vivo, e sim como algo remoto que não é mais, como algo morto; mas fala também do fluxo contínuo de memória que, independentemente da inteligência e da vontade, faz do vivido a própria consciência. Nesse fluxo independente do vivido consiste o eu profundo como energia: [...] levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo [grifos acrescentados]. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? [...] Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar [...] Explorar? Não apenas explorar; criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz [...] de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray [...] minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto [...] E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava [...] eis que a velha casa cinzenta, de facha da para a rua, onde estava o seu quarto, veio aplicar-se, como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos da mesma [...] e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite, por qualquer tempo, a praça [...] as ruas [...] as estradas [...] todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e as igrejas e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá. (Grifos acrescentados) Antes mesmo de Proust, Machado de Assis, a partir de suas Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), refere-se à evidência dessa verdade, a saber: que o eu audacioso, rasgando o véu habilmente tecido do nosso eu convencional, nos mostrar sob esta lógica aparente uma absurdidade fundamental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração infinita de mil impressões diversas que já deixaram de o ser na altura em que os nomeamos, louvamo-lo por nos conhecer melhor que nós próprios [...] Encorajados por ele, afastamos por momentos o véu que interpúnhamos entre a nossa consciência e nós mesmos. Pôs-nos na presença de nós próprios” (idem: 93). 20
  • 23. vive à própria sombra. No Dom casmurro (1899), sua intenção com a narrativa, declara-o de início através do protagonista, “era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”, como se o eu, do ponto de vista da duração, consistisse numa sucessão de estados de consciência, de modo que fosse possível encontrar o elo perdido entre a velhice e a adolescência. Mas desde logo confessa o seu fracasso em restaurar os próprios estados de consciência: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente”. Ao rebuscar na memória o momento em que ele, adolescente, beija a Capitu e, atordoado, volta para sua casa; depois, na cena seguinte, em que ele, ainda afogueado, repete a si mesmo, três vezes, “Sou homem!”, expressando assim o sentido da energia que, pela primeira vez, toma conta de seu corpo, a sensação de força, de alegria, de prazer, enfim, de descobrir- se a si mesmo a partir das próprias sensações como sendo um, único e exclusivo, ele, já velho, reconhece o vivido como sendo o conteúdo próprio da consciência20 , em virtude da qual todo o homem se torna consciente de si como sendo ele mesmo criador de vida, independentemente de manter-se em dívida e obrigação quanto à própria criação: Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição; sentei-me na cama, recordando [...] Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos em que perdia a consciência de mim e das coisas que me rodeavam [...] E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu... [...] De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho: Sou homem! [...] Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas. Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menos que esta. (Grifos acrescentados) Nessa mesma tradição do romance introspectivo inaugurado por Machado de Assis, já agora reflectindo o sentido interno do tempo como se apresenta em Proust, mas que, em última instância, remete claramente ao conceito de duração 20 Como se sabe, tal sentido ontológico da saudade não é novo na cultura de língua portuguesa desde que D. Duarte (1391-1438), rei de Portugal, em seu famoso livro Leal conselheiro, definiu a saudade como “um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão”, distinguindo-a da tristeza mediante o seguinte exemplo: “Se alguma pessoa por meu serviço e mandado de mim se parte, e dela sinto saudade, certo é que de tal partida não tenho sanha, nojo, pesar, desprazer nem aborrecimento; apraz-me de se ir, e pesar-me-ia de não fosse”. 21
  • 24. em Bergson, talvez directamente, talvez indirectamente através de Farias Brito21 , Lúcio Cardoso, em sua Crónica da casa assassinada (1959), aprofundou o sentido da própria existência: Lembro-me que, pequeno ainda, ao abrir um dia certo armário que todos consideravam tacitamente vedado, fui envolvido por um perfume doce, estranho, que não tardou muito em impregnar todo o quarto. Abaixei-me e comecei a remexer as coisas que o entulhavam; trouxe para fora várias roupas desconhecidas, fora de uso, e que sem dúvida haviam sido atiradas ali como restos sem serventia [...] Curvado, procedia calmamente ao meu exame, quando meu pai entrou no quarto. Antes de poder constatar o que quer que fosse, devia ter sentido o perfume que vagava no quarto. Apoiou- se a uma cómoda e, como eu ouvisse rumor, voltei-me deparando com ele intensamente pálido, encostado ao móvel como se fosse desmaiar [...] 21 “A consciência é o eu. E tal é a existência de que temos mais certeza, pois é a única que conhecemos directamente e, por conseguinte, de modo mais íntimo e profundo. Indagando-se, porém, da significação real dessa existência, vê-se que consiste unicamente em sucessão de estados ou mudanças, ‘Sensações, sentimentos, volições, representações, − eis as modificações entre as quais se divide minha existência e que lhe dão sua cor própria. Eu mudo, pois, incessantemente’ − diz Bergson. E assim dizendo acrescenta não residir a mudança simplesmente na passagem de um estado a outro. ‘Acredita-se que cada estado, considerado à parte, fica o que é durante todo o tempo em que se produz. Mas um ligeiro esforço de atenção mostrará que não há afecção, representação, volição que se não modifique a todo o momento. E se um estado d’alma deixasse de mudar, sua duração cessaria de correr... A verdade é que mudamos incessantemente e todo o estado psicológico, de si mesmo, é já mudança.’ Ora, se toda a realidade da consciência consiste em sucessão ou mudança de estados, segue-se daí que apesar de mudar incessantemente, ela permanece sempre a mesma. É que não se trata de uma coisa, de um facto determinado, mas de uma corrente, de um fluxo contínuo; e esta corrente, este fluxo, se bem que a todo o momento mude de cor, todavia não se interrompe, e nunca se quebra: forma um todo indivisível e persiste sempre o mesmo em sua sucessão de mudanças. Isto significa que a essência da consciência consiste na duração. É assim que o filósofo acentua, de modo decisivo, que, considerando-se a vida psicológica tal como se desenvolve através dos símbolos que a encobrem, verifica-se que o tempo é a sua matéria própria.” (Idem: §44) “Há [...] além da duração interna, sucessão que se resolve em concentração dos estados de consciência no eu, uma duração externa, o tempo que entra nos cálculos do astrónomo e se divide em períodos sucessivos, compreendendo o presente, o passado e o futuro: este é uma grandeza susceptível de medida e de cálculo... Forçoso é, pois, daí concluir que o tempo é também uma grandeza homogénea como o espaço. É ainda, segundo Bergson, uma ilusão [...] E para prová-lo imagina, como exemplo, seguir com os olhos, sobre o quadrante de um relógio, o movimento da agulha em correspondência com as oscilações do pêndulo. Dever-se-á supor neste caso que o observador fez a medida da sucessão; mas não acontece assim. ‘Eu não faço a medida da duração, diz Bergson, limito-me a contar simultaneidades [...] Fora de mim no espaço, não há senão uma posição única da agulha e do pêndulo, porque das posições passadas nada resta (grifos acrescentados). Dentro de mim, dá-se um processo de organização ou de penetração mútua dos estados de consciência, e é isto que constitui a verdadeira duração. É porque duro desta maneira que me represento o que chamo as oscilações passadas do pêndulo, ao mesmo tempo que percebo a oscilação presente (grifos acrescentados)’ [...] Considerada em relação às coisas exteriores, a duração existe, mas somente para uma consciência que conserve a lembrança dos momentos passados.” (Idem: §42; grifos acrescentados) 22
  • 25. Lembrava-me de tudo o que haviam me ocultado, e percebi, diante daquele homem prostrado, que tocara finalmente a essência do segredo. Ergui as mãos lentamente, mostrando a minha presa: se todos fugiam às recordações, ali estavam elas, bem patentes, e mais do que a ressurreição do perfume de um morto, o que eu exibia eram os signos inelutáveis de uma vida. Ele não suportou aquela visão e ocultou o rosto entre as mãos. Assim, durante algum tempo, pareceu entregar-se ao mar de recordações que lhe chegavam − e todas deviam ser cruéis, sangravam ainda, vívidas, no fundo calado do seu peito [...] Aos seus olhos, e sem perder um só dos seus movimentos, levei minha mão às narinas, aspirando com força os restos de perfume que haviam sobrado nela. Assim, ele teria certeza de que minha mãe continuava existindo, e que sua presença permanecia total entre nós dois [...] Não sei quanto tempo ainda vaguei pela casa, unido àquela presença que eu não conhecia. Os lugares, os objectos, as próprias pessoas como que se haviam tornado mais próximas. Quando se acenderam as primeiras luzes, eu ainda lutava para fazer subsistir o sortilégio daquele perfume, que já ia desaparecendo, como uma cor sugada pela noite. De novo, real, eu caminhava sozinho. (Grifos acrescentados) Que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto − e também este escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para sempre, escorreria e passaria − e comigo, como uma carga de detritos sem sentido e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é o para sempre senão a última imagem deste mundo (grifos acrescentados) O método introspectivo nessa arte, apregoado por Farias Brito como método próprio da filosofia, e usado com mestria no Brasil desde Machado de Assis e Augusto dos Anjos a Lúcio Cardoso, passando por Clarice Lispector, dá-nos um exemplo de uma psicologia que “não se aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência que faz parte orgânica daquele que a possui, e em que o objecto do conhecimento é consubstancial com o sujeito” (idem: §4º), razão pela qual “A ‘coisa em si’ ou o espírito [...] só pode ser conhecido por observação interior” (idem: §89). Contrariamente às objeções kantianas de que esse método só fornece ao observador a matéria de um jornal autobiográfico, Farias Brito não só observa que “Kant confunde introspecção com imaginação” (ibidem), como ressalta que “Kant não admitia ciência senão como sistematização no sentido da causalidade mecânica. Mas há também a causalidade psíquica [...] a causalidade mecânica não é talvez senão uma sombra da causalidade psíquica [...] no mundo humano, no mundo em que a subjectividade se faz percebível, realmente, assim é, pois aí o movimento é consciente, e o movimento consciente é exactamente o que se chama acção” (ibidem). Eis porque se impõe a necessidade do método introspectivo como 23
  • 26. método filosófico, para além da constatação de que o eu vive à própria sombra: a introspecção revela a causalidade mecânica no mundo à sombra da causalidade psíquica, de modo que, assim, não só completa-se a revolução copernicana na metafísica, enunciada por Kant, como também resgata-se o sentido de totalidade do real como objecto da filosofia enquanto tarefa infinita. Conclusão Farias Brito representa o coroamento de uma singular experiência histórica de pensar correspondente ao nascimento da filosofia no Brasil. Em sua obra, distribuída em 07 volumes publicados, distingue-se claramente um sentido de unidade em torno ao problema originário que perpassa toda a cultura brasileira desde a vigência do aristotelismo português no ensino filosófico brasileiro. Trata-se do problema do conhecimento de si. Seu aprofundamento desse estudo na filosofia moderna, especialmente em torno à questão da coisa-em-si, e sua proposta de uma psicologia transcendente como método próprio da filosofia, não só incorporam e ampliam as teses apresentadas pelos seus antecessores, desde António Vieira a Gonçalves de Magalhães e Tobias Barreto, como colocam a filosofia brasileira na perspectiva do pensamento filosófico contemporâneo no que diz respeito a tematizações de carácter existencial e à fenomenologia como método. Farias Brito na historiografia filosófica brasileira • Retórica a favor Crítico intransigente do espírito positivo, Farias Brito foi saudado por jovens nacionalistas adeptos de um movimento tradicionalista de reacção contra o influxo do positivismo na educação, nas primeiras décadas do século XX, no Rio de Janeiro, não só como o verdadeiro intérprete da alma nacional, mas também como “o instrumento de que se serviu a Providência para reconduzi-los ao seio da verdadeira Igreja” (Franca, 1928). Do ponto dessa cooptação político-ideológica, inesperadamente surgiram inúmeros simpatizantes e “discípulos confessos” das ideias de Farias Brito. Dentre estes, vale citar: Jackson de Figueiredo, que após converter-se ao catolicismo exerceu expressiva liderança em movimento de renovação católica de grande influência na vida política do país, sendo dele Algumas reflexões sobre a filosofia de Farias Brito (Rio, 1916) e A questão social na filosofia de Farias Brito (Rio, 1919); Nestor Vitor, Farias Brito (Rio, 1917); Almeida Magalhães, Farias Brito e a reacção espiritualista (Rio, 1918). • Retórica contrária É da década de 1940 a reacção contra a sua cooptação pelo movimento de renovação católica. Por um lado, a acusação de que, em meio à luta entre as mentalidades conservadora e modernizadora, aparece, indesejável, “a figura de 24
  • 27. Farias Brito a perturbar as forças em conflito. O manifesto que ele trouxe aos homens é um manifesto de paz − de falsa paz − por um eclectismo filosófico que em todos os tempos foi uma forma desprezível de filosofia” (Rabello, 1941). Por outro lado, mas em consonância com a acusação anterior, a denúncia de que a obra de Farias Brito, “bastante confusa, monótona e folhuda [...] melancólica e caliginosa [...] seguiu sempre, muito de perto, as oscilações das nossas importações culturais. Seus livros repetem ideias alheias, são melodias enfadonhas [...] E que estranho e também paradoxal sintoma o haver sido Farias Brito considerado [...] pelos integralistas, como o chefe espiritual da vaga ideologia, que essa doutrina reaccionária pretendeu impor ao País! No entanto, talvez, houvesse razões para isso” (Cruz Costa, 1955; 2ª ed., 1967). Para completar esse quadro negativo de sua actividade filosófica, criou-se a imagem do homem “fracassado na política republicana”, que “refugiou-se com o seu fraque preto e os seus bigodes tristes nas indagações da filosofia. Espécie de escravo fugido das convenções e da rotina da vida comum do seu País e do seu tempo, para instalar-se, aventurescamente mas cheio de dignidade, nos altos de um Palmares não só de vida interior como de ideias de reforma moral e até social da planície”, com a intenção perturbadora de “sujeitá-la aos resultados da sua própria aventura intelectual impregnada de messianismo” (Freyre, 1944). • Reconhecimento crítico Somente em 1962, por ocasião do IV Congresso Nacional de Filosofia (São Paulo/Fortaleza), realizado pelo Instituto Brasileiro de Filosofia-IBF e dedicado, por empenho de seu fundador, Miguel Reale, ao centenário do nascimento de Farias Brito, promoveu-se o verdadeiro interesse filosófico na obra do tão polémico filósofo nacional. Curiosamente, o reconhecimento da originalidade de seu pensamento no Brasil deu-se a partir do estudo crítico feito por um estrangeiro. Muito provavelmente por desconhecer as idiossincrasias da intelectualidade brasileira, o norte-americano Fred Gillette Sturm, Ph. D. pela Universidade de Columbia, professor visitante no Brasil durante a década de 50, falou sobre “os motivos existencialistas no pensamento de Farias Brito”, apresentando como tese a ideia de que “há similaridades notáveis entre o pensamento britiano e dois movimentos importantes no mundo filosófico contemporâneo”, referindo-se “à filosofia existencialista e à fenomenologia”, e sustentando que “uma leitura nova das suas obras seria interessante e proveitosa para aderentes destes dois movimentos” (IBF, 1962: 89). Tal indexação da filosofia de Farias Brito ao existencialismo e à fenomenologia de Husserl, muito apropriada à qualificação de um precursor, por si só seria suficiente para salvar do limbo da cultura ocidental a obra de um homem cujo “pecado original” foi colocar-se acima das disputas ideológicas. Mas Fred Gillette Sturm não se restringiu à indexação, como se isso pudesse prejudicar a visão do brasileiro em sua originalidade. Ele situou o autor brasileiro no âmbito de uma problemática ocidental sem prejuízo de sua própria origem, coisa que nenhum brasileiro reconhecera. Até então, a historiografia 25
  • 28. filosófica brasileira praticamente definira Farias Brito como um metafísico alheio à realidade cultural brasileira, atribuindo-lhe, quando muito, o crédito de ter aprofundado o estudo da filosofia moderna, nos três volumes de Finalidade do mundo, a partir das teses de Tobias Barreto (Carvalho, 1951; 2ª ed., 1977). Esta edição O mundo interior teve a sua 1ª edição no ano de 1914, no Rio de Janeiro, pela Livraria da Revista dos Tribunais. Anunciado desde 1912, no volume de A base física do espírito, com o nome de Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito, que ficou como subtítulo entre parênteses, o texto da obra abrange dois livros: o primeiro, As novas tendências do pensamento, em quatro capítulos; o segundo, Questão fundamental: a “coisa em si” e os fenómenos, em oito capítulos. Em 1951 saiu a 2ª edição, com introdução de Barreto Filho, como parte da reedição de suas obras filosóficas pelo Instituto Nacional do Livro do Ministério de Educação e Saúde, então concluída em 1957 com o 3º volume de Finalidade do mundo. Para esta 3ª edição, levamos em conta as duas anteriores. A digitação do texto deve-se ao Prof. César de Araújo Fragale e a revisão final contou com a colaboração da mestranda Rachel Helena da Silva Brito, ambos participantes no CEFIB. Desejo agradecer à gentilíssima colaboração da Sra. Sulamita, neta de Farias Brito, que nos permitiu a obtenção de cópias das primeiras edições. Por último, mas não menos importante, desejo registrar, mais uma vez, o meu agradecimento ao Conselho Editorial da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, através do Presidente da Casa, o Dr. António Braz Teixeira, destacado pensador luso-brasileiro, que sempre reconheceu em Farias Brito um filósofo de primeira plana. Cronologia 1862 − 24 de julho, nascimento em São Benedito, Serra de Ibiapaba, Ceará; 1865 − a família migra para Alagoinha; 1870 − a família muda-se para a terra natal de seu pai Marcolino José de Brito, Sobral, onde faz seus primeiros estudos; 1875 − Tobias Barreto publica Ensaios e estudos de filosofia e crítica; 1876 − inicia o curso médio no Ginásio Sobralense, onde alcança distinção em língua francesa, latim e matemática; 1877 − por causa da grande seca deste ano, a família volta para Alagoinha reduzida ao flagelo; 1878 − seu pai decide migrar com toda a família para a capital do estado, Fortaleza; primeira edição de A filosofia no Brasil, de Sílvio Romero; publicação do manifesto A Poesia de Hoje, de Sílvio Romero, prólogo de carácter cientificista ao seu próprio livro de poemas Cantos do fim do século; Como tornar claras nossas ideias, de Peirce; 1880 − com a ajuda dos pais e com a remuneração obtida de aulas particulares de matemática, conclui o curso médio em Fortaleza; 26
  • 29. 1881 − matricula-se na Escola de Direito do Recife, graças ao empenho da família: o pai como porteiro no Ginásio Pernambucano; a mãe fornecendo pensões e ocupando-se de engomados; o irmão empregado numa charutaria; 1882 − início do magistério de Tobias Barreto na Escola de Direito do Recife; A gaia ciência, de Nietzsche; 1883 − Tobias Barreto publica a primeira série dos Estudos alemães; Assim falou Zaratustra, de Nietzsche; 1884 − valendo-se da legislação da época, conclui, com um ano de antecedência, o curso jurídico, não sem antes, entretanto, privar, durante dois anos, da renovação de ideias promovida por Tobias Barreto; publicação de Menores e loucos, de Tobias Barreto; 1885 − nomeado promotor em Viçosa, depois removido, a pedido, para Aquiraz; também lecionava gratuitamente escrevia versos; Psicologia e metafísica, de Lachelier; 1886 − envia, de Cascavel, comarca de Aquiraz, para o Libertador, jornal editado em Fortaleza, uma série de artigos sob o título geral Estudos de filosofia, publicados em julho e novembro do mesmo ano; Para além de bem e mal, de Nietzsche; 1887 − publicação de Discursos, de Tobias Barreto; Genealogia da moral, de Nietzsche; 1888 − início de sua carreira política: secretário do presidente da Província do Ceará; abolição da escravatura no Brasil; publicação de Questões vigentes de filosofia e direito, de Tobias Barreto; início da publicação de A vontade de poder, de Nietzsche; 1889 − morte do governador do Ceará e interrupção da carreira política; viagem ao Rio de Janeiro, com o intuito de fixar residência e estudar matemática superior e mecânica na Escola Politécnica; fim da monarquia brasileira; publicação do volume de poesias Cantos modernos, no Rio de Janeiro, onde assiste, entusiasmado, à proclamação da república; sem recursos financeiros, volta para Fortaleza; segunda edição, ampliada, dos Ensaios e estudos de filosofia e crítica, de Tobias Barreto; falecimento de Tobias Barreto; primeira edição do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, de Bergson; O crepúsculo dos ídolos, de Nietzsche; 1890 − seu nome aparece como candidato a deputado federal sem que, entretanto, o pleito eleitoral chegasse a realizar-se; criação do Ministério da Instrução, Correios e Telégrafos; primeira edição de Os princípios da psicologia, de William James; 1891 − mais uma vez, secretário do governador do Ceará; primeira constituição republicana, que estabeleceu a laicidade do ensino nas escolas públicas; organiza- se o primeiro plano da instrução pública nacional, sob inspiração positivista, dando-se maior importância ao ensino das ciências sob o método matemático- experimental; 1892 − afastamento voluntário do Mal. Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da república, sob o pretexto de evitar a guerra civil, ocupando o poder o então vice-presidente, Mal. Floriano Peixoto, que depôs todos os governadores 27
  • 30. favoráveis a uma nova eleição; deposição do governador do Ceará, de maneira sangrenta; Farias Brito refugiado: fim de sua carreira política; 1893 − primeiro casamento, em Fortaleza, com Ana Augusta Bastos; extinção do Ministério da Instrução, transferindo-se os negócios da instrução pública para o Ministério do Interior e Justiça; supressão da disciplina Filosofia do ensino médio mediante execução da reforma, de cunho positivista, de toda a instrução pública nacional; A psicologia das ideias-forças, de Fouillée; 1894 − terceiro tomo de O capital, de Marx; 1894-1895 − publicação de A filosofia como actividade permanente do espírito, primeiro volume da obra anunciada sob o título geral de Finalidade do mundo; 1895 − morte do primogénito do casal, Raimundo, com dez meses incompletos; 1896 − Matéria e memória, de Bergson; 1897 − morte de Ana Augusta, deixando como fruto do casamento uma menina com alguns meses apenas; 1899 − A filosofia moderna, segundo volume da série Finalidade do mundo; 1901 − resolve fazer uma viagem à Europa. Já no Recife, desiste, seguindo então para o Rio de Janeiro; voltando, repentinamente, a Fortaleza, chega a tempo de assistir à morte do pai, não sem antes pedir-lhe o consentimento para casar-se novamente; segundo casamento, em Fortaleza, com Ananélia Alves; As variedades da experiência religiosa, de William James; 1902 − muda-se para Belém, capital do Pará; professor na Faculdade de Direito, onde desenvolveu um programa no curso da disciplina Filosofia do Direito; artigos publicados na Província do Pará contra o teor positivista dos ataques do Major Gomes de Castro ao Pe. Júlio Maria, então conferencista em Belém; primeira edição d’Os sertões, de Euclides da Cunha; 1903 − nomeado terceiro promotor público de Belém; 1905 − O mundo como actividade intelectual, terceiro volume da série Finalidade do mundo; A verdade como regra das acções; O que é o pragmatismo, de William James; 1907 − A evolução criadora, de Bergson; 1908 − Boutroux publica Ciência e religião; 1909 − muda-se para o Rio de Janeiro; primeiro lugar no concurso para a cadeira de Lógica no Colégio Pedro II, sendo nomeado, porém, Euclides da Cunha, então segundo o colocado; com a morte de Euclides da Cunha, tragicamente, foi efetivado no cargo mediante parecer de Sílvio Romero; 1912 − A base física do espírito; supressão das disciplinas Lógica, no Colégio Pedro II (única instituição de cultura geral, criada desde a Independência até à República, fundado em 1837), e Filosofia do Direito, nas faculdades de direito, mediante execução da reforma nacional do ensino, de cunho positivista; primeira edição do Eu, de Augusto dos Anjos, no Rio de Janeiro; 1914 − O mundo interior; 1916 − O panfleto, sob o pseudónimo de Marcos José; Algumas reflexões sobre a filosofia de Farias Brito, de Jackson de Figueiredo; 28
  • 31. 1917 − falecimento de Raimundo de Farias Brito, a 16/01, no Rio de Janeiro. Referências bibliográficas ANJOS, Augusto dos (2001). EU e outras poesias. Rio de Janeiro: Bertrand. BARRETO, Tobias (1990). Estudos de filosofia. Introd. e notas de Paulo Mercadante e António Paim; biobibliografia de Luiz António Barreto. In: Obras completas. Rio de Janeiro: INL/Record. BERGSON, Henri (1988). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70. CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (1999). Dicionário biobibliográfico de autores brasileiros. Salvador: Senado federal. CERQUEIRA, Luiz Alberto (org.) (2000). Aristotelismo Antiaristotelismo Ensino de Filosofia. Rio de Janeiro: Agora da Ilha. ______ (2001). Gonçalves de Magalhães e a ideia de filosofia brasileira. In: Factos do espírito humano (3ª ed.). Lisboa: INCM. ______ (2001). A modernização no Brasil como problema filosófico. Impulso – Revista de Ciências Sociais e Humanas, vol. 12, nº 29, 125-136. Piracicaba: UNIMEP. ______ (2002). Filosofia brasileira – Ontogénese da consciência de si. Petrópolis: Vozes. COSTA, João CRUZ. Contribuição à história das ideias no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1967. DUARTE (D.) (1991).D. Duarte. Introd. e selecção de textos de Afonso Botelho. Lisboa: Verbo. FRANCA, Leonel (S. J.) (1955). A filosofia no Brasil. In: Noções de história da filosofia. Rio de Janeiro: Agir. FREYRE, Gilberto. (1944). Um Mestre sem Discípulos. Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: José Olympio. HEIDEGGER, M.(1981). Kant et le problème de la métaphysique. Introd. e trad. de Alphonse de Waelhens e Walter Biemel. Paris: Gallimard. HUSSERL, E. (1950). Idées directrices pour une phénoménologie. Trad. Paul Ricoeur. Paris: Gallimard. ______ (1959-1963). Recherches logiques. Trad. de Hubert Élie, com a colaboração de Lothar Kelkel e René Schérer (04 vols.). Paris: PUF. ______ (1969). La filosofía en la crisis de la humanidad europea. La filosofía como ciencia estricta. Trad. de Elsa Tabernig, com estudo introdutório de Eugenio Pucciarelli (pp. 7-41). Buenos Aires: Nova. ______ (1996). A crise da humanidade europeia e a filosofia. Introd. e trad. de Urbano Zilles. Porto Alegre: EDIPUCRS. ______ . Meditações cartesianas. Trad. Maria Gorete Lopes e Sousa. Lisboa: Rés, s.d. ______ (1994). Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Trad., introd. e notas de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. KANT, I. Critique of pure reason (Crp) (1988). Trad. de Norman Kemp Smith. London: Macmillan. 29
  • 32. MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de (2001). Factos do espírito humano (3ª ed.). Reedição crítica de Luiz Alberto Cerqueira, contendo estudo introdutório e, em apêndice, os seguintes textos: Discurso sobre a História da Literatura do Brasil; Filosofia da Religião, sua Relação com a Moral e sua Missão Social; Discurso sobre o Objecto e Importância da Filosofia; A Origem da Palavra). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. RABELLO, Sílvio (1941). Farias Brito ou Uma aventura do espírito. Rio de Janeiro: José Olympio. ROMERO, Sílvio. A poesia de hoje. Cantos do fim do século. Rio de Janeiro: Tipografia Fluminense, 1878. VIEIRA, António. Sermões. Org. Alcir Pécora (2000-2001). São Paulo: Hedra. Obras do autor • Finalidade do mundo (Estudos de filosofia e teleologia naturalista), em três partes correspondentes a 03 volumes. Primeira parte: A filosofia como actividade permanente do espírito. Fortaleza: Tipografia Universal, 1895 (1894); Segunda parte: A filosofia moderna. Ceará (Fortaleza): Tipografia Universal, 1899; Terceira parte: O mundo como actividade intelectual, Livro I: Evolução e relatividade (um segundo livro, previsto sob o título Força e pensamento ou solução do problema da existência pela concepção do mundo como actividade intelectual, jamais foi publicado). Pará (Belém): Livraria Universal, 1905a; 2ª ed. de Finalidade do mundo, Rio de Janeiro: INL, 1957. • A verdade como regra das acções. Pará (Belém): Livraria Universal, 1905b; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1953. • A base física do espírito (História sumária do problema da mentalidade como preparação para o estudo da filosofia do espírito). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1953. • O mundo interior (Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espírito). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1914; 2ª ed., Rio de Janeiro: INL, 1951. • Inéditos e dispersos − notas e variações sobre assuntos diversos, inclusive lista de 65 títulos dos textos conhecidos do autor. Compilação de Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: Grijalbo/EDUSP, 1966. Sobre o autor CARVALHO, Laerte Ramos de (1977). A formação filosófica de Farias Brito. Tese de doutoramento. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1951; 2ª ed., São Paulo: Saraiva/EDUSP, (208 páginas). GUIMARÃES, Aquiles Côrtes (1984). Existência e verdade no pensamento de Farias Brito. Dissertação de mestrado, 100 páginas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1977; publicada sob o título Farias Brito e as origens do existencialismo no Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979 (89 páginas); 2ª ed. revista e ampliada (67 páginas). São Paulo: Convívio. ______ (1989). Brito, Raimundo de Farias. Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. I, 766-768. Lisboa: Verbo. 30