Fernando Sabino nasceu em 1923 em Belo Horizonte. Desde a infância revelou talentos para a música, literatura e esportes. Mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1940 onde se tornou jornalista e escritor, publicando vários livros e crônicas. Foi um importante intelectual brasileiro e recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras em 1999.
2. BIOGRAFIA DE FERNANDO SABINO
Fernando Tavares Sabino, filho do procurador de partes e
representante comercial Domingos Sabino, e de D. Odete
Tavares Sabino, nasceu a 12 de outubro de 1923, Dia da
Criança, em Belo Horizonte.
Em 1930, após aprender a ler com a mãe, ingressa no
curso primário do Grupo Escolar Afonso Pena, tendo como
colega Hélio Pellegrino, que já era seu amigo dos tempos
do Jardim da Infância. Torna-se leitor compulsivo, de tal
forma que mais de uma vez chega em casa com um galo na
testa, por haver dado com a cabeça num poste ao caminhar
de livro aberto diante dos olhos. Desde cedo revela sua
inclinação para a música, ouvindo atentamente sua irmã e o
pai ao piano.
Em 1934, entra para o escotismo, onde permanece até os
14 anos. Disse ele em sua crônica "Uma vez escoteiro":
3. "Levei seis anos de minha infância com um lenço
enrolado no pescoço, flor-de-lis na lapela e pureza no
coração, para descobrir que não passava de um
candidato à solidão. Alguma coisa ficou, é verdade: a
certeza de que posso a qualquer momento arrumar a
minha mochila, encher de água o meu cantil e partir.
Afinal de contas aprendi mesmo a seguir uma trilha, a
estar sempre alerta, a ser sozinho, fui escoteiro — e
uma vez escoteiro, sempre escoteiro".
Com 12 anos incompletos, em 1935, torna-se locutor do
programa infantil "Gurilândia" da Rádio Guarani de Belo
Horizonte. Freqüenta o Curso de Admissão de D.
Benvinda de Carvalho Azevedo, no qual adquire
conhecimentos de gramática que lhe serão muito úteis
no futuro em sua profissão.
4.
Em 1938, ajuda a fundar um jornalzinho chamado "A Inúbia"
(mesmo sem saber exatamente o que isso vem significar)
no Ginásio Mineiro. Ao final do curso, embora
desatento, "levado" e irrequieto, conquista a medalha de
ouro como o primeiro aluno da turma. Começa a colaborar
regularmente com artigos, crônicas e contos nas revistas
"Alterosas" e "Belo Horizonte". Participa de concursos de
crônicas sobre rádio e de contos, obtendo seguidos
prêmios.
Nadador, em 1939, bate vários recordes em sua
especialidade: o nado de costas. Compete e ganha
inúmeras medalhas em campeonatos nas cidades de
Uberlândia, São Paulo e Rio de Janeiro. Participa da
Maratona Nacional de Português e Gramática
Histórica, empatando com Hélio Pellegrino no segundo lugar
em Minas Gerais e em todo o Brasil. Viajam juntos ao Rio
para receber em sessão solene o prêmio das mãos do
mineiro Gustavo Capanema, então Ministro da Educação.
5.
Aprende taquigrafia, em 1940, para escrever mais
depressa. Começa a ler, com grande obstinação, os
clássicos portugueses a partir dos quinhentistas Gil
Vicente e João de Barros, entre outros, até os
romancistas como Alexandre Herculano, Almeida Garrett
e Camilo Castelo Branco. Antes de chegar a Eça de
Queiroz e a Machado de Assis, aos 17 anos, está
decidido a ser gramático. Escreve um artigo de crítica
sobre o dicionário de Laudelino Freire, que tem o orgulho
de ver estampado no jornal de letras "Mensagem", graças
ao diretor Guilhermino César, escritor mineiro que se
torna amigo de Fernando Sabino e seu grande
incentivador. João Etienne Filho, secretário de "O Diário",
órgão católico, é outro a estimulá-lo no início de sua
carreira. Nele publica artigos literários, juntamente com
Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio
Pellegrino, formando com eles um grupo de amigos para
sempre.
6.
No período de 1941 a 1944 presta serviço militar na Arma de
Cavalaria do CPOR. Inicia o curso superior na Faculdade de
Direito. Convive com escritores e, por indicação de seu
amigo Murilo Rubião, ingressa no jornalismo como redator
da "Folha de Minas". Orientado por Marques Rebelo, reúne
seus primeiros contos no livro "Os Grilos não Cantam
Mais", publicado no Rio de Janeiro à sua própria custa. Bem
recebido pela crítica, lhe vale principalmente pela carta
recebida de Mário de Andrade, a partir da qual inicia com ele
uma correspondência das mais preciosas para a sua carreira
de escritor. (veja em Lições do Mestre). Colabora no jornal
literário do Rio "Dom Casmurro", revista "Vamos Ler" e
"Anuário Brasileiro de Literatura".
Em 1942, é admitido como funcionário da Secretaria de
Finanças de Minas Gerais e dá aulas, nas horas vagas, de
Português no Instituto Padre Machado. Conhece
pessoalmente o poeta Carlos Drummond de Andrade, dele
se tornando amigo através de correspondência e, mais
tarde, no Rio, de convivência.
7.
No ano seguinte é nomeado oficial de gabinete do secretário
de Agricultura. Faz estágio de três meses como aspirante no
Quartel de Cavalaria de Juiz de Fora, período que serviria de
inspiração para hilariantes episódios no livro "O Grande
Mentecapto". Inicia uma colaboração regular para o jornal
"Correio da Manhã", do Rio e conhece seu futuro amigo
Vinicius de Moraes. Prepara sua mudança para o Rio de
Janeiro. Publica o ensaio "Eça de Queiroz em face do
cristianismo" na revista "Clima", de São Paulo (SP).
Integra, em 1944, a equipe mineira na Olimpíada
Universitária de São Paulo, como pretexto para conhecer
pessoalmente Mário de Andrade. Lêem, em voz alta, os
originais da novela "A Marca", que é publicada em seguida
pela José Olympio Editora. Muda-se para o Rio, assumindo
o cargo de Oficial do Registro de Interdições e tutelas da
Justiça do Distrito Federal. Convive com Rubem
Braga, Vinicius de Moraes, Carlos Lacerda, Di
Cavalcanti, Moacyr Werneck de Castro, Manuel Bandeira e
Augusto Frederico Schmidt, entre outros.
8.
Participa da delegação mineira no Congresso Brasileiro de
Escritores em São Paulo, no ano de 1945, onde, durante a
sessão plenária de encerramento, em desafio à polícia ali
presente, sugere ao publico que seja lida a Moção de
Princípios proclamada pelo Congresso, exigindo do ditador
Getúlio Vargas a abolição da censura e a restauração do
regime democrático no Brasil, com convocação de eleições
diretas. Conhece Clarice Lispector, dando início a uma
intensa amizade.
No ano seguinte forma-se em Direito e licencia-se do cargo
que exerce na Justiça, embarcando com Vinícius de
Moraes para os Estados Unidos. Passa a residir em Nova
York, trabalhando no Escritório Comercial do Brasil
e, posteriormente, no Consulado Brasileiro. Começa a
escrever o romance "O Grande Mentecapto", que só
viria retomar 33 anos depois. Colabora com o jornal "Diário
de Notícias", do Rio.
9.
Em 1947, envia crônicas de Nova York para serem
publicadas aos domingos nos jornais "Diário Carioca" e "O
Jornal", do Rio, que são transcritas por diversos jornais do
resto do país. Começa a escrever "Ponto de Partida"
(romance), e outro, "Movimentos Simulados", os quais não
chega a concluir mas que serão aproveitados em "Encontro
Marcado". Realiza uma série de entrevistas com Salvador
Dali e faz reportagem sobre Lazar Segal.
Volta ao Brasil em 1948, a bordo de um navio cargueiro que
se incendeia em meio a uma tempestade, a caminho de
Bermudas. No Rio, é transferido para o cargo de escrivão
da Vara de Órfãos e Sucessões. Crônica semanal no
Suplemento Literário de "O Jornal".
Em 1949, escreve crônicas e artigos para diversos jornais
brasileiros. Em 1950, reúne várias delas sobre sua
experiência americana no livro "A Cidade Vazia".
10.
Publicação em tiragem limitada do livro "A Vida Real", em
1952, composto de novelas sob a inspiração de "emoções
vividas durante o sono". Escreve, sob o pseudônimo de
Pedro Garcia de Toledo, diariamente, "O Destino de Cada
Um", nota policial no jornal "Diário Carioca". Escreve
crônicas com o título geral "Aventuras do Cotidiano", no
"Comício", "semanário independente" fundado e dirigido
por Joel Silveira, Rafael Correia de Oliveira e Rubem
Braga. Colaboração com a revista "Manchete" a partir do
primeiro número, que se prolongará por 15 anos, a
princípio sob o título "Damas e
Cavalheiros", posteriormente "Sala de Espera" e
"Aventuras do Cotidiano".
Em 1954 faz campanha política no Recife e em
Fortaleza, a convite de Carlos Lacerda. Lança tradução do
dicionário de Gustave Falubert. Viaja pelo sul do Brasil em
companhia de Millôr Fernandes. Em companhia de Otto
Lara Resende, então diretor da "Manchete", antecipa em
entrevista pessoal e exclusiva o lançamento da candidatura
do General Juarez Távora à Presidência da República.
11.
PRÊMIO:
- Em julho de 1999 recebeu da Academia Brasileira de Letras
o maior prêmio literário do Brasil, "Machado de Assis", pelo
conjunto de sua obra.
O valor do prêmio, R$40.000,00, foi doado pelo autor a
instituições destinadas a crianças carentes. O
desembargador Alyrio Cavallieri, ex-juiz de menores, revelou
que em 1992, todos os direitos recebidos pelo autor do
polêmico livro "Zélia, uma paixão" também foram distribuídos
a crianças pobres.
Dados obtidos em livros do autor e de "Quadrante II", Editora
do Autor, 1968, de "Obra Reunida", Ed. Nova Aguilar - Rio de
Janeiro,m e "Fernando Sabino - Perfis do Rio", Relume
Dumará, Rio de Janeiro, 2000.
12. CRÔNICA
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão,
vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu
não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir
rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a
gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que
não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para
tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto
esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta
de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu,
olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a
dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o
mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer
ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
13.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de
tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor.
Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromperse de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher
pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó
dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz
baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador
fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os
andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os
andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para
a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos
nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
14.
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na
escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de
pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim
despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet
grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se
aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o
elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e
entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a
subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado,
enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele
começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e
daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho
conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo
levado cada vez para mais longe de seu apartamento,
começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka,
instaurava-se naquele momento o mais autêntico e
desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
15. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força
entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou
fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea
ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar
o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a
chamar o elevador. Antes de mais nada:
"Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir
ou descer? Com cautela desligou a parada de
emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer
o elevador subir. O elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez
esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu
que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e
tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão.
Era a velha do apartamento vizinho:
16.
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine
que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o
que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se
precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos
minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.