AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. POSSIBILIDADE. REQUISITOS PROCESSUAIS PRESENTES. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA. VIABILIZAÇÃO DO ACESSO DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA AOS LOCAIS FRANQUEADOS AO PÚBLICO EM GERAL. MANDAMENTO CONSTITUCIONAL. LEI REGULADORA INCIDENTE DESDE 2004. INÉRCIA CARACTERIZADA. LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO. PRAZO DE 60 DIAS PARA APRESENTAÇÃO DE PROJETOS. RAZOABILIDADE. OBRAS QUE JÁ DEVERIAM TER SIDO FINDADAS
Agravo de instrumento. ação civil pública. antecipação
1. Superior Tribunal de Justiça
SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 1.423 - BA
(2011/0172008-8)
REQUERENTE : MUNICÍPIO DE SALVADOR
PROCURADOR : PEDRO AUGUSTO COSTA GUERRA E OUTRO(S)
REQUERIDO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA
DECISÃO
1. Os autos dão conta de que o Ministério Público do
Estado da Bahia ajuizou ação civil pública, com pedido de
antecipação dos efeitos da tutela, contra o Município de
Salvador, BA, requerendo que fosse determinado "à ré o
cumprimento dos dispositivos constantes do Decreto Federal
5.296/2004, que regulamenta as Leis 10.048/00 e 10.098/00, com
prazos já vencidos, mediante o início imediato das obras de
adaptação dos edifícios e logradouros de uso público,
incluindo todas as escolas municipais, creches, ambulatórios,
postos de saúde, hospitais, locais de prestação de serviços
públicos de relevância, estações de transbordo de
ônibus/trens/embarcações, pontos de ônibus, passeios, praças,
jardins, teatros, estádios, casas de espetáculos, auditórios,
cinemas, ginásios de esportes, salas de conferências e
similares, enfim, todos os locais de desfrute da população
mantidos pela municipalidade, devendo apresentar no prazo de
60 (sessenta) dias os projetos arquitetônicos e cronogramas de
obras com previsão para término, sob pena de cominação de
multa diária no valor de R$ 5.000,00" (fl. 61/104).
O MM. Juiz de Direito da 5ª Vara de Fazenda Pública de
Salvador Dr. Mário Augusto Albiani Alves Junior deferiu a
antecipação dos efeitos da tutela (fl. 350/353), decisão
mantida pela Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia, no âmbito de agravo de instrumento, relatora
a Desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, em acórdão
assim ementado:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANTECIPAÇÃO
DE TUTELA. POSSIBILIDADE. REQUISITOS PROCESSUAIS PRESENTES.
PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA HUMANA.
VIABILIZAÇÃO DO ACESSO DOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA FÍSICA
AOS LOCAIS FRANQUEADOS AO PÚBLICO EM GERAL. MANDAMENTO
CONSTITUCIONAL. LEI REGULADORA INCIDENTE DESDE 2004. INÉRCIA
CARACTERIZADA. LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO.
PRAZO DE 60 DIAS PARA APRESENTAÇÃO DE PROJETOS. RAZOABILIDADE.
OBRAS QUE JÁ DEVERIAM TER SIDO FINDADAS. ELASTICIDADE DO PRAZO
COM A SUSPENSIVIDADE DEFERIDA. OPORTUNIDADE DE INICIAR OS
PROCEDIMENTOS. POSSIBILIDADE DE SE DEMONSTRAR COM EFICÁCIA A
DISPOSIÇÃO DE CUMPRIMENTO E EVENTUAL IMPOSSIBILIDADE MATERIAL.
DECISÃO DOTADA DE REVERSIBILIDADE. LIMITES COGNITIVOS DA VIA
RECURSAL ELEITA. INJURIDICIDADE NÃO DEMONSTRADA. MANUTENÇÃO DO
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DECISUM. AGRAVO IMPROVIDO.
A antecipação da tutela contra a Fazenda Pública esbarra
em limites cuja constitucionalidade foi consagrada pelo STF.
Contudo, a prévia necessidade de audiência do representante do
Ente Público, assim como o não deferimento de decisões
satisfativas, não se prestam a obstar a implementação dos
direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo quando o
descaso público salta aos olhos. Não cabe ao judiciário trazer
para si o encargo de deliberar sobre conveniência e
oportunidade da atividade administrativa, porém quando a
inércia do Ente obrigado transgride a própria dignidade humana
a intervenção se impõe, pois a questão extrapola as discussões
sobre o poder discricionário. O acesso dos portadores de
deficiência aos locais franqueados ao público em geral lhes é
garantido constitucionalmente e a legislação
infraconstitucional cuidou de regularizá-lo desde 2004. A
obrigação, portanto, não pode ser considerada a partir da
imposição judicial, eis que já vigia desde muito antes do
próprio ajuizamento e nada indica disposição do Agravante em
cumpri-la. Desse modo, não há como se ter o prazo de 60 dias
como insuficiente, até porque apenas determinou a apresentação
do projeto no qual o certame estará considerado o cronograma
das obras cujo início deverá ser imediato - dada a
extrapolante omissão - mas a realização seguirá o curso
necessário à implementação. A necessidade de adoção de
complexas medidas administrativas para o cumprimento da
decisão teve a sua dificuldade mitigada, eis que se de fato
estiver determinada a honrar com sua obrigação, a
Administração contou com o tempo em que a decisão teve
suspensos os seus efeitos para iniciar as gestões necessárias.
Não residindo nos autos do recurso efetiva demonstração de
impossibilidade material do cumprimento, lastreada
necessariamente com a prova das medidas até então adotadas
para sua implementação, resta ao Agravante postular dilação do
prazo diretamente ao juízo primário, vez que a via recursal
eleita possibilita tão somente o exame do provimento
impugnado. Injuridicidade não demonstrada. Agravo improvido"
(fl. 744/745).
2. Daí o presente pedido de suspensão, articulado pelo
Município de Salvador, destacando-se nas respectivas razões os
seguintes trechos:
Grave lesão à ordem administrativa
"... o que se vê é uma indiscutível ingerência judicial
(i) no andamento dos projetos já elaborados para a promoção da
acessibilidade, já que eles em momento algum foram
considerados na decisão impugnada, que simplesmente atropela,
por assim dizer, as posturas administrativas adotadas pelo
Município, (ii) na forma como as alterações devem ser
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implementadas no espaço público, tendo em vista que deixa de
ponderar a relação entre o fim a que se quer chegar e os meios
necessários para tanto, esquecendo-se dos estudos técnicos
preliminares que precisam ser feitos para que uma tão
ambiciosa meta possa ser alcançada, (iii) na opção que o
Município pode fazer pela contratação de empresa ou consórcio
de empresas exclusivamente para que fala o projeto básico,
precedido dos estudos urbanísticos necessários, contemplando
as adaptações para a implementação da acessibilidade, coisa
que fica absolutamente inviabilizada em função do exíguo prazo
assinalado para a tomada de providências.
Considerando que o Supremo Tribunal Federal aproxima o
conceito de ordem administrativa ao de 'ordem administrativa
em geral, concebida esta como a normal execução dos serviços
públicos, o regular andamento das obras públicas e o devido
exercício das funções da Administração pelas autoridades
constituídas' (SS 4178, Min. Gilmar Mendes, julgado em
22.04.2010), percebe-se que a decisão ofende essa ordem
administrativa porque:
i) afeta a normal execução dos serviços públicos de duas
formas: (a) primeiro, porque os gestores municipais da
Administração Pública direta e indireta terão que virar os
olhos e concentrar esforços no cumprimento da ordem judicial,
dando solução à demanda social escolhida pelo Poder Judiciário
em detrimento, inclusive financeiro, de todos os demais
serviços públicos prestados à comunidade; (b) segundo, porque,
do ponto de vista prático, muitas repartições municipais terão
que sofrer alterações de horários e de regime, a fim de que
possam ser viabilizados os estudos e as obras impostas
judicialmente.
ii) afeta o regular andamento das obras públicas também
de duas formas: (a) primeiro, porque o tribunal a quo está
ditando ao gestor municipal quais são as prioridades que devem
ser atendidas e, portanto, dentre todas as obras públicas de
interesse da população, quais aquelas que devem ser planejadas
e executadas primeiramente; (b) segundo, porque, quanto às
obras públicas relacionadas à acessibilidade ou que a levem em
consideração, cujos projetos já estão em andamento, terminam
por restar inteiramente afetadas em seus estudos, projetos e
cronogramas, já que foram desconsideradas em prol de uma nova
obrigação a ser cumprida em um novo prazo pela Administração
Municipal;
iii) afeta o exercício das funções da Administração pelas
autoridades constituídas, porque é o tribunal, e não o gestor,
quem está escolhendo a destinação dos recursos públicos, é o
tribunal, e não o gestor, quem está elegendo as prioridades
sociais atendíveis, é o tribunal, e não o gestor, quem está
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determinando não apenas o quê deve ser feito, mas também o
como fazer, na medida em que inviabiliza, por exemplo, que o
Município contrate terceiros particulares para planejar e
executar as obras necessárias à promoção da acessibilidade"
(fl. 30/31).
Lesão à economia pública
"A decisão tem aptidão para afetar a economia pública.
Há, inicialmente, o custo de promoção da acessibilidade
em cada um dos edifícios e logradouros públicos.
Apenas para fins de comparação e de estimativa de custo,
toma-se como exemplo o Projeto de Acessibilidade para Estações
Ferroviárias de Salvador, desenvolvido pela Companhia de
Transporte de Salvador (CTS), cuja cópia segue anexa. O
referido projeto tem por objetivo exatamente promover a
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou que
tenham mobilidade reduzida às 10 estações ferroviárias
existentes na cidade de Salvador.
Nos termos do aludido projeto, dentre as despesas com
projetos, adequações arquitetônicas, aquisição e instalação de
elevadores acessíveis, instalação de pisos táteis direcionais,
instalação de sinalização acessível (horizontal, vertical e
sonora), adaptação do material rodante e capacitação de
recursos humanos, estima-se um gasto total de mais de R$ 6,5
milhões.
Por outro lado, o custo estimado pela Prefeitura de São
Paulo para a contratação de empresas no intuito de detalhar e
aprimorar os projetos urbanísticos elaborados pela Secretaria
Municipal de Desenvolvimento Urbano da capital paulista, com
vistas a fornecer subsídios aos projetos de lei de concessões
urbanísticas das operações Lapa-Brás, Mooca-Vila Carioca e Rio
Verde-Jacu vai de R$ 9,8 milhões a R$ 10,8 milhões.
Não custa enfatizar que, na experiência paulista ora
relatada, o objeto da contratação é bem mais singelo
(detalhamento e aprimoramento de projetos já prontos) e têm
uma amplitude bem mais reduzida (são três licitações, cada uma
tendo por objeto uma destas operações urbanas envolvendo os
bairros Lapa-Brás, Mooca-Vila Carioca e Rio Verde-Jacu).
A questão se torna ainda mais grave quando se levam em
consideração os esforços que o Município tem envidado no
sentido de atender às exigências de adequação do seu espaço
urbano e dos seus serviços para receber os jogos da Copa do
Mundo de 2014, fato notório e amplamente divulgado pela mídia,
o que implica, como é natural, um comprometimento ainda maior
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do seu orçamento.
Com isso, eventual destinação de recursos públicos para a
finalidade eleita pela decisão impugnada pode comprometer o
orçamento destinado à realização de outras finalidades.
No entanto, a maior ameaça à economia pública não é esta.
O maior prejuízo que o erário municipal pode sofrer é
aquele decorrente da incidência da multa coercitiva diária
fixada na decisão impugnada, sobretudo diante da
impossibilidade material de cumprir a ordem judicial, já que o
prazo fixado é sobremaneira exíguo e o objeto prestacional é
demasiadamente amplo e indeterminado.
A decisão impugnada é inespecífica quanto ao objeto da
prestação que impõe. A acessibilidade que ela visa implementar
é genérica e não delimita exatamente os espaços urbanos que
precisam ser modificados. Ratifica completamente a decisão
singular que fala em 'edifícios e logradouros de uso público,
incluindo todas as escolas municipais, creches, ambulatórios,
postos de saúde, hospitais, locais de prestação de serviços
públicos de relevância, estações de transbordo de
ônibus/trens/embarcações, pontos de ônibus, passeios, praças,
jardins, teatros, estádios, casas de espetáculos, auditórios,
cinemas, ginásios de esportes, salas de conferências e
similares, enfim, todos os locais de desfrute da população
mantidos pela municipalidade" (fl. 316/317).
Como se vê, falta de tudo genericamente, sem cuidar de
nada de modo específico.
A despeito disso, o prazo fixado - 60 dias - é
sobremaneira exíguo. Nesse prazo talvez seja difícil até mesmo
apresentar o projeto arquitetônico de construção ou reforma de
uma só escola, quiçá de uma cidade inteira.
Conjugando esses dois fatores - indeterminação do objeto
prestacional e exiguidade do prazo para cumprimento -, pode-se
dizer mesmo que, ainda que tenha plenas condições materiais e
econômicas de cumprir a ordem no prazo fixado, o Município
nunca terá controle absoluto quanto à integralidade do
cumprimento.
Vale pensar no seguinte: o objeto prestacional imposto
pelo acórdão cuja eficácia se quer suspender é tão amplo e
vasto que, por mais que o Município se esforce para cumprir o
comando decisório, o fato de qualquer logradouro, via,
edifício ou equipamento público municipal ter ficado de fora
do projeto implicará, inexoravelmente, a imposição das
astreintes, sob o fundamento de que teria havido
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descumprimento" (fl. 32/34).
3. No âmbito do pedido de suspensão, o Presidente do
Tribunal emite juízo político acerca dos efeitos da decisão
impugnada, tendo presente os eventuais danos do provimento
judicial aos valores protegidos pelo art. 4º da Lei nº 8.437,
de 1992 (ordem, saúde, economia e segurança públicas ).
Na espécie, a decisão cujos efeitos se quer suspender não
causa grave lesão à ordem administrativa, porquanto apenas
determina que a Administração Pública cumpra obrigação
decorrente de norma federal (Decreto nº 5.296, de 2004, que
regulamentou as Leis nº 10.048 e 10.098, de 2000 ), providência
que já tarda, portanto, há (7) sete anos.
Sob o viés da exiguidade do prazo judicial assinado para
esse efeito, vale registrar que o agravo de instrumento
interposto no tribunal de origem tramitou sob efeito
suspensivo por mais de 06 (seis) meses, de modo que o prazo
inicial de 60 (sessenta) dias para cumprimento da decisão já
foi consequentemente dilatado por esse período.
De todo modo, o prazo assim como os outros aspectos da
medida liminar impugnados na petição inicial (v.g. a
generalidade da ordem ), devem objeto de pedido de reforma ou
de esclarecimentos perante o juiz da causa que poderá rever
sua decisão, inclusive quanto à aplicação de multa pelo
eventual descumprimento da ordem.
Indefiro, por isso, o pedido.
Intimem-se.
Brasília, 29 de julho de 2011.
MINISTRO ARI PARGENDLER
Presidente
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