1. A ESPIRITUALIDADE DE DOM HELDER
Conferencia de P. José Comblin
por ocasião do 91º aniversário de nascimento de Dom Helder
– pronunciada em Recife em 8 de fevereiro de 2001.
A. A Mística
1. Em primeiro lugar é preciso reconhecer que dom Helder foi antes de tudo um
místico. Antes de ser padre ou bispo, antes de ser o guia da Igreja do Brasil, antes de ser o
defensor dos pobres, antes de ser o promotor da justiça e dos direitos humanos contra toda
opressão, ele foi um místico e todos o seus títulos traduzem unicamente as circunstancias
nas quais ele viveu a sua mística.
Portanto, falar da espiritualidade de dom Helder é de toda a sua personalidade,
porque o que ele demonstra exteriormente é apenas acidental. Entre muitos outros bispos ou
padres, a espiritualidade é um acidente que surgiu durante a sua vida. Em dom Helder, a
espiritualidade é seu próprio ser. É sua vida. O resto é acidental.
Houve muitas conversões na vida de dom Helder, para retomar uma expressão
que ele mesmo adotou como título de um livro de entrevistas que ele publicou na França1.
Mas essas conversões jamais atingiram o fundo de sua personalidade. Elas foram mudanças
na aplicação da sua vida mística mas não modificaram a sua orientação profunda de vida,
embora tenham marcado etapas no aprofundamento de tudo o que viveu depois. Por isso
essas conversões nunca resultaram de arrependimentos ou contrição pelo passado. Elas não
foram dramáticas como no caso de pessoas que, frequentemente, descobrem a realidade ou
de pessoas que mudam radicalmente a sua vida. Elas tampouco foram a conversão de santo
Agostinho, nem a conversão de São Paulo, nem a conversão dos pentecostais ou dos
carismáticos. Na vida de dom Helder não houve dramas, mas uma continuidade
profundamente pacífica.
O testemunho de sua vida mística está em milhares de páginas que ele mesmo
escreveu e que estão em vias de publicação, necessidade urgente porque o Brasil carece
justamente de uma literatura mística. A sua vida era absorvida por Deus. Ele via tudo em
Deus, a partir de Deus. Ele viveu intensamente essa vida em Deus, sem nenhum esforço,
com grande naturalidade, pois era um místico e vivia no invisível mais que no visível, ou
melhor dizendo, ele via o invisível no visível. Daí as longas horas passadas na comunicação
com o invisível que, para ele, era realmente sensível e presente.
2. Sua vida mística utilizava os temas e as meditações do catolicismo tradicional
recebido da família, sobretudo de sua mãe e do contexto cultural do Ceará. Mas ele não se
fechou nessas meditações. Doutrina, dogmas, sacramentos, devoções: tantos caminhos que
não detiveram sua atenção porque ele ia diretamente ao objetivo de sua mística: o Deus
revelado conforme toda a tradição nordestina. Por isso, ele se sentia à vontade entre todas as
pessoas de todas as religiões ou mesmo sem religião.
A teologia que ele aprendeu no seminário não teve nenhuma influencia sensível
sobre ele. Outros tiveram que fazer esforços e passaram por crises dramáticas para se
libertarem da teologia do seu seminário, que era apologética, intelectual, puramente
eclesiocêntrica. Para ele, essa teologia escorregava, sem penetrar. Ele descobriu mais tarde
que esta teologia não lhe servia mais na sua missão sacerdotal, mas essa descoberta ocorreu
sem crise. Sua fé já estava enraizada em outro terreno e a perda daquela teologia não o
afetou. Ainda no seminário, ele compreendeu que a teologia era superficial e artificial e que
não era preciso atribuir-lhe muita importância. Ele a abandonou sem nenhum problema e
jamais teve necessidade de aprofundar seus estudos teológicos. Ele estava em Deus e não
1 Les conversions d’un êveque, entretiens avec José de Broucker, Ed. Du Seuil, 1977
2. 2
tinha necessidade de discursos. Ele vivia e prescindia dos discursos. Inteligente como ele era,
ele poderia ter feito seus estudos de modo brilhante, mas isso teria atrapalhado a sua
carreira.
Ele teve a maior devoção pela Eucaristia, sobretudo segundo a tradição popular
medieval do milagre da presença real do Cristo sensível, que, de certa maneira podemos
tocar com as mãos e com a boca. Ele teve a maior devoção por Nossa Senhora, conforme a
piedade popular que a torna um refugio universal, a consoladora universal, a mãe de todos e
em todos os momentos da vida. Ele teve a maior devoção pelo Papa, a devoção popular pela
figura alva do pai universal, visto do ponto de vista de toda a humanidade, como viu santa
Catarina de Senna, independente da personalidade do papa. Ele estava impregnado das três
famosas brancuras do catolicismo pós tridentino. Mas tudo isso era acidental, eram meios
para expressar algo muito mais profundo que era a sua própria vida. Ele jamais foi catequista
ou professor dos dogmas ou dos preceitos católicos.
Ele teve o privilegio de jamais trabalhar numa paróquia. Isso teria sido para ele
uma grande provação, pois na paróquia muitos se deixam aprisionar pelas coisas sagradas e
perdem de vista a vida mística que deve animá-los. Tornam-se prisioneiros dos ritos e das
palavras e transformam-se em funcionários da religião.
Por tudo isso, as mudanças conciliares não modificaram nem o seu ritmo nem a
sua orientação. Ele guardou a sua religião aprendida na infância com toda tranquilidade e a
adaptou aos novos temas conciliares, sem jamais atribuir-lhes qualquer superstição.
Justamente porque ele era místico, essas coisas não o afetaram.
3. Dom Helder era dotado de uma extraordinária sensibilidade. Percebia tudo, as
menores mudanças com intensidade e reagia imediatamente a todos os impulsos, a todas as
sensações. Ele compreendia de vez, era todo intuição. Seu pensamento procedia de intuição
em intuição. Ele era de uma grande vivacidade para descobrir o que interessava, para
conhecer as pessoas, para interpretar as circunstancias e os acontecimentos. Sua atenção
estava sempre alerta e sua imaginação era infatigável. Ele era capaz de se levantar a cada
manhã com um novo projeto e uma nova descoberta.
Está claro que a sua mística passava pela sensibilidade. Uma sensibilidade que
não estava voltada pra o interior como encontramos em santo Agostinho e tantos outros
místicos ocidentais do mesmo espírito. Estava voltado para o exterior e para as pessoas, à
maneira nordestina. Ele via, sentia, vivia o amor de Deus em todos os seus contatos com o
mundo exterior, particularmente com as pessoas que ele reencontrava. Ele era místico e
poeta ao mesmo tempo. Sua mística era poética, pois é nas realidades sensíveis que
percebia as maravilhas de Deus. Sua vida mística se expressava pelo jogo de seus olhos,
pelas inflexões de sua voz, pelos largos gestos que pareciam sempre querer abraçar o mundo
todo, pela insistência, pelo jogo das mãos e do corpo.
Muitos interpretaram esse jogo como uma comédia, um artificio voluntário, uma
manobra para ganhar as pessoas. Mas sem dúvida isso era tão natural e expressava
unicamente que ele estava sempre sobre a inspiração de Deus, a força de Deus. Ele dizia e
fazia tudo com grande disposição, como se todos fossem momentos essenciais, como se o
dia de hoje fosse o mais interessante e como se a pessoa com quem ele falava fosse a mais
importante. Era o fogo de Deus que o animava a cada dia e se servia de sua sensibilidade
natural. Em tudo isso ele era inimitável e aqueles que procuraram imitá-lo fizeram papel
ridículo. O mesmo gesto feito por dom Helder ou por qualquer outra pessoa tem conteúdos
bem distintos, pois, em dom Helder esse gesto expressava seu encontro com Deus em tudo e
em todos.
Não podemos atribuir nenhuma fonte literária a essa mística, tipicamente
nordestina. Dom Helder não foi discípulo de nenhum místico. Sua fonte estava na
religiosidade tradicional do povo do Ceará, na mística presente na vida de tantos cearenses e
outros nordestinos. Ele não pertenceu a nenhuma escola, mas poderia muito bem ser a fonte
de uma nova escola desde que seus escritos sejam publicados.
3. 3
4. O cerne da mística cristã e de toda mística é o amor. Mas há diferentes
maneiras de viver o amor (cf. dom Helder Câmara: Entre suas mãos, Senhor – Ed. Paulinas
1986, p. 19, 31, 41, 71, 82). Deus aparece como a fonte do amor, um amor universal para
toda criatura. Este amor é admiração, aceitação, reconhecimento de seu valor, da bondade
das coisas. Esse amor abraça a totalidade da pessoa humana, alma e corpo. É a paz e a
alegria. O amor é dom de amor. Esse amor quer ser fonte do amor universal.
O amor a Deus, no sentido de santo Agostinho, parece pouco. O tema do pecado
é praticamente inexistente, como também o da penitencia e do arrependimento. Dom Helder
jamais teve uma experiência forte do pecado; daí que esse tema não ocupa lugar na sua
sensibilidade. Para ele o amor estava ligado à beleza, à pureza, à gratuidade e à felicidade.
Assim, dom Helder podia estar sempre aberto a todos. Ele não tinha reservas. Nem se
embaraçava pela ideia de que seu interlocutor poderia ser um pecador. O pecado já estava
perdoado e não era preciso preocupar-se. O maro irradiava e esse amor era a fonte da
atração que ele exercia sobre todos que o encontravam. Os que o criticavam ou que o
denigriam eram aqueles que jamais o conheceram.
5. O amor era essencialmente paz. Há certas formas de amor que são
conquistadoras e violentas. Há pessoas religiosas que compreendem a vida cristã como um
conflito entre a verdade e o erro, o bem e o mal, a igreja e seus inimigos. Dom Helder nunca
foi assim. Seu amor era fonte de paz universal. Ele não procurava perceber ou descobrir o
mal ou o erro. Ele acreditava na força do amor. Para ele, o amor era sempre o mais forte.
As circunstancias o obrigaram a aceitar e a enfrentar situações de conflito e o
levaram a reconhecer o caráter inevitável de uma luta pela justiça. Mas ele teve que sofrer
muito, não tanto por ser vitima do conflito, mas por tê-lo provocado ou criado situações de
conflito para defender o evangelho da justiça. Por sua sensibilidade ele era espontaneamente
pacifico. Ele sofreu muito. Ele pregou continuamente a não-violência que estava
profundamente enraizada em seu temperamento, ele que acreditava no amor universal e que
procurava praticar esse amor.
Por temperamento ele evitava todo conflito. Ele aceitou que muitos padres
fizessem campanha contra ele na sua diocese sem jamais tomar medidas contra eles. Ele
preferia ignorar. Ele preferia ser humilde mais a humilhar. Ele não podia pensar que havia
pessoas más no mundo e tampouco na Igreja. Para ele o amor era capaz de vencer todas as
resistências, promovendo a paz.
B – Mística e Ação
1. O Cearense (cf. Em tuas mãos Senhor! P. 71). Dom Helder tinha uma profunda
consciência de ser cearense e o privilegio que é ser cearense. Nascer cearense era como
uma predestinação. Ele não diz em que consiste o privilegio dos cearenses, mas a história
nos fornece ensinamentos interessantes.
Há uma longa tradição mística cearense. Quase todos os místicos nordestinos e
mesmo brasileiros foram ou são cearenses. Basta relembrar os nomes de padre Ibiapina,
Antônio Conselheiro, padre Cícero, beato Lourenço, dom Helder, dom Hélio Campos para
relembrar apenas os mais conhecidos. Em nenhuma outra região do país houve essa
sucessão de místicos. Há algo em comum entre eles, apesar da diversidade das
personalidades.
O que é comum a todos é que eles foram ao mesmo tempo místicos e homens de
ação intensa. Totalmente místicos e totalmente ativos. É comum a todos que toda a sua
atividade era impregnada de mística e que sua mística abraçasse o mundo com um amor
ativo. Essa associação não é tão frequente na historia da Igreja. A maioria dos místicos não
foram tão atuantes no mundo. Ao menos, eles foram ativos na Igreja, através de atividades
especificamente religiosas. A ação no mundo é precisamente a característica da tradição
cearense.
2. Todos os místicos eram visionários. Eles olhavam para o futuro. Eles
acreditavam na irrupção de um mundo de amor e de paz. Eles pensavam que eles deviam
4. 4
eles mesmos tomar a iniciativa de uma mudança do mundo nessa direção. Eles possuíam
uma imensa confiança no porvir, confiança na sua capacidade. Na sua missão. Eles tinham
uma extraordinária esperança, esperavam contra toda esperança, renovando a cada dia a
sua esperança.
Essa esperança fazia que o padre Ibiapina percorresse incansavelmente todo o
Nordeste, mobilizando o povo sertanejo para suas missões, a partir das Casas de Caridade
criando uma nova sociedade em pleno sertão. Essa esperança visionária conduziu o padre
Cícero a criar o Juazeiro, atraindo milhares de nordestinos oprimidos e desamparados para
uma cidade livre, que era já a realização do Reino de Deus. Essa esperança levou Antônio
Conselheiro a fundar a comunidade de Belo Monte que, em dois anos, tornou-se o segundo
polo de desenvolvimento econômico da Bahia. Essa esperança levou dom Hélio a transformar
o inferno de Pirambu (n.t. a pior periferia de Fortaleza) numa comunidade de comunidades,
prefigurando as comunidades eclesiais de base.
A esperança de dom Helder era extraordinária, a ponto de dar, aos olhos dos que
estavam próximos dele, uma impressão de ingenuidade. Nos piores momentos do regime
militar, ele se levantava a cada dia com novas razoes de pensar que a libertação já estava à
vista. Não importava qual era o indício ou aparência, bastava verificar uma confirmação de
suas previsões. Seu otimismo não admitia desmentidos. Ele tinha sempre no coração uma
visão imensa do mundo novo em gestação. Como todos os visionários cearenses, ele
renovava o entusiasmo dos profetas: de toda maneira, o futuro era tão presente que já
parecia estar acontecendo.
3. Os cearenses são visionários, mas são visionários práticos que sabem realizar,
que não perdem de vista as condições materiais e a necessidade de organização do povo.
Tosos realizaram obras válidas e eficazes para o seu tempo. Eles foram sonhadores mais não
irrealistas; eles foram ao mesmo tempo sonhadores com os pés na realidade. A diferença foi
que todas as ações, as atividades as mais praticas ou imediatas se inseriram numa visão
grandiosa do porvir do Reino de Deus. Tudo o que eles realizaram foi de uma importância
decisiva, pois tudo se inscrevia na marcha inelutável do mundo novo.
É por isso que toda a paixão com a qual dom Helder vivia em Deus se aplicava
também às atividades práticas. Ele fazia tudo com a mesma paixão, convencido que cada dia
era um momento decisivo da história. Ele se dedicava com paixão às atividades politicas em
um primeiro momento, depois às atividades eclesiais no Rio de Janeiro, depois às obras
assistenciais aos favelados, à luta contra a opressão no Recife, às viagens pelo mundo para
denunciar o sistema de dominação imposto ao terceiro mundo – as ditaduras – e anunciar um
mundo novo, até iniciar as Obras de São Francisco (obras sociais em Recife): tudo isso como
se fossem momentos decisivos da história, vividos com uma consciência profética.
Como todos os bispos místicos e proféticos de sua geração – os bispos de
Medellín – ele foi acusado de negligenciar a sua diocese, de desorganização, de ser um bispo
confuso. Por essa razão ele foi proibido de viajar, para que se ocupasse mais da diocese. É
falso, inspirado, sobretudo pela maledicência, pela inveja, pelo famoso rancor sacerdotal –
não há nada pior do que a raiva de padre, se não for a raiva de um bispo. Na realidade, a
diocese funcionava muito bem e dom Helder sabia resolver os problemas como um
verdadeiro diretor de empresa, com a única preocupação de preservar sempre a prioridade
dos pobres, o que não significa uma desordem, mas uma forma de ordenar as coisas. E ele
podia contar com o apoio certo e totalmente leal de dom Lamartine (seu bispo auxiliar) e ter
confiança nos seus colaboradores.
Não havia nenhuma oposição entre a vida mística e a vida prática, mesmo nos
detalhes da vida cotidiana. Tudo estava integrado na visão profética, pois em nenhum
momento dom Helder perdeu sua grandiosa visão da marcha para um mundo novo no qual a
diocese de Recife era um lugar privilegiado. A diocese de Recife não devia ser ela o centro do
terceiro mundo, o polo do surgimento de uma Igreja para o terceiro mundo? O que para
muitos poderia ser ingenuidade ou vaidade era para ele uma projeção de sua mística
profética. Ele vivia tudo com a intensidade com a qual absorvia as promessas do Evangelho.
5. 5
4. Ele era de uma curiosidade e interesse sempre vigilante. Sempre buscava as
noticias, os derradeiros acontecimentos, queria ver o que sucedia. Sempre buscava os
indícios que reforçavam a sua convicção de que estávamos caminhando para a libertação.
Persuadido pela proximidade do Reino, ele procurava os sinais, como nas parábolas do
Evangelho. Em tudo ele encontrava sinais otimistas. Tudo parecia sempre melhorar –
sensibilidade do cearense, para não dizer do nordestino em geral.
A curiosidade era tal que muitas veze ele se iludia. Mas quando a realidade
desmentia suas previsões, ele não se deixava abater mas descobria imediatamente outros
sinais que o faziam renascer para a esperança e a busca de sinais recomeçava.
Ele tinha grande interesse pelos outros. Em tudo ele via as pessoas que podiam
contribuir nessa marcha do reinado de Deus. Todos tinham um papel na sua visão profética
do mundo. A todos, desde o primeiro reencontro, ele atribuía um papel porque cada pessoa
era muito importante a seus olhos. Por isso ele exercia uma verdadeira fascinação. Muitos
visitantes que não o conheciam pessoalmente saiam fascinados após o primeiro encontro. E
os que o conheciam de longa data permaneciam sob a influencia dessa fascinação pois o
papel que dom Helder lhes atribuía os valorizava muito. Mesmo aqueles que não lhe davam
muito crédito se sentiam valorizados e persuadidos de que sua ação era realmente
necessária e eficaz. Todos se sentiam importantes ao lado de dom Helder. Ele sabia inspirar
esse sentimento. Por isso ele soube suscitar a colaboração de tantas pessoas.
Assim, ao invés de fazer ele mesmo, ele fazia fazer, mobilizando outros para
agirem e multiplicarem sua ação. Ele agia por intermédio de outros. Ele agia geralmente nos
corredores onde ele incentivava outros a fazerem o que ele queria fazer. Ele estava nos
bastidores do Concilio, do CELAM (Conferencia Episcopal Latino Americana), da CNBB
Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil), aparecendo raramente, mas encarregando outros
de fazer o que ele queria sem que eles percebessem que estavam fazendo a política de dom
Helder.
A maior parte do tempo ele fazia isso inconscientemente, tão convencido estava
que o mundo novo estava por vir e que todos deviam prepara sua chegada. Em geral, o seu
papel foi muitas vezes subestimado. Outros davam a impressão de agir quando na verdade
eles eram movidos por dom Helder. Ele não tinha orgulho nem espírito de competição. Para
ele tanto fazia que outros tivesse a glória. Ele queria que o reinado de Deus chegasse. O que
foi muitas vezes interpretado como vedetismo, vaidade, coisas completamente alheias à sua
personalidade.
Está claro que dom Helder exerceu uma atração especial sobre as mulheres, mais
fascinadas do que os homens – isso porque percebemos um grande devotamento por parte
delas. Cada uma era feliz de poder se consagrar totalmente a sua vida às obras que ele
estimulava e de merecer a sua atenção. Suas amizades, na maior parte, foram amizades de
mulheres. Sua afetividade desarmava qualquer apreensão e, ao contrário, criava uma espécie
de cumplicidade. E ele foi fiel nas suas amizades, especialmente às amizades do Rio de
Janeiro, que ele denominou o grupo de s. Joaquim – até o final de sua vida.
D. As Etapas
1. As circunstancias permitem ou não, que uma pessoa se revela ou não revela.
As circunstancias permitiram a dom Helder de revelar a sua personalidade. Ela estava ali,
visível: existia antes das circunstancias. Mas, em outras circunstancias, dom Helder teria sido
um novo dom Leme2, mais brilhante porém distinto nas suas ações. Seus começos permitiam
perceber tal eventualidade. Mas as circunstancias – seria essa a via secreta da Providencia?
– lhe foram mais favoráveis. Houve o Congresso Eucarístico3 em 1955, houve a Ação
Católica e a preparação do Concílio Vaticano II, houve os golpes militares de Estado e os
regimes de Segurança Nacional que estenderam diante de dom Helder um campo imenso de
atuação, uma série de desafios onde ele pode revelar o que trazia em si. Sua mística
2 Dom Leme foi cardeal arcebispo do Rio de Janeiro durante os anos 1930 e 1940
3 Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955.
6. 6
atravessou as fases desta história. Ele sempre permaneceu o mesmo, mas com aplicações
distintas, o que lhe permitiu um aprofundamento progressivo.
2. Quando dom Helder foi ordenado sacerdote em 1931, o plano pastoral de dom
Leme – que não eram mais do que as orientações definidas pelo episcopado após a
separação entre Igreja e Estado – já estava em andamento. O plano visava restabelecer o
poder da Igreja na nova estrutura que lhe foi imposta. A reconquista se faria pela ação direta
sobre as elites dirigentes do país, sobretudo através dos colégios católicos que deviam
converter as crianças dos republicanos em políticos, senhores da terra, mestres do poder sob
todas as formas.
Os bispos logo perceberam os talentos do jovem Helder e resolveram direcioná-los
a serviço de sua política: atuação no mundo da política através da Liga Eleitoral Católica
(LEC), atuação sobre a opinião publica através da imprensa, atuação junto à nova classe
dirigente através da educação católica. O jovem Helder se lançou neste programa episcopal
com todo seu entusiasmo. Sua personalidade era tão privilegiada que o sucesso foi imediato
e ele poderia ter sido o continuador natural da estratégia de dom Leme. Ele teria sido o líder
de uma cristandade restaurada, dominando o Estado com seu poder cultural, como em outros
tempos, e influenciando de modo decisivo o poder político. Helder já estava bem ligado às
elites. As posições que ele ocupou no sistema educacional nacional rapidamente o colocaram
em contato com as pessoas mais importantes da sociedade e do estado brasileiro da época.
Todas as portas no Rio de Janeiro e no Brasil lhe eram abertas.
Responsável pela Ação Católica, ele tinha em mãos as chaves da pastoral na
época. Isso lhe deu o chão para criar a CNBB e depois o CELAM. Foi também o organizador
do famosos Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, quem foi a coração da
primeira fase de sua vida. Ele realizava o sonho de dom Leme. Sua contribuição nas
instancias governamentais brasileiras na preparação e na realização do Congresso
demostraram a importância que a Igreja havia adquirido no cenário político nacional.
Os mestres intelectuais da época serviram apenas para reforçar a politica
episcopal: politica de poder, de reconstrução da cristandade, de vitória sobre a modernidade
que era vivamente condenada pelo magistério da Igreja e, no Brasil, por Jackson de
Figueiredo e o grupo intitulado Tradição, Família e Propriedade, incluindo Alceu Amoroso
Lima no primeiro período. Toda a mística de dom Helder serviu para apoiar essa estratégia
pastoral. Não é preciso surpreender-se. Naquele tempo quase todos os católicos aceitavam
essa orientação da hierarquia: a famosa obediência cegava os olhares de todos. E dom
Helder estava impregnado do culto ao Papa. Se o Papa queria essa pastoral, isso certamente
era do agrado de Deus.
É certo que dom Helder não se engajou nessa via por convicções intelectuais dos
grandes autores católicos de então, nem mesmo de Maritain. Esse inclusive foi acolhido com
receio pelos defensores da TFP, mas depois que perceberam que Maritain defendia também
uma estrutura de cristandade e poderia ser útil à estratégia do episcopado. Mas dom Helder
não era impelido por motivações intelectuais. O que o movia era a obediência à hierarquia. Se
o Papa queria assim, isso bastava: ele não necessitava argumentos intelectuais que jamais
tiveram muita importância para ele.
No início a Ação Católica não modificou os fundamentos de sua visão pastoral. A
Ação Católica se baseava na ação dos leigos para influenciar o Estado e assim reforçar a
ação mais discreta do episcopado, aproveitando-se das oportunidades oferecidas pela
estrutura republicana da sociedade. O objetivo era o mesmo: reconstruir o poder da Igreja na
sociedade. Foi somente a partir da JOC e da JUC, sobretudo depois de 1955, que a Ação
Católica tomou um outro rumo e, pouco a pouco, modificou a visão de dom Helder que era
seu assistente nacional. Mas convem lembrar que antes disso, houve a sua conversão em
1955.
3. A conversão de 1955, por ocasião do Congresso Eucarístico internacional é
bem conhecida e foi relatada muitas vezes. Não é preciso repetir o que já foi bem escrito e
comentado. Essa foi a sua conversão aos pobres. Foi então que dom Helder começou a
descobrir outro mundo e passou a distanciar-se cada vez mais de seu projeto anterior. Isso
7. 7
ocorreu de tal forma que a convivência com dom Jaime4 se tornava cada vez mais difícil e o
cardeal acabou solicitando a sua saída da arquidiocese. A mesma mística que ele dedicou ao
poder da Igreja agora ele consagrava no serviço aos pobres.
Essa conversão foi se desenvolvendo progressivamente. Helder não
compreendeu tudo de uma vez. Mas seus olhos estavam abertos e ele começava a ver o
mundo de outro ponto de vista e isso foi o começo de um novo processo que ele percorreu
em etapas. Após descobrir a miséria das favelas e a necessidade de fazer alguma coisa – por
isso idealizou a Cruzada São Sebastião – dom Helder percebeu pouco a pouco a
complexidade do problema e a que ponto a pobreza estava relacionada à estrutural da
sociedade. Nisso a evolução da Açao Católicca, a preparação do Concilio Vaticano II, a
personalidade de João XXIII, a influencia do padre Gautier e do padre Lebret, dos bispos do
Pacto das Catacumbas em Roma, do cardeal Lecaro e a evidencia escandalosa da opressão
dos pobres pelos detentores do poder marcaram as etapas de um processo progressivo e
decisivo que chegou a seu termo nos anos 70.
Com sua sensibilidade sempre desperta dom Helder compreendeu que a opção
pelos pobres seria um caminho que iria longe, com perspectivas ilimitadas. O medo não o
impedia, como a tantos outros. Ele se engajou com todo o seu entusiasmo. Esse era um
movimento que animava a Igreja no mundo inteiro, ainda que de forma minoritária. Ele tomou
a dianteira desse movimento e foi um dos que lhe deu maior impulso. No fim desse processo
ele pôde ser chamado de o bispo dos pobres!
Em que medida dom Helder percebeu que essa nova orientação estava em
sintonia com Deus e com a sua alma mística? Em que medida ele a percebeu como um
aprofundamento de sua fé? Não tenho autoridade para responder. Quem o conheceu mais
intimamente poderá responder melhor.
Mas está claro que ele assumiu esse novo papel de bispo dos pobres de forma
natural e como se isso sempre tivesse sido a sua forma de viver. É claro que diversos fatores
o ajudaram. Chegando a Recife ele redescobriu seu povo, suas raízes nordestinas, ele
identificou-se com o seu povo nordestino, povo pobre e massacrado. O fato de retornar ao
Nordeste certamente foi muito significativo para ele.
Em segundo lugar, com a ruptura provocada pelo Estado militar, ele perdeu seus
laços com o poder que ele tinha no Rio de Janeiro: ele estava livre para mergulhar no mundo
dos pobres que doravante era também o seu mundo. Prontamente ele se descobriu destituído
de poder.
Com o golpe de Estado militar, ele perdeu seu poder não apenas na sociedade
civil, mas também na CNBB que o rejeitou. O golpe de Estado coincidiu com sua saída da
CNBB. Após anos de sucessos, ele era rejeitado e desprezado por essa mesma conferencia
que ele havia fundado: ele estava ao lado dos pobres e dos oprimidos, com uma nova
identidade que, sem dúvida, correspondia melhor às suas origens e às origens de sua mística
do que os triunfos do Rio de Janeiro.
Com o regime militar começava um período de perseguição, de ameaças que o
tornaram cada vez mais solidário aos pobres perseguidos e oprimidos. Ele reencontrou a sua
verdadeira natureza. O despojamento das glórias do Rio de Janeiro marcou uma ascensão.
Sua mística foi provavelmente muito mais despojada que antes.
Uma vez feita a descoberta da Igreja dos pobres, ele foi fiel até o fim. Ele
reencontrou Deus nos pobres, sem perder o contato com todas as pessoas. O concilio lhe
ofereceu o contexto adequado. Ele achava que de certa maneira toda a Igreja descobriria
esse caminho, embora muitos ficassem assustados e retornassem à segurança tradicional.
Na América Latina surgiram diversos bispos proféticos como ele, cada qual a sua
maneira, mas com uma profundidade e uma radicalidade semelhantes: Manuel Larrain no
Chile, Leônidas Proaño no Equador, Samuel Ruiz no México foram as estrelas mais brilhantes
entre dezenas de outros menos conhecidos, mas também radicalmente engajados. Estes
foram os bispos de Medellín e de Puebla. Dom Helder foi de certa forma um líder secreto,
4 Dom Jaime de Barros Camara:, sucessor do Cardeal Leme, foi Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro
e teve como bispo auxiliar dom Helder Câmara até 1964.
8. 8
discreto mas real, deste grupo. Tanto em Medellín como em Puebla, ele foi um símbolo visível
da opção pelos pobres. Não somente um símbolo, mas o grande mestre da ação.
Na opção pelos pobres ele experimentou toda a sua sensibilidade, o seu afeto, o
seu dom de comunicação. Ele se tornou mais simples ainda e se concentrou naquilo que
havia de mais profundo. Doravante o amor de Deus era o amor aos pobres.
É verdade que ele se tornou o bispo dos pobres favorecido pela circunstancia que
constituía a grande virada da Igreja no Concilio e em Medellín. Mas ele soube captar a hora
exata dos sinais dos tempos e entrar inteiramente no trem da história. Fazendo história ele se
fez a si mesmo. Ninguém se faz sozinho, sem o contexto que o envolve. Não apenas ele
entrou nesse movimento, mas pela força de seu carisma, ele rapidamente tornou-se o líder de
uma multidão dentro e fora da Igreja.
Ele logrou converter parte do episcopado e esteve na origem dos extraordinários
primeiros 24 anos da CNBB presidida por Aloisio Lorscheider, Ivo Lorscheiter e Luciano
Mendes de Almeida. Fato único na história: 24 anos de continuidade numa mesma linha que
era exatamente a linha que dom Helder traçou a partir de Recife, quando ficou exilado longe
do poder após o golpe militar.
4. Arcebispo de Recife e Olinda, dom Helder tornou-se uma figura mundial. Aqui
também as circunstancias o ajudaram. Entre os anos 60 e 75, o assim chamado primeiro
mundo foi sacudido por movimentos revolucionários e, sobretudo, interessou-se pelas
revoluções no terceiro mundo. A América Latina estava na ordem do dia. O mundo ansiava
pelas noticias da América. Dom Helder chegou justamente nesta hora em que era esperado
alguém como ele. Hoje talvez não lhe prestariam a mesma atenção, pois o primeiro mundo
perdeu todo interesse pelo resto do mundo, considerado apenas enquanto mercado
consumidor. Portanto dom Helder surgiu no momento certo. Mas a genialidade consiste
precisamente em saber entender os sinais dos tempos e aproveitar as circunstancias. Ele não
calculou isso de antemão, mas tudo foi se sucedendo através de uma intuição espontânea.
Não podemos dizer que dom Helder escolheu ou procurou este papel; pelo
contrário, nem era próprio do seu temperamento. Por natureza, ele era pacífico e não gostava
de conflitos. Mas foi levado pelas circunstancias. Não forçado, mas percebeu os sinais de tal
modo que se sentiu impelido a corresponder e agir.
Ele foi o profeta da resistência aos regimes militares, da defesa dos direitos
humanos e dos direitos dos oprimidos. Por isso foi convidado em diversos países onde a
palavra era livre e tornou-se um símbolo. Dizendo de outro modo, o seu jeito cearense de ser
– os gestos, a afetividade, a vivacidade, a espontaneidade – essa mistura de mística e de
realismo político fascinaram o público do primeiro mundo.
Ele foi denuncia à Roma como se podia prever e as denuncias foram mais
acolhidas do que poderia se prever. Ele foi incompreendido em Roma e castigado sem
piedade. O papa Paulo VI mesmo, que o estimava muito, disse-lhe um dia que ele poderia
continuar sua atuação mas que o Papa não poderia apoiá-lo publicamente sempre. Suas
viagens foram limitadas assim como as suas manifestações publicas.
Ele foi tratado como uma criança tutelada, como o faz a cúria romana –
instrumento de infantilização da Igreja católica. Ele aceitou tudo. Foi reprimido pela cúria que
o perseguiu de forma astuciosa como podem fazer os administradores. Ele suportou tudo com
paciência. Como não era um homem de conflitos, ele se submeteu a todas as humilhações
que lhe foram impostas. Ele não procurou se defender. Ele poderia ter recorrido ao papa
Paulo VI. Mas não o fez e o Papa também não teve muita coragem e deixou-se levar pela
cúria da qual ele era mais servidor do que guia.
Mesmo assim, com Paulo VI, dom Helder tinha um defensor. Após a sua morte,
ele ficou indefeso, isolado e a cúria logrou aniquilá-lo a ponde de lhe dar um sucessor que
todos bem conheceram. Era evidente que João Paulo II não o compreendeu. Ele precisou
esforçar-se para compreendê-lo. Ele estava impressionado pela imensa consideração que
dom Helder gozava na América Latina e no mundo todo. Mas ele não o compreendeu e
escutou as criticas que vinham não apenas das classes dominantes do Brasil, mas também
de certos colegas do episcopado que galgaram posições de poder na cúria romana.
9. 9
Em Roma suas viagens foram limitadas, como se isso ameaçasse o poder ou a
popularidade do Papa. Foi criticado sistematicamente. Na verdade, o próprio dom Helder não
queria ter esse papel de líder mundial. Atribuía-se a ele a imagem de alguém muito conflitivo,
embora ele buscasse sempre e somente a paz e pregasse a não violência. Ele vivia um
conflito interior. O episódio do discurso em Paris5, quando começou na prática o seu papel
profético diante do regime militar é esclarecedor. Ele foi forçado pela sua missão profética.
Ele foi forçado por Deus a se pronunciar. Ele mesmo não queria e teria fugido se pudesse,
mas ele assumiu, ele precisava assumir essa imensa provação.
De fato ele sofreu muito mais do que outros, pois ele não era feito para o conflito.
Em comparação com outros bispos da mesma envergadura, ele sofreu mais do que eles. Os
outros estavam mais preparados para enfrentar hostilidades e perseguições. Ele não, ele era
completamente desarmado. Mas ele aceitou, ele não recusou o papel que a historia lhe
impunha. Ele experimentava que essa era a vontade de Deus. Sua mística se tornou mais
dolorosa, passava pela cruz. Outros teria inventado diversos pretextos para se esquivarem.
Ele se fez disponível, ele deixou-se conduzir até onde Deus o quis levar. Ele compreendeu e
aceitou. E isso não foi sem muito sofrimento. Ele não lamentou e jamais demonstrou o seu
imenso sofrimento.
5. Ele não sabia que o pior ainda estava por vir. Jamais ele pressentiu o que Deus
lhe reservava para o final de sua vida. Foi de fato o desaparecimento completo de todo poder
humano.
Seus últimos 14 anos de vida foram de noite escura - uma noite interminável. O
que se passou então no coração de dom Helder? Outros poderiam sabê-lo melhor do que eu.
O que ele expressou no decurso dessa longa, interminável noite? Quem pode recolher os
menores sinais devia publicá-los, pois as gerações futuras devem conhecer isso.
É certo que ele se recolheu na fé de sua infância, ele se recolheu com toda
intensidade de sua energia mística. Mergulhando na noite escura, ele se recolhe no silencio.
Jamais disse a alguém o que ele sofreu. Nós o podemos imaginar a partir de tudo o que foi
vivenciado desde então. Foi uma longa provação, uma lenta ascensão ao calvário.
Apesar de tudo, dom Helder jamais perdeu a esperança, esperou contra toda
esperança e acreditava que a provação seria passageira. Como antes, como sempre, ele
procurava os menores indícios de uma possível mudança. Pensou mesmo que dom Marcelo
seria o seu sucessor. E como terá reagido ele quando, ao aproximar-se o final de sua vida,
ele percebeu que isso não aconteceria, que a noite duraria até a sua morte, que o Pai o havia
abandonado como a Jesus na cruz? Com a certeza de que o Amor é mais forte. Jamais ele
quis atribuir-se qualquer importância. Ele quis ser simples, um poeta, puro amor e até o fim
ele se saciou com isso. Ele se recolheu na simplicidade do começo. Ele jamais se lamentou.
Na saída do túnel, ele esperou o fim, o reino de Deus na sua plenitude. Será que ele viu
alguma luz no fim do túnel antes de morrer? Quem o sabe? Seria importante recolher os
mínimos indícios de seus derradeiros sentimentos ao cruzar sua noite escura, quando ele já
não via mais nenhum sinal objetivo de esperança, quando a noite se fez definitiva.
Enfim, a vida de dom Helder foi uma aventura mística. Ele viveu o começo num
ambiente de triunfo. Depois, pouco a pouco, em sofrimento crescente. Sua vida é parecida à
vida de Jesus que também começou com triunfos para depois seguir o caminho da cruz, dia
após dia mais consciente de qual seria o seu destino final nesta terra. Mas também com a
certeza da ressurreição e da irrupção da plenitude do mundo novo tão sonhado, do qual ele
foi o profeta desde o inicio.
5 A conferencia estava prevista para um local pequeno, mas acabou se realizando no Palácio dos
Esportes que mesmo assim foi insuficiente para acolher todos os ouvintes.
10. 9
Em Roma suas viagens foram limitadas, como se isso ameaçasse o poder ou a
popularidade do Papa. Foi criticado sistematicamente. Na verdade, o próprio dom Helder não
queria ter esse papel de líder mundial. Atribuía-se a ele a imagem de alguém muito conflitivo,
embora ele buscasse sempre e somente a paz e pregasse a não violência. Ele vivia um
conflito interior. O episódio do discurso em Paris5, quando começou na prática o seu papel
profético diante do regime militar é esclarecedor. Ele foi forçado pela sua missão profética.
Ele foi forçado por Deus a se pronunciar. Ele mesmo não queria e teria fugido se pudesse,
mas ele assumiu, ele precisava assumir essa imensa provação.
De fato ele sofreu muito mais do que outros, pois ele não era feito para o conflito.
Em comparação com outros bispos da mesma envergadura, ele sofreu mais do que eles. Os
outros estavam mais preparados para enfrentar hostilidades e perseguições. Ele não, ele era
completamente desarmado. Mas ele aceitou, ele não recusou o papel que a historia lhe
impunha. Ele experimentava que essa era a vontade de Deus. Sua mística se tornou mais
dolorosa, passava pela cruz. Outros teria inventado diversos pretextos para se esquivarem.
Ele se fez disponível, ele deixou-se conduzir até onde Deus o quis levar. Ele compreendeu e
aceitou. E isso não foi sem muito sofrimento. Ele não lamentou e jamais demonstrou o seu
imenso sofrimento.
5. Ele não sabia que o pior ainda estava por vir. Jamais ele pressentiu o que Deus
lhe reservava para o final de sua vida. Foi de fato o desaparecimento completo de todo poder
humano.
Seus últimos 14 anos de vida foram de noite escura - uma noite interminável. O
que se passou então no coração de dom Helder? Outros poderiam sabê-lo melhor do que eu.
O que ele expressou no decurso dessa longa, interminável noite? Quem pode recolher os
menores sinais devia publicá-los, pois as gerações futuras devem conhecer isso.
É certo que ele se recolheu na fé de sua infância, ele se recolheu com toda
intensidade de sua energia mística. Mergulhando na noite escura, ele se recolhe no silencio.
Jamais disse a alguém o que ele sofreu. Nós o podemos imaginar a partir de tudo o que foi
vivenciado desde então. Foi uma longa provação, uma lenta ascensão ao calvário.
Apesar de tudo, dom Helder jamais perdeu a esperança, esperou contra toda
esperança e acreditava que a provação seria passageira. Como antes, como sempre, ele
procurava os menores indícios de uma possível mudança. Pensou mesmo que dom Marcelo
seria o seu sucessor. E como terá reagido ele quando, ao aproximar-se o final de sua vida,
ele percebeu que isso não aconteceria, que a noite duraria até a sua morte, que o Pai o havia
abandonado como a Jesus na cruz? Com a certeza de que o Amor é mais forte. Jamais ele
quis atribuir-se qualquer importância. Ele quis ser simples, um poeta, puro amor e até o fim
ele se saciou com isso. Ele se recolheu na simplicidade do começo. Ele jamais se lamentou.
Na saída do túnel, ele esperou o fim, o reino de Deus na sua plenitude. Será que ele viu
alguma luz no fim do túnel antes de morrer? Quem o sabe? Seria importante recolher os
mínimos indícios de seus derradeiros sentimentos ao cruzar sua noite escura, quando ele já
não via mais nenhum sinal objetivo de esperança, quando a noite se fez definitiva.
Enfim, a vida de dom Helder foi uma aventura mística. Ele viveu o começo num
ambiente de triunfo. Depois, pouco a pouco, em sofrimento crescente. Sua vida é parecida à
vida de Jesus que também começou com triunfos para depois seguir o caminho da cruz, dia
após dia mais consciente de qual seria o seu destino final nesta terra. Mas também com a
certeza da ressurreição e da irrupção da plenitude do mundo novo tão sonhado, do qual ele
foi o profeta desde o inicio.
5 A conferencia estava prevista para um local pequeno, mas acabou se realizando no Palácio dos
Esportes que mesmo assim foi insuficiente para acolher todos os ouvintes.